PROCESSO DE INVENTÁRIO
IMPUGNAÇÃO DO PASSIVO
APROVAÇÃO DO PASSIVO
EXISTÊNCIA DE DÍVIDA
CONFERÊNCIA DE INTERESSADOS
Sumário

I - O regime legal do inventário previsto nos artigos 1082º a 1135º do Código de Processo Civil, na redação da lei 117/2019 de 13/09, introduziu um novo paradigma do processo de inventário, mediante novo modelo processual assente em fases processuais relativamente estanques, nas quais rege o princípio da concentração.
II - Na medida em que fixado pela lei para cada ato das partes um momento próprio para a sua realização, resultam cominações e preclusões.
II - É na subfase da oposição que se procede à delimitação do património hereditário (ativo e passivo), antecipando-se (tendencialmente) para esse momento processual a verificação do passivo, que antes ocorria na conferência de interessados, (cfr artigos 1104º a 1106º).
IV - No momento da conferência de interessados, já realizadas a verificação e o reconhecimento do passivo, seja porque se verificou o reconhecimento expresso ou a admissão por acordo, seja porque houve proferimento de decisão judicial que reconheceu a dívida controvertida. Apenas fica relegado para o momento da conferência, a aprovação de passivo quanto ao qual as partes tivessem sido remetidas para os meios comuns e sempre a deliberação sobre a forma e o momento do cumprimento dos encargos anteriormente verificados.
V - Tem-se por inadmissível a impugnação (ulterior ou superveniente) pela cabeça-de-casal que relaciona a dívida da herança da existência/realidade da mesma dívida. Apenas e só uma causa extintiva da dívida pode ser supervenientemente invocada/convocada. É o que resulta do regime legal da impugnação, mas ainda o que o impõe um comportamento conforme aos ditames da boa fé, constituindo uma atuação abusiva a invocação/negação de uma dívida relacionada por si própria.

Texto Integral

Processo: 252/21.2T8VLC.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro/Juízo de Competência Genérica de Vale de Cambra


Relatora: Isabel Peixoto Pereira
1º Adjunto: Leonel Serôdio
2º Adjunto: Ana Vieira

*

Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:


I.
Pendente no Cartório Notarial da Sra. Notária AA, em ..., foi remetido a juízo, ao abrigo do disposto nos artigos al. b) do n.º 2 do artigo 12.º da Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, processo de inventário, em que é requerente BB e inventariado CC no estado de casado com DD, no regime da comunhão geral de bens, e em que foi designada cabeça-de-casal aquela DD que identificou como interessados a própria, BB, requerente, EE, FF, GG e HH.
A cabeça-de-casal indicou como verba do passivo: “Banco 1..., S.A.”, com sede na Praça ..., Porto. Processo nº 385/14.1T8OAZ – J1 da 3ª secção de execução da instância central de Oliveira de Azeméis da comarca de Aveiro, quantia exequenda. ….. 45.416,36.”.
A referida verba do passivo e a correspondente reclamação de créditos foi impugnada pelos demais interessados, ou seja, por BB, pela sociedade “A..., Lda., cessionária de um dos interessados, por FF, por GG e por HH, sendo que a M.ma Juiz entendeu que tal impugnação a ser procedente apenas tem reflexos na quota parte destes.
No mais, decidiu que:
«Dispõe o n.º 1 do artigo 1106.º do CPC que “as dívidas relacionadas que não hajam sido impugnadas pelos interessados diretos consideram-se reconhecidas, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 574.º, devendo a sentença homologatória da partilha condenar no respetivo pagamento.”
E o n.º 3 do artigo 1106.º do CPC que “se todos os interessados se opuserem ao reconhecimento da dívida, o juiz deve apreciar a sua existência e montante quando a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados.”.
Já o n.º 4 estabelece que “se houver divergências entre os interessados acerca do reconhecimento da dívida, aplica-se o disposto nos n.ºs 1 e 2 relativamente à quota-parte dos interessados que a não impugnem e quanto à parte restante observa-se o disposto no número anterior.”.
Uma vez que a cabeça-de-casal relacionou a dívida temos, desde já, um reconhecimento parcial correspondente à quota parte da cabeça-de-casal.»
Também a “B... DAC” se apresentou nos autos a reclamar um crédito sobre a herança, pelo requerimento com a referência 119215300 (de 28.04.2020).
Veio a referida sociedade reclamar que a dívida relacionada pela cabeça de casal é, afinal, no valor de 60.164,51€ em vez do montante de 45.416,36€ constante da relação de bens como dívida ao “Banco 1..., S.A.”. Alega a reclamante, em síntese, que a dívida foi-lhe cedida pelo “Banco 1..., S.A.” e que, para além do montante reconhecido pela cabeça-de-casal e constante das livranças, há a considerar juros de mora à taxa legal de 4% mais imposto de selo à taxa de 4% sobre os juros e outras quantias calculadas pela Sra. Agente de Execução na acção executiva que, entretanto, se extinguiu, nomeadamente 76,50€ de taxa de justiça paga pelo exequente na acção executiva e 4.100,62€ de honorários e despesas do Agente de Execução.
Além dos interessados, também a cabeça-de-casal DD, não obstante ter relacionado uma dívida no montante de 45.416,36€ identificada na relação de bens como dívida ao “Banco 1..., S.A.” que, entretanto, foi cedida à “B... DAC”, vem, no seu requerimento com a referência 13600026, impugnar o crédito reclamado.
Para isso, também impugna a letra e assinatura constante das livranças e alega que o seu preenchimento foi abusivo até porque não foram juntos aos autos os documentos que basearam o preenchimento das livranças nem o pacto de preenchimento.
Pede que a reclamante seja notificada para juntar aos autos o pacto de autorização de preenchimento das livranças e os documentos bancários que atestem o valor do crédito da reclamante à data em que as livranças foram preenchidas.
Decidiu, nessa parte a Sra. Juiz que, (…) «quanto à dívida relacionada pela cabeça-de-casal resultou um reconhecimento parcial do montante de 45.416,36€ [sendo 45.046,45€ de capital, 355,68€ de juros de mora vencidos até 04.10.2014 à taxa legal de 4% e 14,23€ de imposto de selo de 4% sobre o valor dos juros] na parte correspondente à quota parte da cabeça-de-casal que a reconheceu ao tê-la relacionado na relação de bens e uma abstenção do tribunal em decidir acerca da dívida controvertida quanto às quotas partes dos demais interessados que não reconheceram a existência da dívida.
Tendo em conta o exposto, apenas importa, agora, considerar o montante reclamado pela credora “B... DAC” relativamente à quota parte da cabeça-de-casal. De facto, se no que diz respeito à quota parte dos demais interessados na dívida de capital, o tribunal se absteve de conhecer da sua existência, é óbvio que também na parte que excede o capital, a credora reclamante tem de ser remetida para os meios comuns relativamente à quota parte desses mesmos herdeiros.
Já no que diz respeito à quota parte da cabeça-de-casal importa dizer o seguinte:
O valor aposto nas livranças é o valor do capital em dívida sendo certo que a dívida vence juros de mora à taxa legal de 4% tal como reclamado. De facto, dispõe o artigo 4.º do DL n.º 262/83, de 16 de Junho que “O portador de letras, livranças ou cheques, quando o respectivo pagamento estiver em mora, pode exigir que a indemnização correspondente a esta consista nos juros legais.”
Por outro lado, a dívida de juros implica a dívida do imposto de selo previsto pelo artigo 17.3.1. da Tabela Geral do Imposto do Selo, que incide sobre os juros das operações bancárias, constituindo encargos dos clientes beneficiários da operação, ou seja, são despesas que acrescem legalmente aos juros devidos pelas livranças e respondendo o avalista nos mesmos termos que o subscritor da livrança, o avalista é devedor destes valores.
Assim, para além do capital em dívida aposto nas livranças, são devidos juros de mora à taxa legal de 4% desde o vencimento das livranças até integral pagamento e, ainda, o imposto de selo à taxa de 4% sobre o valor dos juros vencidos e vincendos até integral pagamento o que, aliás, a cabeça-de-casal já reconheceu no que diz respeito aos juros e imposto de selo até 04.10.2014.
Já no que diz respeito a outros valores indicados na reclamação porque “calculados” pelo Agente de Execução, nomeadamente 76,50€ de taxa de justiça paga pelo exequente na acção executiva ou 4.100,62€ de honorários e despesas do Agente de Execução peticionadas na acção executiva, é óbvio que não são devidos uma vez que não foi da responsabilidade dos executados a extinção da acção executiva por deserção e, portanto, os valores ali calculados pela Agente de Execução eram devidos na altura mas não nesta sede.
Pelo exposto, importa também reconhecer parcialmente a dívida reclamada pelo credor “B... DAC”, no que excede o valor de 45.416,36€, apenas quanto ao valor dos juros de mora vencidos e vincendos sobre 45.046,45€ a partir de 05.10.2014 até integral pagamento, à taxa de juros legais de 4% bem como do imposto de selo que incida sobre os juros de mora também à taxa de 4% mas apenas na parte correspondente à quota parte da cabeça-de-casal.
Aqui chegados, por tudo o que se vem de referir, julga-se improcedente a reclamação apresentada pelo cabeça-de-casal (…) e, em consequência, declara-se (pontos i. e ii.) (…):
i. Reconhecida parcialmente à credora “B... DAC” a dívida de 45.416,36€ [sendo 45.046,45 € de capital, 355,68€ de juros de mora vencidos até 04.10.2014 à taxa legal de 4% e 14,23€ de imposto de selo de 4% sobre o valor dos juros] na parte correspondente à quota parte da cabeça-de-casal que a reconheceu ao tê-la relacionado na relação de bens.
ii. Reconhecida parcialmente a existência de dívida à credora “B... DAC” na parte correspondente aos juros de mora vencidos e vincendos sobre 45.046,45€ a partir de 05.10.2014 até integral pagamento e do imposto de selo de 4% sobre o valor dos juros, na parte correspondente à quota parte da cabeça-de-casal.
Custas do incidente das reclamações à relação de bens, na proporção de 50% para a cabeça-de-casal, 20% para a credora reclamante (…).»
Veio a Interessada e Cabeça-de-Casal, DD, recorrer da decisão que reconheceu parcialmente o crédito reclamado pela Recorrida na parte correspondente à quota parte pertencente à Interessada/Cabeça-de-Casal.
Para o efeito, formula as seguintes conclusões:
I. Jamais a recorrente reconheceu a existência de qualquer dívida, tendo-se limitado a, de boa-fé, indicar a existência de uma execução pendente indicando a respetiva quantia exequenda, com vista a dar da mesma conhecimento aos demais herdeiros.
II. Tanto assim foi que, logo que chegou ao seu conhecimento que aquela execução findara por deserção da instância, a recorrente, prontamente informou o processo e requereu a respetiva retificação da relação de bens.
III. A recorrente impugnou expressamente o crédito que foi reclamado pela B... DAC, o que dissipa, de uma vez por todas, qualquer dúvida que pudesse existir quanto à sua posição que é, notoriamente, o não reconhecimento do mesmo.
IV. A alínea e) do n.º 1 do artigo 1104º do CCP reconhece expressamente ao cabeça-de-casal o direito de impugnar, tal como qualquer interessado, os créditos e as dívidas da herança.
V. É aos interessados que compete, na Conferência de interessados que ainda não teve lugar, deliberar sobre o passivo, apenas sendo o juiz chamado a decidir sobre o mesmo no caso da sua não aprovação.
VI. A sentença recorrida antecipou um julgamento que só poderia ter lugar na conferência de interessados, proferindo uma condenação que só deveria constar da sentença homologatória da partilha, caso a dívida se devesse considerar reconhecida por não ter sido impugnada (artigo 1106º n.º 1 CPC), sendo tal decisão, por isso, ilegal e intempestiva.
VII. O do n.º 4 do artigo 1106º citado na sentença recorrida e aplicável aos casos em que haja divergências entre os interessados acerca do reconhecimento da dívida, manda aplicar o n.º 1 referente às dívidas reconhecidas “relativamente à quota-parte dos interessados que a não impugnem”, resultando evidente dos autos que a recorrente impugnou a dívida, motivo pelo qual a mesma jamais se poderia considerar parcialmente reconhecida com base neste dispositivo legal.
VIII. A pretensa dívida correspondente ao crédito reclamado pela “B... DAC” não se encontra reconhecida, foi impugnada por todos os interessados, pelo que o despacho recorrido terá forçosamente de ser revogado, remetendo todos os interessados para os meios comuns.
Conclui pedindo a revogação do despacho recorrido e alteração em conformidade da proporção das custas do incidente.

Contra-alegou o recorrido, defendendo a correção da decisão que desde já houve por reconhecido o passivo na proporção da quota parte da Recorrente, uma vez que a indicação da verba respeitante ao passivo na relação de bens corresponde a uma efetiva confissão da existência daquele passivo; pelo que nunca poderia tal passivo considerar-se impugnado pela Recorrente. Pugna pela manutenção do decidido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são as seguintes as questões a tratar: a de saber se integra admissão/confissão/reconhecimento irretratável pela cabeça de casal da existência de uma dívida da herança, a indicação por ela na relação de bens apresentada da existência do passivo correspondente; e da admissibilidade legal de conhecer da existência da mesma dívida em momento ou ocasião anterior à da conferência de interessados.
Com interesse para as questões que nos ocupam há que ter por adquirido, a partir dos requerimentos, articulados e certidões constantes dos autos de inventário e referidos em cada número que se lhes reporta, que:
A) Foi apresentada relação de bens pela Cabeça-de-Casal, no dia 13/11/2022 (documento no Citius com a referência n.º 119215313), indicando na verba referente ao passivo da herança a dívida exequenda no âmbito do processo n.º 385/14.1T8OAZ, nos seguintes termos: “PASSIVO - Banco 1..., S.A. ,com sede na ... Porto; Processo nº 385/ 14. 1T8OAZ- J1 da 3.ª secção de execução da instância central de Oliveira de Azeméis da comarca de Aveiro, quantia exequenda. ….. 45.416,36 EUR”
B) Foi na sequência proferido o despacho n.º 4 pela Sra. Notária, de dia 12/12/2019, do qual a Recorrente cabeça-de-casal foi notificada, com o seguinte teor: “Por outro lado, relativamente ao passivo relacionado, atendendo que, o Banco credor terá que ser citado para os termos no processo, nos termos do disposto no artigo 28º do RJPI, deve a cabeça de casal juntar aos autos documento comprovativo da existência desse passivo na herança, do respectivo processo executivo em curso e da quantia exequenda.”
C) Em resposta, a 20/01/2020, a Recorrente apresentou nova Relação de bens corrigida, mantendo a indicação do passivo existente e juntando documentos comprovativos da existência da dívida, designadamente, uma notificação enviada ao falecido em 01/06/2016 e um auto de penhora – cfr. documento no Citius com a referência n.º 119215310.
D) A cabeça de casal era parte, Executada, no Processo executivo n.º 385/14.1T8OAZ, que correu termos no Juízo de Execução de Oliveira de Azeméis – Juiz 1.
E) Naqueles autos não foram deduzidos quaisquer embargos de executado ou oposição à penhora, tudo conforme certidão dos autos de execução junta aos autos em 24/11/2022 pela reclamante do crédito e recorrida (documento no Citius com a referência 13798659).
F) Naqueles autos de execução foi decidida a extinção da instância por deserção, decisão esta confirmada por Acórdão datado de 01/07/2021, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto – 3.ª Secção, conforme a mesma certidão.
G) Por escrito datado de 17/12/2021 dirigido à Ilustre Senhora Notária, a cabeça de casal pediu a ‘retificação’ da relação de bens por si apresentada, pugnando pela ‘nulidade’ do passivo, fundada na circunstância de os autos de execução pelos quais corria a cobrança coerciva da dívida impugnada terem sido extintos por deserção.
H) Já em 14/10/2022, através do requerimento com a referência Citius 13600026, veio a cabeça de casal apresentar nova impugnação do crédito por si relacionado, desta feita na sequência da reclamação deste pela recorrida, nos termos que dos autos melhor constam, mas que se reconduzem, para além do mais, à invocação de que apenas indicou a dívida à Recorrida como passivo por “sugestão da Sra. Notária” e apenas para “dar conhecimento aos demais herdeiros de que existia a referida ação judicial”.

Vejamos.
Aos presentes autos de inventário é aplicável o regime legal previsto nos artigos 1082º a 1135º do Código de Processo Civil, na redação da lei 117/2019 de 13/09, diploma a que pertencem todas as normas citadas doravante, sem outra menção.
Este diploma veio introduzir um novo paradigma do processo de inventário que é um processo especial de jurisdição contenciosa, por modo a afastar o «carácter arrastado, sinuoso, e labiríntico da anterior tramitação», como comentam Miguel Teixeira de Sousa et al, in O Novo regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, pp 8, ed Almedina 2020).
Sendo um processo especial é-lhe aplicável subsidiariamente o regime do processo comum (artigo 549º).
Sufragamos, desde logo, o ensinamento do Professor Miguel Teixeira de Sousa, ibidem, de que este novo modelo processual assenta «em fases processuais relativamente estanques e consagra o princípio da concentração, dado que fixa para cada ato das partes um momento próprio para a sua realização. Em consequência (…), não pode deixar de comportar algumas cominações e preclusões».
Continuamos a acompanhar Teixeira de Sousa, loc. cit., quando sustenta que o novo processo de inventário comporta as seguintes fases:
a. A fase dos articulados (subfase inicial: artigos 1097º a 1102º e subfase da oposição artigos 1104º a 1107º), na qual (i) é requerida a instauração do processo (ii)suscitam-se e discutem-se as questões que influenciam a partilha.
b. A fase do saneamento na qual o juiz decide todas as questões ou matéria litigiosas que condicionam a partilha e define o património a partilhar, elaborando o despacho sobre a partilha e definindo as quotas ideais dos vários interessados (artigos 1109º e 1110º).
c. A fase da partilha, consubstanciada na conferência de interessados, destinada às diligências que culminam na partilha (artigos 1111º, 1114º, 1116º e 1117º a 1119º) e subsequente elaboração de mapa de partilha e sentença homologatória (artigo 1120º a 1122º) e posteriores incidentes (artigo 1126º).
Este rito processual (a que, como ficou referido supra é aplicável subsidiariamente o regime do processo declarativo comum artigos 549º) que compartimenta as diversas fases do processo de inventário, assente no princípio da autorresponsabilidade das partes, distanciado do anterior regime[1]/[2], arrasta em si cominações e preclusões, impondo o princípio da concentração, com a única exceção dos factos de conhecimento superveniente.
Donde, temos para nós que é na subfase da oposição que se procede à delimitação do património hereditário (ativo e passivo), antecipando-se (tendencialmente, como melhor ressaltará infra) para este momento processual a verificação do passivo, que antes ocorria na conferência de interessados, (cfr artigos 1104º a 1106º).
As dívidas da herança devem ser relacionadas pelo cabeça de casal, no requerimento inicial, nos termos do artigo 1097º nº 3 alínea d) e artigo 1098º nº 3, conjugadamente com o artigo 1102º, nos casos em que o cabeça de casal não é o requerente do inventário.
Sobre este ónus escreve Teixeira de Sousa, ibidem, pg 62: “traduz uma profunda alteração imposta pelo novo regime. Agora passa a constituir ónus do requerente, sempre que se apresente como cabeça de casal, a prestação no próprio requerimento inicial das informações respeitantes aos elementos necessários ao prosseguimento do inventário (…) na concretização deste princípio o cabeça de casal que não é o requerente deve completar, confirmar ou corrigir o que consta do requerimento inicial (artigo 1100º), havendo uma verdadeira concentração nesta fase dos atos destinados à prossecução do inventário, e que possibilitam o articulado de contestação (artigo 1104º)», ibidem pg 63.
Apresentada a relação de bens, pelo cabeça de casal, é esta sujeita a reclamação, a ser deduzida no prazo de 30 dias a contar da citação, por força do artº 1104. nº2, b), do CPC.
Nos termos do artº 1088º, nº1, mesmo que os encargos da herança não tenham sido relacionados pelo cabeça de casal, os titulares ativos podem reclamar os seus direitos até à conferência de interessados,
Segue-se a resposta a que alude o artigo seguinte, sendo de realçar que as provas são indicadas com os requerimentos e as respostas, traduzindo a concentração de todos os meios de defesa das respetivas posições, nomeadamente, no que agora releva, quanto à impugnação dos créditos e das dívidas.
Aos incidentes do inventário aplica-se, salvo norma especial diversa, o disposto para os incidentes da instância, constantes dos artºs 292º a 295º, por remissão constante do artº 1091º, nº1.
Incumbe, portanto, àquele que deduz o incidente (e também àquele que exerça a faculdade de lhe responder) o ónus de alegar os factos e apresentar as provas, de cariz documental ou testemunhal, ou mesmo por declarações dos próprios interessados.
A questão é decidida depois de efetuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz, sem prejuízo do disposto nos artigos 1092.º e 1093.º - cf. artº 1105º, nº3.
Esta “nova” tramitação processual, no que respeita às dívidas da herança, mais estabelece um ónus de impugnação previsto no artigo 1104º alínea e), devendo o juiz pronunciar-se sobre esse passivo ainda antes do saneamento, conforme o artigo 1106º, n.º 3 do CPC e atento o disposto no artigo 1110º nº 1 alinea a).
Significa isto, a nosso ver, que o atual modelo processual do inventário, quanto à verificação do passivo:
- determina ao cabeça-de-casal um especial e rigoroso dever, não apenas de indicação/identificação/caraterização das dívidas da herança, como de junção dos meios de prova respetivos;
- não admite se não a impugnação das dívidas da herança pelos interessados que não são o cabeça-de-casal (obrigado ao relacionamento), como, de resto, se revela absolutamente lógico e conforme ao desenho do “novo processo de inventário”, moldado, como se disse, pelo princípio da autorresponsabilidade;
- a não impugnação das dívidas relacionadas pelos interessados diretos determina se hajam ou considerem reconhecidas, sendo que se houver divergências entre os interessados acerca do reconhecimento, desde logo se têm por reconhecidas quanto à quota-parte respetiva (nº4 do art. 1106º do CPC);
- havendo oposição, sempre o juiz deve apreciar a existência e montante da dívida quando a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados, nos termos do 1106, n.º 3 do CPC.
É o que se extrai dos artigos 1104º a 1106º do CPC, sendo que o disposto no nº 3 do art. 1111º não se opõe ao que vem de dizer-se, nem corresponde, por isso, à manutenção do sistema anterior[3].
Continuamos, pois, com Teixeira de Sousa, loc. cit.: «ao realizar-se a conferência de interessados (cf. art.1111º), a verificação e o reconhecimento do passivo constituem tarefas já concluídas no processo seja porque se verificou o reconhecimento expresso ou a admissão por acordo (…), seja porque houve proferimento de decisão judicial que reconheceu a dívida controvertida(...). Apenas fica relegado para o momento da conferência, já não a aprovação do passivo, mas somente a deliberação sobre a forma e o momento do cumprimento dos encargos anteriormente verificados».
Donde, aquela disposição (o n.º 3 do art. 1111º) visa apenas permitir que em sede de conferência, após a fase anterior do saneamento na qual se insere a verificação judicial, nos termos e para os efeitos do art. 1106º, os interessados possam ainda deliberar da aprovação de dívidas não reconhecidas até então e decidir do modo do seu pagamento… Não se esqueça a instituição das “fases”, por forma a que a tramitação sirva o propósito de que a conferência permita efetivamente a “conclusão” da partilha[4].
Tudo para afastar, assim, a argumentação da prematuridade ou antecipação ilegal do decidido.
De resto, ainda quando se admitisse a cabeça de casal a pôr em causa ulteriormente a dívida da herança que ela própria relacionou, sempre a totalidade da prova produzida e junta aos autos, permitiria a afirmação da existência da dívida, na respetiva quota-parte, como o foi.
Por isso que inócua a discussão sobre a qualificação da relacionação pela cabeça de casal como declaração confessória da realidade da dívida relacionada, já que sempre provada documentalmente quanto a ela a realidade da dívida que relacionou como da herança.
Tem-se, desde logo, por inadmissível a impugnação (ulterior ou superveniente) pela cabeça-de-casal que relaciona a dívida da herança da existência/realidade da mesma dívida. Assim é que apenas e só uma causa extintiva (e como tal não se prefigura a extinção da instância executiva) da dívida poderia ser supervenientemente invocada/convocada. É o que resulta do regime legal da impugnação, mas ainda o que o impõe um comportamento conforme aos ditames da boa fé, constituindo uma atuação abusiva a invocação/negação de uma dívida relacionada por si própria…
Acresce, como se adiantou, que a prova integrada pela certidão junta pela recorrida e respeitante aos autos de execução referidos na relação de bens para identificar a dívida, é de molde a implicar a prova não apenas da existência da dívida relacionada, como dos valores desta havidos por reconhecidos/verificados, a partir agora da reclamação pela recorrida, aqui nos remetendo, s.m.o., para a decisão recorrida, por bastante.
Não se esqueça agora a preclusão[5] (quanto à cabeça de casal) implicada pela não dedução de oposição à execução (na qual era executada) por embargos, em termos de ser inadmissível suscitar ulteriormente contra o credor quaisquer vícios que ponham em causa a existência, validade ou exequibilidade dos títulos exequendos.
Nessa medida, a decisão pelo tribunal mostra-se temporal e materialmente acertada, impondo-se a sua manutenção.

III.
Pelo exposto, nega-se provimento à apelação interposta, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas da apelação pela recorrente.


Notifique.
Porto, 09 de Novembro de 2023
Isabel Peixoto Pereira
Leonel Serôdio
Ana Vieira
_________
[1] Referia a propósito deste, Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, 1980, II, pp. 114, 115 e 129: “(…) todo e qualquer passivo está sujeito a relacionação e aprovação em inventário, seja ele constituído por dívidas a estranhos ou por dívidas aos próprios herdeiros (Cód. Civil, art. 2074º-1) (…). Nem pelo facto de as relacionar [as dívidas] o cabeça de casal fica vinculado ao seu reconhecimento e obrigado ao pagamento proporcional, por isso que a aprovação de dívidas está submetida, no inventário, a disciplina própria. Aquele procedimento não implica, pois, confissão por sua parte, mas mero desempenho de uma obrigação legal em momento em que lhe não pertence formar juízo ou emitir parecer atendível quanto aos aspectos considerados (…). Relacionadas pelo cabeça de casal ou reclamadas directamente pelos credores, as dívidas vão ser sujeitas a aprovação pela conferência de interessados (…)”.
[2] Bem assim se sustentou, à luz do regime legal do anterior processo de inventário, ser prematura a apreciação pelo Tribunal incidente sobre o passivo relacionado antes da Conferência de Interessados – v. neste sentido e entre muitos, Acs. R.L. de 17.5.2007 (Pº 3917/2007-6) de 20.06.2007 (Pº 2436/2007-6), de 01.06.2008 (Pº 4743/2008-8), de 04.12.2008 (Pº 10348/2008-6) e ainda Ac. R.P. de 03.07.2008 (Pº 0832820), acessíveis na Internet, no sítio www.dgsi.pt.
[3] Anotando que a atual colocação sistemática do regime da verificação do passivo - que tem antecedente, inovatório, no regime jurídico do inventário aprovado pela Lei n.º 23/2003; na Lei n.º 29/2009, o regime da verificação do passivo mantinha-se, seguindo o CPC1961, no âmbito da conferência de interessados - constitui um intrigante desafio interpretativo, João Espírito Santo, O inventário judicial: genealogia, recodificação e regime geral, Revista de Direito Comercial, 16.02.2021, Liber Amicorum, p. 279 (e 299/300): «por um lado, porque a deliberação sobre o passivo e a forma do seu pagamento continua a ter o estatuto de um assunto a submeter à conferência de interessados (art. 1111, 3); por outro lado, porque essa colocação sistemática e parte da regulação sugerem um conjunto de atos cronologicamente situados entre o termo do prazo de pronúncia dos interessados sobre um conjunto de aspetos, incluindo o conteúdo da relação de dívidas (art. 1114, 2), e a realização da conferência de interessados, e pressupõe um posicionamento dos interessados diretos sobre as dívidas relacionadas pelo cabeça-de-casal (art. 1106, 1).»
[4] Não pode olvidar-se também que: (i) os encargos da herança que não tenham sido relacionados pelo cabeça-de-casal (e, portanto, não cobertos pela norma do art. 1106, 1) podem ser reclamados no processo pelos seus titulares ativos até à conferência de interessados (art. 1088, 1), sendo, portanto, a conferência a diligência processual na qual os interessados podem tomar posição sobre tais encargos; (ii) os encargos da herança constituem um âmbito mais vasto do que o das dívidas, como cristalinamente resulta do art. 2068 do CC1966, e, portanto, os que não constituírem dívidas não se sujeitam ao regime do art. 1106, sendo, portanto, a conferência a diligência processual na qual os interessados podem tomar posição sobre tais encargos.
[5] M. Teixeira de Sousa, Preclusão e caso julgado, LLR2017/1, p. 14 e 15.