CONTRATO DE SEGURO
SIGILO PROFISSIONAL
DISPENSA DE SIGILO
Sumário

I - O segurador (englobando administradores, trabalhadores, agentes e demais auxiliares do segurador) está sujeito a sigilo profissional em relação às informações de que tenha tomado conhecimento no âmbito da celebração de um contrato, entre os quais o endereço do cliente, sendo legítima a escusa em fornecer tais elementos ao tribunal.
II - Visando a informação solicitada tão só promover a constituição e notificação da executada, como fiel depositário dos bens penhorados e ainda, a promoção de diligências de penhora na sua morada, no confronto com o princípio que tutela a reserva de intimidade da vida privada, deve prevalecer o interesse público da administração e realização da justiça, dispensando-se o sigilo para aquele concreto fim.

Texto Integral

Sigilo-Segurador-728/22.4T8OVR-A.P1


SUMÁRIO[1]( art. 663º/7 CPC ):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
No presente incidente de dispensa do dever de sigilo solicitou o juiz do tribunal de 1ª instância, em apenso próprio, a dispensa de sigilo profissional, ao abrigo art. 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, ex vi art. 417.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, perante a escusa apresentada pela seguradora “A...”, a respeito da informação sobre a morada da sua cliente, executada nos autos.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do incidente
A questão a decidir consiste em saber se deve ser ordenado o levantamento do sigilo profissional relativamente à informação sobre a morada da executada, solicitada pelo juiz do tribunal “a quo“ junto da seguradora “A...”, para promover as diligências de penhora e respetiva notificação da executada.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos que resultam do presente apenso (A)) e ainda, obtidos mediante consulta do processo executivo através do sistemas informático sistema Citius, cujo acompanhamento foi disponibilizado pelo juiz do tribunal “a quo”:
- Banco 1..., SA instaurou contra AA, rua ..., Aveiro, ... AVEIRO processo de execução para cobrança de um crédito no montante de €15.861,59 €, apresentando como título executivo uma livrança.
- Proferiu-se despacho que ordenou a citação da executada.
- Promoveram-se e realizaram-se pelo agente de execução as diligências de citação da executada na seguinte morada Rua ..., ... Coimbra, com observância do regime previsto no art. 232º e 233º CPC.
- Procedeu-se à penhora de dois veículos automóveis ligeiros, com notificação à executada na morada onde recebeu a citação.
- Em 13 de junho de 2023, na sequência do requerimento apresentado pela exequente, proferiu-se o seguinte despacho:
“Face à documentação junta, reconheço legitimidade em sentido processual à sociedade B..., S.A.R.L., sociedade devidamente constituída de acordo com as leis do Luxemburgo, com sede social em Rue ..., ... Luxemburgo, com o capital social de €12.000,00, registada com o número B-...54 no Registo Comercial e das Sociedades do Luxemburgo, na qualidade de exequente, em substituição de “Banco 1..., S.A.”.
De acordo com o disposto no art. 3.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 42/2019 de 28/03, fica dispensada a habilitação”.
- A carta para notificação deste despacho à executada veio devolvida.
- A exequente requereu a constituição da executada como fiel depositária dos veículos penhorados;
- Em 04 de julho de 2023 a Agente de Execução veio formular o requerimento que se transcreve:
“SOLICITAR A JUNÇÃO AOS AUTOS:
- Autos de Penhora/Diligências (negativas).
Desconhecendo-se o atual paradeiro da executada uma vez que a morada que consta das bases de dados mora uma amiga da executada,
REQUER-SE:
Ao abrigo do disposto no artº 749º nº 7 e art. 418º, ambos do CPC, que V.Exa. se digne conceder autorização para solicitação de informações de natureza sujeita a sigilo, às seguintes entidades:
Entidades fornecedoras de Energia Elétrica / Água e Gás e Seguradoras onde constam as matrículas penhoradas, com vista à averiguação das seguintes informações referentes aos executados:
- Se existe algum contrato de fornecimento de serviços (Água, Eletricidade ou Gás) ou qualquer outro tipo de contrato entre os executados e aquelas entidades e (sendo a resposta afirmativa);
- Qual a morada associada àquele contrato bem como a morada indicada para a apólice dos seguros”
- Proferiu-se o despacho que se transcreve ( ref. Citius 128283756 ):
“ Atento o disposto no art. 749.º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil e considerando os factos invocados pelo agente de execução, que se julgam constituírem fundamento para a quebra do regime de confidencialidade ou sigilo a que as informações pretendidas estão sujeitas, concede-se autorização para a obtenção das referidas informações junto das entidades fornecedoras de Energia Elétrica / Água e Gás e Seguradoras, devendo respeitar-se, porém, o disposto no art. 418.º, n.º 2 do mesmo Código”.
- A seguradora A... apresentou o seguinte requerimento:



- Em 07 de setembro de 2023 a Agente de Execução veio formular, por sua vez, o seguinte requerimento:
“BB, Agente de Execução nos presentes autos, notificada da comunicação enviada pela seguradora A..., recusando-se dar resposta ao pedido de informação acerca da morada indicada em contrato celebrado com essa seguradora, sendo que também a seguradora C... SA, também não respondeu quanto a contratos de seguro automóvel, vem
INFORMAR
- Das consultas realizadas, junto da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, pelas matrículas em que a executada consta como titular verificação que encontram-se com seguros ativos junto da A... (matricula ..-EC-..) e da C... (matricula ..-..-NH), Cfr. se junta.
REQUERER
- Seja considerada ilegítima a escusa deduzida, considerando que não está obrigada a observar o sigilo profissional e que deverá cumprir com o solicitado nos termos do artigo 417º do CPC”.
- Em 19 de setembro de 2023 proferiu-se o despacho que se transcreve:
“Notifique a seguradora “C... SA” para, no prazo de dez dias prestar a informação que lhe foi solicitada, sob pena de condenação em multa, por falta de colaboração para com o Tribunal (cfr. art. 417.º, n.º 2, do Novo Código de Processo Civil).
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Por despacho datado de 6 de Julho de 2023 (Ref.ª Elect.ª 128283756) foi concedida, nos termos do disposto no art. 749.º, n.º 7 do Novo Código de Processo Civil, autorização para a obtenção junto das Seguradoras onde constam as matrículas penhoradas de informação atinente à indicada para a apólice dos seguros.
Devidamente notificada para o efeito, a seguradora “A...” escusou-se em dar resposta ao pedido de informação acerca da morada indicada em contrato celebrado com essa seguradora, invocando o dever de sigilo profissional previsto no art. 119.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 147/2015, de 9 de Setembro.
Efetivamente, estatui o citado normativo legal, sob a epígrafe «Dever de sigilo», que: «1 - O segurador deve guardar segredo de todas as informações de que tenha tomado conhecimento no âmbito da celebração ou da execução de um contrato de seguro, ainda que o contrato não se tenha celebrado, seja inválido ou tenha cessado. 2 - O dever de sigilo impende também sobre os administradores, trabalhadores, agentes e demais auxiliares do segurador, não cessando com o termo das respetivas funções.».
Por sua vez, o art. 417.º, nº 3, al. c) do Novo Código de Processo Civil determina que a recusa é legítima se a obediência importar “violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do Estado”, esclarecendo, contudo o n.º 4 daquele preceito legal que “deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever do sigilo invocado”.
Destarte, o sistema em vigor mostra-se decalcado do preceituado nos artigos 135.º a 137.º do Código de Processo Penal, sendo do ponto de vista procedimental – e ressalvadas as especificidades do segredo religioso (n.º 4 do art. 135.º) e do segredo do Estado (n.º 3 do art. 137.º) – aplicável o disposto na lei penal adjetiva, permitindo dessa forma que, atentos os motivos indicados na escusa e as circunstâncias do caso, o Tribunal possa considerar ilegítima a escusa.
Deste modo, do cotejo dos referidos normativos legais decorre que a intervenção judicial acontece perante uma situação de escusa e envolve, como flui do n.º 2 do art. 135.º do Código de Processo Penal, a apreciação da legitimidade dessa atitude, o que passa por determinar se a pessoa em questão está vinculada a esse dever.
Sobre esta questão e com particular relevo para a situação em apreço veio o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão n.º 2/2008 (in Diário da República, I Série, publicado em 31 de Março de 2008), firmar jurisprudência com o seguinte teor:
1) Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário;
2) Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio titular em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do n.º 2 do artigo 135.º do Código de Processo Penal;
3) Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.
Analisando o caso vertente, reconhece-se, à luz dos citados normativos legais, o dever de sigilo imposto às seguradoras e aos profissionais de seguros relativamente às informações de que tenham tomado conhecimento no âmbito da celebração ou da execução de um contrato de seguro.
Por conseguinte, a recusa é legítima, porquanto as informações pretendidas se encontram abrangidas pelo dever de sigilo a que se refere o art. 119.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008 de 16 de Abril, na redação que lhe foi conferida pela Lei nº 147/2015 de 09.09.
Encontramo-nos, portanto, perante um conflito de deveres, em que um lado se coloca o dever de colaborar na descoberta da verdade e realização da justiça (artigo 131.º, nº 1.º CPP) e do outro lado o dever de sigilo, a que se reporta ao artigo 119º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro imposto pela natureza da atividade desenvolvida.
Destarte, a escusa prevista nos artigos 182º, n.ºs 1 e 2 e 135.º n.º 1 do CPP constitui uma exceção à obrigação geral de colaborar com a justiça, prestando as informações e juntando a documentação solicitada, sendo que tal escusa pode, em certas circunstâncias, ser arredada através da quebra do dever de sigilo, nos termos previstos nos nºs 2 e 3 do citado artigo 135.º do CPP e por via do incidente processual aí regulado.
Com efeito, o segredo profissional não tem carácter absoluto, devendo haver lugar a uma ponderação de interesses, a aferir casuisticamente, por parte do tribunal superior, a quem incumbe decidir sobre a quebra do segredo.
Consequentemente, suscita-se, nos termos do disposto no art. 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal “ex vi” art. 417.º, n.º 4, do Novo Código de Processo Civil, a intervenção do Tribunal da Relação do Porto a fim de decidir da prestação por parte da “A...” da informação solicitada com quebra do sigilo bancário.
«Para o efeito crie apenso a fim de ser remetido ao Tribunal da Relação do Porto, instruído com cópia do requerimento executivo, do pedido de levantamento do sigilo e do despacho que sobre ele incidiu, bem como do presente despacho.»[2].
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Faculte-se, ainda, o acesso à consulta eletrónica dos autos”.
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3. O direito
No presente incidente de dispensa do dever de sigilo profissional está em causa apurar se é legítimo que A..., invoque o sigilo profissional, para não prestar as informações solicitadas e a ser legítima a escusa, se nas concretas circunstâncias se justifica a quebra de sigilo profissional.
A..., ainda que terceiro em relação ao processo, está obrigada ao dever de cooperação – art. 417º/1 CPC.
O dever de cooperação para a descoberta da verdade consagrado no art. 417º/1 CPC determina que:
“Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.”
A recusa de colaboração faz incorrer o faltoso nas sanções previstas no nº2 do citado preceito – multa, inversão do ónus da prova.
Contudo, nos termos do art. 417º/3 CPC, a recusa mostra-se legitima nas seguintes circunstâncias:
“a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;
b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;
c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no nº 4. “
No nº 4 determina-se o procedimento a seguir quanto à legitimidade da escusa e dispensa do dever de sigilo profissional ou de funcionários públicos invocado, remetendo-se para as normas do processo penal:
“4. Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado. “
Quanto à possível quebra dos deveres de sigilo propriamente dito, a lei de processo remete inteiramente para o estatuído no Código de Processo Penal sobre tal tema, por se entender que não seria viável estabelecer no âmbito das ações cíveis um sistema mais facilitado ou menos solene de apreciação das escusas apresentadas.
No domínio do processo penal, o art. 135º/3 CPP prevê o procedimento a adotar e competência para a decisão, nomeadamente, o critério a seguir na apreciação do pedido de dispensa de sigilo (ressalvadas as possibilidades do segredo religioso e do segredo de Estado – art. 135º e 137º CPP).
Estatui o art. 135º/3 CPP:
“1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 - Nos casos previstos nos n.os 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
5 - O disposto nos n.os 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.
Suscitada a escusa, como refere LOPES DO REGO podem configurar-se três situações:
- invocada a escusa e havendo dúvidas fundadas sobre a invocação, é ao juiz da causa (sublinhado nosso) que compete proceder às averiguações necessárias e – caso conclua pela ilegitimidade da escusa – determinar a forma de cooperação requerida;
- sendo a escusa fundada em sigilo efetivamente existente, é ao tribunal imediatamente superior (sublinhado nosso) àquele em que o incidente se tiver suscitado que incumbe decidir da efetiva prestação da cooperação requerida, com preterição do dever de sigilo, face ao princípio da prevalência do interesse preponderante;
- estando em causa sigilo profissional, a decisão do tribunal (sublinhado nosso) é tomada ouvido o organismo representativo da profissão com ele relacionada, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a tal organismo seja aplicável[3].
Decorre do art. 135º/4 CPP que a escusa com fundamento em sigilo profissional efetivamente existente deve ser suscitada junto do Tribunal de 1ª instância e cumpre ao Tribunal da Relação decidir o incidente de dispensa do sigilo “segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos”.
Neste quadro legal constata-se existirem duas situações distintas:
- as de legitimidade de escusa; e
- as de ilegitimidade de escusa da prestação de informações às autoridades judiciárias.
A escusa é legítima quando resulta do cumprimento de um dever legal, no caso o dever de confidencialidade.
A escusa é ilegítima quando o facto ou elemento solicitado não estiver compreendido no âmbito do sigilo profissional ou quando tiver havido consentimento do sujeito passivo.
O nº 2 do art. 135ºCPP reporta-se ao caso da ilegitimidade da escusa, o que pode ocorrer quando os elementos em causa não estão legalmente cobertos pelo segredo ou porque houve autorização do titular.
Prevê a norma nessa hipótese que o próprio tribunal onde ela é efetuada ordena, oficiosamente ou a pedido, a prestação das informações.
Nas situações de legitimidade da escusa, a qual resulta de os elementos estarem abrangidos pelo segredo e não existir autorização, a obtenção das informações já não poderá ser determinada sem a ponderação dos interesses que se mostram em confronto: de um lado, os interesses protegidos pelo segredo profissional, do outro, os interesses na realização da justiça, a ser efetuado no âmbito do incidente de quebra do segredo profissional, o qual deverá ser suscitado no tribunal imediatamente superior àquele onde a escusa tiver ocorrido.
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Estando em causa informações a prestar por segurador, decorre do regime legal a que está subordinada tal atividade, que as entidades que o exploram, como a A... estão sujeitas ao sigilo profissional, nos termos do art. 119º/1/2 da Lei do Contrato de Seguro – DL 72/2008 de 16 de abril.
No caso presente considerou o juiz do tribunal “a quo” legítima a escusa em relação do dever de segredo profissional, mas necessária a sua dispensa para efeito de promover os ulteriores termos do processo.
Nos termos do art. 119º do DL 72/2008 de 16 de abril:
1. O segurador deve guardar segredo de todas as informações de que tenha tomado conhecimento no âmbito da celebração ou da execução de um contrato de seguro, ainda que o contrato não se tenha celebrado, seja inválido ou tenha cessado.
2 O dever de sigilo impende também sobre os administradores, trabalhadores, agentes e demais auxiliares do segurador, não cessando com o termo das respetivas funções.
Trata-se de um dever de sigilo profissional, imposto por razões de ordem privada e de ordem pública e como meio de garantir a reserva da vida privada e familiar, sobretudo na sua esfera pessoal, mais intima[4].
O dever de sigilo do segurador insere-se no âmbito dos deveres de sigilo profissional a que estão sujeitas todas as entidades que prestem serviços a outrem, no que toca às relações dessas entidades com os seus clientes, bem como, a de todos os atos que digam respeito à vida da instituição e que as respetivas administrações não queiram que sejam conhecidas.
Como refere JOSÉ PEREIRA MORGADO, “o dever de sigilo responde a um […] relevante interesse público no bom funcionamento das instituições e dos mercados”[5].
A respeito da natureza jurídica do sigilo, os seus fundamentos começam por se apoiar na própria Constituição e, designadamente, nos seus artigos 26º/1 (intimidade da vida privada e familiar) e art. 25º ( integridade moral das pessoas ), pois o segurador através da análise dos dados que lhe são facultados pelo cliente, tem acesso a informações sobre a vida dos cidadãos, pelo que, facultar tais elementos a terceiros é pôr cobro à intimidade das pessoas. Acresce que o desrespeito pelo sigilo põe ainda em causa a integridade moral das pessoas atingidas, pois a revelação das informações obtidas quanto à pessoa e bens pode ser motivo de pressão, de troça ou de suspeição.
O regime do sigilo surge, ainda, tutelado pela Lei de Proteção de Dados Pessoais.
O REGULAMENTO (UE) 2016/679 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 27 de abril de 2016 relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados) no qual se passou a prever:
Artigo 4º Definições
Para efeitos do presente regulamento, entende-se por:
1) «Dados pessoais», informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular;
2) «Tratamento», uma operação ou um conjunto de operações efetuadas sobre dados pessoais ou sobre conjuntos de dados pessoais, por meios automatizados ou não automatizados, tais como a recolha, o registo, a organização, a estruturação, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a divulgação por transmissão, difusão ou qualquer outra forma de disponibilização, a comparação ou interconexão, a limitação, o apagamento ou a destruição;
3) «Limitação do tratamento», a inserção de uma marca nos dados pessoais conservados com o objetivo de limitar o seu tratamento no futuro;
[…]
7) «Responsável pelo tratamento», a pessoa singular ou coletiva, a autoridade pública, a agência ou outro organismo que, individualmente ou em conjunto com outras, determina as finalidades e os meios de tratamento de dados pessoais; sempre que as finalidades e os meios desse tratamento sejam determinados pelo direito da União ou de um Estado-Membro, o responsável pelo tratamento ou os critérios específicos aplicáveis à sua nomeação podem ser previstos pelo direito da União ou de um Estado-Membro;
[…]
9) «Destinatário», uma pessoa singular ou coletiva, a autoridade pública, agência ou outro organismo que recebem comunicações de dados pessoais, independentemente de se tratar ou não de um terceiro. Contudo, as autoridades 4.5.2016 L 119/33 Jornal Oficial da União Europeia PT públicas que possam receber dados pessoais no âmbito de inquéritos específicos nos termos do direito da União ou dos Estados-Membros não são consideradas destinatários; o tratamento desses dados por essas autoridades públicas deve cumprir as regras de proteção de dados aplicáveis em função das finalidades do tratamento; […]
Art. 5º Princípios relativos ao tratamento de dados pessoais
1.Os dados pessoais são:
a) Objeto de um tratamento lícito, leal e transparente em relação ao titular dos dados («licitude, lealdade e transparência»);
b) Recolhidos para finalidades determinadas, explícitas e legítimas e não podendo ser tratados posteriormente de uma forma incompatível com essas finalidades; o tratamento posterior para fins de arquivo de interesse público, ou para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos, não é considerado incompatível com as finalidades iniciais, em conformidade com o artigo 89º/1 («limitação das finalidades»);
c) Adequados, pertinentes e limitados ao que é necessário relativamente às finalidades para as quais são tratados («minimização dos dados»);
d) Exatos e atualizados sempre que necessário; devem ser adotadas todas as medidas adequadas para que os dados inexatos, tendo em conta as finalidades para que são tratados, sejam apagados ou retificados sem demora («exatidão»); 4.5.2016 L 119/35 Jornal Oficial da União Europeia PT (1)Diretiva (UE) 2015/1535 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de setembro de 2015, relativa a um procedimento de informação no domínio das regulamentações técnicas e das regras relativas aos serviços da sociedade da informação (JO L 241 de 17.9.2015, p. 1).
e) Conservados de uma forma que permita a identificação dos titulares dos dados apenas durante o período necessário para as finalidades para as quais são tratados; os dados pessoais podem ser conservados durante períodos mais longos, desde que sejam tratados exclusivamente para fins de arquivo de interesse público, ou para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos, em conformidade com o artigo 89.o, n.o 1, sujeitos à aplicação das medidas técnicas e organizativas adequadas exigidas pelo presente regulamento, a fim de salvaguardar os direitos e liberdades do titular dos dados («limitação da conservação»);
f) Tratados de uma forma que garanta a sua segurança, incluindo a proteção contra o seu tratamento não autorizado ou ilícito e contra a sua perda, destruição ou danificação acidental, adotando as medidas técnicas ou organizativas adequadas («integridade e confidencialidade»);
2. O responsável pelo tratamento é responsável pelo cumprimento do disposto no nº 1 e tem de poder comprová-lo («responsabilidade»).
Art. 38º
5.O encarregado da proteção de dados está vinculado à obrigação de sigilo ou de confidencialidade no exercício das suas funções, em conformidade com o direito da União ou dos Estados-Membros.
O regulamento foi transposto para a ordem jurídica interna pela Lei 58/2019 de 08 de agosto, que garante a execução interna do referido Regulamento, na qual se passou a prever:
- Artigo 2.º - Âmbito de aplicação
1 - A presente lei aplica -se aos tratamentos de dados pessoais realizados no território nacional, independentemente da natureza pública ou privada do responsável pelo tratamento ou do subcontratante, mesmo que o tratamento de dados pessoais seja efetuado em cumprimento de obrigações legais ou no âmbito da prossecução de missões de interesse público, aplicando –se todas as exclusões previstas no artigo 2.º do RGPD.
Artigo 10.º Dever de sigilo e confidencialidade
1 - De acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 38.º do RGPD, o encarregado de proteção de dados está obrigado a um dever de sigilo profissional em tudo o que diga respeito ao exercício dessas funções, que se mantém após o termo das funções que lhes deram origem.
2 - O encarregado de proteção de dados, bem como os responsáveis pelo tratamento de dados, incluindo os subcontratantes, e todas as pessoas que intervenham em qualquer operação de tratamento de dados, estão obrigados a um dever de confidencialidade que acresce aos deveres de sigilo profissional previsto na lei.
Artigo 20.º - Dever de segredo
1 - Os direitos de informação e de acesso a dados pessoais previstos nos artigos 13.º a 15.º do RGPD não podem ser exercidos quando a lei imponha ao responsável pelo tratamento ou ao subcontratante um dever de segredo que seja oponível ao próprio titular dos dados.
2 - O titular dos dados pode solicitar à CNPD a emissão de parecer quanto à oponibilidade do dever de segredo, sem prejuízo do disposto no Capítulo VII.
O dever de sigilo do segurador não constitui, contudo, um dever absoluto, pois pode ser dispensado por razões de direito público, quando existam razões justificativas, atenta a necessidade de proteger interesses que devam prevalecer sobre o sigilo.
Neste sentido se pronunciaram, entre outros, o Ac. Rel. Lisboa 06 de fevereiro de 2020, Proc. 18 479/16.7T8LSB-B.L1-2, Ac. Rel. Évora 09 de novembro de 2021, Proc.73/21.2GARMR-A.E1, Ac. Rel. Guimarães 09 de janeiro de 2023, Proc. 13/22.1GCTMC-A.G1, Ac. Rel. Coimbra 12 de junho de 2018, Proc. 768/16.2T8CBR-C.C1,acessível em www.dgsi.pt.
Por motivos de interesse público e com especial incidência no âmbito do direito penal e fiscal, a lei limita o dever de sigilo nas seguintes situações:
> branqueamento de capitais (DL 313/93, de 15/09 e DL 325/95, de 2/12);
>tráfico de droga (DL 15/93, de 22/01;
> corrupção e criminalidade económica e financeira (Lei n.º 36/94, de 29/09 e Lei 5/2002, de 11/01;
> cheques sem provisão (DL 454/91, de 28/12 e DL 316/97, de 19/11;
> terrorismo, peculato, associação criminosa, contrabando, tráfico e viciação de veículos furtados, lenocínio e tráfico de menores e contrafação de moeda e títulos equiparados (Lei n.º 5/2002, de 11/01].
No caso presente, o tribunal de 1ª instância solicitou junto da seguradora a indicação do domicílio da executada, face à informação obtida sobre celebração de um contrato de seguro entre o segurador e a executada, titulado pela apólice que ali foi referenciada.
O segurador não forneceu a informação, invocando o sigilo profissional.
Justifica-se o incidente de dispensa do dever de sigilo profissional e a sua dispensa passa pela consideração do princípio da prevalência do interesse preponderante. Com efeito, não resulta dos factos apurados, que a situação em causa esteja a coberto de qualquer limite ao dever de confidencialidade.
Nestas circunstâncias ordenar a realização da diligência viola o dever de confidencialidade, o que constitui uma nulidade, nos termos do art. 201º/1, conjugado com o art.417º/3/c) CPC.
Mostrou-se inviável obter o consentimento da executada, porque não sendo conhecido o seu endereço fica o tribunal impedido de realizar tal diligência.
Verificando-se um conflito entre dever de sigilo profissional que impende sobre a seguradora e o de cooperação para a realização da justiça, que visa satisfazer interesses bem mais relevantes, mesmo no âmbito do processo civil, deverá o mesmo ser dirimido no sentido da quebra ou levantamento de tal segredo.
Esta solução está conforme a uma certa hierarquização dos direitos garantidos constitucionalmente e em consonância com as normas atinentes à colisão de direitos, insertas no artº 335° do Código Civil, aplicáveis, porque, “in casu”, a quebra do sigilo afeta interesses privados e visa a realização da justiça num caso em que também se discutem interesses dessa ordem, se bem que, aqui, a ênfase tenha de ser posta no interesse público dos tribunais disporem de todos os elementos para decidirem de acordo com a verdade das coisas.
De um lado temos particulares que gozam do direito à reserva da vida privada e dos dados pessoais (arts. 26°, 1 e 2, 35°, 4 e 7, da Constituição da República Portuguesa (CRP), e 80° Cód. Civil), e, do outro, também particulares a quem tem de ser garantido o “acesso ao direito e aos tribunais, para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos”, impondo-se assegurar-lhes que a causa em que são partes “seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”, de modo a que se consiga a “justa composição do litígio” (artºs 20°, 1 e 4, da CRP, 2°, 6º, 411º, 3º, 7º e 417° do Código de Processo Civil)[6].
Mas a questão tem de colocar-se, ainda, e com maior ênfase, num outro plano onde cumpre considerar o interesse público na administração da justiça, constitucionalmente cometida aos tribunais (artºs 20°, 1, 4 e 5, e 202°, 1 e 2, da CRP). Ora, integrando a administração da justiça uma das funções soberanas do Estado, mal se entenderia que lhe fossem postos entraves em nome de interesses privados[7].
Resulta de igual forma, dos factos apurados, que os elementos solicitados se mostram relevantes para garantir a promoção do processo de execução com a penhora de outros bens no domicílio da executada e constituição como fiel depositária dos bens já penhorados, ou apreensão desses bens.
Por outro lado, tais elementos estão devidamente determinados e definidos – fornecer o endereço para efeitos de promover os ulteriores termos da execução.
É patente a colisão entre o interesse público de administrar a Justiça e o interesse privado da requerida/executada de ver garantida a confidencialidade dos seus dados pessoais, com o correlativo dever do segurador A..., em Portugal manter o sigilo, sendo certo, que o interesse privado da requerida/executada nem sequer contende com a sua esfera privada íntima, com a reserva de intimidade da vida privada. Acresce que é do interesse da própria executada que se preste tal informação, para desta forma poder ter conhecimento dos atos praticados no processo como forma de exercício do contraditório e como forma de garantir um processo equitativo.
Acresce o facto de se terem realizado várias diligências com o objetivo de obter tal informação junto de prestadores de serviços essenciais (fornecedores de eletricidade, água) e sem sucesso, não se tendo apurado nas bases de dados elementos disponíveis sobre a morada atual da executada.
A necessidade da justa composição do litígio, de modo a que se realize a Justiça, no caso concreto, exigem que se dispense a seguradora A... do dever de confidencialidade, para prontamente remeter ao tribunal os elementos solicitados pelo tribunal de 1ª instância.
Ponderando tais aspetos é de considerar que visando a informação solicitada promover os ulteriores termos da execução deve prevalecer o interesse público da administração e realização da justiça, dispensando-se o sigilo para este concreto fim.
Em conclusão dispensa-se A... do dever de confidencialidade - sigilo profissional -, para prontamente remeter ao tribunal os elementos solicitados pelo tribunal de 1ª instância a respeito do endereço da requerida/executada AA, com vista a promover os ulteriores termos do processo de execução.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pela executada.
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III. Decisão:
Face ao exposto decide-se deferir o incidente e nessa conformidade, ao abrigo do art. 417º, 4 do Código de Processo Civil e art.135º/3 do Código de Processo Penal, dispensar A... do dever de confidencialidade devendo fornecer ao Proc. 728/22.4T8OVRA Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Execução de Ovar a indicação do endereço da executada AA que conste da respetiva apólice, para o efeito de promover os termos da execução (concretização da apreensão dos veículos e constituição como fiel depositária, penhora de outros bens).
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Custas a cargo da executada.
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Porto, 23 de outubro de 2023
(processei, revi e inseri no processo eletrónico – art. 131º, 132º/2 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Carlos Pereira Gil
Augusto de Carvalho
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990, com exceção dos textos transcritos.
[2] Parágrafo retificado por despacho com a ref. Citius 129160940.
[3] CARLOS FRANCISCO DE OLIVEIRA LOPES DO REGO Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 1999, pag. 363.
[4] PEDRO ROMANO MARTINEZ, et al Lei do Contrato de Seguro Anotada, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, pag. 388
[5] PEDRO ROMANO MARTINEZ, et al Lei do Contrato de Seguro Anotada, ob. cit., pag. 388
[6] Cfr. Ac. Rel. Porto 12 de setembro de 2011, Proc. 3553/06.6TJVNF-D.P1 – publicado em www.dgsi.pt
[7] Proc. 120-C/2000.C1 – www. dgsi.pt