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PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
ESCOLHA DA MODALIDADE DE VENDA
CONSENTIMENTO DA COMISSÃO DE CREDORES
Sumário
I–No processo de insolvência, a decisão quanto à escolha da modalidade da venda e condições da mesma é cometida ao administrador da insolvência.
II– O consentimento da comissão de credores, exigido para a prática de actos de especial relevo (artº 161º, nº1 CIRE), deve ser prestado por via de uma deliberação, nos termos previstos no artº 69º do mesmo diploma.
III– Consistindo tal acto em alienação por negociação particular, a lei determina que a identidade do adquirente e todas as demais condições do negócio sejam comunicadas também à comissão de credores, caso exista, bem como ao devedor, com a antecedência mínima de 15 dias relativamente à data da transacção.
IV– Não obstante a alienação consistir na prática de acto de especial relevo, tendo os membros da comissão de credores tido conhecimento, vários meses antes da data em que o trespasse veio a ser realizado, de todas as condições em que este veio a ter lugar e nada tendo declarado, não há motivo para, a pedido da insolvente, declarar a nulidade de tal acto com fundamento na falta de consentimento da comissão de credores.
Texto Integral
Acordam as Juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I–RELATÓRIO
C…, Lda, com sede em …, deu início a um processo especial de revitalização, nos termos do disposto no art. 17º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o qual foi concluído sem a aprovação de um plano de revitalização da devedora.
Encerrado o processo negocial, o Sr. Administrador Judicial provisório emitiu o seu parecer, nos termos do disposto no art. 17-G nº4 do CIRE, requerendo a declaração de insolvência da devedora, insolvência essa que veio a ser declarada por sentença proferida em 09/03/2015. Nesta sentença foi nomeado para exercer as funções de Administrador Judicial o Sr. Dr. …
Em 23/06/2015 foi junto auto de apreensão de bens, do qual constam os seguintes bens:
Verba nº1 – Um lote composto por uma balança antiga de dois pratos, uma balança digital e uma balança antiga de caixa em vidro, a que foi atribuído o valor de € 400,00;
Verba nº 2 – Uma secretária metálica com duas cadeiras, um móvel e uma mesa em madeira, a que foi se atribui o valor de
€ 100,00;
Verba nº 3 – Um lote composto por um computador com impressora de facturas da marca Epson, um LCD de 17", uma multifunções da marca Xerox, um computador com monitor e teclado, uma impressora da marca Epson, uma impressora de etiquetas e três terminais de balcão com três impressoras de facturas, a que foi atribuído o valor de € 1.500,00;
Verba nº 4 – Um lote composto por um sistema de vídeo vigilância com um monitor e uma câmara, uma balança vertical e uma balança baby joy, a que foi atribuído o valor de € 650,00;
Verba nº 5 – Um lote composto por um balcão de atendimento e três móveis expositores em madeira e vidro, a que foi atribuído o valor de € 400,00 e
Verba nº 6 – Alvará para funcionamento de farmácia, a que foi atribuído o valor de € 500.000,00.
Em assembleia de 22.05.2015 foi deliberado a manutenção do estabelecimento em funcionamento com a gestão pelo Administrador Judicial e o prosseguimento dos autos com vista à liquidação do activo, tendo sido recusada a proposta de elaboração de um plano de insolvência para recuperação.
Foi constituída comissão de credores da qual fazem parte actualmente os credores P…, S.A., B…, Lda e a Autoridade Tributária.
O Administrador Judicial não deu cumprimento à deliberação da assembleia de credores e em 20.07.2017 veio apresentar um plano de insolvência, o qual não foi admitido.
Por despacho de 23.09.2019, foi destituído o Administrador Judicial, com fundamento no incumprimento das deliberações da assembleia quanto à gestão do estabelecimento e liquidação do activo e foi nomeado em sua substituição o Dr. …
Em 03.02.2020, o Sr. Administrador em funções veio dar a conhecer aos autos, no apenso de liquidação, que iria promover a venda dos bens integrantes da massa insolvente, na modalidade de trespasse, através de leilão presencial a ocorrer no dia 20.02.2020, organizado pela leiloeira L…, Lda., por já ter sido essa a leiloeira a organizar o 1.º leilão projectado através do anterior administrador.
O leilão em causa veio a ser suspenso em virtude da intervenção de B…, que invocou encontrar-se a explorar o estabelecimento e à existência de incerteza quanto ao arrendamento das instalações onde o mesmo funciona.
Foi, entretanto, com o parecer favorável da comissão de credores, determinando e encerramento do estabelecimento.
Em 16.02.2022, veio a insolvente apresentar plano de insolvência.
Em 21.02.2022, o actual Sr. Administrador veio informar os autos, no apenso de liquidação, que foi dado início a novo leilão electrónico a correr entre 18.02.2022 e 18.03.2022, através de leiloeira, com as seguintes condições: “Valor Inicial: 475.000,00€ Valor Base de Venda: 950.000,00€ Valor Mínimo de Venda: 807.500,00€ Constituído por: Alvará nº … emitido pela Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos da Saúde, I.P. (INFARMED) Medicamentos e outros produtos em stock, no valor aproximado de 50.000,00€ a preço de custo Mobiliário e equipamentos existentes no estabelecimento Contrato de arrendamento com Termo em 3 de Dezembro de 2022 - Renda mensal 1.250,00€ Pagamento: No prazo de 5 dias após adjudicação, à Massa Insolvente, 20% do valor da licitação e 2% + iva à Leiloeira L…, Lda. A escritura Pública da Transmissão por Trespasse será efetuada no prazo de duas semanas, após o primeiro pagamento de 20% O pagamento restante, será efetuado por cheque bancário à Ordem da Massa Insolvente, no ato da Escritura”
Em 07.03.2022, veio a insolvente deduzir incidente de nulidade da venda judicial, nos termos e com os fundamentos constante do requerimento ref. 31890128 [41543086].
No âmbito do referido leilão B… apresentou proposta de adjudicação pelo valor de € 911.000,00 – cf. ref . 32159833 [41820277] do apenso H - Liquidação.
Por despacho proferido nesse apenso H em 07.04.2022, foi determinada a suspensão da adjudicação até que fosse proferida decisão sobre o plano apresentado e sobre o incidente de nulidade suscitado pela insolvente.
Por despacho de 28.06.2022 o Tribunal pronunciou-se quanto à nulidade da projectada venda judicial do bem através de leilão na sequência de diversos requerimentos apresentados pela insolvente, julgando improcedente a pretensão deduzida, desde logo por não ter chegado a realizar-se qualquer alienação. Tal decisão não foi objecto de recurso.
Na mesma data foi admitida a proposta de plano de insolvência.
Em assembleia de credores de 20.07.2022, o plano não foi aprovado com os votos contra de todos os membros da comissão de credores, tendo sido proferido o seguinte Despacho: “Atenta a votação expressa desde já nesta assembleia, considerando que os votos favoráveis ainda que contabilizando, por hipótese os votos dos credores que solicitaram a votação por escrito, não atingem mais de 50% dos votos emitidos, desde já se declara não aprovado o plano de insolvência apresentado nos autos, prosseguindo o processo os seus ulteriores termos com a liquidação, conforme o já determinado”
O proponente B… não procedeu ao depósito do preço e os proponentes de valores superiores ao valor base desistiram da aquisição do bem.
Em 06.09.2022, o Sr. Administrador em funções veio informar os autos no apenso de liquidação, que iria prosseguir com a venda através de leilão electrónico.
Em 19.09.2022, veio o Sr. Administrador informar o processo, no apenso H, que seria iniciado novo leilão entre 21.09.2022 e 12.10.2022, com as seguintes condições:
- valor inicial: 475.000,00 €;
- valor base de venda: 950.000,00 € e
- valor mínimo de venda: 807.000,00 €.
Em 14.10.2022 o Administrador da Insolvência enviou à Comissão de Credores um e-mail com o seguinte teor: “(…) Terminou ontem o leilão dos bens apreendidos sem que tenha havido proposta superior ao valor mínimo. Contudo, logo após, foi efetuada uma proposta de 820.000,00 que excede o valor mínimo que era de 807.500,00€. Dado que a proposta cumpre as condições exigidas no leilão para que fosse feita a adjudicação, não havendo oposição no prazo de 5 dias, vai proceder à adjudicação dos bens por um valor não inferior a 820.000,00€. (…)”
O estabelecimento e alvará foram adjudicados ao proponente pelo valor de € 820.000,00.
Em 10.10.2022, a insolvente apresentou requerimento, invocando a nulidade da venda judicial através de leilão a terminar em 12.10.2022, alegando, em síntese, que o Administrador Judicial não deu a conhecer ao processo, aos credores e à devedora que se encontrava a promover a venda judicial do estabelecimento de farmácia através de venda por leilão eletrónico.
Alegou também que a venda não foi autorizada pelo Tribunal, pela comissão de credores e que, por ter sido apresentado um plano de insolvência em 16.02.2022, a liquidação não poderia prosseguir.
Invocou igualmente que a venda nos moldes em que se encontra a ser realizada assemelha-se a uma venda por negociação particular, por inexistir qualquer controlo dos procedimentos, sendo a plataforma em causa não imparcial e judicialmente reputada.
Por último, invocou a irregularidade no procedimento de venda, porquanto a leiloeira não compareceu em visitas que agendou para apresentação do estabelecimento.
O Administrador Judicial pronunciou-se, pugnando pela improcedência da invocada nulidade, nos termos do requerimento apresentado nos autos em 14.10.2022.
Em 08.05.2023 foi proferido despacho, julgando improcedente a nulidade invocada.
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Inconformada a insolvente interpôs recurso, apresentando as seguintes CONCLUSÕES: i.-Foi proferida decisão, pelo douto Tribunal a quo, com a qual não pode o recorrente comungar. ii.-Encontrava-se agendado leilão electrónico para venda judicial do estabelecimento de farmácia com terminus em às 14H00 do dia 12/10/2022. iii.-O Exmo. Sr. Administrador de Insolvência não deu conhecimento aos autos e à própria devedora, se encontrava a promover a venda judicial do estabelecimento de farmácia, através da modalidade de venda por leilão electrónico. iv.-Contrariamente ao alegado agora pelo Tribunal, a referida venda não foi autorizada pelos credores e nunca foi notificada à insolvente. v.-Desde logo se diga que não pode o douto Tribunal autorizar uma venda judicial com base em suposições ou que a autorização do mesmo está implicitamente autorizada pelos credores. vi.-Não podendo vir o tribunal supor algo que não está fundamentado, não existindo não autos uma autorização expressa do bem por parte dos credores. vii.-E muito menos pode o douto Tribunal alegar que “outra conclusão não se pode retirar que não seja que a venda da farmácia está implícita na sua deliberação” (negrito e sublinhado da recorrente). viii.-E, por essa razão, a venda judicial deverá ser declarada NULA, para todos os devidos efeitos legais (Ac. do douto TR do Porto, Proc. 7153/13.6TBMAI-D.P1). ix.-Ao exposto acresce a existência de uma irregularidade na venda judicial. x.-Com efeito, há que atender que no alegado dia de apresentação do bem estabelecimento de farmácia não houve a presença de nenhum elemento da leiloeira, interessados vários comparecerem junto do estabelecimento de farmácia, não houve data e hora indicada pela leiloeira. xi.-Mais veio a ora recorrente alegar a nulidade da venda com base na falta de inspecção do bem atendendo às várias vicissitudes e deficiências processuais que enfermam a presente venda judicial. xii.-… xiii.-Tudo conforme supra melhor alegado e fundamentado, facto que, salvo melhor entendimento, deve o presente recurso ser considerado procedente e, em consequência, ser a venda judicial considerada nula. xiv.-Pelo exposto, deve o presente recurso ser considerado procedente e, em consequência, ser a venda judicial considerada nula.
Terminou concluindo que o recurso deverá ser julgado procedente.
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Não foram apresentadas Contra-Alegações.
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O recurso foi admitido, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo.
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Na sequência do determinado por este tribunal, no sentido de o Administrador da Insolvência informar se existiu alguma acta lavrada pela comissão de credores onde tivesse sido expresso o consentimento da mesma comissão para a venda, o referido Administrador veio declarar que “na sequência do seu e-mail de 14 de outubro de 2022 dirigido à comissão de credores a manifestar a intenção de proceder à venda do estabelecimento, não recebeu nenhum consentimento ou resposta escrita. No entanto, foi contactado telefonicamente pela Sra. Dra. …, representante da Autoridade Tributária na comissão de credores, que lhe transmitiu que não tinha nada a opor à projetada venda e que não o fazia por escrito por ainda não estar formalizada nos autos a sua nomeação em substituição do colega.”
Notificada a insolvente/recorrente do declarado pelo Administrador da Insolvência, pronunciou-se no sentido que, em face de tal declaração, o mesmo não se encontrava mandatado para promover ou prosseguir a venda judicial, não podendo o recurso deixar de ser julgado procedente.
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Foram colhidos os vistos das Exmªs Adjuntas.
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II–OBJECTO DO RECURSO
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo Código). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela apelante/insolvente, importa decidir se teve, ou não, lugar a notificação à mesma, previamente à celebração da escritura de trespasse do estabelecimento apreendido, das condições em que o trespasse seria realizado e se a falta de consentimento da comissão de credores expresso através de deliberação, determina a nulidade da aludida alienação.
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III–FUNDAMENTAÇÃO
A)–De Facto
No despacho sob recurso, com base no que consta do processo de insolvência e dos respectivos apensos, foi considerada como provada a seguinte factualidade:
a)- A requerente foi declarada insolvente por sentença datada de 05.03.2015;
b)- Em 28.05.2015, foi apreendido para a massa o alvará de farmácia e o recheio do estabelecimento, este no valor de € 3.050,00;
c)- Em assembleia de 22.05.2015 foi deliberado a manutenção do estabelecimento em funcionamento com a gestão pelo Administrador Judicial e o prosseguimento com vista à liquidação do activo, tendo sido recusada a proposta de elaboração de um plano de insolvência para recuperação;
d)- Foi constituída comissão de credores da qual fazem parte actualmente os credores P…, S.A., B…, Lda. e a Autoridade Tributária;
e)- O Administrador Judicial não deu cumprimento à deliberação da assembleia de credores e em 20.07.2017 veio apresentar um plano de insolvência;
f)- Por despacho de 22.09.2017, o plano de insolvência não foi admitido;
g)- Por despacho datado de 23.09.2019, foi destituído o Administrador Judicial, com fundamento no incumprimento das deliberações da assembleia, quanto à gestão do estabelecimento e liquidação do activo;
h)- A gestão da insolvente não foi assegurada pelo Administrador Judicial, tendo o estabelecimento vindo a ser gerido de facto por B…;
i)- Por decisão datada de 23.09.2019, o Administrador Judicial foi destituído e substituído;
j)- Em 03.02.2020, o Sr. Administrador em funções veio dar a conhecer aos autos no apenso de liquidação que iria promover a venda através de leilão presencial a ocorrer no dia 20.02.2020, organizado pela leiloeira L…, Lda., por já ter sido essa a leiloeira a organizar o 1.º leilão projetado através do anterior administrador;
k)- O leilão de Fevereiro de 2020 veio a ser suspenso em virtude da intervenção presencial de B…, que gerou tensão e incerteza quanto ao arrendamento das instalações onde funciona o estabelecimento;
l)- Foi, entretanto, com o parecer favorável da comissão de credores, determinado e encerramento do estabelecimento, o que apenas foi possível mediante a intervenção a força pública, atenta a oposição por parte de B…;
m)-Em 16.02.2022, veio a insolvente apresentar plano de insolvência;
n)- Em 21.02.2022, o atual Sr. Administrador veio informar os autos no apenso de liquidação de foi dado início a novo leilão electrónico a correr entre 18.02.2022 e 18.03.2022, através de leiloeira de € 807.500,00,
o)- Em 07.03.2022, veio a insolvente deduzir incidente de nulidade da venda judicial, nos termos e com os fundamentos constante do requerimento ref. 31890128 [41543086];
p)- No âmbito do referido leilão B… apresentou proposta de adjudicação pelo valor de € 911.000,00 – cf. ref . 32159833 [41820277] do apenso H;
q)- Por despacho proferido no apenso H datado de 07.04.2022, foi determinado que a suspensão da adjudicação até que fosse proferida decisão sobre o plano apresentado e sobre o incidente de nulidade suscitado pela insolvente;
r)- Por despacho de 28.06.2022 o Tribunal pronunciou-se quanto à nulidade da projetada venda judicial do bem através de leilão na sequência de diversos requerimentos apresentados pela insolvente, julgando improcedente a pretensão deduzida, o qual não foi objecto de recurso;
s)- Na mesma data foi admitida a proposta de plano de insolvência;
t)- Em assembleia de credores de 20.07.2022, o plano não foi aprovado com os votos contra de todos os membros da comissão de credores, tendo sido determinado o prosseguimento da liquidação;
u)- O proponente B… não veio a proceder ao depósito do preço e os proponentes de valores superiores ao valor base vieram a desistir, alegadamente em virtude de ameaças de B…;
v)- Em 06.09.2022, o Sr. Administrador em funções veio informar os autos no apenso de liquidação, que iria prosseguir com a venda através de leilão electrónico;
w)- Em 19.09.2022, veio a actual Sr. Administrador informar o processo, no apenso H, que seria iniciado novo leilão entre 21.09.2022 e 12.10.2022, com as mesmas condições já anteriormente anunciadas e comunicadas ao processo.
x)- O estabelecimento e alvará vieram a ser adjudicados.
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Atentos os documentos que foram juntos aos autos de Liquidação pelo Administrador da Insolvência em 14.10.2022 e que não foram impugnados, está ainda provado o seguinte:
y)- Em 14.10.2022, o Administrador da Insolvência enviou à Comissão de Credores e-mail com o seguinte teor: “(…) Terminou ontem o leilão dos bens apreendidos sem que tenha havido proposta superior ao valor mínimo. Contudo, logo após, foi efetuada uma proposta de 820.000,00 que excede o valor mínimo que era de 807.500,00€. Dado que a proposta cumpre as condições exigidas no leilão para que fosse feita a adjudicação, não havendo oposição no prazo de 5 dias, vai proceder à adjudicação dos bens por um valor não inferior a 820.000,00€.
z)- Na mesma data, o administrador enviou à insolvente, na pessoa do seu Ilustre Mandatário, e-mail, com o seguinte teor: “Nos termos e para efeito do nº 4 do artigo 161º do CIRE, fica a insolvente notificada da intenção de proceder à alienação dos bens e direitos apreendidos nas condições da proposta anexa e do modo infra detalhado”.
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B)–O Direito «O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.» – art. 1º, nº1, do CIRE.
É um processo especial, o qual, quanto à sua natureza, pode ser considerado misto, com uma fase marcadamente declarativa (até à declaração de insolvência) e outra claramente executiva (após a declaração de insolvência com liquidação de todo o património do devedor que integra a massa insolvente para satisfação dos credores ou através da aprovação de um plano de insolvência).
Nos termos do nº1 do art. 17º do CIRE, o processo de insolvência é regido pelas regras deste código e, subsidiariamente pelo Código de Processo Civil, «em tudo o que não contrarie as disposições do presente código.».
A liquidação do activo insere-se, claramente na fase “executiva” do processo de insolvência e está orientada directamente para a finalidade principal deste processo: conversão do património que integra a massa insolvente numa quantia pecuniária a distribuir pelos credores.
Nos termos do disposto no nº1 do art. 164º do CIRE, a alienação dos bens compreendidos na massa insolvente é feita, designadamente, por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo, embora preferencialmente por venda em leilão electrónico.
Como resulta do já citado artigo 17º, as normas do CPC apenas se aplicam se não houver norma contrária a essa aplicação no CIRE.
No que respeita à venda em processo executivo, estabelece o art. 812º do CPC: «1– Quando a lei não disponha diversamente, a decisão sobre a venda cabe ao agente de execução, ouvidos o exequente, o executado e os credores com garantia sobre os bens a vender. 2–A decisão tem como objeto: a)- A modalidade da venda, relativamente a todos ou a cada categoria de bens penhorados; b)- O valor base dos bens a vender; c)- A eventual formação de lotes, com vista à venda em conjunto de bens penhorados. 3–O valor de base dos bens imóveis corresponde ao maior dos seguintes valores: a)- Valor patrimonial tributário, nos termos de avaliação efetuada há menos de seis anos; b)- Valor de mercado. 4– Em relação aos bens não referidos no número anterior, o agente de execução fixa o seu valor de base de acordo com o valor de mercado. 5– Nos casos da alínea b) do n.º 3 e do número anterior, o agente de execução pode promover as diligências necessárias à fixação do valor do bem de acordo com o valor de mercado, quando o considere vantajoso ou algum dos interessados o pretenda. 6– A decisão é notificada pelo agente de execução ao exequente, ao executado e aos credores reclamantes de créditos com garantia sobre os bens a vender, preferencialmente por meios eletrónicos. 7– Se o executado, o exequente ou um credor reclamante discordar da decisão, cabe ao juiz decidir; da decisão deste não há recurso.»
Em processo executivo singular devem ser ouvidos o exequente, o executado e os credores com garantia sobre os bens a vender.
Coloca-se a questão de saber se esta regra se aplica à venda realizada em processo de insolvência, começando a insolvente por sustentar que o administrador da insolvência não deu conhecimento “aos autos” e à própria que se encontrava a promover a venda do estabelecimento de farmácia através da modalidade de leilão electrónico.
De acordo com o art. 55º, n.º 1, do CIRE, são funções da competência do administrador, entre outras:
“a)- Preparar o pagamento das dívidas do insolvente à custa das quantias em dinheiro existentes na massa insolvente, designadamente das que constituem produto da alienação, que lhe incumbe promover, dos bens que a integram”.
Nos termos do disposto no n.º 5 do mesmo artigo: “Ao administrador da insolvência compete ainda prestar oportunamente à comissão de credores e ao tribunal todas as informações necessárias sobre a administração e a liquidação da massa insolvente.
Por sua vez, estabelece o artº 164º do mesmo Código: “1- O administrador da insolvência escolhe a modalidade da alienação dos bens, podendo optar por qualquer das que são admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente. 2- O credor com garantia real sobre o bem a alienar é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação, e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada. (…)”
Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado, 3ª edição, Quid Juris, pgs. 616 e 617: “… a decisão quanto à escolha é cometida, em exclusivo, ao administrador da insolvência, segundo o seu critério e tendo em conta o que entenda ser mais conveniente para os interesses dos credores…”
Esta opção do legislador tem várias consequências, uma delas “a decisão (do Administrador da Insolvência) não ser censurável através de qualquer tipo de impugnação, perante os outros órgãos ou perante o juiz.” O Administrador da Insolvência não está, porém, impedido de, por sua própria iniciativa, solicitar a colaboração da comissão de credores ou da própria assembleia, podendo fazê-lo “em termos meramente consultivos e, nessa eventualidade, não está sujeito a seguir a orientação definida.”
E prosseguem estes autores “Curiosamente, por virtude da primeira parte do n.º 2 – o qual, todavia, acolhe especificamente, em sede de processo de insolvência, o que já está consagrado, no processo executivo comum, pelo nº1 do art. 812º do CPC – o administrador deve sempre ouvir previamente os credores com garantia real sobre os bens a alienar acerca do meio pelo qual devem ser vendidos. (…) Mas o facto de o nº2 limitar a audição ao credor com garantia real afasta a necessidade de auscultar o devedor insolvente, que decorreria da aplicação subsidiária do dito nº1 do art. 812º, legitimado pelo art. 17º do CIRE (sobre estes pontos, e no sentido propugnado, podem ver-se os Acs. da Rel. de Guim., de 15/Set/2011, no processo 4771/07.5TBBCL-H-G1, e de 28/Jul/2008, no processo 1566/08.2).”
À luz do CIRE, a notificação sobre a modalidade de venda, regime regra, apenas se prevê para o credor com garantia real sobre o bem a alienar, o qual é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a entidade determinada e já não para o devedor/insolvente. Como se viu, o artigo 164º do CIRE não prevê que que haja lugar por parte do AI à audição do devedor insolvente sobre as condições da alienação.
E percebe-se que assim seja: Por um lado, a finalidade subjacente ao regime estatuído no art.º 164.º é apenas a tutela do direito de crédito e por outro, aquando da realização da venda, o insolvente já tem conhecimento que bens lhe foram apreendidos e que os mesmos terão que ser vendidos pelo Administrador da Insolvência. É ónusdo insolvente acompanhar o estado da liquidação e adoptar os procedimentos entendidos por convenientes.
Todavia, estando em causa alienações que constituam actos de especial relevo, estabelece o artº 161º, nº4, do CIRE: “4 -A intenção de efectuar alienações que constituam actos de especial relevo por negociação particular bem como a identidade do adquirente e todas as demais condições do negócio deverão ser comunicadas não só à comissão de credores, se existir, como ao devedor, com a antecedência mínima de 15 dias relativamente à data da transacção”.
Dispõem os nºs 1 a 3 do mesmo artigo 161º do CIRE:
“1– Depende do consentimento da comissão de credores, ou, se esta não existir, da assembleia de credores, a prática de actos jurídicos que assumam especial relevo para o processo de insolvência. 2– Na qualificação de um acto como de especial relevo atende-se aos riscos envolvidos e às suas repercussões sobre a tramitação ulterior do processo, às perspectivas de satisfação dos credores da insolvência e à susceptibilidade de recuperação da empresa. 3–Constituem, designadamente, actos de especial relevo: a)- A venda da empresa, de estabelecimentos ou da totalidade das existências; b)- A alienação de bens necessários à continuação da exploração da empresa, anteriormente ao respectivo encerramento; c)- A alienação de participações noutras sociedades destinadas a garantir o estabelecimento com estas de uma relação duradoura; d)- A aquisição de imóveis; e)- A celebração de novos contratos de execução duradoura; f)- A assunção de obrigações de terceiros e a constituição de garantias; g)- A alienação de qualquer bem da empresa por preço igual ou superior a (euro) 10000 e que represente, pelo menos, 10% do valor da massa insolvente, tal como existente à data da declaração da insolvência, salvo se se tratar de bens do activo circulante ou for fácil a sua substituição por outro da mesma natureza.”
É certo que a alienação em causa nos autos correspondia a um acto de especial relevo, enquadrando-se nas referidas alíneas a) e g). Como tal dependia do consentimento da comissão de credores e sendo a alienação realizada por negociação particular determinava, relativamente à mesma comissão e à devedora, a comunicação a que alude o nº 4 supra referido.
Ficou demonstrado que em 14.10.2022, o Administrador da Insolvência deu conhecimento à devedora da proposta apresentada para aquisição dos bens nos termos do disposto no artº 161º, nº4, do CIRE, pelo que relativamente à invocada nulidade com fundamento na falta de conhecimento da “venda” por parte da insolvente, é evidente que a mesma não pode proceder. A escritura de trespasse só veio a ter lugar em 04.11.2022.
Na mesma data, foi dado conhecimento aos autos da proposta em causa, sendo certo que a realização do acto não dependia, como se disse, de qualquer autorização por parte do tribunal.
Por sua vez, quanto à invocada falta de autorização da assembleia de credores.
Sendo um órgão colegial, a vontade da comissão expressa-se por via da deliberação – cfr artº 69º do CIRE -, deliberação essa que in casu, não teve lugar.
E será esta circunstância fundamento de anulação da alienação?
Vejamos.
Acerca das posições que têm vindo a ser defendidas relativamente à preterição de formalidades essenciais na venda efectuada pelo administrador da insolvência, podem encontrar-se as explanadas no Ac. da RG de 22/10/2020, relator: António Barroca Penha, o qual pode ser consultado in www.dgsi.pt e que, por elucidativo relativamente à questão, passamos a transcrever: «(…) a jurisprudência (que julgamos maioritária) tem vindo a defender que a preterição de formalidades essenciais na venda efetuada pelo administrador da insolvência, não constitui fundamento da declaração de ineficácia do ato de alienação dos bens nem de nulidade da venda, tanto quanto é certo que a ineficácia dos atos do administrador da insolvência só pode ser declarada nos termos do disposto no art. 163º, do CIRE, sem prejuízo de tal preterição acarretar a eventual responsabilidade do administrador, nos termos do disposto no art. 59º, do CIRE. (5 - Por todos, cfr. Ac. RG de 28.07.2008, proc. n.º 1566/08-2, relatora Rosa Tching; Ac. RG de 31.03.2016, proc. n.º 8579/09.5TBBRG-E.G1, relator Joaquim Espinheira Baltar; Ac. RG de 17.12.2018, proc. n.º 721/17.9T8GMR-F.G1, relatora Ana Cristina Duarte; Ac. RP de 29.05.2014, proc. n.º 615/11.1TYVNG-D.P1, relator Aristides Rodrigues de Almeida; Ac. RP de 30.01.2017, proc. n.º 530/16.2T8AVR-F.P1, relator Manuel Domingos Fernandes; Ac. RE de 08.09.2016, proc. n.º 3223/13.9TBSTB-D.E1, relator Silva Rato; e Ac. RC de 16.01.2018, proc. n.º 6229/16.2T8VIS-E.C1, todos disponíveis emwww.dgsi.pt. ) Não obstante, existe igualmente uma corrente jurisprudencial contrária que vai no sentido de admitir que a inobservância pelo administrador da insolvência daquilo que a lei lhe impõe no n.º 2 do art. 164º, do CIRE, produz, tendencialmente, a nulidade/anulação da venda, por aplicação do disposto no art. 195º, n.º 1, do C. P. Civil. (6 - . Por todos, vide Ac. RE de 21.04.2016, proc. n.º 1911/12.6TBLGS-F.E1, relator Rui Machado e Moura; Ac. RP de 18.02.2010, proc. n.º 632/06.3TJVNF-L.P1, relator José Ferraz; Ac. RP de 07.07.2016, proc. n.º 7153/13.6TBMAI-D.P1, relator João Proença; Ac. RC de 13.11.2019, proc. n.º 108/17.3T8LRA-N.C1, relator Emídio Santos, todos disponíveis em www.dgsi.pt.) Ao nível da doutrina Ana Prata, Jorge Morais e Rui Simões (7 - In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 2013, pág. 465), também consideram que a omissão da notificação ao credor garantido gera nulidade processual, criticando a posição assumida, neste particular, por Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, pois que a lei é clara sobre a necessidade de audição do credor garantido sobre o bem a alienar, designadamente acerca da modalidade da venda escolhida; adiantando que, se não fosse “vinculativa” esta audição, onde residiria o ilícito que está na base da responsabilidade do administrador da insolvência? Acontece que, mormente por via do Ac. do STJ de 04.04.2017 (8 - Proc. n.º 1182/14.0T2AVR-H.P1, relator Fonseca Ramos, disponível emwww.dgsi.pt.), foi igualmente introduzida uma outra posição jurisprudencial que, muito embora aceite que a primeira interpretação é a que parece resultar da lei, entende que a mesma deverá ser inaplicável, por violar o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva(art. 20º, n.ºs 1 e 5, da CRP). Para melhor explicitação, neste aresto, poderá ler-se designadamente que: “No caso, mesmo que a prática de actos de especial relevo da competência do administrador da insolvência, na fase de liquidação da massa insolvente, evidenciem terem sido por si violados os arts. 161º e 162º do CIRE pelo administrador da insolvência, o art. 163º do CIRE estatui que tal violação “não prejudica a eficácia dos actos do administrador da insolvência, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte” Este normativo, na interpretação do Acórdão recorrido, não contempla o direito da parte lesada, no incidente de liquidação, por acto ou omissão do AI, poder arguir, perante o Juiz do processo, vícios procedimentais. A vingar tal interpretação, o remédio ao alcance de quem no processo for lesado, por actuação ilegal daquele órgão, é nenhum em termos imediatos e de proporcionalidade, exprimindo indefesa. (…) A lei confere ao lesado como que uma possibilidade de actuação sancionatória de um órgão da insolvência, mas permanece eficaz o acto praticado que não será sindicável no processo. Parece incongruente: o lesado quererá, sobretudo, ver declarada a ineficácia de um acto que patrimonialmente pode ser danoso.
Não obterá a reparação, pela via da arguição da nulidade processual do acto, mas apenas, no contexto de responsabilização em acção judicial em que terá que ser demandante, podendo obter uma indemnização pelos prejuízos sofridos. Segundo o art. 839º, nº 1, c) do Código de Processo Civil, a venda forçada fica sem efeito, em processo executivo, se for anulado o acto da venda, nos termos do art. 195º, ou seja, são aplicáveis as regras gerais sobre a nulidade dos actos omissivos ou comissivos prescritos na lei. Não se ignora que a insolvência é um processo de liquidação universal, que se rege por regras próprias, sendo, subsidiariamente, aplicável o Código de Processo Civil, como prevê o art. 17º do CIRE; estando em causa, no processo de insolvência, interesses dos credores (que podem ser muitos) – a execução é universal e concursal – do devedor insolvente e outros, não parece que a não apreciação imediata no processo de direitos alegadamente violados, exprima tutela efectiva. Só excepcionalmente – ut. parte final do art. 163º do CIRE – a violação do disposto nos arts. 161º, nº1, e 162º (que contemplam actos de “especial relevo”) conduzirá à ineficácia dos actos ilícitos praticados. O processo de insolvência, que o legislador quis célere e desjudicializado, não pode erigir tais valores em objectivos em si mesmos, com prejuízo dos interesses que nele se jogam. A celeridade, a desburocratização, a desjudicialização e os amplos poderes do administrador da insolvência, no incidente de liquidação da massa insolvente, não devem ser interpretados de forma a excluir o papel imparcial e soberano do Juiz, relegando-o para um papel secundário de mero controlo, ou no limite, nem sequer lhe consentindo que possa apreciar a irregularidade do negócio em que interveio o administrador da insolvência A interpretação que o douto Acórdão recorrido acolhe, no que respeita ao art. 163º do CIRE, sentenciando que um credor hipotecário, alegadamente prejudicado pela actuação violadora do administrador da insolvência, no contexto de venda por negociação particular de dois imóveis, não pode suscitar essa actuação ilícita perante o Juiz do processo, e que o despacho do julgador da 1ª Instância que apreciou tal arguição decretando a pedida nulidade, é ilegal por o acto ser eficaz, considerando que resta ao lesado intentar acção de responsabilidade civil contra o AI, e/ou pedir a sua destituição com justa causa, como únicas sanções para os actos ilegais praticados, viola o art. 20º, nºs 1 e 5, da Constituição da República, por não assegurar imediatamente no processo, tutela jurisdicional efectiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de imediata actuação do julgador, estando no limite de violar o princípio da proibição da indefesa.” (9 - No mesmo sentido, cfr. Ac. STJ de 15.02.2018, proc. n.º 4488/11.6TBLRA-M.C1.S1, relator Henrique Araújo; Ac. RE de 08.02.2018, proc. n.º 6426/12.0TBSTB-F.E1, relator Mário Coelho (acórdão este que deu origem ao Ac. Tribunal Constitucional n.º 616/2018, de 21.11.2018). Em bom rigor, esta posição, a despeito de aceitar, numa primeira análise, a primeira das interpretações como sendo a solução da lei, considera que, em consequência, se gera uma inconstitucionalidade, por violação do princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva para o direito infringido, pelo que acaba por concluir pela segunda das interpretações, admitindo assim a nulidade processual gerada pela preterição de formalidades legais (arts. 161º e 162º, do CIRE), por parte do administrador da insolvência em venda de bem garantido. O Tribunal Constitucional já se pronunciou igualmente sobre esta matéria (agora com referência ao disposto no art. 164º, do CIRE), nomeadamente no seu Acórdão n.º 616/2018, de 21.11.2018 (10- Proc. n.º 251/2018, relator José António Teles Pereira, acessível emwww.tribunalconstitucional.pt.), em que se decidiu: “Julgar inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 4, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, a norma contida nos artigos 163.º e 164.º, nºs 2 e 3, do CIRE, na interpretação segundo a qual o credor com garantia real sobre o bem a alienar não tem a faculdade de arguir, perante o juiz do processo, a nulidade da alienação efetuada pelo administrador com violação dos deveres de informação do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada.” (sublinhámos).»
Todavia, a situação que resulta dos autos é totalmente diferente da que foi apreciada pelo Tribunal Constitucional. Quem vem ora invocar a nulidade não é a comissão de credores cujo consentimento não foi expressamente dado à alienação, mas a insolvente, que tão pouco invocou qualquer prejuízo derivado de tal falta de consentimento.
Por outro lado, ainda que não tenha dado o seu consentimento expresso, a comissão de credores sempre soube da alienação do estabelecimento e das respectivas condições.
Os credores não deliberaram o prosseguimento dos autos para apresentação de Plano de Insolvência, pelo que a liquidação teria que ser o destino do processo, conforme resulta das actas da Assembleia de credores de 22.05.2015 e de 20.07.2022.
Os membros da comissão de credores B…, Lda. e P…, S.A. manifestaram-se expressamente favoráveis ao encerramento do estabelecimento com vista à sua venda.
Acresce que, notificados das condições da venda e das diligências realizadas pelo administrador relativas ao leilão electrónico que se encontrou designado entre 18.02.2022 e 18.03.2023 e das diligências subsequentes levadas a efeito por aquele na sequência dos incidentes ocorridos e ainda da posição assumida pelo anterior licitante, os membros da comissão de credores nada opuseram – cfr notificações elaboradas em 06-06-2022 no apenso de liquidação, apenso H. As condições então anunciadas eram em tudo idênticas às da venda agora realizada.
Diga-se, ainda, que, em 14.10.2022, o Administrador da Insolvência enviou à Comissão de Credores um e-mail com o seguinte teor: “(…) Terminou ontem o leilão dos bens apreendidos sem que tenha havido proposta superior ao valor mínimo. Contudo, logo após, foi efetuada uma proposta de 820.000,00 que excede o valor mínimo que era de 807.500,00€. Dado que a proposta cumpre as condições exigidas no leilão para que fosse feita a adjudicação, não havendo oposição no prazo de 5 dias, vai proceder à adjudicação dos bens por um valor não inferior a 820.000,00€. (…)”
Na sequência desse e-mail, a comissão de credores nada declarou.
Em face do exposto, não se pode concluir que a venda tenha sido efectuada à revelia e sem o conhecimento da comissão de credores: os membros desta comissão sempre tiveram conhecimento das condições da venda e nada invocaram.
Mais ainda que assim não fosse e como se diz no Ac. da RL de Coimbra de 19/12/2018, Proc. nº 444/06.4TBCNT-AC.C1, relatora: Catarina Gonçalves, in www.dgsi.pt: “(…) sempre se poderia questionar se a falta de consentimento da comissão de credores corresponde a uma irregularidade processual que possa ser arguida e declarada por via da arguição de uma nulidade processual nos termos do artigo 195º e segs. do CPC. Poder-se-á dizer, de facto, que não está em causa a mera omissão de uma formalidade legal de cariz processual, mas sim a falta de um consentimento que interfere com a validade do negócio e que, como tal, não poderia ser apreciada e decidida pela via (simplista) de arguição de uma irregularidade/nulidade processual. Além do mais, nem sequer se vislumbram razões válidas para não admitir a convalidação do negócio por via da sua ratificação ou confirmação por parte de quem tinha que prestar o seu consentimento [4 Neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2008, pág. 544], à semelhança do que acontece em diversos casos previstos na lei civil (além de a confirmação do negócio ser estabelecida na lei como regra para o efeito de sanar a anulabilidade do negócio – artigo 288º do CC – a possibilidade de confirmação ou ratificação do negócio como forma de sanar a invalidade, está também prevista, designadamente, para os actos praticados em nome de incapaz que dependem de autorização do tribunal – artigos 1894º e 1941º CC - e para os actos praticados em nome de outrem sem poderes de representação – artigo 268º do CC), o que poderia determinar a impossibilidade ou inconveniência de anular o negócio – com todos os prejuízos inerentes – sem dar à comissão de credores a possibilidade de confirmar o negócio celebrado sem o seu consentimento”.
De qualquer forma e independentemente da solução a dar a estas questões, entendemos que não está configurada qualquer irregularidade relevante que seja susceptível de determinar a nulidade da alienação, uma vez que, conforme se referiu, não obstante a inexistência de consentimento expresso da comissão de credores, os seus membros desde o início que tiveram conhecimento da mesma, tiveram conhecimento das respectivas condições há mais de um ano e meio, tendo sido notificados pelos administrador de tais condições e nada invocaram.
Diga-se, ainda, que, conforme resulta dos autos, o AI também em 14/10/2022 juntou informação acerca do estado da liquidação, informação essa na qual constam todas as condições da alienação e ainda a identificação do proponente – legal representante da sociedade que veio a intervir na escritura de trespasse na qualidade de compradora, escritura essa que veio a ter lugar no dia 4 de Novembro de 2022.
Assim, improcede também neste ponto a argumentação da insolvente.
Invocou ainda a mesma “irregularidade da venda” com fundamento no facto de, alegadamente, a leiloeira não ter comparecido nas visitas agendadas.
A insolvente, além de não ter apresentado qualquer prova, tão pouco alegou factos concretos susceptíveis de levar a concluir pela verificação de qualquer irregularidade relacionada com as diligências de venda e que pudesse influir no acto.
Deve, pois, o recurso ser julgado improcedente.
*
IV–DECISÃO
Em face do exposto acordam as juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o recurso improcedente, mantendo o despacho recorrido.
Custas: pela apelante – artº 527º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
Registe e Notifique.
Lisboa, 28/11/2023
Manuela Espadaneira Lopes Amélia Sofia Rebelo Isabel Maria Brás Fonseca