SOCIEDADE COMERCIAL
EXTINÇÃO
CRÉDITO
COBRANÇA
SÓCIO
Sumário


1 – Constatando-se depois do encerramento da liquidação e da extinção da sociedade que existem bens não partilhados, qualquer dos antigos sócios pode propor ação de cobrança contra os devedores, desde que limitada ao respetivo interesse. Integram-se nesta categoria as ações de cobrança de créditos da antiga sociedade ou para fazer reconhecer e efetivar os direitos sobre bens nas referidas circunstâncias, excluindo-se as ações resultantes de discordâncias entre antigos sócios.
2 – É um fenómeno de sucessão, estabelecido por disposição legal, do sócio relativamente à sociedade extinta, com a particularidade de o direito só poder ser exercido na medida do respetivo interesse. Com a extinção da sociedade deixa de existir a pessoa coletiva, perdendo a sua personalidade jurídica e judiciária, mas as relações jurídicas de que a sociedade era titular não se extinguem, como flui do preceituado nos artigos 162º, 163º e 164º do CSC. Os antigos sócios podem exercer direitos emergentes dessas relações jurídicas.
3 – A esses direitos de crédito é aplicável o regime de prescrição estabelecido no artigo 174º, nº 3, do CSC, segundo o qual prescrevem no prazo de cinco anos, a contar do registo da extinção da sociedade, se, por força de outros preceitos, não prescreverem antes do fim daquele prazo.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

1.1. AA, «em nome pessoal e na qualidade de representante e liquidatário da sociedade EMP01..., Limitada», intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e mulher, CC, formulando os seguintes pedidos:
«a) Declarar e condenar os RR. a reconhecer que receberam dos AA. bens no valor de 554.600,00 €, quando a dívida da EMP01... era de 175.000,00 € e a dívida do A. AA era de 80.000,00 €, devendo assim devolver-lhes a diferença do que receberam a mais, no montante de 299.000,00 €, como se alegou no anterior art. 44º.
b) Na hipótese de se entender que a dívida da EMP01... era de 250.000,00 € e do A. AA 80.000,00 € – o que só por hipótese se admite - que os RR. sejam condenados a devolver a diferença no montante de 224.600,00 €, como se alegou no anterior art. 45º;
c) Se ainda assim se não entender e se forem indeferidos os pedidos formulados nas anteriores alíneas a) e b) – o que só por hipótese se admite - que os RR. sejam condenados a devolver aos AA. o valor dos bens que receberam como garantia do pagamento das dívidas., no montante de 103.600,00 €, acrescido dos juros vencidos até 10/01/2023, como se alegou nos anteriores arts. 47º a 52º, no total 139.879,87 €, acrescido dos juros que se vencerem sobre esse capital desde aquela data até ao efetivo pagamento da dívida.
d) Em qualquer caso, devem os réus ser condenados a pagar aos autores os juros de mora referentes aos pedidos formulados nas alíneas a) e b) deste pedido, que se venceram desde a data em que transitou em julgado a ação referida no anterior art. 6º (13/10/2022), pelos motivos alegados no anterior art. 78º.»

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Os Réus contestaram, invocando as exceções dilatórias de ilegitimidade ativa e de falta de personalidade judiciária, a desconformidade entre o conteúdo do formulário e o conteúdo do ficheiro anexo, e a exceção perentória de prescrição; mais impugnaram parte dos factos alegados e concluíram pela improcedência da ação.
Para o caso de proceder a ação, pediram, em reconvenção, que seja operada a compensação entre o crédito ora reclamado e aquele, no montante de € 500 000,00, que lhes foi reconhecido no processo de insolvência da EMP01... e que seja «a Reconvinda condenada a pagar à Reconvinte a quantia € 500.000,00 (quinhentos mil euros), acrescida dos respetivos juros moratórios, calculados à taxa juro aplicável, contabilizados desde a notificação da presente peça processual até efetivo e integral pagamento, sem prejuízo de realização da correspondente compensação de créditos detidos entre as partes intervenientes nos termos legais.»
O Autor/Reconvindo apresentou réplica.
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1.2. Na sequência de despacho de aperfeiçoamento, o Autor, por requerimento de 26.06.2023, prestou esclarecimentos, designadamente que «quem propõe a ação é o Autor AA, quer em nome próprio, quer na qualidade de sócio da sociedade EMP01...», que «a sociedade EMP01... encontra-se extinta, não tendo personalidade jurídica, sendo, no entanto, “substituída” pelo seu sócio aqui Autor, na medida do seu interesse, nos termos e para os efeitos previstos no art. 164º/2, parte final, do CSC»; que «os concretos negócios jurídicos celebrados entre o Autor e a sociedade EMP01... e o 1º Réu foram já definidas por sentença transitada em julgado em todos esses intervenientes foram partes, proferida no âmbito do Processo n.º 447/18....»; o crédito de que é titular a título pessoal advém do incumprimento, pelo Réu, da obrigação decorrente da cláusula 5ª do Protocolo; o facto de os bens pertencerem à EMP01... não obstava à realização do Protocolo, que outorgou a título pessoal; o crédito da EMP01... resulta da entrega de bens de, pelo menos, € 451.000,00 para pagamento de uma dívida daquela de € 250.000,00 e de uma dívida do Autor de € 80.000,00, tendo assim havido um enriquecimento dos Réus de € 121.000,00.
Concluiu pedindo a «alteração/redução do pedido ao abrigo do disposto no art. 265º/2 do CPC, nos termos seguintes:
«a) Declarar e condenar os Réus a pagar ao Autor, a título pessoal e na qualidade de sócio da sociedade, EMP01..., Limitada, NIPC ...71, com sede na Rua ..., Loja ..., ... – ..., o montante de EUR 121.000,00 (cento e vinte e um mil euros), acrescido de juros de mora, desde a data em que transitou em julgado a ação referida no art. 6º da pi. (13/10/2022) e até integral pagamento.
b) Declarar e condenar os Réus a pagar ao Autor, a título pessoal e na qualidade de sócio da referida sociedade, o montante de EUR 103.600,00 (cento e três mil e seiscentos euros), acrescidos de juros de mora, desde a data em que foi vendida a fração ... da freguesia ... (20/06/2011) e a fração ... da freguesia ... (05/07/2006)».
No exercício do contraditório, os Réus disseram que o Autor continua sem esclarecer os créditos que reclama a título pessoal e os que reclama enquanto sócio da EMP01...; no mais, mantiveram o alegado na contestação.
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1.3. Dispensada a audiência prévia, no saneador, decidiu-se:
i) Homologar a desistência parcial quanto aos dois primeiros pedidos formulados na petição inicial;
ii) Admitir a reconvenção (subsidiária);
iii) «Julgar prejudicado o conhecimento da exceção dilatória da falta de personalidade judiciária da EMP01..., Lda., uma vez que esta não é parte na ação»;
iv) «Julgar verificada a referida exceção dilatória quanto à reconvenção e, em consequência, absolver a reconvinda da instância reconvencional, absolveu-se a Reconvinda da instância reconvencional por falta de personalidade judiciária»
v) «Julgar verificada a exceção da ilegitimidade ativa no que tange à parte do 1.º pedido formulado (na sequência da modificação operada pelo requerimento de 26 de junho) que excede a medida do interesse do Autor no capital social da EMP01..., Lda., a qual se computa em 70% do total – isto é, em € 84 700,00 (oitenta e quatro mil e setecentos euros), do pedido –, e, nessa parte, absolver os Réus da instância»;
vi) Julgar improcedente a alegada nulidade decorrente da desconformidade entre o formulário Citius e a petição inicial;
vii) Julgar procedente a exceção de «prescrição do direito que o Autor pretende exercer através da ação, com fundamento no disposto no art. 174/3 do CPC», «no que tange à pretensão assente no enriquecimento sem causa, corporizada no 1.º pedido», com a consequente absolvição dos Réus do pedido;
viii). «[J]ulgar a ação improcedente e, em consequência, absolver os Réus também do 2.º pedido formulado pelo Autor».
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1.4. Inconformado, o Autor interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
«1. Relativamente ao segundo pedido formulado pelo Recorrente/Autor na alínea b) da resposta a convite de aperfeiçoamento da p.i.:
A) Conforme resulta do facto provado constante do ponto 2.1.c) da sentença recorrida, o Autor AA, a título pessoal, e o Réu DD outorgaram o Protocolo de 20/06/2006 junto em anexo à p.i. como doc....9, pelo qual, através designadamente da sua cláusula quarta, acordaram em outorgar um contrato de sociedade civil, “destinado a colocarem em comum os esforços de ambos – devendo o primeiro entregar os bens e contribuir para o enriquecimento das parcelas, nomeadamente através de implantação de obra nas mesmas e o segundo, contribuir com a sua capacidade de crédito junto da Banca – de modo a que ambos possam distribuir os proveitos daí advenientes na proporção de um terço para o primeiro e de dois terços para o segundo, até que este consiga receber toda a quantia do crédito concedido” (facto provado constante do ponto 2.1.c) da sentença recorrida).
B) Por sua vez, conforme resulta do facto provado constante do ponto 2.1.d) da sentença recorrida, na clausula quinta desse Protocolo ficou ainda estabelecido entre Autor e Réu, ambos a título pessoal, que “No que respeita às frações autónomas, sitas na freguesia ..., supra referenciadas, a propriedade das mesmas é transferida para a titularidade do segundo outorgante, apenas para garantia da dívida, na medida em que é da incumbência do primeiro (AA) proceder à venda das mesmas ou negociar contrato de leasing junto da banca, de modo a que o produto do preço conseguido ou os proveitos do leasing contratado, seja usufruído por este” (facto provado constante do ponto 2.1.d) da sentença recorrida).
C) Significa isto que, apesar de a propriedade sobre estes imóveis/frações ter sido transferida para os Réus, por acordo entre ambos, seria o Autor quem procederia à venda das mesmas ou negociaria contrato de leasing junto da banca, de modo que o produto do preço conseguido ou os proveitos do leasing contratado, fosse por ele (Autor) usufruído a título pessoal. Esses bens não poderiam assim ser livremente vendidos pelos Réus… aliás, por acordo de ambos, apenas o Autor poderia beneficiar dos mesmos (quer do respetivo preço, quer dos proveitos do leasing que viesse a ser contratado)
D) Ora, o Autor AA cumpriu a sua parte desse Protocolo, tendo feito transferir a propriedade das frações autónomas em causa, sitas na freguesia ..., para a titularidade do 1º Réu DD, para garantia da dívida, sujeita, no entanto, às acordadas limitações/condições. Obviamente que o Autor apenas efetuou esse negócio, na convicção que os Réus cumpririam o acordado no Protocolo entre eles celebrado.
E) Sucede que o Réu DD recebeu esses bens, mas, apesar do estipulado na clausula quinta daquele Protocolo, nunca devolveu ao Autor AA as referidas frações autónomas, sitas na freguesia ..., ou o seu valor, apesar da respetiva dívida ter sido paga na totalidade (como se demonstrou na ação em causa), causando-lhes um prejuízo equivalente ao respetivo valor em 2006 ou seja 56.300,00 € e 47.300,00 €, respetivamente, no total de 103.600,00 €, conforme peritagem realizada e referida nos arts. 10º g e 13º da p.i., com referência ao doc. ... da p.i..
F) Com efeito, a fração ... da freguesia ... foi adquirida pela Farmácia ..., através do reconhecimento do direito de preferência na ação correspondente, conforme AP. ...23 de 2011/06/20 (doc. ...0 em anexo à p.i.), enquanto a fração ... da freguesia ... foi vendida pelos RR., conforme AP. ...7/05 (cfr doc. ...1 em anexo à p.i. e facto provado constante do ponto 2.2.f), 2.2.g) e 2.2.i) da sentença recorrida).
G) Parece-nos, pois, indubitável que, quer num caso, quer noutro, os aqui Réus apropriaram-se das frações em causa, fazendo-as suas e posteriormente as alienaram a terceiros, fazendo também exclusivamente seus os respetivos preços/valores, sem nada pagar ao Autor, tudo feito sem a sua autorização/consentimento, em total desrespeito do acordado no referido Protocolo, provocando-lhe assim o referido prejuízo no montante total de 103.600,00 € (56.300,00 € + 47.300,00 €).
H) Assim, os RR., tendo recebido do A. os referidos imóveis da freguesia ... para garantir o pagamento da dívida, nunca poderiam tê-los vendido ou ficar com o dinheiro da preferência e da compra e venda (como sucedeu) e por isso ficaram em mora a partir de qualquer um desses atos, sendo também devidos os respetivos juros de mora desde a prática dos mesmos e até integral ressarcimento ao Autor. Tanto mais que, conforme resulta da sentença transitada em julgado proferida no âmbito do Processo n.º 447/18.... e já junta aos autos como doc. ... em anexo à p.i., as dívidas do Autor, bem como da EMP01..., ao Réu BB já se encontram totalmente pagas.
I) No nosso entendimento, o facto de os prédios em questão pertencerem à sociedade EMP01... não pode obstar à validade deste Protocolo, celebrado pelo Autor a título pessoal, tratando-se antes de uma questão interna a resolver entre este e a sociedade EMP01.... O Réu BB assumiu esse compromisso perante o Autor, estando assim pessoalmente obrigado ao seu cumprimento perante ele. Tendo-se colocado numa situação de incumprimento contratual por sua culpa, o Réu tem de indemnizar o Autor.
J) Como incumpriram definitivamente o Protocolo outorgado com o Autor, os Réus devem ser condenados a pagar-lhe o referido montante de EUR 103.600,00 (cento e três mil e seiscentos euros), acrescidos de juros de mora, desde a data em que foi vendida a fração ... da freguesia ... (20/06/2011) e a fração ... da freguesia ... (05/07/2006)
K) Entendemos que a lógica seguida pelo Tribunal “a quo” de considerar que o crédito em questão sobre os Réus pertence à sociedade EMP01... e não ao Autor a título pessoal não é adequada ao presente caso concreto, uma vez que:
a. Desde logo, a EMP01... não é sequer parte no Protocolo invocado entre as partes (cfr, doc....9 da p.i.). O dito Protocolo foi celebrado pelo Autor, a título pessoal, e o Réu marido;
b. O negócio jurídico em causa visou garantir uma dívida pessoal do Autor para com o dito Réu e não uma dívida da EMP01...;
c. O Autor e o Réu marido, ambos a título pessoal, celebraram expressamente um contrato de sociedade civil, destinado a colocarem em comum os esforços de ambos – devendo o Autor entregar os bens e contribuir para o enriquecimento das parcelas, nomeadamente através de implantação de obra nas mesmas e o Réu marido, contribuir com a sua capacidade de crédito junto da Banca – de modo a que ambos possam distribuir os proveitos daí advenientes na proporção de um terço para o primeiro e de dois terços para o segundo, até que este consiga receber toda a quantia do crédito concedido. (cfr cláusula quarta do protocolo-doc....9 da p.i.);
d. Autor e Réu, ambos a título pessoal, acordaram ainda expressamente que, no que respeita às frações autónomas, sitas na freguesia ..., aqui em causa, a propriedade das mesmas foi transferida para a titularidade do Réu marido, apenas para garantia da dívida do Autor, na medida em que é da incumbência deste (Autor) proceder à venda das mesmas ou negociar contrato de leasing junto da banca, de modo a que o produto do preço conseguido ou os proveitos do leasing contratado, fosse por ele usufruído a título pessoal. (cfr cláusula quinta do protocolo-doc....9 da p.i.);
e. O facto de ter sido a EMP01..., empresa da qual o Autor era sócio-gerente, a transferir os imóveis em causa para o Réu marido, não afeta a validade do dito Protocolo, nem transforma a EMP01... em parte outorgante do mesmo. Essa será uma questão a resolver entre o Autor e a sociedade EMP01..., da qual era sócio-gerente.
L) Face ao exposto, na sequência desse protocolo assinado entre ambos a título pessoal, o Autor obrigou-se a transferir esses imóveis da EMP01..., da qual era sócio-gerente, para o Réu marido, nas condições/limitações supra descritas, tendo cumprido integralmente a sua obrigação.
Neste contexto, é da mais elementar justiça que, em contrapartida, o Réu cumpra a obrigação que assumiu para com ele no mesmo Protocolo. E se não puder por culpa própria (como sucede no presente caso, uma vez que já as alienou, tendo feito seus os respetivo preços), terá de indemnizar o Autor…. Como aliás se pediu no âmbito da presente ação.
M) Também não faz sentido, como faz o Tribunal “a quo” (e que só por dever de patrocínio se considera como possível), defender que esse “… negócio é nulo por afrontar a proibição do pacto comissório, consagrada no art. 694º do Código Civil (…)”, uma vez esse preceito legal existe para evitar abusos de situações em que o devedor é explorado/abusado por se encontrar em posição de manifesta inferioridade em relação ao credor. Nas palavras de PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA: «Esta proibição (…) funda-se no prejuízo que do pacto comissório pode resultar para o devedor, que seria facilmente convencido, dado o seu estado de necessidade, a aceitar cláusulas lesivas dos seus interesses. O fundamento é paralelo ao da proibição da usura. A proibição abrange também, pelo seu espírito, o pacto pelo qual se convencione o direito de venda particular.»
N) Ora, o Tribunal “a quo” parece pretender defender a tese peregrina de utilizar a proibição do pacto comissório, consagrada no art. 694º do Código Civil, para proteger o credor abusador/extorsionista do devedor em estado de necessidade, situação que não faz qualquer sentido. Não nos podemos esquecer mais uma vez que, de acordo com a cláusula quinta, as frações sitas na freguesia ... aqui em causa foram transferidas para a titularidade dos Réus, apenas para garantia da dívida pessoal do Autor, tendo sido acordado que este (Autor) manteria o direito de proceder à venda das mesmas ou negociar contrato de leasing junto da banca, de modo a que o produto do preço conseguido ou os proveitos do leasing contratado, fosse por ele (Autor) usufruído a título pessoal e, ao contrário do acordado entre as partes, os Réus procederam à venda das frações em causa, apropriando-se ilegitimamente do respetivo preço, mesmo tendo sido integralmente pagos da respetiva dívida.
O) Obviamente que, numa situação destas, não faz qualquer sentido e é até contraditório, invocar a nulidade do negócio em causa por proibição do pacto comissório, consagrada no art. 694º do Código Civil, a qual existe para proteger o devedor em estado de necessidade do credor abusador/extorsionista e não o contrário, como parece defender o Tribunal “a quo”.
P) Importa ainda salientar que no domínio de vigência do Código Civil de 1966, prevalece, quer na doutrina quer na jurisprudência, a tese da validade dos negócios fiduciários, mormente, em virtude do princípio da autonomia da vontade negocial decorrente do disposto nos artigos 405.º e 1306.º do referido Código, e da diferenciação entre a causa-função concreta do contrato e a causa-função típica da espécie contratual em referência e até em face do acolhimento dos contratos de alienação fiduciária em garantia, na nossa ordem jurídica, através do Dec.-Lei n.º 105/2004, de 08/05, que transpôs a Diretiva n.º 2002/47/CE, do Parlamento Europeu e Conselho relativa aos acordos de garantia financeira. Nessa linha, como se assume no referido acórdão do STJ, de 26/04/2018, tem vindo a ser considerado acertado o entendimento de que “a celebração de negócios jurídicos fiduciários enquanto negócios atípicos é, em abstrato, válida no ordenamento jurídico português, sem prejuízo de se poder sindicar a licitude do respetivo objeto em face do disposto no artigo 280.º do Código Civil, em particular, na vertente de fraude à lei.”
Q) Neste caso, atenta a venda ilícita dos imóveis em questão pelos Réus a terceiros, incumprindo assim o Protocolo assinado com o Autor, a aplicação do regime da nulidade à alienação em garantia não confere qualquer proteção ao devedor em estado de necessidade (que, neste caso é o Autor). A solução que, neste caso, melhor protegerá esse mesmo devedor em estado de necessidade (neste caso, o Autor) e a ordem jurídica (designadamente dos terceiros adquirentes dos imóveis alienados se estiverem de boa-fé) será obter do fiduciário (neste caso dos Réus) a indemnização pelos danos sofridos decorrentes da violação das obrigações decorrentes do pacto/acordo/protocolo. Precisamente o que o Autor pede na alínea b) do seu pedido constante do requerimento/resposta ao convite de aperfeiçoamento efetuado pelo Tribunal, pelo que o mesmo deve ser julgado totalmente procedente.
R) Importa ainda salientar que, mesmo que se entenda que o Autor a título pessoal não é parte nesse Protocolo, mas sim a sociedade EMP01..., como parece também defender o Tribunal “a quo”, a solução nunca poderá passar por julgar improcedente a presente ação, beneficiando de modo injustificado e abusivo os Réus, credores que se aproveitaram e beneficiaram abusivamente da venda ilícita dessas duas frações sitas na freguesia ... aqui em causa. Com efeito, depois de encerrado o processo de insolvência e cancelada a matrícula da sociedade, quando há ativo superveniente e é necessário interpor ação para cobrança do mesmo, qualquer um dos seus sócios pode interpor a respetiva ação limitada ao seu interesse nos termos previstos no art.164º/2 CSC.
S) Ora, o Autor é sócio da sociedade EMP01... – IMOBILIÁRIA, LIMITADA, titular de 30% do capital social, pelo que, nessa qualidade, sempre teria legitimidade para, invocando essa qualidade, propor a presente ação para cobrança de créditos dessa sociedade, como sucede no caso presente. Assim, caso assim sucedesse (fosse a EMP01... a parte outorgante do Protocolo), discutindo-se na presente ação uma questão relacionada com o ativo da sociedade, pendente após a extinção desta, e, portanto, superveniente, sempre o Autor deteria, enquanto sócio da sociedade extinta, e à luz do art. 164º/2 do CSC, legitimidade para, nessa qualidade e limitada ao seu interesse (30%), ser demandante em representação/substituição da dita sociedade extinta. Nesse caso seria também de aplicar a este ponto as seguintes conclusões X) a BB), com as necessárias adaptações.

2. Relativamente ao segundo pedido formulado pelo Recorrente/Autor na alínea a) da resposta a convite de aperfeiçoamento da p.i.:
T) Salvo melhor opinião, entendemos que o Tribunal “a quo” carece ainda de razão quando, decidiu que o crédito do Autor se extinguiu uma vez que já decorreram mais de 5 anos sobre o registo da sua extinção, não nos parecendo correta/adequada a interpretação que faz do disposto no art.º 174º n.º 3 CPC. Desde logo, porque o Autor não litiga apenas como ex sócio da sociedade extinta, mas também em nome pessoal, pelo que nesta última qualidade nem sequer lhe poderia ser aplicável esse regime previsto no art. 174º/3 do CSC.
U) Acresce que o direito do autor só “nasceu” com a prolação da ação que correu termos sob o Processo nº 447/18...., Juiz J..., do Juízo Central Cível ... e melhor descrito no art. 6º da p.i.. Ou seja, nos presentes autos estão em causa factos posteriores à dissolução de uma sociedade comercial, cujo autor era sócio e consequentemente proprietário da respetiva quota.
V) Extinta a sociedade, os bens que não tiverem sido partilhados pertencem aos sócios, na medida do seu interesse, sendo que, no caso em apreço, estamos perante um ativo superveniente. Sendo o Autor sócio da sociedade EMP01... – IMOBILIÁRIA, LIMITADA, titular de 30% do capital social, pelo que, nessa qualidade, sempre teria legitimidade para, invocando essa qualidade, propor a presente ação para cobrança de créditos dessa sociedade na medida do seu interesse, nos termos previstos no art. 164º/2 do CSC, como sucede no caso presente.
W) Tal como resultou provado na referida sentença, em 27/01/2006, a dívida da EMP01... ao Réu DD era de 250.000,00 €, enquanto a dívida do Autor AA ao mesmo era de 80.000,00€, perfazendo um total de EUR 330.000,00. Ora, para pagamento das mesmas entregaram bens no valor total de, pelo menos, 451.000,00€ (não se levando em linha de conta as referidas frações da freguesia ..., bens entregues a título de garantia nos termos do art. 5º do Protocolo), constata-se que os Réus se apropriaram ainda ilegitimamente do valor da respetiva diferença, ou seja EUR 121.000,00, dos quais 30% (EUR 36.300,00) correspondem ao interesse do aqui Autor, enquanto sócio da EMP01.... Face ao exposto, os Réus são ainda devedores ao Autor, a título pessoal e na qualidade de sócio da sociedade EMP01..., pelo montante de, pelo menos, EUR 36.300,00, acrescidos de juros de mora, desde a data em que transitou em julgado a ação referida no art. 6º da pi. (13/10/2022) e até integral pagamento.
X) Porém, tal facto só adveio ao conhecimento do Autor, na sequência da prolação da sentença da referida ação (Processo nº 447/18....), proposta por EE e mulher que, atenta a relação de confiança existente entre eles e o aqui autor, acederam ao pedido deste, para hipotecar o seu prédio, para garantir um empréstimo (alegadamente) de 350.000,00€, que os aqui Réus iriam fazer à sociedade extinta, EMP01.... Logo, só quando foi notificado dessa sentença proferida no âmbito do Processo nº 447/18.... (17/01/22), é que o Autor teve conhecimento que a sociedade tinha pago aos Réus muito mais do que, na realidade, devia.
Y) Não havendo conhecimento deste excesso de pagamento por parte da sociedade e dos seus sócios à data da extinção daquela, é inequívoco que estes não podiam exercer qualquer direito por desconhecimento e consequentemente não tinham razão para exigir qualquer pagamento por parte dos Réus, nomeadamente o que aqui está em causa, pelo que jamais lhe poderá ser aplicável o prazo previsto no art.º 174º n.º 3 CSC. Na verdade, não se pode olvidar que a situação que aqui está em causa não é passível de ser enquadrável nesse artigo, concretamente no prazo aí estabelecido, porquanto nos 5 anos posteriores à dissolução da sociedade, nenhum dos sócios da sociedade extinta conhecia ou antevia a proposição e desfecho da supra mencionada ação (Processo nº 447/18....).
Z) Por outro lado, entendemos ainda que a prescrição prevista no art.º 174º CSC refere-se exclusivamente a obrigações pecuniárias, sendo certo que a presente ação tem na sua génese a relação de liquidação decorrente da invalidade de um negócio jurídico – a simulação, por sentença judicial já transitada em julgado proferida no âmbito do Processo nº 447/18.....
AA) Logo, à semelhança do que decidiu o Ac. STJ de 12/12/13 (proc. 1735/11.8TBBRG.G1-A.S1-A), disponível em www.dgsi.pt, ao caso aplica-se o prazo ordinário de 20 anos, quer estejamos a falar do autor em nome pessoal, quer enquanto sócio liquidatário. O que aqui se pretende não é um direito de crédito cuja cobrança se deseje e imponha, mas o direito à consequência/efeito da nulidade da simulação acima referida (art.º 289º CC).
BB) Face ao exposto, entendemos que o pedido constante na alínea a) do requerimento/resposta do Autor ao convite de aperfeiçoamento efetuado pelo Tribunal deve ser julgado parcialmente procedente, na medida do interesse do Autor na sociedade EMP01... (30%).
TERMOS em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, substituindo-a por outra que, condene os Réus dos pedidos constantes do requerimento/resposta ao convite de aperfeiçoamento do Tribunal “a quo”, deduzido a 26/06/2023, nos termos supra mencionados, tudo com as consequências legais, assim se fazendo a devida, JUSTIÇA.»
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Os Recorridos apresentaram contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
O recurso foi admitido.
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1.5. Questões a decidir
Nas conclusões do recurso, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, o Recorrente suscita as seguintes questões:
i) Se deve ser julgada improcedente a exceção perentória de prescrição relativamente ao pedido deduzido na alínea a) da petição aperfeiçoada;
ii) Se o Autor é titular de um crédito sobre os Réus no montante de € 103.600,00, emergente da violação pelo Réu da cláusula 5ª do Protocolo celebrado em 20.01.2006 (al. b) do pedido);
iii) Se estão reunidos os requisitos do enriquecimento sem causa relativamente à quantia de € 36.300,00.
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II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de facto
2.1.1. Na decisão recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
a) Por sentença de 12 de março de 2013, proferida [n]o processo n.º 4223/12...., que correu termos pelo ... Juízo Cível do extinto Tribunal Judicial da Comarca ..., foi declarada a insolvência da sociedade EMP01..., Lda.;
b) Pela apresentação 1, de 11 de novembro de 2015, foi inscrito, no registo comercial, o encerramento do processo de insolvência e o cancelamento da matrícula da sociedade, tudo cf. certidão registral apresentada como documento ... com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
c) A sociedade EMP01... foi constituída com o capital social de € 250 000,00, dividido em duas quotas: uma, no valor de € 75 000,00, pertencente ao Autor; outra, no valor de € 175 000,00, pertencente a FF;
d) O Autor foi inicialmente designado gerente da sociedade;
e) Renunciou à gerência em 21 de fevereiro de 2007, o que foi inscrito no registo a 20 de março de 2007;
f) Por deliberação de 21 de fevereiro de 2007, foi nomeada gerente FF, o que foi inscrito no registo a 20 de março de 2007;
g) A [presente] ação foi proposta no dia 22 de fevereiro de 2023 e os Réus citados no dia 24 de fevereiro de 2023, cf. avisos de receção juntos sob as refªs. ...14 e ...01, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
Factos já dados como provados na ação nº 447/18.... do Juízo Central Cível ... – Juiz ...:
h) Em 20 de Janeiro de 2006, o Réu BB e o Autor celebraram um “Protocolo”, pelo qual este se declarou devedor daquele de uma dívida “orçada em cerca de 500.000,00” €, comprometendo-se a outorgar escrituras de Dação em Cumprimento dos seguintes prédios, que eram propriedade da “EMP01..., Limitada”: a) - duas parcelas de terreno para construção urbana, designadas pelos lotes nº ...5 e lote nº ...6, situados na freguesia ..., ..., inscritos na Matriz sob os arts. ...93 e ...94 urbano; b) - onze parcelas de terreno, designadas pelos lotes ... a ...1, situados na freguesia ..., ..., inscritos na Matriz sob os arts. ...74, ...75, ...76, ...77, ...78, ...79, ...80, ...81, ...85, ...83, ...84, respetivamente; c) - uma fração autónoma, designada pela letra ..., do prédio constituído em regime de propriedade horizontal - Bloco ... – sito na freguesia ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº...57º - G; d) - uma fração autónoma designada pela letra ..., do prédio constituído em regime de propriedade horizontal – Bloco ... – sito na freguesia ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...83....
i) Consta ainda desse Protocolo (cláusula terceira), que o aqui 1º R. BB ficou com a incumbência de negociar contratos de locação financeira junto da Banca, solicitando a reavaliação dos bens hipotecados, de modo a que consiga um financiamento, por montante superior ao valor dos atuais ónus que impendem sobre os prédios situados nas freguesias de ... e ....
j) Através da cláusula quarta desse Protocolo, acordaram ainda os dois RR. em outorgar um contrato de sociedade civil, “destinado a colocarem em comum os esforços de ambos – devendo o primeiro entregar os bens e contribuir para o enriquecimento das parcelas, nomeadamente através de implantação de obra nas mesmas e o segundo, contribuir com a sua capacidade de crédito junto da Banca – de modo a que ambos possam distribuir os proveitos daí advenientes na proporção de um terço para o primeiro e de dois terços para o segundo, até que este consiga receber toda a quantia do crédito concedido”.
k) Na cláusula quinta desse Protocolo ficou ainda estabelecido que “No que respeita às frações autónomas, sitas na freguesia ..., supra referenciadas, a propriedade das mesmas é transferida para a titularidade do segundo outorgante, apenas para garantia da dívida, na medida em que é da incumbência do primeiro (AA) proceder à venda das mesmas ou negociar contrato de leasing junto da banca, de modo a que o produto do preço conseguido ou os proveitos do leasing contratado, seja usufruído por este”.
l) Em 27 de Janeiro de 2006, o 1º R. BB e o 2º R. AA outorgam uma escritura de “Confissão de Dívida e Dação em Cumprimento” pela qual o 2º R., por si e na qualidade de sócio e gerente da EMP01..., declara que ele e a sociedade que representa devem ao 1º R. a quantia de 330.000,00 €, e para pagamento parcial do crédito, a EMP01... dá (dação pro solvendo) os quatro prédios aí descritos, que correspondem aos bens que constam das alíneas a), c) e d) da cláusula segunda do Protocolo.

Outros factos considerados na 1ª instância:
m) Pela apresentação ..., de 19.03.2008, foi feito o registo, provisório por natureza, com referência à identificada fração ..., de uma ação intentada por EMP02... Unipessoal, Lda., contra a EMP01..., Lda., e os Réus, em que foi formulado o seguinte pedido: ser reconhecido à Autora o direito de exercer a preferência do imóvel pelo preço que foi transacionado no negócio celebrado por escritura de 27 de janeiro de 2006 entre os Réus;
n) O registo dessa ação foi convertido em definitivo pela apresentação 1523, de 20.06.2011, tudo cf. certidão registral apresentada como documento ...0 com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido;
o) Pela apresentação 62, de 5.07.2006, foi registada a aquisição da fração ... a favor de terceiro, por compra ao Réu BB, cf. certidão registral apresentada como documento ...1 com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
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2.2. Do objeto do recurso
2.2.1. Por despacho proferido em 06.06.2023, o Autor foi convidado a «esclarecer quem propõe a ação» e a «concretizar a causa do crédito ou créditos do Réu BB para cuja satisfação foi celebrado o negócio de dação, identificando o respetivo devedor e, bem assim, o montante de acordo com as declarações de vontade das partes».
Além de corresponder parcialmente ao convite, o Autor modificou o pedido, suprimindo os dois primeiros pedidos deduzidos na petição inicial sob as alíneas a) e b), subsidiários entre si, segundo parece estribados no instituto do enriquecimento sem causa, e formulando um pedido aparentemente baseado nesse instituto (al. a) do novo petitório), mas com o respetivo valor reduzido (€ 121.000,00) em relação ao que constava da petição inicial, e cumulando um pedido (no valor de € 103.600,00) alicerçado no alegado incumprimento da cláusula 5ª do Protocolo celebrado entre Autor e Réu em 20.01.2006 (al. b) do novo petitório).
No articulado de aperfeiçoamento da petição inicial, o Autor fundamentou o crédito pessoal que invoca ter sobre o Réu no alegado nos artigos 8º a 16º, respeitante ao incumprimento pelo demandado do estabelecido na cláusula 5ª do Protocolo.
O crédito que reclama enquanto ex-sócio da extinta sociedade EMP01..., Lda., estriba-se, em princípio, no alegado nos artigos 17º a 21º daquele articulado. O respetivo pedido, objeto de transformação aquando do aperfeiçoamento, respeita ao mesmo núcleo factual alegado na petição inicial e a causa de pedir é a mesma que já havia sido alegada inicialmente.
Sucede que o Autor não desfez completamente a ambiguidade que perpassava por toda a petição inicial, consistente em não distinguir os créditos que alegadamente se formaram na sua esfera jurídica daqueles que se terão constituído na esfera jurídica da sociedade de que era sócio. Basta ver que a linearidade do que expusemos nos dois antecedentes parágrafos é afetada pela circunstância de no artigo 21º, em que discorre, no seu expresso dizer, «Relativamente ao crédito da EMP01...», concluir: «Face ao exposto, os Réus são devedores ao Autor, a título pessoal e na qualidade de sócio da sociedade EMP01..., pelo montante EUR 121.000,00, acrescidos de juros de mora, desde a data em que transitou em julgado a ação referida no art. 6º da pi. (13/10/2022) e até integral pagamento.» Em que é que ficamos: esse crédito de € 121.000,00 é do Autor «a título pessoal» ou «na qualidade de sócio da sociedade EMP01...»?
Na formulação dos pedidos a ambiguidade estende-se aos dois e é ainda mais patente, na medida em que em ambos se peticiona que os Réus sejam condenados a pagar quantias ao Autor «a título pessoal e na qualidade de sócio».
Mesmo agora, na fase de recurso, a ambiguidade não é desfeita, como é bem evidente no extrato das conclusões em que afirma que «os Réus são ainda devedores ao Autor, a título pessoal e na qualidade de sócio da sociedade EMP01..., pelo montante de, pelo menos, EUR 36.300,00» (conclusão W) (redução do crédito de € 121.000,00 a € 36.300,00) e que «o Autor não litiga apenas como ex sócio da sociedade extinta, mas também em nome pessoal» (conclusão T).
Apesar de toda esta ambivalência, os fundamentos do recurso têm de ser apreciados. Todavia, essa apreciação deve ter por base a concreta causa de pedir exposta na petição e que foi objeto de tentativa de esclarecimento no articulado de aperfeiçoamento.
Temos assim que são reclamados nesta ação dois alegados créditos: um que se terá constituído diretamente na esfera jurídica do Autor em virtude do incumprimento pelo Réu da cláusula 5ª do Protocolo; e outro respeitante à esfera jurídica da sociedade EMP01..., Lda., o qual é exigido pelo Autor enquanto antigo sócio daquela e na estrita medida do seu interesse (30%).
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2.2.2. Da prescrição – conclusões T) a BB)
Na sentença julgou-se prescrito o direito de crédito com base no qual foi deduzido o primeiro pedido constante do articulado de aperfeiçoamento da petição inicial, absolvendo-se os Réus de tal pedido. A norma aplicada pelo Tribunal a quo foi a constante do artigo 174º, nº 3, do Código das Sociedades Comerciais (CSC) e para o efeito considerou que no momento da citação dos Réus já tinham decorrido cinco anos desde o registo da extinção da sociedade EMP01..., Lda., da qual o Autor era sócio.
Argumenta o Recorrente que «não litiga apenas como ex sócio da sociedade extinta, mas também em nome pessoal, pelo que nesta última qualidade nem sequer lhe poderia ser aplicável esse regime previsto no art. 174º/3 do CSC».
Sendo certo que o Autor litiga nesta ação nas apontadas duas qualidades, a realidade é que o primeiro pedido respeita a um alegado direito de crédito da extinta sociedade EMP01..., como bem considerou o Tribunal recorrido. É na qualidade de antigo sócio que o Autor deduziu esse pedido e limitado ao seu interesse, em conformidade com o disposto no artigo 164º, nº 2, do CSC. É exercido contra os Réus um direito da sociedade extinta, agora encabeçado pelo Autor[1], enquanto antigo sócio.
Portanto, relativamente a esse pedido o Autor não litiga «em nome pessoal».
Aliás, pese embora a ambivalência a que já se aludiu em 2.2.1., esta questão foi minimamente esclarecida no articulado de aperfeiçoamento, como se pode ver nos seus artigos 17º a 21º (sob a epígrafe «Relativamente ao crédito da EMP01...») e também já resultava do inicialmente alegado na petição inicial. A causa de pedir em que assenta esse pedido respeita à sociedade EMP01... e o alegado direito de crédito constituiu-se na sua esfera jurídica. Com a extinção da sociedade, atribui-se a titularidade dessa situação jurídica ativa aos antigos sócios[2], sendo o Autor precisamente um deles.
Daí que a esse direito de crédito seja aplicável o regime do artigo 174º, nº 3, do CSC, onde se dispõe que «prescrevem no prazo de cinco anos, a contar do registo da extinção da sociedade, os direitos de crédito de terceiros contra a sociedade, exercíveis contra os antigos sócios e os exigíveis por estes contra terceiros, nos termos dos artigos 163º e 164º, se, por força de outros preceitos, não prescreverem antes do fim daquele prazo».
Está em causa a situação prevista no nº 1 do artigo 164º do CSC, respeitante à constatação (verificação), posterior ao encerramento da liquidação e após a extinção da sociedade, da existência de bens não partilhados[3], em que qualquer dos sócios pode propor ação de cobrança contra os devedores, desde que limitada ao seu interesse, nos termos do nº 2 do apontado artigo 164º. Integram-se nesta categoria as ações de cobrança de créditos da antiga sociedade ou para fazer reconhecer e efetivar os direitos sobre bens nas referidas circunstâncias, excluindo-se as ações resultantes de discordâncias entre antigos sócios[4].
O aludido regime jurídico é suficientemente claro e a interpretação dos apontados preceitos é relativamente pacífica, nos exatos termos considerados na sentença.
Carolina Cunha[5], em anotação ao artigo 174º do CSC, refere: «O nº 3 incide sobre o período posterior à extinção da sociedade (operada pelo registo do encerramento da liquidação – cf. art.º 160º, nº 2) e contempla as situações de “passivo superveniente” (art.º 163º) e de “ativo superveniente” (art.º 164º), ou seja, a prescrição dos direitos de crédito de terceiros contra a sociedade (exercíveis, nos termos do art.º 163º, contra os antigos sócios, em sua substituição) e dos direitos da sociedade extinta, agora encabeçados nos sócios, contra terceiros. O facto relevante é, previsivelmente, a extinção da sociedade. A norma ressalva, todavia, a possibilidade de os direitos em causa, por força de outros regimes (desde logo, das regras gerais do CCiv. que lhes sejam aplicáveis), prescreverem ainda antes do final do prazo de cinco anos a que submete o seu exercício.»
Por sua vez, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 30.05.2017, proferido no processo 593/14.5TBTNV.E1.S1 (Cabral Tavares)[6], além de se fixar o alcance do que se deve entender por “ativo superveniente”, concretizou-se qual o regime de prescrição aplicável aos respetivos direitos de crédito: «As ações para cobrança de créditos, possibilitadas pelo nº 2 do art. 164º do CSC – e, no que ora releva, no caso previsto na segunda parte daquele preceito, a reivindicação de tais direitos de crédito por parte de antigos sócios, enquanto co-titulares sucessores, ficará limitada ao interesse de cada um –, estarão sempre sujeitas ao prazo máximo de prescrição de cinco anos, a contar do registo da extinção da sociedade (art. 174º, nº 3 do mesmo código).» No mesmo sentido, v. o acórdão da Relação de Évora de 24.09.2020 (1809/17.1T8EVR.E1 – Manuel Bargado).
Como o encerramento do processo de insolvência e o cancelamento da matrícula da sociedade EMP01... foi levado ao registo comercial em 11.11.2015 e, tendo a presente ação sido proposta em 22.02.2023, os Réus foram citados no dia 24.02.2023 (facto interruptivo da prescrição – art. 323º, nº 1, do Código Civil), é manifesto que decorreu o prazo de cinco anos previsto no artigo 174º, nº 3, do CSC.

Alega o Recorrente que «o direito do autor só “nasceu” com a prolação da ação que correu termos sob o Processo nº 447/18...., Juiz J..., do Juízo Central Cível ...». Sustenta que, «como resultou provado na referida sentença, em 27/01/2006, a dívida da EMP01... ao Réu DD era de 250.000,00 €, enquanto a dívida do Autor AA ao mesmo era de 80.000,00€, perfazendo um total de EUR 330.000,00. Ora, para pagamento das mesmas entregaram bens no valor total de, pelo menos, 451.000,00€ (não se levando em linha de conta as referidas frações da freguesia ..., bens entregues a título de garantia nos termos do art. 5º do Protocolo), constata-se que os Réus se apropriaram ainda ilegitimamente do valor da respetiva diferença, ou seja EUR 121.000,00, dos quais 30% (EUR 36.300,00) correspondem ao interesse do aqui Autor, enquanto sócio da EMP01....» Mais alega que «tal facto só adveio ao conhecimento do Autor, na sequência da prolação da sentença da referida ação».
Revista a situação, não é possível concluir que «o direito do autor só “nasceu” com a prolação» da sentença no processo 447/18...., que nesse processo foram dados como provados os factos que invoca na conclusão W) ou que o Autor só tomou conhecimento dos factos, designadamente que os Réus se apropriaram ilegitimamente de € 121.000,00, «na sequência da prolação da sentença da referida ação».
Em primeiro lugar, deve precisar-se que a referida ação nº 447/18.... foi intentada por EE Neto e mulher, GG, contra BB e mulher, CC (os aqui Réus), AA (ora Autor), e FF (a outra sócia da EMP01..., titular de 70% do capital social), respeitava a um contrato de mútuo com hipoteca outorgado por escritura de 10.11.2003 e os respetivos autores pretendiam ver declarada a nulidade por simulação do aludido contrato, com o consequente cancelamento do registo da hipoteca que incidia sobre um seu prédio. Nessa escritura o Réu BB declarou emprestar (no processo 447/18.... deu-se como provado que os Réus BB e mulher “emprestavam” (facto G), mas a Ré mulher não outorgou a escritura pública) à sociedade EMP01... a quantia de € 350.000,00 (ponto G) dos factos provados naquela ação), enquanto EE e mulher garantiram tal pagamento mediante hipoteca do seu prédio, sendo que os aqui Autor AA e Réu BB «fizeram constar nessa escritura que a referida sociedade tinha recebido, no ato e naquela data, a totalidade do empréstimo» (ponto I).
Demonstrou-se que, ao contrário do declarado, não foi entregue à sociedade EMP01... a quantia de € 350.000,00, mas sim apenas metade (€ 175.00,00) e que esta dívida já foi entretanto saldada.
Consequentemente, foi (em 14.01.2022) proferida sentença a julgar a ação «parcialmente procedente e, consequentemente:
- declara-se a nulidade, por simulação, do contrato de mútuo com hipoteca pelo valor declarado de 350.000,00 €, e válido o contrato dissimulado de mútuo com hipoteca pelo valor de 175.000,00 €;
- condena-se os RR. a reconhecer que esse empréstimo foi pago;
- ordena-se o cancelamento da inscrição registal da hipoteca realizada pela Apresentação 36 de 2004/04/07 sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...05, freguesia ..., inscrito na matriz no ...16... da união de freguesias ..., ... e ...;
- absolve-se os RR. do demais peticionado.»
Ora, atento o circunscrito objeto da ação com o nº 447/18...., que incidiu sobre factos de 10.11.2003, torna-se evidente que o direito de que se arroga não se formou (nasceu, na expressão do Recorrente) com a prolação da sentença naquele processo.
Na ação não foi reconhecido qualquer direito da sociedade EMP01..., Lda., ou do aqui Autor BB, nem isso era objeto daquela ação.
Aliás, ressalvado o devido respeito, é de alguma forma contraditória a tese segundo a qual, com base na declarada nulidade, por simulação relativa, de um contrato de empréstimo com hipoteca celebrado em 10.11.2003, se pretende extrair a constituição de um direito de crédito relativo a negócios jurídicos que só ocorreram em 20.01.2006 (data da celebração do Protocolo entre o Autor AA e o Réu BB) e 27.01.2006 (data de outorga, pelas mesmas pessoas, da escritura de confissão de dívida e de dação em cumprimento), os quais alicerçam a causa de pedir relativa aos pedidos aqui em causa, designadamente, na parte relevante para a apreciação da exceção de prescrição, o primeiro pedido.

Em segundo lugar, lida a sentença daquela ação, verifica-se que entre os factos provados não consta que «em 27/01/2006, a dívida da EMP01... ao Réu DD era de 250.000,00 €, enquanto a dívida do Autor AA ao mesmo era de 80.000,00€, perfazendo um total de EUR 330.000,00». Também nessa ação não foi dado como provado que «para pagamento das mesmas [dívidas] entregaram bens no valor total de, pelo menos, 451.000,00€».
Aliás, o Recorrente confunde factos provados com argumentos constantes da motivação da decisão sobre a matéria de facto. A apreciação crítica das provas produzidas e as ilações que o juiz retira de factos instrumentais ou a exposição dos demais fundamentos que considera decisivos para a formação da sua convicção não constituem factos provados. É apenas a fundamentação que alicerça a decisão do juiz sobre a matéria de facto num determinado sentido.

Em terceiro lugar, o Autor interveio em todos os actos negociais aqui em causa, desde a escritura de mútuo com hipoteca de 10.11.2003, passando pelo Protocolo de 20.01.2006, a escritura pública de confissão de dívida e dação em cumprimento lavrada em 27.01.2006 e a denominada “declaração” emitida por escrito de 27.01.2006.
Mesmo nos actos em que simultaneamente interveio como legal representante da sociedade EMP01..., não deixou de ter conhecimento dos mesmos.
Com a extinção da sociedade, emergente do registo em 11.11.2015, o Autor, encabeçando então os alegados direitos de crédito daquela, estava em condições de os exercer, não necessitando que um tribunal lhe dissesse, sem sequer apreciar a sua validade e consequências, que actos tinham ocorrido, sendo certo que na ação, na parte extravagante à factualidade relativa à simulação, a Sra. Juiz limitou-se a exarar o conteúdo de documentos em que o Autor foi interveniente (v. pontos G), I), J), M), O), P), Q), R), S), T), U), V) e W) dos factos provados no processo 447/18....). É a partir do momento em que ocorre a extinção da sociedade EMP01... que se conta o prazo de prescrição e não de qualquer outro evento, como seja a notificação da sentença proferida na ação em que as aqui partes eram réus.

Argumenta ainda o Recorrente que «ao caso aplica-se o prazo ordinário de 20 anos, quer estejamos a falar do autor em nome pessoal, quer enquanto sócio liquidatário», pois que «a presente ação tem na sua génese a relação de liquidação decorrente da invalidade de um negócio jurídico – a simulação, por sentença judicial já transitada em julgado proferida no âmbito do Processo nº 447/18....». Alega que nesta ação o que «pretende não é um direito de crédito cuja cobrança se deseje e imponha, mas o direito à consequência/efeito da nulidade da simulação acima referida (art.º 289º CC)».
Nesta parte, é manifesta a falta de razão do Recorrente: na presente ação não está em causa um efeito ou consequência da nulidade por simulação relativa do contrato de mútuo com hipoteca celebrado em 10.11.2003 e da declarada validade do contrato dissimulado.
Além de estar em causa uma mera simulação relativa quanto ao valor garantido pela hipoteca – € 175.000,00 e não os € 350.000,00 declarados na escritura –, nada há a restituir entre os outorgantes da escritura de mútuo em consequência da parcial procedência da ação. O valor de € 175.000,00, correspondente ao contrato dissimulado, foi efetivamente prestado e não está reclamada a sua restituição. Em todo o caso, o ora Autor, «por si e na qualidade de gerente» da EMP01..., emitiu declaração por escrito em 27.01.2006 na qual afirmou (cláusula 4ª) que, «nas indicadas qualidades, ainda reconhece que, as responsabilidades decorrentes dos créditos concedidos pelo segundo [o aqui Réu BB], são superiores ao montante garantido pela hipoteca.» Nesse documento escrito o Autor e o Réu declararam, na cláusula 3ª, que «ambos os declarantes [o Autor e o Réu BB] reconhecem que a razão pela qual o valor da hipoteca constituída é superior ao montante que o segundo declarante entregou, ficou a dever-se ao facto de o primeiro declarante ter outras responsabilidades decorrentes de várias dívidas, para com o segundo», ou seja, explicitaram quais as responsabilidades que existiam à data da constituição da hipoteca.
Depois, a matéria das dívidas e créditos, relativos à relação entre o Réu e o Autor e entre o Réu e a EMP01..., foi sucessivamente regulada por acordos celebrados em 20.01.2006, 27.01.2006 (escritura pública, documento escrito denominado “declaração” e escrito designado de “confissão de dívida e contrato-promessa de compra e venda”, todos com mesma data) e 14.07.2006 (aditamento ao documento escrito intitulado de “confissão de dívida e contrato-promessa de compra e venda”). O Autor interveio em todos esses actos.
É ainda de destacar que na declaração escrita de 27.01.2006, conforme consta na alínea U) dos factos dados como provados na sentença proferida no processo 447/18...., o Réu e o Autor, por si e em representação da sociedade EMP01..., fizerem expressamente constar que «não obstante o valor declarado [na escritura pública de 10.11.2003], o segundo declarante [o Réu BB] reconhece que apenas entregou ao primeiro [o Autor AA] a quantia de 175.000,00 Euros (cento e setenta e cinco mil euros), correspondente a metade do valor que hipoteca garante».
Portanto, o Autor estava perfeitamente ciente da simulação relativa e das suas consequências, tanto que até a confessou por escrito.
Finalmente, é manifesto que está em causa um direito de crédito abrangido pelo disposto no nº 2 do artigo 164º do CSC. Tanto assim é que o Autor propõe a ação e deduz o primeiro pedido limitado ao seu interesse, situação que reafirma no recurso, designadamente na conclusão BB) («o pedido constante na alínea a) do requerimento/resposta do Autor ao convite de aperfeiçoamento efetuado pelo Tribunal deve ser julgado parcialmente procedente, na medida do interesse do Autor na sociedade EMP01... (30%)»). Aliás, se o não fosse, o Autor nem sequer disporia de legitimidade para reclamar tal crédito.
É um direito de crédito da extinta sociedade sobre terceiros e como tal é aplicável o prazo de prescrição previsto no artigo 174º, nº 3, do CSC.
Esse preceito fixa, concretamente, em cinco anos o prazo de prescrição relativamente ao exercício de direitos de crédito da extinta sociedade contra terceiros, tendo, assim, o legislador optado por um prazo substancialmente mais reduzido do que o prazo ordinário de 20 anos estabelecido no artigo 309º do Código Civil (CCiv), por ter considerado nefasta a indefinição de direitos por período de tempo tão dilatado.
Como salienta Carolina Cunha[7], «afastando-se do regime geral e dos regimes especiais disciplinados nos arts. 309.º CCiv., o art. 174º disciplina os prazos de prescrição dos direitos subjectivos que o CSC confere à sociedade, aos sócios e a terceiros».
Trata-se de um regime especial de prescrição que se aplica aos direitos subjetivos da sociedade, dos sócios e dos outros credores mencionados na norma, emergentes da atividade da sociedade comercial.
No que respeita à alegada aplicabilidade do prazo ordinário de 20 anos, é preciso ter em conta que no caso de existirem, relativamente ao mesmo direito, duas normas que regulem determinado aspeto do seu regime, uma geral e outra especial, aplica-se a norma especial, em conformidade com o disposto no nº 3 do artigo 7º do CCiv, segundo a qual «a lei geral não revoga a lei especial, exceto se outra for a intenção inequívoca do legislador».
Como no caso a norma especial é a do artigo 174º do CSC, é essa a aplicável.
O direito de crédito com base no qual se formulou o primeiro pedido está submetido, como se viu, a um prazo de prescrição de 5 anos.
Daí que, operada em 11.11.2015 a extinção da sociedade (art. 160º, nº 2, do CSC), quando em 22.02.2023 a ação foi proposta, assim como no momento da citação dos Réus ocorrido a 24.02.2023, que é o facto interruptivo da prescrição relevante, já estava há muito esgotado o prazo dentro do qual o Autor podia acionar judicialmente os Réus.

Pelo exposto, improcedem as conclusões formuladas sobre esta primeira questão e fica prejudicado o conhecimento da terceira questão, relativa aos pressupostos do enriquecimento sem causa.
*

2.2.3. Do segundo pedido
Este segundo pedido foi julgado improcedente e consistia em «Declarar e condenar os Réus a pagar ao Autor, a título pessoal e na qualidade de sócio da referida sociedade, o montante de EUR 103.600,00 (cento e três mil e seiscentos euros), acrescidos de juros de mora, desde a data em que foi vendida a fração ... da freguesia ... (20/06/2011) e a fração ... da freguesia ... (05/07/2006)».
Segundo o alegado no articulado de aperfeiçoamento da petição inicial, este é um crédito que o Autor, na sua dúbia expressão, «a título pessoal e na qualidade de sócio da referida sociedade», invoca ter sobre o Réu em virtude do incumprimento por este do estabelecido na cláusula 5ª do Protocolo.
O denominado “Protocolo” é um documento escrito subscrito pelo Autor e pelo Réu BB em 20.01.2006, onde aquele se confessava devedor a este de «uma dívida resultante de vários empréstimos, a qual está orçada em cerca de 500.000,00 Euros, cujo montante exacto deverá ser determinado por conferência entre ambos, no prazo de até à realização de escrituras de dação em cumprimento», e se comprometia a realizar tais escrituras de dação em cumprimento relativamente aos imóveis mencionados na cláusula 2ª, todos propriedade da EMP01..., Limitada. Esses imóveis consistiam em duas parcelas de terreno para construção urbana sitas na freguesia ..., em ..., e 11 parcelas de terreno situadas na freguesia ..., no mesmo concelho, e ainda duas frações autónomas, designadas pelas letras ... e ..., na freguesia ..., igualmente no concelho ... (v. ponto i) dos factos provados).
Relativamente aos prédios situados nas freguesias de ... e ..., segundo a cláusula 3ª, o Réu BB ficou com a incumbência de negociar contratos de locação financeira junto da Banca, solicitando a reavaliação dos bens hipotecados, de modo a conseguir um financiamento por montante superior ao valor dos ónus que então impendiam sobre tais prédios. É relativamente a estas parcelas que, nos termos da cláusula 4ª, que Autor e Réu acordaram outorgar um contrato de sociedade civil, «destinado a colocarem em comum os esforços de ambos – devendo o primeiro entregar os bens e contribuir para o enriquecimento das parcelas, nomeadamente através de implantação de obra nas mesmas e o segundo, contribuir com a sua capacidade de crédito junto da Banca – de modo a que ambos possam distribuir os proveitos daí advenientes na proporção de um terço para o primeiro e de dois terços para o segundo, até que este consiga receber toda a quantia do crédito concedido.»
Na cláusula 5ª, que é a invocada como fundamento do segundo pedido, o Autor e o Réu BB fizeram constar:
«No que respeita às frações autónomas, sitas na freguesia ..., supra referenciadas, a propriedade das mesmas é transferida para a titularidade do segundo outorgante, apenas para garantia da dívida, na medida em que é da incumbência do primeiro [Autor] proceder à venda das mesmas ou negociar contrato de leasing junto da banca, de modo a que o produto do preço conseguido ou os proveitos do leasing contratado, seja usufruído por este.»

Segundo o alegado pelo Autor nos articulados, a transmissão para o Réu da propriedade das frações ... e ..., sitas em ..., foi feita com uma função de garantia de cumprimento da dívida que o primeiro tinha para com o segundo. Alega o Autor que cumpriu a sua parte do Protocolo, ao fazer transferir a propriedade das frações autónomas para a titularidade do Réu BB, para garantia da dívida, mas como este «nunca devolveu ao Autor AA as referidas frações autónomas, sitas na freguesia ..., apesar da respetiva dívida ter sido paga na totalidade (como se demonstrou na ação em causa), causando-lhes um prejuízo equivalente ao respetivo valor em 2006 ou seja 56.300,00 € e 47.300,00 €, respetivamente, no total de 106.600,00 €[8]».
Segundo alegado pelo Autor aquando do aperfeiçoamento da petição inicial, «o facto de os prédios em questão pertencerem à sociedade EMP01... não pode obstar à validade deste Protocolo, celebrado pelo Autor a título pessoal, tratando-se antes de uma questão a resolver entre este e a sociedade EMP01.... O Réu BB assumiu esse compromisso perante o Autor, estando obrigado ao seu cumprimento.»
Este é o fundamento aduzido pelo Autor relativamente ao segundo pedido.

Na sentença qualificou-se «o negócio jurídico descrito pelo Autor como um negócio fiduciário, em que o beneficiário da dação ficou, por mero efeito dele (cf. art. 408/1), investido na situação jurídica de proprietário do prédio transmitido, tendo sido estabelecida, entre ele e os vendedores, uma convenção, de natureza puramente obrigacional, nos termos da qual o primeiro assumiu o compromisso de não exceder, no exercício do direito de propriedade, o necessário para a prossecução do fim negocial e de restituir a coisa uma vez alcançado este.»
Porém, considerou que o sujeito ativo da obrigação de restituição é a sociedade EMP01..., na medida em que esta, mediante a disposição temporária de bens da sua propriedade, constituiu a alegada garantia. Como o cumprimento da obrigação se tornou impossível, por a propriedade sobre os bens ter passado para terceiros, o suposto crédito indemnizatório surgiu na esfera jurídica da sociedade, então ainda dotada de personalidade jurídica, pelo que consubstancia um crédito originário da sociedade que se transmitiu, por via sucessória, para o Autor, na estrita medida do respetivo interesse.
Concluiu que «na parte em que está em causa o interesse da outra antiga sócia, foi esta que sucedeu no crédito e o Autor carece de legitimidade, que tem de ser colocada num plano substantivo, para exigir o cumprimento; na parte restante, procede à exceção perentória da prescrição».
A título subsidiário, o Tribunal recorrido considerou que a solução não se alteraria «se entendermos que aquele negócio fiduciário é nulo por afrontar a proibição do pacto comissório, consagrada no art. 694 do Código Civil», uma vez que «sendo o negócio assim gizado nulo e tendo a declaração de nulidade efeitos retroativos, a obrigação de restituir as frações alienadas – ou o seu equivalente – teria, também, como credor originário a EMP01....»

No âmbito do recurso, o Recorrente sustenta, por um lado, que o crédito em questão não pertence à sociedade EMP01..., mas ao Autor a título pessoal e, por outro lado, que o art. 694º do Código Civil existe para evitar abusos de situações em que o devedor é explorado/abusado por se encontrar em posição de manifesta inferioridade em relação ao credor e não o contrário, além de que prevalece, quer na doutrina quer na jurisprudência, a tese da validade dos negócios fiduciários.
Quanto ao fundamento invocado a título principal pelo Tribunal recorrido para julgar improcedente o pedido, o Recorrente sintetiza assim a sua argumentação:
«a. Desde logo, a EMP01... não é sequer parte no Protocolo invocado entre as partes (cfr, doc....9 da p.i.). O dito Protocolo foi celebrado pelo Autor, a título pessoal, e o Réu marido;
b. O negócio jurídico em causa visou garantir uma dívida pessoal do Autor para com o dito Réu e não uma dívida da EMP01...;
c. O Autor e o Réu marido, ambos a título pessoal, celebraram expressamente um contrato de sociedade civil, destinado a colocarem em comum os esforços de ambos – devendo o Autor entregar os bens e contribuir para o enriquecimento das parcelas, nomeadamente através de implantação de obra nas mesmas e o Réu marido, contribuir com a sua capacidade de crédito junto da Banca – de modo a que ambos possam distribuir os proveitos daí advenientes na proporção de um terço para o primeiro e de dois terços para o segundo, até que este consiga receber toda a quantia do crédito concedido. (cfr cláusula quarta do protocolo-doc....9 da p.i.);
d. Autor e Réu, ambos a título pessoal, acordaram ainda expressamente que, no que respeita às frações autónomas, sitas na freguesia ..., aqui em causa, a propriedade das mesmas foi transferida para a titularidade do Réu marido, apenas para garantia da dívida do Autor, na medida em que é da incumbência deste (Autor) proceder à venda das mesmas ou negociar contrato de leasing junto da banca, de modo a que o produto do preço conseguido ou os proveitos do leasing contratado, fosse por ele usufruído a título pessoal. (cfr cláusula quinta do protocolo-doc....9 da p.i.);
e. O facto de ter sido a EMP01..., empresa da qual o Autor era sócio-gerente, a transferir os imóveis em causa para o Réu marido, não afeta a validade do dito Protocolo, nem transforma a EMP01... em parte outorgante do mesmo. Essa será uma questão a resolver entre o Autor e a sociedade EMP01..., da qual era sócio-gerente.»

Começando pelo argumento que o Recorrente expõe em c., se bem interpretamos o Protocolo, a cláusula 4ª apenas incide sobre as parcelas de terreno identificadas nas alíneas a) e b) da cláusula 2ª e não sobre as duas frações autónomas (... e ...), pois são as únicas relativamente às quais foi estabelecida a obrigação de «contribuir para o enriquecimento das parcelas, nomeadamente através de implantação de obra nas mesmas». Por isso, o contrato de sociedade estabelecido na cláusula 4ª não abrange as duas frações autónomas, as quais foram objeto de tratamento específico na cláusula 5ª.
Quanto ao argumento aduzido em d., o mesmo circunscreve-se ao teor da dita cláusula 5ª, pelo que o relevante foi exposto em a. e b.
É certo que o Protocolo foi celebrado entre Autor e Réu, que nele o primeiro assume ter uma dívida perante o segundo orçada em € 500.000,00 e que na cláusula 5ª se estabeleceu que a transferência da propriedade das duas frações autónomas era «para garantia da dívida». Mas o fundamental não é isso, mas sim a quem devia ser restituída a propriedade desses imóveis logo que extinta a dívida.
As duas frações autónomas eram propriedade da sociedade EMP01..., pelo que, uma vez cumprida a aludida finalidade, é perfeitamente legítima a conclusão do Tribunal recorrido sobre a restituição dever efetivar-se para a aludida sociedade. Foi ela que constituiu, perante o Réu, a alegada garantia, mediante a disposição de bens da sua propriedade. Cumprida a obrigação garantida pela transferência temporária da propriedade, os bens deviam retornar à sua inicial proprietária e que, na versão do Autor, só dispôs deles para garantir uma dívida pessoal daquele seu sócio. É por isso que se considera justificada a conclusão, contida na sentença, de que o sujeito ativo da obrigação de restituição é a sociedade EMP01....
Está adquirido que a propriedade das duas frações foi transferida para terceiros e que tal sucedeu quando a EMP01..., Lda., ainda estava dotada de personalidade jurídica. Ao contrário do alegado pelo Recorrente, na ação que correu termos com o nº 447/18.... não se julgou provado qualquer facto relativo ao pagamento da dívida pessoal do Autor ao Réu BB, nem esse processo tinha por objeto tal matéria, mas sim o mútuo com hipoteca contraído pela EMP01... junto do Réu; nessa vertente, o que se discutia era, no quadro de uma alegada simulação relativa (que se demonstrou e até, como já se referiu, estava confessada por escrito), o valor efetivamente emprestado (que se veio a demonstrar ser de € 175.000,00 quando na escritura pública tinha sido declarado o valor de € 350.000,00) e se ocorreu o pagamento de tal empréstimo. Por isso, embora o Recorrente remeta para os factos apurados naquela ação (factos provados são realidades distintas das considerações exaradas na motivação da decisão sobre a matéria de facto, como já enfatizamos), os mesmos não permitem concluir que a sua dívida pessoal se mostra paga, sendo que era esta que, segundo o protocolo, seria garantida pela transferência da propriedade.
Por isso, toda a construção teórica que subjaz à dedução do segundo pedido baseia-se num quadro fático que não foi adquirido.
Mas, mesmo que se pressuponha que foi integralmente paga tal dívida pessoal do Autor ao Réu, a questão permanece idêntica: o Autor não tinha qualquer direito à restituição dos bens para a sua esfera jurídica, acto esse que sempre seria destituído de causa e justificação.
Por isso, com a alienação das frações a terceiros quem sofreu um prejuízo foi a sociedade EMP01..., que se viu definitivamente privada da propriedade que, segundo o Protocolo, apenas se destinava a garantir a dívida pessoal do seu sócio. Sendo assim, com a transferência da propriedade das frações para terceiros, o crédito indemnizatório constituiu-se na esfera jurídica da sociedade. Com a extinção da sociedade, operada pelo registo em 11.11.2015 (art. 160º, nº 2, do CSC), o aludido crédito transmitiu-se, em conformidade com o disposto no artigo 164º, nº 2, do CSC, para os dois antigos sócios, na medida do respetivo interesse, o qual, no que respeita ao Autor, corresponde a 30% do valor por que foram alienadas as frações.
Nenhum crédito indemnizatório assiste ao Autor a título pessoal: nenhum bem imóvel de sua propriedade transferiu para a esfera jurídica do Réu, as duas frações autónomas cujo direito de propriedade foi para este transferido pertenciam à EMP01... e, se a dívida pessoal do Autor já estava paga quando os imóveis foram posteriormente transferidos para terceiros, quem ficou prejudicada foi a sociedade, que não recuperou os bens depois de cumprida a finalidade que alegadamente terá presidido à cedência temporária da respetiva propriedade.
Como bem se salientou na sentença, relativamente a tal crédito, pelas razões já atrás aduzidas, na parte (30%) em que o Autor sucede nos termos do artigo 164º, nº 2, do CSC, procede a exceção perentória de prescrição. Na parte em que está em causa o interesse da outra antiga sócia, o qual corresponde a 70%, como se operou a sucessão para esta, o Autor carece de legitimidade substantiva para exigir o cumprimento, improcedendo a pretensão.
Daí que inexista fundamento para revogar a sentença recorrida.
Quanto à questão da nulidade do negócio por violação da proibição de pacto comissório[9], trata-se de matéria acrescentada pelo Tribunal recorrido ex abundanti, como argumento jurídico subsidiário, pelo que fica prejudicado o seu conhecimento em face da improcedência do recurso relativamente ao fundamento principal – ratio decidendi – que sustenta a decisão.
Termos em que improcede totalmente a apelação.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença.
Custas pelo Recorrente.
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Guimarães, 30.11.2023
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Paulo Reis
Eva Almeida



[1] É um fenómeno de sucessão, estabelecido por disposição legal, do sócio relativamente à sociedade extinta, com a particularidade de o direito só poder ser exercido na medida do respetivo interesse. Com a extinção da sociedade deixa de existir a pessoa coletiva, perdendo a sua personalidade jurídica e judiciária, mas as relações jurídicas de que a sociedade era titular não se extinguem, como flui do preceituado nos artigos 162º, 163º e 164º do CSC. Os antigos sócios podem exercer direitos emergentes dessas relações jurídicas.
[2] Carolina Cunha, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Jorge M. Coutinho de Abreu (Coord.), vol. II, 2ª edição, Almedina, págs. 763 e 764.
[3] O art. 164º do CSC basta-se com «a existência de bens não partilhados», pelo que não exige que tais bens sejam supervenientes, no sentido estrito da sua ocorrência histórica, mas apenas que não hajam sido partilhados. A epígrafe do preceito, ao aludir a “ativo superveniente”, respeita a uma realidade que está concretizada materialmente na norma.
[4] Raúl Ventura, Dissolução e Liquidação de Sociedades – Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Almedina, 1987, pág. 493. Na página 480 da aludida obra aquele autor salienta que uma vez «desaparecida a sociedade-sujeito, e mantidos vivos os direitos da sociedade (…), só os sócios podem ser os novos titulares desse activo».
[5] Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Jorge M. Coutinho de Abreu (Coord.), vol. II, 2ª edição, Almedina, pág. 757.
[6] Acessível em www.dgsi.pt, tal como todos os demais citados no texto.
[7] Ob. cit., pág. 814.
[8] A soma das duas parcelas não corresponde a € 106.600,00, mas sim a € 103.600,00.
[9] Designa-se por pacto comissório a convenção pela qual o credor pode fazer sua a coisa objeto de garantia no caso de o devedor não cumprir - Rui Pinto Duarte, Código Civil Anotado, vol. I, Ana Prata (Coord.), Almedina, pág. 694.