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ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
REPRESENTAÇÃO EM JUÍZO
ADVOGADO
Sumário
- o Administrador da Insolvência é representante da massa insolvente, património autónomo, em ação judicial contra ela proposta; - nessa qualidade, tem o dever de assegurar que a parte que representa defenda nesse processo os respetivos interesses; - para o efeito, deverá constituir mandatário ou recorrer ao benefício do apoio judiciário, consoante entenda melhor ser acautelada a referida finalidade. (Sumário da Relatora)
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Évora
I – As Partes e o Litígio
Recorrentes / Insolventes: (…) e (…)
Por apenso ao processo de insolvência, os Insolventes apresentaram-se a impugnar a resolução de contrato em benefício da massa insolvente.
A massa insolvente foi citada para contestar.
A Administradora da Insolvência apresentou-se a requerer, nos termos do artigo 55.º do CIRE, autorização para contratação do Exmo. Sr. Dr. (…), Advogado, portador da cédula profissional n.º (…) para patrocinar a Massa Insolvente nesse processo. Invocou, para tanto, que:
- está em causa um ato incondicionalmente resolúvel ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 121.º do CIRE;
- a decisão a proferir no referido apenso é suscetível de afetar diretamente a sua composição, pelo que se impõe que a Massa Insolvente conteste a ação;
- foi contactado o sr. Dr. (…), Advogado que demonstrou já noutros processos os conhecimentos e qualidades necessárias a patrocinar adequadamente a Massa Insolvente;
- e em quem a Requerente deposita a maior confiança profissional;
- este Advogado apresentou o orçamento que segue em anexo – e que a requerente entende ser adequado e ponderado face às questões a discutir;
- a Massa Insolvente não dispõe de liquidez para proceder ao pagamento das respetivas dívidas;
- se aquela ação vier a ser julgada improcedente, poderá nunca a vir a ter tal liquidez;
- apesar da Massa Insolvente poder beneficiar eventualmente de apoio judiciário, na modalidade de nomeação de patrono, entende-se que não convém aos interesses da Massa Insolvente e dos credores a nomeação aleatória de mandatário – que poderá ou não ter o perfil indicado para a prossecução de ação judicial nos moldes mais adequados.
II – O Objeto do Recurso
Foi proferido o seguinte despacho:
«Em face das razões apontadas, o Tribunal autoriza a contratação de advogado, nos precisos termos requeridos pela Senhora Administradora da Insolvência, ao abrigo do artigo 55.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.»
Inconformados, os Insolventes apresentaram-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que determine o desentranhamento da contestação. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«I- O presente recurso é admissível por força do disposto do artigo 627.º e ao abrigo da alínea h) do n.º 2 do artigo 644.º do Código de Processo Civil, do n.º 1 do artigo 9.º e da alínea b), n.º 1 do artigo 55.º, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
II- Conforme estabelece o n.º 1 do artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa persevera a imposição legal do dever de fundamentação das decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente, em conjunto ao disposto no artigo 154.º do CPC o qual estabelece dever de fundamentar a decisão, não podendo consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento, como ocorreu no presente caso.
III- O objeto do presente recurso reporta-se ao despacho proferido pelo tribunal na parte em que autorizou a contratação de advogado de modo a ocasionar agravamento da Massa Insolvente, nos termos da alínea b), n.º 1, do artigo 55.º do CIRE, com o qual os Recorrentes não podem se conformar;
IV- Adicionalmente, o Tribunal a quo a autorizar a contratação de advogado nos termos requerido pela Administradora da Insolvência, sem fundamentar os motivos ensejadores da contratação, prejudicando a Massa Insolvente pela não nomeação de um defensor oficioso, mas sim pelo mandatário apontado.
V- Afirma-se, que é dever da Administradora de Insolvência evitar o agravamento da Massa Insolvente, sendo que o dispêndio da contratação do mandatário extrapola a esfera patrimonial que alcança a Massa Insolvente, obrigatoriamente, deve a mesma beneficiar de apoio jurídico.
VI- Nesse entendimento, tal intervenção é desnecessária para os interesses da Massa Insolvente, assim como para os credores que terão o acervo patrimonial diminuto expressamente pelo pagamento dos honorários ao mandatário contratado, desconsiderando os benefícios do apoio judiciário concedido, mormente a nomeação de defensor oficioso à Massa Insolvente, que se adequa a termos de custo ao presente processo.»
O Ministério Público apresentou contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, alinhando as seguintes conclusões:
«1- Nenhum dos argumentos que os Recorrentes invocam deverá merecer acolhimento, não sendo a decisão ora impugnada passível de censura.
2- Na decisão recorrida, na matéria referente ao recorrente, o Mmo. Juiz decidiu autorizar a contratação de Advogado nos precisos termos requeridos pela Senhora AI.
3- A decisão foi suficientemente fundamentada.
4- Apesar da MI poder beneficiar de apoio judiciário, na modalidade de nomeação de patrono, o certo é que poderia não ser conveniente aos interesses da MI e dos credores a nomeação aleatória de mandatário, justificando-se a contratação de Advogado do conhecimento da Senhora AI, que beneficia da sua confiança profissional e técnica e que garante uma qualidade técnica e jurídica que não é garantido encontrar, sempre com o devido respeito, no instituto do apoio judiciário, na modalidade de nomeação de patrono.
5- Fica assim, salvo melhor opinião, salvaguardada a razoabilidade dessa preferência por um patrocínio forense privado e não o recurso à nomeação e patrono, que se mostra necessária para a boa defesa dos interesses da MI e dos credores.
6- A necessidade de contratação de Advogado pela Sra. AI parece-nos evidente, sob pena de, não o fazendo, a impugnação da resolução em benefício da MI ser procedente, assim se prejudicando a MI e todos os credores.
7- A decisão, fundamentada nos termos do disposto da Lei e da Constituição da República Portuguesa e atentos os elementos dos autos, mostra-se correta, adequada e juridicamente fundamentada, com a inexistência de quaisquer nulidades ou insuficiências que permita a sua revogação.»
Cumpre conhecer das seguintes questões:
i. da nulidade da decisão;
ii. da falta de fundamento para constituição de mandatário pelo AI.
III – Fundamentos
A – Dados a considerar: os que se deixam expostos supra.
B – As questões do Recurso
i. Da nulidade da decisão
Na ótica dos Recorrentes, a decisão é nula por falta de fundamentação.
Nos termos do disposto no artigo 154.º, n.º 1, do CPC, as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. Segue o n.º 2 estatuindo que a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.
O artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, por sua vez, determina que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
Na senda deste regime legal o artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC estatui que é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
O que se aplica, com as necessárias adaptações, aos despachos – cfr. artigo 613.º/3 CPC.
Vem sendo unanimemente entendido, na doutrina e na jurisprudência, que só a ausência absoluta de fundamentação, que não uma fundamentação escassa, deficiente, ou mesmo medíocre, pode ser geradora da nulidade das decisões judiciais.[1] A deficiente fundamentação ou motivação pode afetar o valor doutrinal intrínseco da sentença ou acórdão, mas não pode nem deve ser arvorada em causa de nulidade dos mesmos.[2]
No caso em apreço, a fundamentação foi feita por remissão para as razões que tinham sido invocadas no requerimento formulado. Estará a decisão ferida de nulidade ou a respetiva validade decorre da parte final do n.º 2 do artigo 154.º do CPC?
Como salientam Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro[3], as decisões proferidas sobre pedidos não controvertidos ou inerentes á condução do processo (sobre as quais não se suscite qualquer dúvida) não têm de ser fundamentadas. Interpretando-se o regime inserto no artigo 154.º do CPC à luz do comando constitucional supra citado, conclui-se que “apenas as decisões de mero expediente não têm de ser fundamentadas. As decisões, que não sejam de mero expediente, proferidas sobre pedidos não controvertidos ou inerentes à condução do processo (sobre as quais não se suscite qualquer dúvida) têm, ainda assim, de ser fundamentadas.
Do confronto deste n.º 1 com o n.º 2 resulta que a fundamentação destas decisões (por caberem no primeiro) pode, todavia, ser feita por mera adesão ou remissão para outro ato processual – v.g., requerimento, resposta, despacho pretérito – ou suporte escrito idóneo – indicação de referência doutrinal ou jurisprudencial”.
Afigura-se que a questão suscitada não contende diretamente com o conflito de interesses entre as partes no processo de insolvência, que a pretensão formulada não foi objeto de oposição e que se reveste de manifesta simplicidade.
Atenta a clareza de argumentação expendida no requerimento, bem se alcançam os fundamentos que estão na base da pretensão deduzida e que sustentam a decisão proferida, pelo que há que concluir que o despacho proferido não enferma de nulidade.
ii. Da falta de fundamento para constituição de mandatário pelo AI
O artigo 55.º do CIRE, na redação dada pela Lei n.º 9/2022, de 11/01, imediatamente aplicável aos processos pendentes à data da entrada em vigor (cfr. artigo 10.º/1, da citada Lei), estatui, designadamente, o seguinte: 2 - Sem prejuízo dos casos de necessidade de prévia concordância da comissão de credores, o administrador da insolvência exerce pessoalmente as competências do seu cargo, podendo substabelecer, por escrito, a prática de atos concretos em administrador da insolvência com inscrição em vigor nas listas oficiais. 3 - O administrador da insolvência, no exercício das respetivas funções, pode ser coadjuvado sob a sua responsabilidade por advogados, técnicos ou outros auxiliares, remunerados ou não, incluindo o próprio devedor, mediante prévia concordância da comissão de credores ou do juiz, na falta dessa comissão.
Tal normativo reporta-se às funções do administrador da insolvência e ao respetivo exercício. Além das demais tarefas que lhe são cometidas, cabe ao administrador da insolvência (…) preparar o pagamento das dívidas do insolvente (…) e prover, no entretanto, à conservação e frutificação dos direitos do insolvente e à continuação da exploração da empresa, se for o caso, evitando quanto possível o agravamento da sua situação económica (cfr. n.º 1, alíneas a) e b)).
Relativamente ao modo de exercício das respetivas funções, estabelece o n.º 2 do citado normativo que o AI as exerce pessoalmente (…), podendo substabelecer, por escrito, a prática de atos concretos em administrador da insolvência com inscrição em vigor nas listas oficiais.
E ainda relativamente ao modo de exercício das respetivas funções, estabelece o n.º 3 que o administrador da insolvência (…) pode ser coadjuvado sob a sua responsabilidade por advogados, técnicos ou outros auxiliares (…).
O exercício do patrocínio judiciário em processo judicial no qual a massa insolvente foi demandada integra as competências do cargo do AI?
Não integra. Não cabe no âmbito das competências do AI, pelo que não está em causa nem o substabelecimento noutro AI (n.º 2) nem a coadjuvação por advogados, técnicos ou outros auxiliares para o exercício das suas funções (n.º 3).
Logo, relativamente à constituição de mandatário para o patrocínio judiciário em ação judicial em que é parte a massa insolvente não tem aplicação o regime inserto no artigo 55.º/2 e 3, do CIRE.
Vejamos.
Como se colhe do regime inserto no artigo 81.º/1, do CIRE, compete ao AI os poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente.
No âmbito do exercício desses poderes e daqueles que lhe são conferidos para evitar quanto possível o agravamento da situação económica do devedor (cfr. artigo 55.º/1, alínea b), do CIRE), o AI tem legitimidade para resolver, em benefício da massa insolvente, os atos prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores ao processo de insolvência (cfr. artigos 120.º/1 e 123.º/1, do CIRE).
Ora, a impugnação dessa resolução tem de ser exercida em ação judicial proposta contra a massa insolvente (cfr. artigo 125.º do CIRE), que será representada pelo administrador da insolvência. A massa insolvente, enquanto património autónomo dotado de personalidade judiciária (cfr. artigo 12.º/a), do CPC), é parte passiva nessa ação judicial, incumbindo ao AI a respetiva representação (cfr. artigo 26.º do CPC).
Compete ao AI a representação da massa insolvente na ação judicial de impugnação da resolução prevista no artigo 125.º do CIRE. Não lhe compete, no entanto, exercer o patrocínio judiciário nessa ação.
Na qualidade de representante da massa insolvente está adstrito a assegurar seja devidamente exercido o patrocínio judiciário, em ordem a preservar a situação económica do devedor para que o processo cumpra a sua primeira finalidade, a satisfação dos credores nos moldes previstos no artigo 1.º/1, do CIRE. A constituição de advogado para o exercício do patrocínio na ação de impugnação proposta contra a massa insolvente não se reconduz, portanto, à contratação de coadjuvante para o exercício das funções que lhe são próprias (o regime inserto no artigo 55.º/3, do CPC).
O que os Recorrentes colocam em causa é a constituição de mandatário ao invés do recurso ao apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono. Configura, no entanto, questão a apreciar em sede de eventual responsabilidade do administrador pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem nos termos do artigo 59.º do CIRE[4], inexistindo fundamento para lhe impor o recurso ao apoio judiciário.
Aliás, a contratação de um advogado em vez de recurso ao apoio judiciário, na modalidade de nomeação de patrono, justifica-se em face das razões aduzidas pela AI no requerimento que apresentou, acolhidas como fundamento no despacho submetido ao presente recurso e que não foram colocadas em crise pelos Recorrentes. A saber:
- a ação proposta contra a massa insolvente é suscetível de afetar diretamente a sua composição, pelo que se impõe que a Massa Insolvente conteste a ação para assegurar liquidez;
- o advogado que foi contactado demonstrou já noutros processos os conhecimentos e qualidades necessárias a patrocinar adequadamente a Massa Insolvente e apresentou orçamento adequado e ponderado em face das questões a discutir;
- nele a AI deposita a maior confiança profissional;
- apesar da Massa Insolvente poder beneficiar eventualmente de apoio judiciário, na modalidade de nomeação de patrono, não convém aos interesses da Massa Insolvente e dos credores a nomeação aleatória de mandatário – que poderá ou não ter o perfil indicado para a prossecução de ação judicial nos moldes mais adequados.
Estando em causa questões complexas, afigura-se razoável a opção pela contratação de advogado, generalizada que é a convicção de que as nomeações oficiosas de patrono recaem quase sempre em quem se encontra há menos tempo no exercício da profissão (e, por isso, presumivelmente menos experiente e sabedor).[5]
Sendo lícita a contratação do mandatário, o reembolso das inerentes despesas ao AI terá lugar a coberto do regime inserto no artigo 60.º/1, do CIRE, sendo tidas por despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis, conjugado com o teor do artigo 19.º do EAI, que lhe reconhece o direito a ser reembolsado das despesas necessárias ao cumprimento das funções que lhe são cometidas. O que será apreciado aferindo-se a utilidade, a indispensabilidade ou a necessidade das despesas à luz do fim que legitima o dispêndio efetuado (o eficaz desempenho pelo administrador da insolvência das funções que a lei lhe confia, nomeadamente nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 55.º do CIRE) e do seu contributo para o alcançar.[6]
Termos em que se conclui inexistir fundamento para desconsiderar o mandato judicial conferido pela AI para representação da massa insolvente na ação de impugnação que lhe foi movida e, bem assim, para determinar o desentranhamento da contestação.
Improcedem as conclusões da alegação do presente recurso.
As custas recaem sobre os Recorrentes – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.
Sumário: (…)
IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso.
Custas pelos Recorrentes.
*
Évora, 7 de dezembro de 2023
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Alves Simões
Mário João Canelas Brás
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[1] Alberto dos Reis, CPC Anotado, vol. V, págs. 139 e 140.
[2] Ac. STJ de 16/12/2004 (Ferreira de Almeida).
[3] Primeiras Notas ao Novo CPC, Vol. I, 2013, pág. 157.
[4] Cfr. Ac. TRE de 24/10/2019 (Maria Domingas Alves Simões).
[5] Cfr. Ac. TRG de 30/03/2023 (Maria João Matos).
[6] Cfr. Ac. TRG de 30/03/2023 (Maria João Matos).