Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
INVENTÁRIO
RECLAMAÇÃO À RELAÇÃO DE BENS
LEGITIMIDADE DO EX-CÔNJUGE DE INTERESSADO
CASO JULGADO FORMAL
Sumário
1 – A decisão proferida em processo de inventário que define os termos em que o ex cônjuge de um interessado direto pode intervir nos autos, proferida pelo Tribunal da Relação, constitui caso julgado formal no processo, não podendo voltar a ser discutida. 2 – Estando o ex cônjuge do interessado direto presente – sendo casados à data da abertura da sucessão, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio e ainda que tenha sido feita partilha dos bens comuns do casal -, pretendendo participar na conferência de interessados e tendo sido impedido de o fazer, têm de ser anulados todos os atos praticados nessa conferência de interessados e todos os que pressuponham os atos aí praticados.
Texto Integral
Relator: Paula Ribas
1ª Adjunta: Maria da Conceição Correia Ribeiro da Cruz Bucho
2ª Adjunta: Fernanda Proença Fernandes
Processo 150/21.0T8VNC-C.G1
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
I – Relatório:
Corre termos no Juízo de Competência Genérica ... processo de inventário intentado por AA para partilha dos bens deixados por BB, falecido em .../.../2005, alegando a requerente que ela e sua irmã, CC, são as herdeiras daquele na sequência do testamento realizado em 07/01/2005.
Alega ainda estar acordada com a irmã sobre os termos da partilha dos bens deixados pelo de cujus BB.
Na data da morte deste estava a requerente ainda casada com DD no regime da comunhão geral de bens, estando deste divorciada desde 27/01/2009, não concordando este ex cônjuge com os termos da partilha a realizar.
A requerente foi nomeada cabeça de casal, tendo sido ordenada a citação dos interessados da partilha.
O ex cônjuge da requerente foi citado.
A Mm.ª Juiz titular do processo determinou a notificação da requerente para esclarecer se havia sido efetuada a partilha dos bens do casal, tendo esta respondido afirmativamente.
A requerente juntou documento particular autenticado de partilha relativo a dois imóveis – requerimento de 10/01/2022.
Por despacho de 14/01/2022, foi o ex cônjuge DD notificado para se pronunciar sobre a sua eventual ilegitimidade, o que fez por despacho de 28/01/2022.
A Mm.ª Juiz titular proferiu então o seguinte despacho:
“Nos presentes autos de inventário, por morte de BB (.../.../2005), foi nomeada cabeça-de-casal AA. Em sede de declarações de cabeça-de-casal, esta apontou como interessadas: - a própria, que foi casada com DD sob o regime da comunhão geral de bens até 27/01/2009; - CC, casada com EE sob o regime de comunhão geral de bens; Ambas sobrinhas do inventariado. Apresentou ainda, a cabeça-de-casal, relação de bens, constituída por três prédios rústicos e uma sepultura. Realizadas as citações, veio DD, em 11/10/2021, reclamar contra a relação de bens apresentada sustentando, em suma, que falta relacionar um direito de crédito resultante da venda, há cerca de dois ou três anos, dos pinheiros e eucaliptos existentes num dos prédios rústicos relacionados, mais requerendo que fosse ouvida a cabeça-de-casal em declarações de parte, uma testemunha e fosse realizada a avaliação da madeira cortada. Em 25/11/2021 a cabeça-de-casal respondeu sustentando que esse crédito inexiste e que, ainda que existisse, sempre teria de ser discutido em sede de ação de prestação de contas, por ter a venda alegadamente ocorrido já após a morte do inventariado e, nessa medida, caber nos poderes de administração da cabeça-de-casal. Juntou documentos e arrolou três testemunhas. Por despacho de 6/01/2022, a fim de aferir da legitimidade de DD, foi a cabeça-de-casal notificada para, no prazo de dez dias, esclarecer se já foi feita a partilha dos bens do ex-casal constituído por si e por aquele, considerando que o divórcio foi decretado em 27 de janeiro de 2009, e para juntar a respetiva prova documental. Nesta sequência, a cabeça-de-casal juntou um documento particular autenticado de partilha, de 27/02/2009, no âmbito do qual a cabeça-de-casal e o reclamante declararam que “foram casados sob o regime da comunhão geral de bens, e por sentença já transitada em julgado, proferida no processo número ..., que correu seus termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., foi decretado o divórcio por mútuo consentimento e dissolvido o casamento.”. Declararam ainda pretenderem proceder à partilha de dois bens imóveis ali melhor identificados (um urbano e um rústico), bem como “Que, assim, o valor líquido do património comum do casal é de cento e trinta mil e quinhentos euros, do qual corresponde a cada meação, respetivamente, o valor de sessenta e cinco mil duzentos e cinquenta euros.”. Mais foi dito pelos interessados “Que, desta forma dão a partilha por realizada.”. Notificado o reclamante, para se pronunciar, sem impugnar o referido documento particular autenticado de partilha, veio o mesmo alegar que o referido documento apenas procede a uma partilha parcial, tendo permanecendo indivisos outros bens, concretamente os que são objeto dos presentes autos. Importa, a este propósito, ponderar qual a verdadeira posição do cônjuge do interessado herdeiro. Sobre esta questão, designadamente sobre se devem os cônjuges dos interessados herdeiros ser citados para o processo de inventário, há uma parte da doutrina, designadamente, Lopes Cardoso (Partilhas Judiciais, vol. II, 6.ª Edição, Coimbra, Almedina, 2015), F. Vilarinho Marques (Linhas gerais do Novo Regime do Processo de Inventário (Lei n.º 23/2013, de 5 de Março – um novo paradigma ou falta dele?)”, in Guia Prático do Novo Processo de Inventário – 2.ª Edição, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 2016 (pp. 47-69), disponível em http://www.cej.mj.pt), E. Sousa Paiva e H. Cabrita (Manual do Processo de Inventário à luz do novo regime aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5 de Março e regulamentado pela Portaria n.º 278/2013, de 26 de Agosto, Coimbra, Coimbra Editora, 2013), que os cônjuges dos herdeiros casados na comunhão (geral de bens ou de adquiridos) devem ser citados para os termos do processo. Por sua vez, C. Câmara, C. Castelo Branco, J. Correia e S. Castanheira (Regime Jurídico do Processo de Inventário Anotado, Coimbra, 3.ª Edição, Almedina, 2017), consideram que são, não só, interessados diretos na partilha os cônjuges dos herdeiros casados segundo o regime de comunhão geral de bens, como também, os que tenham um interesse juridicamente protegido relativamente aos bens que compõem o património hereditário, independentemente do regime de bens, por, em ambos os casos, existir um interesse direto a defender, razão pela qual, devem ser citados. Semelhante entendimento teve Neto Ferreirinha (Processo de Inventário – Reflexões sobre o Novo Regime Jurídico, 3.ª Edição, Revista, Aumentada e Atualizada, Coimbra, Almedina, 2017), ao referir que os cônjuges dos herdeiros são interessados diretos na partilha, não apenas quando estiverem consorciados segundo o regime da comunhão geral, mas também independentemente do seu regime, se a casa de morada de família fizer parte do acervo hereditário, ou quando se tratar de comunhão de adquiridos e da herança fizerem parte bens imóveis ou estabelecimentos comerciais (artigo 1682.º-A, do CC). Pelo contrário, Carvalho de Sá (Do Inventário – Descrever, Avaliar e Partir, Coimbra, 7.ª Edição Revista e Atualizada – Reimpressão, Almedina, 2014) entende que a citação dos cônjuges apenas terá lugar “se eles próprios forem diretamente interessados nessa partilha”. Por fim, a este propósito, N. Salter Cid (“Desentendimentos conjugais e divergências jurisprudenciais” (3.ª Parte), in Lex Familiae – Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 5, n.º 9, Coimbra, Coimbra Editora, 2008) sustentou que, quem é herdeiro e está casado no regime da comunhão de adquiridos não necessita de obter consentimento do seu cônjuge para outorgar a partilha hereditária, quando da massa da herança façam parte bens imóveis e, que “(…) a plena validade do ato ou negócio jurídico praticado por quem é casado não depende da obtenção de consentimento do seu cônjuge, ou do respetivo suprimento”. E assim considera porque, até à partilha, os co-herdeiros não têm verdadeiramente qualquer direito sobre os bens concretos do acervo patrimonial, mas somente um direito ao quinhão hereditário, e que a partilha não traduz, nem implica, de forma alguma, qualquer alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo integrantes do património hereditário, implicando antes a determinação dos bens que, em concreto, preenchem o quinhão de cada co-herdeiro. Ainda nesta sede, sustenta Salter Cid, relativamente à citação do cônjuge do herdeiro como interessado direto na partilha, por isso, consideramos que independentemente do regime de bens, não deve o cônjuge do herdeiro ser citado para os atos e termos do processo em causa, pois nem os bens imóveis existentes se poderão, nessa fase (partilha de herança indivisa), considerar próprios do cônjuge herdeiro, nem tão-pouco se conseguirão aferir se esses mesmos bens serão objeto de adjudicação, para o visado cônjuge. Acompanhamos este último entendimento. O herdeiro do inventariado é, de facto, um interessado direto na partilha, mas o cônjuge do herdeiro do inventariado, embora tenha um interesse indireto nessa mesma partilha, não é interessado direto, na medida em que não tem um direito próprio. Repare-se que o eventual interesse próprio do cônjuge do herdeiro do inventariado, ou seja, a possibilidade de parte do acervo hereditário chegar às suas mãos, depende de duas operações prévias: da partilha dos bens do inventariado, mediante a qual uma parte de tal acervo entrará na esfera jurídica do herdeiro do inventariado, e da partilha dos bens comuns dos cônjuges (o herdeiro do inventariado e o seu cônjuge), dado que até este momento, o acervo herdado pelo herdeiro é património comum e indiviso do casal. Nem sequer se pode falar, a este propósito de uma compropriedade, os cônjuges não têm direito a uma meação certa e determinada, mas são titulares de um património em regime de comunhão. Daqui resulta que o direito do cônjuge do interessado herdeiro não é um direito próprio ou separado do direito daquele, pelo que a sua posição no processo sempre será uma posição conjunta, não sendo admissível que venha a assumir no processo, como sucedeu nos presentes autos, posição contrária à do seu cônjuge, esse sim, interessado direto. Aliás, não se encontra sequer prevista a sua participação no quórum deliberativo previsto pelo artigo 1111.º n.º 2 do CPC. Neste sentido veja-se, também, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23-03-1999, P. 798/98-3, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode ler: “I - Só os co-herdeiros e o cônjuge meeiro têm interesse direto na partilha. II - Não é diretamente interessado numa partilha, aquele que estiver casado, sob o regime de comunhão de bens, com uma filha do autor da herança e, consequentemente, não tem legitimidade para requerer o respetivo inventário facultativo. III - Embora a lei exija a citação dos cônjuges dos interessados diretos na partilha, tal como dos legatários, dos credores da herança e dos donatários, decorre desta própria exigência que embora também interessadas na causa, não se pode contudo, pretender que se confundem com pessoas diretamente interessadas na partilha, pois em tal conceito se não incluem.”. Todavia, ainda que assim não se entendesse, não se pode ignorar que se encontra junto aos autos documento comprovativo da partilha dos bens constitutivos do património comum do ex-casal, composto pela cabeça-de-casal e pelo reclamante. Este documento não é, conforme alega o reclamante, um documento particular autenticado de partilha parcial, caso em que tal menção teria dele constar expressamente. Trata-se de um documento de partilha dos bens do ex-casal, nele se tendo feito constar expressamente que “assim, o valor líquido do património comum do casal é de cento e trinta mil e quinhentos euros, do qual corresponde a cada meação, respetivamente, o valor de sessenta e cinco mil duzentos e cinquenta euros.” e que “desta forma dão a partilha por realizada.”. Estando o ex-casal divorciado desde 27/01/2009, estando realizada a partilha desde 27/02/2009, e não tendo sido realizada qualquer partilha adicional (cfr. artigo 1129.º do CPC), estão absolutamente cessadas as relações e os efeitos patrimoniais que existiram entre os dois cônjuges”. Atento o exposto e de harmonia com as normas legais citadas não admito a reclamação contra a relação de bens apresentada por DD em 11/10/2021”.
**
O referido ex cônjuge não se conformou com esta decisão e dela interpôs recurso para este Tribunal da Relação de Guimarães que confirmou a decisão proferida, com a seguinte fundamentação: “Dispõe-se no art. 1104.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, na redação dada pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, entrada em vigor a 1.1.2020, para o caso que agora nos interessa, que os interessados diretos na partilha e o Ministério Público, quando tenha intervenção principal, podem, no prazo de 30 dias a contar da sua citação: a) Deduzir oposição ao inventário; b) Impugnar a legitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros; c) Impugnar a competência do cabeça de casal ou as indicações constantes das suas declarações; d) Apresentar reclamação à relação de bens; Por sua vez, diz-nos o art.º 1110.º, do mesmo diploma, que também são notificados para a conferência de interessados os cônjuges dos interessados diretos que não sejam casados em regime de separação de bens e, se entre os bens a partilhar constar a casa de morada de família de algum dos interessados, o respetivo cônjuge, ainda que casado em regime de separação de bens, esclarecendo-se, no seu n.º 5, que ‘o[O]s interessados diretos na partilha e respetivos cônjuges são notificados com a obrigação de comparência pessoal ou de se fazerem representar, sob cominação de multa’, podendo fazer-serepresentar por mandatário com poderes especiais ou confiar o mandato a qualquer outro interessado (n.º 6, desse mesmo preceito). Especificando, ainda, o seu n.º 7, que ‘s[S]e faltar algum dos convocados, a conferência de interessados pode ser adiada, por determinação do juiz, uma só vez e desde que haja razões para considerar viável o acordo sobre a composição dos quinhões com a presença de todos os interessados’. Por sua vez, preceitua-se no art. 1129.º, n.º 1, do mesmo diploma que ‘q[Q]uando se reconheça, depois de feita a partilha, que houve omissão de alguns bens, procede-se a partilha adicional no mesmo processo’. Por outro lado, no art.1133.º, n.º 1, do citado diploma, para o caso que agora nos interessa, refere-se que decretado o divórcio qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens comuns. Importa, ainda, considerar que, como decorre do disposto no art.º 1732.º do Código Civil que “[s]e o regime de bens adotado pelos cônjuges for o da comunhão geral de bens, o património comum é constituído por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges, que não sejam excetuados 7por lei”. Acontece que, ocorrendo o divórcio o casamento dissolve-se, fazendo cessar as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, o que implica que, sendo o casamento celebrado sob um qualquer regime de comunhão de bens (comunhão geral ou comunhão de adquiridos), se torna necessário proceder à partilha dos bens comuns do casal. Os efeitos do divórcio quanto a estas relações retrotraem-se à data da propositura da ação de divórcio (art.ºs 1788.º, 1688.º e 1789.º, n.º 1, todos do Código Civil). Citando os Profs.. P. Lima e A. Varela in C. Civil Anotado, Vol. IV, 2ª ed. pág. 561“com a ressalva de que os efeitos do divórcio, nas relações patrimoniais entre os cônjuges, se retroagem à data da proposição da ação, a lei pretende evitar” que “um dos cônjuges seja prejudicado pelos atos de insensatez, de prodigalidade ou de pura vingança que o outro venha praticar, desde a proposição da ação sobre os valores do património comum”. A composição do património comum é, portanto, aquela que existia na data da proposição da ação e não em momento anterior e, só os bens (todos) existentes nesse momento devem ser objeto de partilha. Como tal, na fase processual do relacionamento dos bens, importa definir os bens que devem ser relacionados. Já o que cada um dos cônjuges pode receber é determinado posteriormente. No presente caso, os ex-cônjuges celebraram o seu casamento segundo o regime da comunhão geral de bens e o divórcio foi decretado a 27.1.2009, mas instaurado em 2007, como se percebe pelo ano do respetivo processo, pelo que, à data de .../.../2005, data do falecimento do inventariado, o quinhão hereditário da cabeça de casal constituía um bem comum do casal, face ao regime de bens que vigorava entre eles, dado que a sucessão se abre no momento da morte do seu autor e no lugar do último domicílio dele, tal como decorre do disposto no art. 2031.º, do Cód. Civil. Pois, nos termos do art. 1733.º, n.º 1, als. a), b) e c), do Cód. Civil, apenas são excetuados da comunhão os bens doados ou deixados, com a cláusula de incomunicabilidade ou com a cláusula de reversão ou fideicomissária, a não ser que a cláusula tenha caducado, bem como o usufruto, o uso ou habitação, e demais direitos estritamente pessoais, embora os cônjuges não necessitem do consentimento um do outro para aceitar doações, heranças ou legados – cfr. 1683.º, do Cód. Civil. Posto isto, há que ter em conta que o princípio aferidor do conceito de legitimidade se encontra plasmado no processo de inventário, ao referir mesmo no novo regime do processo de inventário, no art. 1097.º, n.º 2, al. c), do Cód. Proc. Civil, que o requerimento inicial apresentado pelo cabeça de casal deve identificar os interessados diretos na partilha, os respetivos cônjuges e o regime de bens do casamento, os legatários e ainda, havendo herdeiros legitimários, os donatários. Daqui decorre, como tal, face ao preceituado nos já citados normativos, que os cônjuges dos herdeiros, não são englobados na categoria de interessados diretos. De igual forma no artigo 1327.º, n.º 1, al. a), anterior, referente à legitimidade para requerer ou intervir no inventário, previa-se que quem tinha legitimidade para requerer que se procedesse a inventário e para nele intervir, como parte principal, em todos os atos e termos do processo, eram os interessados diretos na partilha. Acresce que, revestindo o requisito de legitimidade dos interessados a natureza de pressuposto processual, e tratando-se de questão objeto de conhecimento oficioso, sobre a mesma não se constitui caso julgado formal enquanto não for alvo de apreciação concreta por parte do juiz, sendo que as declarações do cabeça de casal não beneficiam de qualquer presunção de fidedignidade e só subsistem enquanto não forem impugnadas (Neste sentido, cf., por todos, o Ac. TRG de 23-10-2008 (relatora: Rosa Tching), p. 2072/08-2, disponível em www.dgsi.pt). Por outro lado, destinando-se o processo de inventário, em primeira linha, a pôr termo à comunhão hereditária, resulta manifesto que o interesse direto na partilha tem de ser aferido ponderando os factos jurídico-sucessórios relevantes para o efeito. Esta questão da legitimidade do cônjuge do herdeiro tem sido debatida há muito, tendo-se formado essencialmente duas teses da doutrina e na jurisprudência. Por um lado, sumariamente, temos a posição dos que afirmam a legitimidade do cônjuge do herdeiro para intervir, a título principal, no processo de inventário (e mesmo requerer a sua instauração), invocando não apenas questões substantivas de legitimidade para a alienação ou oneração de bens ou direitos que carecem do consentimento do cônjuge (arts. 1682.º e 1686.º-A do C.C., incluindo nesse âmbito a transmissão mortis causa), mas também motivações de proteção da família (atribuindo relevo aos bens que possam vir a ser transmitidos por sucessão para a economia familiar), e a redação do art. 2101º, nº 1, do C.C., ao mencionar o cônjuge meeiro (que pretendem também identificar com o cônjuge do herdeiro, e não apenas com o cônjuge do de cuius ou inventariado). Invocam ainda os defensores desta posição que da intervenção do cônjuge herdeiro no processo de inventário pode decorrer a necessidade de pagamento de tornas ou dívidas, designadamente com dinheiro comum, com a inerente afetação do património comum conjugal. Afirmam, assim, os defensores desta tese que o cônjuge tem interesse direto na partilha. Seguindo este entendimento, veja-se João António Lopes Cardoso e Augusto Lopes Cardoso, respetivamente in “Partilhas Judiciais”, 4ª ed., Almedina, 1990, Vol. I, pp. 93 e 18 e “Partilhas Judiciais”, 6ª ed., Almedina, 2015, Vol. I, pp. 302 e 303. Ainda nesta linha de pensamento, alguns autores reconhecem essa legitimidade ao cônjuge do herdeiro apenas quando vigore o regime de bens da comunhão geral, baseando-se no facto de os bens a adquirir por sucessão se virem a integrar na comunhão, ou no entendimento de que o direito à herança (não sendo excluído pelo art. 1733º do C.C.) se comunica ao cônjuge por via matrimonial – Neste sentido, veja-se as posições de Rabindranath Capelo de Sousa, in ‘A Posição sucessória do cônjuge sobrevivo…’, pp1186 e 1187, Manuel Augusto Gama Prazeres, in ‘Manual do processo de inventário obrigatório (ou orfanológico) e facultativo (ou de maiores), 1965, pp.47 e 48, entre outros (estes também conferem essa legitimidade ao cônjuge do herdeiro se a casa de morada de família se situar em imóvel integrado na herança), e o decidido pelos Acórdãos da Relação de Coimbra de 03-07-2012, proferido no proc. 45/10.2TJCBR-B.C1, disponível em dgsi, e da Relação de Guimarães de 23-10-2008, in CJ, T.IV, pg.299. Discordando dessa linha de pensamento, alguma jurisprudência tem negado ao cônjuge do herdeiro legitimidade para requerer e intervir, a título principal, no processo de inventário. Seguindo esta posição, veja-se os Acórdãos da Relação de Évora de 23-03-1999, proferido no processo nº 798/98-3, da Relação do Porto de 09-02-1999, proferido no processo nº 9821477, de 19-09-2000, proferido no processo nº 0020813, e de 14-02-2013, proferido no processo nº 1625/09.4TBPNF-A.P1, e negando essa legitimidade mesmo no regime da comunhão geral, o da Relação de Lisboa de 09-03-2000, proferido no processo nº 0079076, todos disponíveis em www.dgsi.pt. Passemos nós a tomar posição, levando em conta o já exposto quanto ao teor literal das normas que imperam sobre o inventário e que distinguem interessados diretos dos cônjuges destes, bem como ao que infra se exporá. Como é sabido, pelo casamento, estabelecem-se, além do mais, relações de afinidade entre o cônjuge e os parentes do outro cônjuge – art. 1584º do C.C. Essa fonte de relações familiares não confere, porém, ao afim a qualidade de herdeiro dos parentes do cônjuge, pois esse estatuto não se transmite pelo casamento. Como tal, apenas por via dos efeitos do casamento, a nível patrimonial, se poderá questionar a recondução do cônjuge do herdeiro ao conceito de interessado direto na partilha. Ora, até à partilha, o herdeiro é apenas titular de uma quota ideal, indivisa, à herança e não de uma fração em cada um dos bens da herança em concreto, pelo que não revestindo qualquer natureza imóvel não se lhe pode aplicar o regime do art. 1682º-A do C.C., contrariamente ao que é defendido pela primeira tese enunciada. Pois, só após a partilha, transmutando-se o direito à herança em direito sobre coisas concretas, é que esses bens podem integrar a comunhão conjugal, e só a partir daí é que a sua alienação e oneração está dependente de consentimento conjugal. Acresce que, como se disse, embora o direito à herança apresente um conteúdo também patrimonial que se comunica ao cônjuge do herdeiro, por via do art. 1732º do C.C., tal advém do conteúdo pessoal respeitante à qualidade de herdeiro que não se transmite, por forma a conferir-lhe legitimidade para requerer ou intervir a título principal no processo de inventário. Perante as citadas normas, entendemos, pois, que a apontada comunicabilidade patrimonial, ou seja, o regime de bens do casamento, ainda que de comunhão geral, não habilita o cônjuge com essa legitimidade processual de interessado direto na partilha, a não ser como interessado a intervir nos atos e termos que a lei adjetiva prevê e que não contempla o ato praticado pelo recorrente de apresentação à reclamação de bens. Comunga-se, assim, do entendimento sufragado pelo tribunal a quo, que não admitiu a reclamação apresentada, nos termos e pelos fundamentos expostos na decisão recorrida. Nestes termos, deve, pois, improceder o recurso interposto”.
*
Foi dada a forma a partilha e agendada conferência de interessados.
Para esta conferência foi notificado o ex cônjuge DD.
No início da conferência, a Mm.ª Juiz que presidiu à realização da conferência proferiu o seguinte despacho:
“Como se transmitiu, verbalmente, no dia de ontem, no âmbito do princípio da colaboração do Tribunal com as partes, e como executado pela Secção deste Juízo, atenta a decisão de 01/02/2022 onde consta nomeadamente “…estão absolutamente cessadas as relações e os efeitos patrimoniais que existiram entre os dois cônjuges”, decisão essa confirmada pelo douto acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães de 09/06/2022, não tinha o Sr. DD de estar presente, já que não é interessado”.
Perante a tentativa da Mandatária daquele ex cônjuge de apresentar um requerimento, foi proferido seguinte despacho:
“Não sendo o Sr. DD interessado neste autos, tendo sido um lapso da Secção a notificação do mesmo para a diligência, que se releva e que se tentou emendar oportunamente em respeito pelo tempo dos demais intervenientes processuais, aquele não tem de estar presente na conferência de interessados, bem como a Sr.ª Advogada, por ora, sem procuração e, por isso, sendo que, nos termos do art.º 1114.º do CPC, apenas os interessados podem requerer a avaliação de bens, mostra-se prejudicado qualquer conhecimento de qualquer requerimento de qualquer pessoa não qualificada processualmente como interessado. Custas por este incidente anómalo, que retardou o início da Conferência de Interessados pela outrora parte e requerente DD”.
Destes despachos proferidos em sede de conferência de interessados veio o ex cônjuge DD apresentar recurso de apelação com as seguintes conclusões:
“1º Considerou o douto despacho recorrido não permitir a intervenção do interessado, cônjuge da cabeça de casal, FF, agora apelante, na diligencia em causa, após ter sido notificado para o efeito, por considerar que “apenas os interessados podem requerer a avaliação de bens, mostra-se prejudicada a qualidade processualmente como interessado”, e por não o considerar “interessado” no presente processo de inventario. 2º Insurge-se ainda o recorrente contra a sua condenação em multa por incidente processual anómalo, porque a MM. Juiz considerou que “retardou o início da conferência de interessados”. 3º Em 07/02/2023 realizou-se, nos presentes autos, diligência de conferência de interessados, diligencia para a qual o recorrente foi convocado, bem como o seu mandatário. 4º No dia designado para o efeito o mandatário compareceu ao Tribunal, acompanhado de mandatária, devidamente substabelecida, conforme aliás se faz referencia na ata da conferência de interessados (ref. Nº ...35), tendo, contudo o tribunal “a quo” entendido que o interessado DD não tinha de estar presente, “já que não é interessado”. 5º Ato continuo, a mandatária substabelecida, e após notificação do referido despacho e na sequência da notificação que o interessado havia recebido para estar presente na diligência, pretendeu ditar um requerimento para a ata que tinha como finalidade requerer a avaliação de bens constante da relação de bens ao abrigo do disposto no artigo 1114º nº 1 e 3 do CPC, tendo requerido ao Tribunal que lhe fosse concedida a palavra para o efeito. 6º Não obstante, considerou a MM. Juiz que “(…) apenas os interessados podem requerer a avaliação de bens, mostra-se prejudicado qualquer conhecimento de qualquer requerimento de qualquer pessoa não qualificada processualmente como Interessado”, tendo, ordenado que tanto a mandatária com substabelecimento junto aos autos, como o Sr. DD abandonassem a sala de audiências, impedindo-os assim de continuar a assistir e/ou de participar na mesma, vedando-lhes por isso a oportunidade de reclamar, ou requerer o que tivessem por conveniente. 7º Na verdade, o interessado DD foi casado no regime de comunhão geral de bens com a cabeça de casal AA, casamento dissolvido por divórcio por mútuo consentimento decretado nos autos de processo nº 324/07...., sendo que na vigência do referido vínculo matrimonial, em .../.../2005, faleceu BB, aqui inventariado, tendo deixado disposição de ultima vontade vertida em testamento de fls…, pelo qual instituiu como herdeira testamentária, alem do mais, a sua sobrinha ora cabeça de casal ex-cônjuge do Apelante. 8º Por ter sido cônjuge da herdeira testamenteira, desde o início dos presentes autos o Sr. DD, aqui apelante, sempre foi convocado para todas as diligências e sempre foi notificado de todos os despacho e decisões proferidas, tal como foi para a conferência de interessados, tal e qual como determina o disposto no artigo 1110º do CPC. 9º O artigo nº 1114º nº 1 do CPC determina que “até à abertura das licitações, qualquer interessado pode requerer a avaliação de bens, devendo indicar aqueles sobre os quais pretende que recaia a avaliação e as razões da não aceitação do valor que lhes é atribuído. 10º A expressão “qualquer interessado”, salvo melhor entendimento abrange quer interessados diretos quer outros interessados, nomeadamente os interessados indiretos, designadamente os cônjuges dos herdeiros diretos, não efetuando qualquer destrinça entre interessados diretos ou indiretos na partilha. 11º Logo, salvo o melhor entendimento o interessado DD, que continua a ter essa qualidade ao longo de todo o processo, porque nunca a deixou de ter e nunca foi considerada parte ilegítima poderia, se assim o entendesse, requerer a avaliação de bens já que é uma faculdade que a lei de confere tal como aliás discorre da lei, bem como intervir e requerer o que tivesse por conveniente, cabendo posteriormente ao Tribunal “a quo” a faculdade de deferir ou não o requerido. 12º Pelo exposto o Tribunal deveria ter permitido ao interessado DD a presença na diligência de conferência de interessados, a sua participação, nomeadamente a possibilidade de ditar requerimentos para a ata para posterior tomada de decisão do Tribunal acerca dos mesmos. 13º Ao não permitir a sua presença e sua participação, e ainda tendo ordenado ausência da sala juntamente com a mandataria substabelecida, andou mal o Tribunal “a quo” que violou o direito de defesa do interessado, o direito de participar em diligencias e atos que lhe dizem respeito e que afetam o seu património e os seus interesses operando uma errada interpretação e aplicação do disposto nos art. 1110º, 1097º CPC e 1732º do CC. 14º Tal despacho é por conseguinte nulo, por preterição de formalidades legais e pela violação de direitos conferidos ao interessado DD, nulidade que se deixa invocada para os devidos efeitos legais, pelo que deve ser considerado nulo o ato da conferência de interessados, realizada no dia 07/02/2023, bem como todos os demais atos procedentes, ordenando-se a substituição por outro que, reconhecendo o direito do reclamante cônjuge do direito de intervir no processo, a partir do momento em que foi impedido de o fazer.
TERMOS EM QUE SE REQUER A V. EXAS. CONCEDAM PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO DE APELAÇÃO E CONSEQUENTEMENTE REVOGEM OS DOUTOS DESPACHOS QUE CONSIDERARAM QUE O APELANTE NÃO PODIA INTERVIR NO PROCESSO DE INVENTARIO “POR NÃO SER INTERESSADO” QUE IMPEDIU DE FORMULAR REQUERIMENTOS EM ATA E QUE ORDENOU QUE ABANDONASSE A SALA DE AUDIÊNCIA ONDE DECORRIA A CONFERÊNCIA, SUBSTITUINDO-O POR OUTRO QUE ADMITA A SUA INTERVENÇÃO DESDE O INICIO DA DILIGÊNCIA E PERMITA QUE ESTEJA PRESENTE EM TODOS OS ACTOS E REQUEIRA AQUILO QUE A LEI LHE PERMITIR, E CONSEQUENTEMENTE NÃO LHE APLIQUE QUALQUER MULTA, ANULANDO-SE TODO O PROCESSADO A PARTIR DO MOMENTO EM QUE FOI IMPEDIDO DE PARTICIPAR NA CONFERÊNCIA DE INTERESSADOS”.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso de apelação não foi admitido.
Apresentada reclamação pela não admissibilidade do recurso, foi proferido despacho que admitiu o recurso interposto.
O recurso foi, assim, admitido como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
**
II - Questão a decidir:
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts.º 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por C. P. Civil) -, a questão que se coloca à apreciação deste Tribunal consiste em saber se o ex cônjuge da interessada requerente do inventário é ou não parte interveniente nestes autos, considerando o despacho inicial proferido em sede de conferência de interessados e que declarou que este não era interessado e não podia assim intervir na diligência para a qual havia sido convocado, desta questão dependendo as demais questões suscitadas.
**
III - Do objeto do recurso:
O extenso relatório elaborado nesta decisão assume relevância porque já existe uma decisão nestes autos sobre a posição processual do ex cônjuge DD, agora recorrente, sendo que a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância em 01/02/2022, tendo sido confirmada pelo Tribunal da Relação, não o foi exatamente com os mesmos fundamentos.
Tendo a Mmª Juiz então titular do processo suscitado oficiosamente a questão da legitimidade do ex cônjuge da requerente do inventário, não o declarou parte ilegítima (o que implicaria uma decisão de extinção da instância quanto a este interveniente que havia sido citado para intervir nos autos), limitando-se o segmento decisório a não admitir a reclamação apresentada por aquele à relação de bens.
É certo que, depois de citar vasta doutrina sobre a posição processual do cônjuge do interessado do inventário, referiu ainda que, mesmo que assim se não entendesse, estando o casal divorciado e tendo sido realizada a partilha de bens “estão absolutamente cessadas as relações e efeitos patrimoniais que existiram entre os dois cônjuges”, daqui se percebendo que entenderia que com a partilha realizada se esgotou qualquer interesse patrimonial do referido ex cônjuge neste inventário.
É a este fundamento da decisão – que, repete-se, se limitou a não admitir ao ex cônjuge do herdeiro a apresentação de reclamação à relação de bens – que a Mm.ª Juiz que presidiu à conferência de interessados faz apelo para considerar que DD não é já interessado para participar na diligência.
Ora, não é este de todo o sentido do Acórdão do Tribunal da Relação proferido nos autos e que, confirmando a decisão de não admissão da reclamação à relação de bens por parte daquele ex cônjuge, explicitou que o mesmo é ainda interessado nos autos de inventário.
Aquele concreto segmento do despacho de 01/02/2022 é absolutamente derrogado pelo entendimento expresso pelo Tribunal Superior explicando que “no presente caso, os ex-cônjuges celebraram o seu casamento segundo o regime da comunhão geral de bens e o divórcio foi decretado a 27.1.2009, mas instaurado em 2007, como se percebe pelo ano do respetivo processo, pelo que, à data de .../.../2005, data do falecimento do inventariado, o quinhão hereditário da cabeça de casal constituía um bem comum do casal, face ao regime de bens que vigorava entre eles, dado que a sucessão se abre no momento da morte do seu autor e no lugar do último domicílio dele, tal como decorre do disposto no art. 2031.º, do Cód. Civil. Pois, nos termos do art. 1733.º, n.º 1, als. a), b) e c), do Cód. Civil, apenas são excetuados da comunhão os bens doados ou deixados, com a cláusula de incomunicabilidade ou com a cláusula de reversão ou fideicomissária, a não ser que a cláusula tenha caducado, bem como o usufruto, o uso ou habitação, e demais direitos estritamente pessoais, embora os cônjuges não necessitem do consentimento um do outro para aceitar doações, heranças ou legados – cfr. 1683.º, do Cód. Civil”.
Ou seja, ainda que efetuada a partilha dos bens do casal, só quando for efetuada a partilha destes autos, integrará o património comum o/ou os bens que forem adjudicados à requerente do inventário, com efeito à data da morte do inventariado e, portanto, quando a requerente e o DD estavam ainda casados. Até à partilha a realizar nestes autos, daquele património comum fazia apenas parte um quinhão hereditário que, sabemos todos pelos termos em que foi feita a partilha, nela não foi incluído.
Mas mesmo que assim não fosse, resulta com evidente clareza do Acórdão do Tribunal de Relação proferido nestes autos em 09/06/2022 que se o ex cônjuge DD não é interessado direto nestes autos, tem legitimidade para intervir como interessado “nos atos e termos que a lei adjetiva prevê” e que não contemplava o ato praticado de reclamação de bens.
Ou seja, muito embora se perceba que a intenção da decisão de 1ª Instância visava excluir a legitimidade daquele ex cônjuge, sem que, contudo, a tivesse declarado, a decisão de 2ª Instância proferida claramente não acompanhou aquele entendimento, afirmando expressamente a legitimidade do ex cônjuge DD para intervir nos atos e termos que estivessem previstos na lei adjetiva para o cônjuge do interessado direto da partilha.
Esta questão está, assim, definitivamente apreciada nos autos.
Estabelece o art.º 620.º do C. P. Civil que os despachos que recaem sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.
Como se refere no Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 29/06/2023, proc. 264/12.7T8VRM-F.G1, da Juiz Desembargadora Maria dos Anjos Nogueira, “o caso julgado aporta à decisão um segundo nível estabilidade (de continuidade na emissão dos seus efeitos jurídicos) – constitui uma técnica de estabilização dos resultados do processo, que se integra numa linha gradual de estabilização: do esgotamento do poder jurisdicional (art. 613.º do CPC), enquanto regra de proibição do livre arbítrio, vinculando o tribunal e as partes, dentro do processo (caso julgado formal - art. 602º do CPC), ou mesmo fora dele, perante outros tribunais (caso julgado material - art. 619º do CPC)]. O caso julgado formal, por oposição ao caso julgado material, tem, assim, valor intraprocessual, vinculativo no próprio processo em que a decisão é proferida, obstando a que no processo seja tomada (pelo tribunal que a proferiu ou por qualquer outro) nova decisão (seja renovando, seja modificando a anterior) – cfr. neste sentido João Castro Mendes, in “Direito Processual Civil”, A.A.F.D.L, 1980, III vol. pág. 276, Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 304, o caso julgado formal consiste na força obrigatória que os despachos e as sentenças possuem relativa e unicamente à relação processual, dentro do processo. Quer o caso julgado formal, quer o caso julgado material, visam evitar a repetição de decisões judiciais sobre a mesma questão.
Como refere Rodrigues Bastos, “Notas ao Código de Processo Civil”, 3.°-253, “A economia processual, o prestígio das instituições judiciárias, reportando à coerência das decisões que proferem, e o prosseguido fim de estabilidade e certeza das relações jurídicas, são melhor servidas por aquele critério eclético, que sem tomar extensiva a eficácia de caso julgado a todos os motivos objetivos da sentença reconhece todavia essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que foram antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado”.
A intervenção nestes autos de inventário do recorrente DD ficou, assim, definida no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido nestes autos, assistindo-lhe consequentemente razão no recurso que interpôs.
É a lei processual que estabelece que são notificados para a conferência de interessados os cônjuges dos interessados diretos que não sejam casados no regime de separação de bens, nos termos do art.º 1110.º. n.º3, do C. P. Civil, sendo certo que, sendo relevante para o inventário o momento da abertura da sucessão, o que releva para este efeito é se o interessado se mantinha casado à data da morte do inventariado e não se, após essa data, e estando já divorciado, havia sido efetuada a partilha dos bens comuns do casal.
Quer isto dizer que assistia ao ex cônjuge DD o direito de participar na conferência de interessados, não podendo manter-se o despacho proferido e que visou exclui-lo como interveniente dos autos de inventário, quando o que estava já decidido era, apenas, que não podia considerar-se interessado direto na partilha.
E não se mantendo este despacho, não podem manter-se os dois despachos subsequentes, através dos quais se impediu aquele que tinha direito de intervir na conferência – e que assim já não fez o requerimento que pretendia realizar – e se sancionou a sua conduta como “anómala”, em custas do incidente por ter sido geradora de atraso no início da conferência de interessados (e, aqui, não existe qualquer condenação em multa, ao contrário do que refere o recorrente, mas apenas nas custas do incidente).
Se era lícito ao ex cônjuge DD intervir na conferência de interessados, o mesmo pode naturalmente requerer o que tiver conveniente, cabendo ao Juiz que preside à conferência de interessados deferir ou indeferir tais pretensões, mas sempre, naturalmente depois de as mesmas serem formuladas. Estarão sempre em causa ocorrências normais da lide e não incidentes anómalos.
Note-se que não pode desde já este Tribunal de recurso apreciar a admissibilidade do requerimento que o recorrente não chegou a fazer (nem tal pretensão foi formulada por via de recurso), porque não lhe foi permitido que fizesse, sob a invocação de fundamento que supra se considerou não existir.
Para que o Tribunal de recurso possa reapreciar uma decisão da 1ª Instância necessário se torna que esta seja proferida sobre pretensão concreta que tenha sido deduzida e não sobre algo que não chegou a requerer-se porque se foi, fora de um circunstancialismo legal, impedido de o fazer.
Tendo a conferência de interessados sido realizada sem a presença do recorrente e assistindo-lhe o direito de nela intervir, têm de ser anulados todos os atos praticados na referida diligência, bem como os posteriores que pressuponham o aí deliberado, pois que a mesma não podia realizar-se na sua ausência, estando o recorrente presente, pretendendo nela participar e tendo sido impedido de o fazer – art.º 195.º, nº2, do C. P. Civil.
Sumário:
1 – A decisão proferida em processo de inventário que define os termos em que o ex cônjuge de um interessado direto pode intervir nos autos, proferida pelo Tribunal da Relação, constitui caso julgado formal no processo, não podendo voltar a ser discutida.
2 – Estando o ex cônjuge do interessado direto presente – sendo casados à data da abertura da sucessão, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio e ainda que tenha sido feita partilha dos bens comuns do casal -, pretendendo participar na conferência de interessados e tendo sido impedido de o fazer, têm de ser anulados todos os atos praticados nessa conferência de interessados e todos os que pressuponham os atos aí praticados.
IV – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam as Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação interposto e, em consequência:
- revogam-se os despachos proferidos na conferência de interessados que: (1) não permitiu a intervenção do recorrente, (2) não permitiu que fizesse requerimento enquanto interveniente da diligência e (3) o sancionou em custas do incidente;
- anulam-se todos os atos processuais subsequentes praticados naquela conferência de interessados e dela decorrentes;
- admite-se a intervenção do recorrente na conferência de interessados.
Custas do recurso pelas demais interessadas do inventário.
**
Guimarães, 23/11/2023
(elaborado, revisto e assinado eletronicamente)