I – Verificando-se, numa acção declarativa, erro relativamente à indicação da espécie de processo, deve corrigir-se o mesmo oficiosamente, por a tal nada obstar, como resulta a fortiori do disposto no nº 3 do art 193º CPC.
II – Porque a improcedência numa acção de simples apreciação negativa só faz caso julgado material tornando imodificável o decidido, se, e quando, o réu deduzir reconvenção e nela pedir que se reconheça a existência (e a validade e a eficácia) da situação que o autor pretende ver negada através da decisão judicial, deve admitir-se o pedido reconvencional nestas acções, desde que reunidos os pressupostos genéricos da respectiva admissibilidade à luz do art 266º CPC.
III – O aumento do valor da acção decorrente no disposto no nº 2 do art 299º CPC, não implica, por um lado, qualquer juízo de valor a respeito da admissibilidade do pedido reconvencional, não se podendo falar de caso julgado formal a esse respeito, como não implica, por outro, que, decidida a improcedência da reconvenção, o tribunal que assim decida deixe de ter competência em razão do valor para a prossecução da acção.(Sumário elaborado pela Relatora)
I - O Estado Português, representado pelo Ministério Público, instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA, pedindo que se considerem impugnados os factos justificados na escritura pública outorgada no dia 3 de Maio de 2019 e se declare a mesma nula e de nenhum efeito, declarando-se ainda que não assiste à R. o direito invocado na dita escritura, mais se ordenando o cancelamento de todos os registos efetuados com base na mesma.
Alegou para tanto, que no dia 3 de Maio de 2019 foi outorgada escritura pública de justificação notarial, “através da qual a ré justificou a aquisição, por alegada doação verbal de BB, no ano de 1986”, de determinados prédios (cinco), tendo sido declarado nessa escritura que, “desde essa data, entrou na posse dos referidos prédios, os urbanos que sempre foram utilizados como habitação e os rústicos que sempre cultivou e explorou agricolamente, fazendo a sua manutenção, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o seu início, sem interrupção e ostensivamente, com conhecimento de toda a gente, com ânimo de quem exerce um direito próprio e na firme convicção de não lesar direitos alheios”. Sucede, porém, que as declarações prestadas pela R. não têm correspondência com a verdade, tendo em conta, desde logo, que “BB faleceu a .../.../1940 e, como tal, não poderia ter realizado qualquer doação verbal à R. no ano de 1986, por ter falecido cerca de 46 anos antes”. Para além disso, após o óbito de CC, filho de BB, foi reconhecido, no âmbito do processo que correu termos sob o número 71/2002, que o primeiro “faleceu no estado de solteiro e sem parentes sucessíveis e, consequentemente, foi declarada vaga a totalidade da sua herança a favor do Estado”, “não tendo os imóveis descritos sido indicados em tal ação como constituindo parte de tal herança por desconhecimento”. Por isso “a R. nunca teve a posse dos prédios mencionados, nunca habitou no prédio urbano, nem os cuidou, cultivou ou explorou os prédios rústicos”. E, em consequência, não adquiriu os prédios em causa por usucapião, em virtude de não ter tido “uma posse pública e pacífica de boa fé”, que lhe permitisse adquiri-los por essa via.
A R. contestou, invocando a existência de erro na forma de processo e a incompetência, em razão do valor da acção, do Juízo Local Cível ..., onde a ação foi instaurada. Alegou, subsequentemente, ter existido um erro na descrição dos factos constantes da escritura pública de justificação notarial, na medida em que, “quem, efetivamente, fez a doação em vida, não foi BB, mas sim o seu filho”. Na verdade, ela “cuidou da família, nomeadamente da mãe no início de 1981, depois da tia – DD – e depois do filho da primeira que residia em Lisboa, portanto, há mais de 20 (vinte) e até à morte deste”, sendo certo que mesmo “depois do perecimento cuidava da casa diariamente e dos animais, bem como ficava lá sempre no verão a residir ou mesmo a mãe desta, à vista de todos no prédio elencado na verba n.º 1 do artigo 1º da PI”. E desde o falecimento de CC assumiu o pagamento do IMI referente aos imóveis, o que fez porque o mesmo desejou doar-lhe os seus bens, em virtude de ser a R. quem dele cuidava, e também porque redigiu um testamento, a 6 de Outubro de 1999, nos termos do qual lhe deixava todos os seus bens. Para além do mais, providenciou pela realização de obras de conservação dos prédios urbanos, e assumiu, desde o ano de 2000, o pagamento dos contratos com as operadoras de água e luz da casa.
Concluiu a contestação, pedindo reconvencionalmente que se reconheça o direito de propriedade de que alega ser titular sobre os cinco imóveis identificados na petição inicial, e, subsidiariamente, para o caso de assim não se entender, que o A. seja condenado a ressarcir-la no montante de € 7.251,76, por ela despendido com o pagamento de despesas de conservação e impostos.
Foi proferido despacho, em que, invocando-se o disposto nos arts 297º/1 e 2 e 299º/1 a 3 do CPC, se fixou o valor da acção em € 55.158,68 e, em consequência, se concluiu que em face do valor da causa o tribunal demandado se mostrava incompetente para o processamento dos autos e competente o Juízo Central Cível, determinando-se a remessa do processo para este tribunal.
A audiência prévia foi dispensada, tendo sido proferido despacho saneador, bem como despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
No despacho saneador, foi julgada improcedente a excepção referente ao erro na forma do processo e julgada inadmissível a formulação de um e outros dos pedidos reconvencionais.
II – Do assim decidido, apelou a R., que concluiu as respectivas alegações, com as seguintes conclusões:
1.ª Somos de crer na nossa modesta e mui humilde opinião, que, no presente caso sub Judicio que o Tribunal ‘a quo’ andou mal. Isto porque,
2.ª As ações que tenham por objeto a impugnação registral e como tal, a declaração de inexistência de um Direito, correm como ações de simples apreciação negativa e não como de condenação, conforme se referiu em sede de alegações e se repristina in totum; Nessa conformidade,
3.ª Verificando-se in casu que a ação proposta pelo Autor foi a de ‘condenação’ e não a de ‘simples apreciação negativa’, conforme arguiu a Recorrente em sede de exceção na contestação, tal importa a nulidade da Petição Inicial por erro na forma de processo, conforme se referiu em sede de alegações e se repristina in totum;
4.ª Forma de processo – simples apreciação negativa - que é pacífico e unanime na mui distinta Jurisprudência Superior e corroborada pela Doutrina para os casos de impugnação registral, conforme se referiu em sede de alegações e se repristina in totum; Por sua vez,
5.ª Nas ações de impugnação registral, nos termos da Lei e da Jurisprudência além der admissível a ‘reconvenção’ por obedecer e preencher os requisitos normativos para tal, também é mister a sua necessidade para efeitos de eficácia jurídica por parte da Recorrente no presente caso sub Judicio, conforme se referiu em sede de alegações e se repristina in totum; Ademais,
6.ª Considerando que o pedido reconvencional foi aceite pelo Juízo Local Cível ..., o qual se declarou incompetente por efeito desse mesmo pedido, ordenando ope iuris a remessa ao Tribunal “a quo”, conforme se referiu em sede de alegações e se repristina in totum;
7.ª Sempre diríamos, com efeito, mutatis mutandis que, in casu, se operou também, salvo e por melhor douta opinião contrária, o trânsito julgado formal por não ter sindicado pelas partes tal pedido reconvencional e os seus efeitos, conforme se referiu em sede de alegações e se repristina in totum; Pelo que,
8.ª Não poderia o Tribunal “a quo” alterar a mutabilidade do pedido, por violação do princípio do dispositivo, da adequação e do transito em julgado (formal), além de, note-se, maxime, consubstanciar também uma decisão surpresa; Por último,
9.ª Não admitindo o Tribunal “a quo” a reconvenção tout court, id est, conforme foi formulado o pedido reconvencional, também, se diria, com o devido respeito e salvo e por melhor douta opinião contrária, por efeito do valor da causa, o Tribunal também deixaria de ter competência, nos termos da Lei; Destarte,
10.ª Não obstante o respeito e mérito que se reconhece ao Tribunal “a quo”, somos de crer na nossa modesta e mui humilde opinião, que, no presente caso sub Judicio que este andou mal;
Assim, o Despacho Saneador ora sindicado nos presentes autos violou, entre outras, as seguintes estatuições legais: - Do Código Civil - Art.s 9.º, 220.º, 334.º e 342.º Do Código do Processo Civil - Art.s 3. º , 10.º , 102.º, 193.º , 266.º n.º 2, 296.º, 583.º e 628.º - Da Constituição da República Portuguesa - Art.s 18.º n.os 1 e 2, 205.º n.º 1 2.ª parte, 219.º - Do Código do Registo Predial - Art.s 1.º e 7.º - Da LOSJ - Art 117.º
O Estado apresentou contra alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
1-O recorrente inconformado com o despacho saneador proferido nos autos, veio do mesmo recorrer.
2- Todavia, o mencionado despacho, com o qual se concorda integralmente, não viola qualquer disposição legal e deverá ser integralmente mantido.
3- Quanto ao alegado erro na forma de processo, a recorrente encontra-se equivocada sobre o que é a forma do processo e a espécie do processo.
4- Nos termos do art. 10.º, n.º1 do Código de Processo Civil, no que concerne às espécies de acções estipula-se que as mesmas podem ser declarativas ou executivas. Podendo, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo as primeiras ser de simples apreciação, de condenação ou constitutivas.
5- A acção que se intentou é, de simples apreciação, não obstante se ter indicado ser de condenação.
6- Por sua vez, no que concerne às formas do processo, de acordo com o art. 546.º do Código de Processo Civil, este pode se comum ou especial.
7- A acção que se intentou não se encontra prevista em nenhuma das formas previstas de processo especial e como tal tem, necessariamente, a forma comum.
8- Ora, nos termos do art. 193.º do Código de Processo Civil “O erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei.”
9- É certo que se mencionou que se pretendia instaurar uma acção declarativa de condenação em processo comum, todavia essa menção diz respeito apenas à espécie de acção e não à forma do processo, inexistindo como tal qualquer nulidade que importe declarar.
10- No que respeita à rejeição da reconvenção, nos termos do art. 266.º o réu pode deduzir pedidos contra o autor, sendo a mesma admissível quando: “a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa; b) Quando o réu se propõe tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida; c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor; d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.”
11- Todavia da análise da reconvenção, constata-se que o pedido formulado pela Ré a propósito da declaração de reconhecimento do direito de propriedade de que alega ser titular sobre os cinco prédios identificados no artigo 1º da petição inicial tem por fundamento os factos alegados na contestação com vista a impugnar (indiretamente) os factos alegados pelo Estado.
12- Assim, de facto verifica-se que os fundamentos da defesa por impugnação e por reconvenção são idênticos, não consubstanciando a reconvenção qualquer pedido autónomo, já que não sendo procedente a acção, o resultado seria já o reconhecimento da propriedade dos prédios pela recorrente, existindo uma inutilidade nesta reconvenção e no que na mesma é peticionado, tendo como tal que se manter a sua rejeição.
13- Já no que respeita ao pedido subsidiário deduzido pela recorrente em sede de reconvenção, - a condenação do Estado a ressarcir 7.251,76€ à recorrente, - poderia ser aceite, atento o dispostos na alínea b) do n.º 2 do já citado artigo 266.º do Código de Processo Civil.
14- Todavia, também analisado o processado se constata, como constatou a Mma. Juiz a quo, que o Estado não peticionou a entrega de nenhum dos imóveis identificados nos autos.
15- Assim sendo, o pedido de compensação de benfeitorias não pode ser admitido, e como tal, também nesta parte, não se podia ter aceite a reconvenção deduzida.
16- No que concerne à existência de um caso julgado formal devido à alteração do valor da acção face à dedução da reconvenção, também não assiste razão à recorrente.
17- Nos termos do art. 299.º do Código de Processo Civil na determinação do valor da causa deve atender-se ao momento em que a acção é proposta, excepto quando haja reconvenção ou intervenção principal.
18- Ora, tendo havido reconvenção, teve que existir nos termos daquele artigo alteração do valor da causa, o que determinou até o envio dos autos ao Juízo Central Cível ....
19- Essa fixação do valor da acção e da competência do Tribunal ocorre num momento prévio e não pode confundir-se com o despacho saneador, onde se aprecia já da existência de alguma nulidade se fixam os temas da prova e pode até conhecer-se do mérito da causa.
20- Assim, e tendo o despacho que alterou o valor da causa, apenas decidido sobre aquela alteração, nos termos do artigo já mencionado e da competência, este em nada constitui caso julgado que determine que a reconvenção, tenha que ser aceite.
21- Afirma ainda o recorrente que rejeitada a reconvenção, deveria ser alterado o valor da acção e os autos deveriam novamente ser remetidos ao Tribunal Local Cível ....
22- Mais uma vez, também aqui não assiste razão ao recorrente, pois o valor e a competência encontra-se já fixada, vide a este respeito o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.10.2021, relatado pela Sra Desembargadora Maria João Areias, disponível em www.dgsi.pt com o qual concordamentos inteiramente “I) Mesmo no caso de dedução de um pedido genérico, o autor está obrigado a indicar o valor da acção. II) Apesar da concordância ou da anuência de uma das partes ao valor indicado pela outra, o tribunal deve fixar o valor da acção pela aplicação dos critérios legais enunciados para o efeito. III) Embora deva ocorrer normalmente no despacho saneador, nada obsta a que a fixação do valor da acção ocorra anteriormente a tal despacho. IV) A redução oficiosa do valor da acção não determina a sua remessa para o juízo local cível ou para o juízo de competência genérica da acção que tenha sido proposta num juízo central cível por ser este o competente face ao valor indicado pelo autor.”
23- Nestes termos, considero que o recurso a que se responde deverá ser integralmente improcedente, devendo o despacho saneador proferido nos autos ser integralmente mantido.
Tendo o presente recurso subido autonomamente, nos termos da al b) do nº 1 do art 644º CPC, os autos prosseguiram os respetivos termos, apenas para conhecimento dos pedidos formulados pelo A., tendo, entretanto, sido já neles proferida sentença, que julgou a acção procedente, declarando que a R. não adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade sobre os prédios a que se reporta a escritura de justificação notarial impugnada.
III - Não se mostrando transitada a sentença em causa, cumpre conhecer do recurso interposto, fazendo-o em função do circunstancialismo fáctico processual constante do acima relatado.
IV - As questões a apreciar no mesmo, vistas as conclusões das alegações e no respectivo confronto com a decisão, são as seguintes:
-o erro na forma de processo;
-a admissibilidade do pedido reconvencional principal;
-mantendo-se o entendimento da inadmissibilidade desse pedido, se a admissibilidade do mesmo se imporá por efeito do despacho que julgou incompetente o Juízo Local Cível ...;
- assim não se entendendo, se a decidida inadmissibilidade desse pedido implica a incompetência em razão de valor do Juízo Central Cível.
Insiste a apelante com a nulidade resultante do erro na forma de processo, que faz decorrer da circunstância do A. ter intitulado a presente acção, de “acção declarativa de condenação”, quando se trata, indiscutivelmente, de uma acção declarativa de simples apreciação negativa, «por visar a declaração da inexistência do direito arrogado na escritura».
Diz-se que a apelante insiste com este entendimento na medida em que, na 1ª instância, foi suficientemente posta de lado a existência de tal erro, chamando-se desde logo a atenção para o facto do A. ter instaurado, como refere, «acção declarativa, em processo comum, sob a forma de processo ordinário», e que «a indicação de espécie de acção que se encontre em causa é insusceptível de afectar a forma de processo».
Com efeito, a apelante está a confundir a forma de processo – que hoje, e de acordo com o art 546º/1 do CPC, é única no processo declarativo, quer dizer, implicante da mesma tramitação em todas as acções declarativas, não obstante o legislador se mostrar sensível ao valor das acções, permitindo menor solenidade naquelas cujo valor não exceda metade da alçada da Relação, como resulta, maximamente, do disposto no art 597º CPC - com as espécies da acção, consoante o seu fim, a que se reporta o disposto no art 10º, que as classifica, num primeiro plano, em declarativas e executivas, e que estatui para aquelas, três diferentes finalidades, simples apreciação, condenação e constitutivas.
E isto significa, que, hoje, o erro total na forma de processo, a que se refere a al b) do art 577º quando aí se reporta à nulidade de todo o processo enquanto excepção dilatória, pressupõe que o autor utilize processo especial em vez do comum ou vice versa, e que, mesmo assim, o mesmo não se mostre suprível nos termos do nº 1 do art 193º, anulando-se apenas os actos que não possam ser aproveitados – seguramente, aqueles de que resulte uma diminuição de garantias do réu, nos termos do nº 2 dessa norma – e praticando-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, tanto quanto possível, da forma estabelecida pela lei.
O principio da adequação formal, bem presente na norma do art 547º - cuja epigrafe é, precisamente, “Adequação formal”, e que constitui com o preceito precedente, as “Disposições gerais” referentes às formas de processo - contém óbvias potencialidades para permitir a correcção da espécie de acção quando esta seja indicada erradamente – como sucedeu nos autos – pois demonstra que o que importa é o fim que o processo visa atingir.
Mas, que essa correcção em nada repugna ao legislador, bem pelo contrário, resulta com abundância do disposto no nº 3 do art 193º, uma vez que, se, aí se permite que o erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte seja oficiosamente corrigido pelo juiz determinando que se sigam os termos processuais adequados, por maioria de razão se há-de permitir que se corrija a designação errada da espécie do processo.
Mais séria é a questão da admissibilidade do pedido reconvencional.
Lembre-se que são dois os pedidos reconvencionais deduzidos pela R. na contestação, ainda que em termos subsidiários: o reconhecimento do direito de propriedade de que a R. alega ser titular sobre os cinco imóveis identificados na petição inicial e, subsidiariamente, para o caso de assim não se entender, a condenação do A, a ressarcir a R./Reconvinte no montante de € 7.251,76, por ela despendido com o pagamento de despesas de conservação e impostos.
No que toca ao pedido (reconvencional) principal, a 1ª instância[1] entendeu que não obstante não se levantarem dúvidas relativamente aos requisitos processuais e substantivos de que depende genericamente a admissibilidade da reconvenção, pois que ao pedido da R. corresponde a mesma forma de processo do que ao pedido do A. – nº 3 do art 266º - e o mesmo emerge dos factos jurídicos que servem de fundamento à defesa que deduziu – segunda parte, da al a) do nº 1 do art 266º -, «no caso em apreço afigura-se inequívoco que a declaração de que a Ré é a proprietária dos cinco prédios que se encontram identificados na escritura de justificação notarial impugnada pelo Autor não consubstancia qualquer pedido reconvencional autónomo, mas antes o efeito jurídico resultante da eventual improcedência dos pedidos formulados pelo Autor», E, citando o referido Ac R P (nota 1), faz notar que «a improcedência da ação de simples apreciação negativa envolve o reconhecimento do direito que o réu se arroga, o qual fica definitivamente estabelecido em face do autor, pelo que tem de se considerar como desadequado o pedido reconvencional da declaração de existência do direito formulado em tal tipo de ações, por prejudicialidade do mesmo, nos termos do art. 608º/2». Sublinhando esse entendimento com a seguinte citação do Ac STJ de 30/01/03 (nota 1): «(…) a improcedência de ação de simples apreciação negativa envolve - sem margem para tergiversação - o reconhecimento da existência do direito que o réu se arroga, que fica definitivamente estabelecida em face, ou vis à vis, da parte contrária. Por isso mesmo prejudica a proposição pelo mesmo de ulterioração de simples apreciação positiva (…), logo por aí se revela redundante a dedução de reconvenção, a que não pode atribuir-se mais valia alguma em relação à simples procedência da defesa deduzida em ação de simples apreciação negativa, não passando, nesse caso, de puro reverso da pretensão do autor, que se limita a pedir a declaração da inexistência de direito que o réu invoca. Cometida a este, em tal ação, a prova desse direito, dificilmente se descortina o que é que em ação de simples apreciação negativa a dedução da reconvenção possa efetivamente acrescentar à simples defesa».
Assim, tendo concluído, que, «no caso das ações de impugnação judicial de escritura de justificação notarial, a simples improcedência da ação é suficiente para que o réu veja reconhecido, perante o autor, o seu direito de propriedade sobre os imóveis que constam da escritura, sendo, pois, redundante e inútil, pelas razões que acima se explicaram, a dedução de pedido reconvencional de reconhecimento daquele direito e de condenação do autor a ver esse direito reconhecido».
È este entendimento que a aqui apelante pretende ver revertido, sendo que, porque nenhuma alusão faz à inadmissibilidade do pedido reconvencional subisdiário, a questão da não admissibilidade do mesmo não integra o objecto do presente recurso.
Não pode deixar se de concordar com a apelante no que respeita à admissibilidade do pedido reconvencional principal, valendo-nos do entendimento, muito claramente contrário ao acima mencionado, de Teixeira de Sousa e de Remédio Marques.
Refere Teixeira de Sousa [2], a respeito das consequências do non liquet nas acções de apreciação negativa (os preceitos legais que invoca são do anterior CPC, tendo todos correspondência no actual CPC):
«Se o autor propõe uma acção de apreciação negativa (art 4º/2 al a)), cabe-lhe a prova da inexistência ou do facto impeditivo, modificativo ou extintivo da situação jurídica (que é causa de pedir nessa acção) e somente perante essa prova se devolve à contraparte a prova do facto constitutivo dessa situação (art 343º/2 e 343º/1 CC); (...) ao réu só cabe o ónus da prova dos factos constitutivos da situação jurídica negada pelo autor se essa parte pretender que, sendo a acção julgada improcedente, se reconheça a prova da existência da situação jurídica (e não apenas a falta de prova da inexistência dessa situação), devendo para tal formular o correspondente pedido reconvencional (art 274º/1).
Se o autor da acção de apreciação negativa não prova o facto impeditivo, modificativo ou extintivo que alega como causa de pedir e o réu não prova o facto constitutivo, a acção é julgada improcedente (art 516º). Mas nesse caso só fica decidida a falta de prova da inexistência da situação jurídica (e não a prova da inexistência dessa situação), pelo que o autor pode propor uma outra acção com fundamento num outro facto impeditivo, modificativo ou extintivo da situação negada) (…).
Se, pelo contrário, o autor de acção de apreciação negativa não consegue provar o facto impeditivo, modificativo ou extintivo que invoca como causa de pedir e o réu prova o facto constitutivo da situação jurídica alegada na reconvenção, a acção é julgada improcedente (art 16º) e fica estabelecida a existência da situação negada pelo autor, não podendo essa parte propor nova acção com fundamento em outro facto impeditivo, modificativo ou extintivo (…)».
Noutro passo da mesma obra [3], frisa, agora a respeito da distribuição do ónus da prova nas acções de simples apreciação negativa, que «a improcedência do pedido do autor não implica o reconhecimento de que o direito invocado pelo autor ( e agora negado) pertence ao réu (…). O réu de uma acção de mera apreciação negativa pode assumir uma de duas condutas: ou limitar-se a impugnar os factos invocados pelo autor, caso em que a improcedência da acção apenas define que o autor não provou a inexistência desse direito; ou cumular com essa impugnação a alegação dos factos constitutivos do direito que se arroga, hipótese em que o tribunal, se considerar procedente esta sua alegação, o julga como titular desse direito».
Confluentemente, entende Remédio Marques [4], que, «ao autor cabe a prova da inexistência do facto impeditivo, modificativo ou extintivo da situação jurídica, devolvendo-se ao réu a prova do facto constitutivo dessa situação, na medida em que vigora nessas acções , tal como nas restantes, o ónus da alegação da causa de pedir. Assim, se o réu quiser afirmar a existência da situação jurídica (que o autor pretende ver negada) e não somente a falta de prova da inexistência dessa situação, deve formular um pedido reconvencional (art 274º/1 CPC); se esse pedido reconvencional for julgado procedente, tendo o réu logrado provado o facto constitutivo da situação alegada na reconvenção, a acção de simples apreciação negativa é julgada improcedente, mas fica estabelecida a existência da situação negada pelo autor, achando-se este impossibilitado de propor uma nova acção com fundamento em outro facto impeditivo, modificativo ou extintivo. Se, pelo contrário, o autor não conseguir provar o facto impeditivo, modificativo ou extintivo que alega como causa de pedir e o réu também não conseguir provar o facto constitutivo da situação por ele alardeada, a acção de simples apreciação negativa deve ser julgada improcedente, à luz do critério previsto no art 516º do CPC ( consequências da dúvida sobre a realidade de um facto ou sobre a repartição do ónus da prova): neste caso, o autor não fica impedido de demandar novamente o réu com fundamento em outro facto impeditivo, modificativo ou extintivo da situação negada».
Acrescentando, mais adiante, e com plena utilidade para o que aqui está em causa decidir [5]: «A improcedência destas acções só faz caso julgado material, tornando imodificável o decidido, se e quando o réu deduzir reconvenção e nela pedir que se reconheça a existência (e a validade e a eficácia ) da situação que ao autor pretende ver negada através da decisão judicial».
Não pode, pois, ser negada ao réu, numa acção de mera apreciação negativa - posto se reúnam, como é o caso, os acima aludidos pressupostos processuais e substantivos para a admissibilidade da reconvenção à luz do disposto no art 266º - a possibilidade de obter o caso julgado material de uma eventual decisão da improcedência da acção – ainda possível na presente acção, não obstante a já decidida procedência da mesma, posto que a decisão em causa ainda não transitou em julgado - através da dedução de pedido reconvencional.
Faça-se notar que Teixeira de Sousa, no Blog do IPCC, reforçou o entendimento acima exposto, em comentário precisamente ao acima referido Ac R P 14/5/2020, onde, à cabeça, põe em causa a afirmação constante desse acórdão, de que «nas acções de simples apreciação ou declaração negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (artigo 343.º, n.º 1 do CC)», argumentado que, se assim fosse, «estaria "descoberto" o caminho para permitir que qualquer autor pudesse transformar uma acção de apreciação positiva em acção de apreciação negativa e pudesse transferir o ónus da prova de si próprio para o réu» (…): «em vez de pedir a declaração de que é proprietário e de ficar onerado com a prova do facto constitutivo, bastaria ao autor pedir a declaração de que o réu não é proprietário para ficar dispensado do ónus da prova de que é ele (autor) o proprietário e para onerar o réu com a prova de que é ele (réu) o proprietário», concluindo que, « É claro que não pode ser assim!». Bem como questiona a afirmação de que a improcedência da acção negativa, «implica, sem margem para dúvidas, o reconhecimento da existência do direito que o réu se arroga, que fica definitivamente estabelecida, perante o autor», sublinhando que, «uma decisão de improcedência vale apenas como decisão negativa e, por isso, nunca pode ser transformada numa decisão positiva».
Deve, pois, concluir-se, que a dedução de reconvenção numa acção de impugnação judicial de escritura de justificação notarial não se mostra «redundante e inútil», devendo ser admitida, com o que há que revogar o decidido e ter como admissível o pedido reconvencional em apreço deduzido pela R.
Esta decisão prejudica as duas outras questões atrás evidenciadas como integrando o objecto do recurso.
Sempre se dirá que nenhuma razão assiste à apelante.
A circunstância do tribunal demandado, fazendo operar o disposto no art 299º/2, e, por isso, somando ao valor do pedido formulado pelo autor o valor do pedido (principal – nº 3 do art 297º) formulado pelo réu, vir a concluir não ser competente, em razão do valor, para o conhecimento da acção – e note-se que, tal como o afirma o nº 2 do art 296º, atende-se ao valor da acção para determinar a competência do tribunal - não implica, por um lado, qualquer juízo de valor a respeito da admissibilidade do pedido reconvencional, não se podendo falar de caso julgado formal a esse respeito, como o faz a apelante, como não implica, por outro lado, que, decidida a improcedência da reconvenção, o tribunal que assim decida deixe de ter competência em razão do valor para a prossecução da acção.
Assim se pronunciam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa [6] referindo: «Sempre que o pedido reconvencional determine o aumento do valor da acção (art.º 299º, nº2) passando a exceder o valor de € 50.000,00 pode daí resultar uma modificação da competência do Tribunal inicialmente fixada em função do valor indicado na petição ( art.º 310º, nº1). Aquele efeito processual manter-se-á mesmo que porventura, no despacho saneador, venha a ser declarada a inadmissibilidade de reconvenção por falta de requisitos formais ou substanciais uma vez que as vicissitudes por que passar o pedido reconvencional não determinam a repristinação do valor que a causa tinha aquando da sua dedução ( art 299º/1)».
E no mesmo sentido, se pronuncia igualmente Teixeira de Sousa em anotação ao acórdão do TRL 14/7/2020 [7]: «O que importa resolver é, em termos simples, o seguinte: a alteração do valor da causa que se encontra estabelecida no art. 299.º, n.º 1, CPC depende da mera dedução da reconvenção ou da intervenção principal ou depende da admissibilidade dessa dedução? Noutros termos: basta a dedução da reconvenção ou da intervenção principal para que o valor da causa se altere ou, para que isto suceda, é necessário que a reconvenção ou a intervenção principal seja admissível? Para responder à pergunta formulada, pode estabelecer-se um paralelismo com a propositura de uma acção: a acção, uma vez proposta, tem um determinado valor e não deixa de o ter pela circunstância de a petição inicial ser liminarmente indeferida pela verificação de uma excepção dilatória insanável ou de o réu vir a ser absolvido na instância com base nesta mesma excepção. Seguindo esta orientação, basta que a reconvenção ou a intervenção principal seja deduzida para o que o valor do respectivo pedido seja somado, nas condições estabelecidas no art. 299.º, n.º 2, CPC, ao valor inicial da acção».
Do exposto, há que concluir que a apelação procede parcialmente no que se reporta à admissibilidade do pedido reconvencional principal.
V – Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar parcialmente procedente a apelação, admitindo-se o pedido reconvencional deduzido pela R. no referente ao reconhecimento do direito de propriedade de que alega ser titular sobre os cinco imóveis identificados na petição inicial, mantendo-se, no demais, a decisão recorrida.
Sem custas por o A. estar delas isento.
Coimbra, 21 de Novembro de 2023
(Maria Teresa Albuquerque)
(Henrique Antunes)
(Cristina Neves)
[1] - Valendo-se do decidido no Ac R P 14/5/2020 (Deolinda Varão), que, por sua vez, se terá baseado no Ac STJ 30/1/2003 (Oliveira Barros), ambos acessíveis em www.dgsi.pt, invocando no mesmo sentido, os Ac STJ de 30/01/03, CJ/STJ-03-I-68 e de 24/10/06, www.dgsi.pt, e os Ac da RC de 27/02/07 e 12/06/.07, também em www.dgsi.pt
[2] - «As partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa», p 260
[3] - Pag. 116
[4] - «A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto», 2ªed, 2009, p. 121
[5] - Pag. 122
[6] - «Código de Processo Civil Anotado», Vol. I, 3ªed., pag.130.
[7] - In https://blogippc.blogspot.com/