DECISÃO PROFERIDA EM PROCESSO PENAL
PRESUNÇÃO ILIDÍVEL DE FACTOS PROVADOS
CAPACIDADE SUCESSÓRIA
INDIGNIDADE
PRÁTICA DE CRIME DOLOSO
ARGUIDO JULGADO INIMPUTÁVEL
ABUSO DO DIREITO
Sumário

I – Em face do teor dos artigos 623.º e 624.º do Código de Processo Civil) a factualidade dada como assente quanto aos pressupostos da punição, aos elementos do tipo legal e quanto às formas do crime, num processo penal, por homicídio, em que foi arguido aquele que é agora Réu num processo civil (em que se pede a sua indignidade para suceder à vítima), tem também aqui de se considerar assente, por – quanto a este -  constituir uma presunção inilidível (quanto a terceiros seria ilidível).
II – O artigo 2033.º, n.º 1, do Código Civil estabelece um princípio geral de capacidade sucessória passiva, sendo que um sucessor é um beneficiário que vê ingressar no seu património os bens daquele que morreu.
III – O artigo 2034.º, alínea a), descreve um elenco de situações taxativo pelo que, à face desta norma, não pode ser considerado indigno relativamente a seu pai, aquele que, tendo embora praticado factos que integram o tipo penal de homicídio doloso, qualificado, na pessoa deste último, foi absolvido do crime ao ser julgado inimputável.
IV - Mas se assim é, a Ordem Jurídica, como um todo, tem mecanismos que lhe permitem evitar situações que possam ser tidas ou consideradas pela sociedade como inaceitáveis, repugnantes ou intoleráveis, impedindo – por exemplo – que alguém que tenha sido declarado inimputável e esteja a cumprir uma medida de segurança, mas não tenha qualquer limitação civil (nomeadamente com o regime do maior acompanhado), herdar todo o património da sua própria vítima.
V - É para essas situações extremas, limite, que existe o abuso de direito, aqui configurado como exercício abusivo do direito de exercer a vocação sucessória ou como exercício abusivo do direito de aceitar a herança.
VI – Considerado o Réu penalmente inimputável, em termos penais, na morte do pai, mas sem quaisquer limitações em termos de capacidade civil, deve este ver paralisado, considerado abusivo e tido como ilegítimo, o exercício do direito de aceitar a herança daquele que matou, uma vez que seria considerado chocante, violador da consciência jurídica de qualquer um/a e contrário aos bons costumes, que alguém com capacidade sucessória (nos termos dos artigos 2033.º, 2030º, 2133.º, alínea b) e 2157.º), tenha provocado directamente o funcionamento da condição (morte do pai, de cuius)  de que dependia a sua concretização, ao ser ele a determinar o momento em que se abriu a sucessão (artigo 2031.º e 2032.º) e ao ser ele o único beneficiário do acto ilícito que praticou.

Texto Integral

Decide-se, na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

Relatório
P… e C… intentaram a presente acção contra X…, pedindo que se declare a indignidade sucessória o Réu, face ao seu pai, J…, nos termos do disposto no artigo 2034.º do Código Civil ou, subsidiariamente, ao abrigo do instituto do abuso de direito.
Em síntese, alegam os Autores que:
- são irmãos de J..., falecido em 14 de Novembro de 2020, que foi vítima de homicídio, em que foi simultaneamente vitimada a sua filha (sobrinha dos Autores), S..., homicídio esse que foi perpetrado pelo ora Réu X... (filho de J... e irmão de S...);
- o homicídio em questão deu origem ao processo com o NUIPC 410/20.7GDTVD, que correu termos na 3.ª Secção do Departamento de Investigação e Ação Penal de ----- e que, na sua sequência, o ora Réu X... foi detido no dia 16 de Novembro de 2020, tendo sido sujeito ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido a 17, tendo confessado a sua autoria e ficado sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, vindo no Acórdão do Juízo Central Criminal de Loures – Juiz …, a 18 de Maio de 2022, a ser considerado que:
- X... vitimou fatalmente o seu pai, J... e a sua irmã, S... (que se encontrava grávida, o que também era do seu conhecimento);
- X... actuou com o propósito concretizado de causar a morte do seu pai e da sua irmã, e de representar que esse seria o resultado da conduta por si adoptada;
- X... foi considerado como inimputável quanto à prática dos crimes de homicídio e aborto;
- o referido Acórdão foi objecto de recurso por parte do arguido, circunscrito à decisão quanto ao pedido de indemnização cível deduzido pelos Autores, recurso esse que foi julgado totalmente improcedente pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que manteve inalterada a factualidade dada como assente;
- a decisão de condenação de X... transitou em julgado a 17 de Outubro de 2022;
- o falecido não deixou outros descendentes para além de X..., nem tão-pouco ascendentes, não sendo casado à data do óbito, nem nunca tendo sido casado  com a mãe deste (M...), deixando-o como único descendente;
- o facto de X... ser autor confesso e condenado pelo homicídio, implica a sua indignidade e incapacidade sucessória, a ser decretada ao abrigo do disposto nos artigos 2034.º, alínea a) e 2036.º do Código Civil;
- perante a indignidade sucessória e a ausência de outros descendentes, ascendentes ou cônjuge sobrevivo de J..., são os Autores os presumíveis herdeiros sucessíveis do mesmo, ao abrigo do disposto no artigo 2133.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil.
Citado, o Réu apresentou Contestação, alegando, em síntese, que os factos praticados por si, e dos quais resultou a morte do seu pai e irmã, foram objecto de ampla análise, discussão e julgamento por Tribunal Coletivo e no âmbito do Processo Crime n.º 410/20.7GDTVD, Juiz …, do Juízo Central Criminal de Loures da Comarca de Lisboa Norte, tendo sido proferido Acórdão, transitado em julgado, onde foi absolvido da prática dos crimes de Homicídio Qualificado na pessoa de seu pai:
- declarando-se que o Réu:
- praticou factos qualificados pela Lei Penal como crime de Homicídio na pessoa de seu pai;
- é inimputável em razão de doença psiquiátrica irreversível - Esquizofrenia associada ao consumo de canabinóides - que o impede de avaliar a ilicitude dos seus actos do prisma da realidade;
- decidindo-se não lhe aplicar qualquer pena, declarando-se que existe perigo de prática de novos ilícitos criminais por sua parte, e aplicando-se-lhe uma medida de segurança de duração não inferior a três anos e não superior a vinte e cinco anos, cuja execução não foi suspensa.
Mais entende o Réu, que não há lugar à declaração de indignidade, pois foi absolvido do crime de homicídio doloso contra o autor da sucessão, faltando esse pressuposto legal de aplicação do instituto da indignidade sucessória (a sentença criminal condenatória), o que implica a improcedência da acção.

O Tribunal a quo proferiu Saneador-Sentença, culminando-o com a seguinte Decisão:
“Pelo exposto, decide-se:
a) Declarar a incapacidade sucessória do R. X... na herança aberta por óbito de J....
b) Custas a cargo do R., sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Notifique e registe”.
*
É desta Decisão que o Réu veio apresentar Recurso, juntando Alegações, que culminou com as seguintes Conclusões:
“I - Na presente acção vieram os AA pedir ao Tribunal que se declare a indignidade sucessória do R., face ao seu pai, J..., nos termos do disposto no artigo 2034º do Código Civil ou, subsidiariamente, ao abrigo do instituto do abuso de direito.
II - o Tribunal a quo considerou como provados que:
1. J... faleceu no dia 14 de novembro de 2020, no estado de solteiro e sem ascendentes vivos.
2. Os AA., P… e C…., são irmãos de J....
3. O R. X... é filho de J....
4. Por Acórdão proferido pelo Juízo Central Criminal de Loures, Juiz …, no processo comum (Tribunal Coletivo) nº 410/20.7GDTVD, transitado em julgado em 17/10/2022, foi decidido:
“-Absolver o arguido, X..., da prática dos crimes de Ofensa à Integridade Física Qualificada na forma tentada, p. p. pelos artigos 22º, 23º 143º e 145º nº 1 alínea a) e nº 2, por referência ao artigo 132º, nº 2, alíneas a), e) e j), do Código Penal, praticado contra M...;
- Absolver o arguido, X..., da prática dos crimes de Homicídio Qualificado p. p. respetivamente, pelos artigos 14º nº 1, 26º, 131º e 132º nºs 1 e 2, alínea a), do Código Penal, e 131º, 132º, nºs 1 e 2, al.s c), e) e j), do mesmo diploma, de que vinha acusado;
- Absolver o arguido, X..., pela prática de dois crimes de Ameaça Agravada, p. p. no artigo 153º e 155º nº 1, alínea a) do Código Penal, contra M... e J…, de que vinha acusado;
- Declarar que o arguido, X..., praticou factos qualificados pela Lei Penal como crime de Homicídio p. p. pelo art.º 131º, do Cód. Penal, na pessoa de J...;
- Declarar que o arguido, X..., praticou factos qualificados pela Lei Penal como crime de Homicídio p. p. pelo art.º 131º do Código Penal, na pessoa de S...;
- Declarar que o arguido, X..., praticou factos qualificados pela Lei Penal como crime de Aborto, p. p. no artigo 140º, nº 1, do Código Penal, de que vinha acusado;
- Declarar o arguido, X..., inimputável em razão de doença psiquiátrica irreversível – Esquizofrenia associada ao consumo de canabinóides - que o impede de avaliar a ilicitude dos seus atos do prisma da realidade e, consequentemente, não lhe aplicar qualquer pena;
- Declarar que existe perigo de prática de novos ilícitos criminais por banda do arguido, X..., e, consequentemente, aplicar-lhe medida de segurança de duração não inferior a três (3) anos e não superior a vinte e cinco (25) anos, cuja execução será avaliada nos termos previstos nos artigos 92º a 96º do Código Penal.
- Não suspender a execução da medida de segurança de internamento e tratamento em estabelecimento adequado imposta ao arguido
III –E ainda que:
“- O arguido sabia que, ao desferir facadas na cabeça, costas e tronco de J... e na cabeça e zona torácica de S... provocaria a sua morte, como veio a acontecer.
- E também sabia que com a sua atuação iria causar a morte do feto que sabia que a irmã, S..., trazia em gestação, como veio a acontecer.
- Em suma, a atuação do arguido foi a causa direta e necessária, da morte de J... e de S..., ocorrida no local e verificada pelas 23h30m do dia 13 de Novembro de 2020.
- O arguido agiu com o propósito concretizado de tirar a vida a J... e a S..., fazendo-a abortar, sabedor que tal conduta lhe era vedada por lei.”
IV- A convicção do Tribunal a quo resultou da sua admissão pelo R. e análise da documentação junta aos autos, nomeadamente, assentos de nascimento e de óbito, decisão proferida no processo nº 410/20.7GDTVD e certidão judicial, indicada pelo Réu na sua contestação como doc.4 e pedida para juntar nos autos de recurso para apreciação de V.Exas.
V- O Tribunal a quo, porque a questão a decidir nos autos é de Direito, dispensou a realização de audiência prévia nos termos do disposto no artigo 593º, nº 1 do Código de Processo Civil e nos termos do disposto no artigo 595º n.º 1 alínea b) do Código de Processo Civil emitiu despacho saneador no qual conheceu imediatamente do mérito da causa tomando decisão no sentido:
“com fundamento no abuso de direito (por se encontrarem verificados os pressupostos legais), declarar a incapacidade sucessória de X..., na herança aberta por óbito de J...”.
VI - vem o R. apresentar a sua discordância à sentença proferida, e as quais são as questões a decidir no presente recurso judicial, e designadamente:
I – erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais da causa visando a alteração da matéria de facto dada como provada que fundamenta a decisão de mérito proferida com consequências na alteração da decisão de mérito e de Direito.
II – Quanto à improcedência do pedido dos AA de declaração de incapacidade sucessória do R. X... face ao seu pai, J..., por indignidade nos termos do disposto no artigo 2034º do Código Civil – argumentos de concordância e impossibilidade legal de aplicação aos declarados inimputáveis do regime de incapacidade sucessória por indignidade.
III - Quanto à declaração de incapacidade sucessória do R. X... face ao seu pai, J..., POR ABUSO DE DIREITO – impossibilidade legal de aplicação aos declarados inimputáveis do regime de incapacidade sucessória por abuso de direito.
IV – A lei e o Código Civil Português prevê regime e normas especiais aplicáveis ao inimputável no que respeita a sanções civis por actos e factos que pratiquem pelo que não é possível aplicar aos inimputáveis uma figura residual e conceito indeterminado de abuso de direito na base dos princípios gerais de direito e boa fé.
V- Não sendo legalmente possível aplicar aos declarados inimputáveis o regime da declaração de incapacidade sucessória por indignidade igualmente não é legalmente possível aplicar aos declarados inimputáveis o regime da declaração de incapacidade sucessória por abuso de direito.
VI - Considerando aplicar o instituto do abuso do direito – artigo 334º do Código Civil – não se encontram excedidos, de forma manifesta, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
VII - Encontram-se violados o disposto nos artigos 334º do Código Civil, 488º n.º 1 e 489º n.º 1 do Código Civil, artigo 20º e artigo 91º do Código Penal, e artigo 1º e artigo 29º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
VII - Quanto ao erro na apreciação da prova e fixação dos factos materiais da causa considerou o Réu que o Tribunal a quo descurou o Tribunal a quo de considerar como provada matéria de facto indicada pelo Réu no articulado da sua contestação, matéria de facto essa admitida quer pelos AA quer pelo Réu , inserida em prova pericial – relatório pericial de psiquiatria - e dada como provada no citado acórdão pelo Tribunal a quo conforme prova documental indicada como Doc. n.º 5 da Contestação do Réu e pedido para juntar nos autos de recurso para apreciação de V.Exas e cuja apreciação como matéria de facto , seu teor e conteúdo é essencial e com evidência à tomada de decisão quanto à matéria de direito nos presentes autos e designadamente, antecipando, ao nível da verificação ou não verificação dos pressupostos do instituto do abuso de direito e o qual é o cerne da discussão quanto à matéria de direito aplicável ao caso em concreto e matéria objecto do presente recurso.
VIII - Pelo que o Tribunal a quo devia ter dado como provada, os quais devem ser aditados, matéria de facto indicada pelo Réu no articulado da sua contestação, admitida quer pelos AA quer pelo Réu , inserida em prova pericial – relatório pericial de psiquiatria - e dada como provada no citado acórdão pelo Tribunal a quo conforme prova documental indicada como Doc. n.º 4 e 5 da Contestação do Réu e pedido para juntar nos autos de recurso para apreciação de V.Exas. e designadamente
 - O arguido (ora réu) foi submetido a exame pericial de avaliação psiquiátrica, tendo a perita médica concluído pelo diagnóstico de Psicose Esquizofrénica (CID-10: F 20, OMS, 1992), associada ao consumo de múltiplas substâncias, nomeadamente canabinóides (CID-10: F 19, OMS, 1992), sendo que ambas as situações eram prévias aos factos pelos quais se encontra indiciado. Facto indicado no artigo 36º da Contestação do Réu correspondente ao Facto Provado n.º 46 do Doc. 4 acórdão a fls. 12 e Doc. 5 relatório pericial
 - Fruto da descompensação da sua anomalia psíquica grave, o arguido mantinha alterações do comportamento, acreditando que o pai seria o Diabo e a irmã uma cavaleira das trevas que incorporava a Guerra, e que ambos estariam do lado do Mal, enquanto o arguido estaria do lado do Bem. Fruto de alucinações auditivo-verbais, que lhe davam ordens e/ou que comentavam os acontecimentos, bem como de alucinações cenestésicas – sentiu que lhe tinham extraído o Tupac – o arguido resolveu agir, naquilo que considerava ser o mundo paralelo e para onde conseguiria passar através da dilatação da glândula pineal (outra crença delirante), tendo matado os seres maléficos que incorporavam o pai e a irmã. Facto indicado no artigo 37º da Contestação do Réu correspondente ao Facto Provado n.º 47 do Doc. 4, acórdão a fls. 12 e Doc. 5 relatório pericial.
- O referido complexo patológico de que padece o arguido, em relação aos efeitos que produz sobre o seu intelecto e a sua vontade, foi causal do comportamento que lhe é imputado e produziu, no momento da prática dos factos, um efeito psicológico susceptível de o incapacitar para avaliar a ilicitude do mesmo do prisma da realidade existente e de se determinar de acordo com essa avaliação, já que o conduziu a laborar sobre realidade alucinada (Facto indicado no artigo 38º da Contestação do Réu correspondente ao Facto provado n.º 49 do Doc. 4 acórdão fls. 13 e Doc. 5 relatório pericial.
- As conclusões patentes no Relatório Pericial escalpelizadas em sede de audiência, aludem, entre o mais, a que o arguido laborava numa realidade paralela quando praticou os factos, encontrando-se a sua doença em estado agudo, seguindo-se agravamento da mesma por falta de medicação. (Facto indicado no artigo 39º da Contestação do Réu, Doc. 4 acordão judicial e Relatório Pericial junto com Doc. 5
IX - Atenta a declaração de inimputabilidade do Réu e Inexistindo condenação penal andou bem o Tribunal a quo na decisão de não considerar verificados os pressupostos para que seja declarada a incapacidade sucessória do R., por indignidade, na herança aberta por óbito de J....
X - Pelo que evidente está que apenas naquelas mencionadas situações das alíneas a) a d) do artigo 2034º e em situações de condenação penal, e, portanto, em situações de imputabilidade dos sujeitos, a lei prevê a possibilidade de declaração de incapacidade sucessória do herdeiro por indignidade.
XI- à contrário, sendo o individuo/sujeito declarado inimputável e inexistindo condenação penal em nenhuma situação a declaração de incapacidade sucessória por indignidade lhe é legalmente aplicável concluindo pela impossibilidade legal de aplicação aos declarados inimputáveis do regime de incapacidade sucessória por indignidade.
XII -O declarado inimputável tem regime legal autónomo e específico quer no Direito Penal quer no âmbito do Direito Civil sendo objecto de enquadramento jurídico específico
XIII - “1 - O juízo de inimputabilidade depende da verificação cumulativa de dois requisitos:
a) o elemento biopsicológico, que pressupõe que o agente seja portador de anomalia psíquica no momento da prática do facto;
b) o elemento normativo, que se traduz na exigência de que, por força daquela anomalia psíquica, o agente tenha em tal momento sido incapaz de avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa mesma avaliação vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23.05.18 (disponível em www.dgsi.pt), (…) III - A declaração de inimputabilidade exclui a culpa do agente e, portanto, a possibilidade de lhe ser aplicada uma pena….. donde resultou ter sido aplicada ao arguido medida de segurança. . vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23.05.18 (disponível em www.dgsi.pt),
XIV - O juízo de inimputabilidade traduz, pois, a possibilidade de alguém, em determinadas circunstâncias concretas, em razão da idade e por anomalia psíquica, se encontrar isento de um juízo de censura.
XV - O declarado inimputável não responde criminalmente pelos seus actos encontra-se isento de responsabilidade penal e isento de pena.
XVI - E o declarado inimputável, isento de pena porquanto isento de juízo de censura em momento algum a lei permite seja declarado indigno – artigo 2034º Código Civil. – conforme acima em referência.
XVII - Constituem, pois, pressupostos do juízo de inimputabilidade a capacidade do agente (ou sua incapacidade), de, em concreto em relação a um certo facto, num certo momento da prática do acto, avaliar a ilicitude do mesmo e de se determinar de acordo com essa avaliação
XVIII - No caso vertente resultou provada a doença da qual o Réu padece que colocou o Réu numa situação de incapacidade para avaliar os actos que praticou e não teve capacidade para conformar a sua conduta de acordo com essa avaliação apresentando um comportamento psiquicamente desvirtuado e distinto do comportamento do homem médio e comportamento padrão.
XIX - Situação concreta que, não obstante o Réu ter praticado factos qualificados pela lei penal como ilícitos típicos e que configuram um crime de homicídio, de facto ou de Direito não lhe poderá ser aplicada qualquer pena na base da sua declaração de inimputabilidade em razão de anomalia psíquica.
XX - “No caso resultou provado que o Réu padece de doença de Esquizofrenia que o impede amiúde de percepcionar a realidade tal como ela é, provocando-lhe alucinações sobre as quais labora. Mais ficou demonstrado que, à data e no momento da prática dos factos, o arguido laborava sobre um estado de coisas que não correspondia à realidade, alucinando que o pai e a irmã corporizavam o mal, lhe queriam fazer mal e que tinha de deles defender-se. Resultou igualmente que foi nesse quadro que o arguido se determinou a praticar os factos e os consumou.”
XXI - Resulta pois que a circunstância da inimputabilidade do Réu não pode ser, em momento algum, seja na aferição da sua responsabilidade penal seja na aferição da sua responsabilidade ou sanção civil, afastada porquanto lhe é intrínseca ao seu ser biológico e psicológico e conceito normativo do Direito.
XXII - O Réu, doente mental, não tinha como agir de outra forma, não era detentor nem do conhecimento nem da sua vontade de actuação. Donde resultou não ser possível ser sujeito a censura.
XXIII - A este propósito, releva o entendimento propugnado no Ac. da Relação de Coimbra, de 04/02/2009 (processo n.º 618/05.5PBCTB.C1, disponível no site www.dgsi.pt), …..o comportamento humano só é jurídico-penalmente relevante se contrário ao Direito e pessoalmente censurável ao agente, censura só admissível quando o agente se encontra em condições para se comportar de outro modo, isto é, de acordo com as exigências do ordenamento jurídico.
XIV - No âmbito do Direito Civil o Código Civil Português exige no seu artigo 2034º, a um requisito de condenação penal excluindo o sujeito declarado inimputável porquanto isento de culpa e sem responsabilidade penal.
XV - E como vimos acima, inexistindo responsabilização penal e sanção penal, o caso concreto não enquadra em nenhuma das alíneas taxativas do artigo 2036º do Código Civil não sendo possível a declaração de incapacidade sucessória do Réu por indignidade do Réu. Concluímos, pois, que o instituto da indignidade, na sua exigência pela condenação penal, é exclusivamente aplicável a imputáveis.
XVI - Já no âmbito da Responsabilidade Civil por factos ilícitos, a regra geral é a do artigo 483º do Código Civil - “1. aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”;
XVII - Estabelecendo o seu n.º 2 que “Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.”
XVIII - Dispondo o artigo 488º n.º 1 “Não responde pelas consequências do facto danoso quem, no momento em que o facto ocorreu, estava, por qualquer causa, incapacitado de entender ou querer, …como vimos é o caso do Réu.
XIX - Pelo que dispõe o Código Civil Português um regime especial de responsabilidade civil aos inimputáveis e designadamente no seu artigo 489º n.º 1. “se o acto causador dos danos tiver sido praticado por pessoa não imputável, pode esta, por motivo de equidade, ser condenada a repará-los, total ou parcialmente… seguindo o regime dos dispostos nos artigos 489º a 498º do Código Civil.
XXX - O Código Civil Português prevê normas e princípios gerais de aplicação aos indivíduos socialmente considerados saudáveis e ditos “normais” e, portanto, imputáveis e apresenta regime especial e positivados de aplicação aos inimputáveis, no caso por anomalia psíquicas e ditos “anormais” e fora do padrão de sociedade vigente.
XXXI - E a especialidade da norma e regime resulta da especialidade das circunstâncias em concreto do indivíduo, que nele são intrínsecas e que dele não se podem dissociar, seja por que qualquer teoria jurídica porquanto faz parte do conceito e da natureza do indivíduo, e das circunstâncias da prática do facto por esse mesmo indivíduo.
XXXII - A regra geral é pois a da Imputabilidade sendo que esta se traduz naquele conjunto de qualidades pessoais que são necessárias para ser possível a censura ao agente por ele não ter agido de outra forma. (Eduardo Correia, Direito Criminal I, pág. 331)
XXXIII - A imputabilidade é a possibilidade de se atribuir a uma pessoa a prática de um ato ilícito, tipificado como crime, e de a responsabilizar penalmente pela sua prática e pressupõe que o agente tenha capacidade para avaliar o mal que pratica e se determinar de acordo com essa avaliação, em relação à qual é possível censurar a prática de um acto ilícito típico, e puni-la por essa prática, por meio da aplicação de uma pena; a pessoa a quem é possível atribuir uma culpa ou formular um juízo de culpabilidade.
XXXIX- Dito por outras palavras, é necessário que o agente disponha do discernimento suficiente para representar a situação, consciencializar a ilicitude da mesma e agir de acordo com essa avaliação. Ou seja, “actuar voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta é proibida por Lei”.
XXXV - Já no caso dos autos ficou provado que o Réu actuou condicionado pela perturbação psiquiátrica que o afectava no momento da pratica dos factos, situação em que atuou aquando da prática dos factos acima descritos e que lhe limitou fortemente a capacidade de discernimento e de determinação, aquando da prática dos factos acima descritos” e que “não tinha capacidade para avaliar a ilicitude dos actos que praticou pelo que não dispondo de conhecimento nem vontade ou autodeterminação não é possível sujeitá-lo a censura jurídica.
XXXVI- Porquanto o juízo de reprovação ou de censura ético-jurídica supõe a liberdade de actuação e auto determinação do agente.
XXXVII - Tendo ficado provado que o Réu dada a sua anomalia psíquica não agiu de forma livre, não se autodeterminou pois não conseguiu dominar a sua vontade, e cujo efeito normativo é a incapacidade do agente para avaliar a ilicitude do facto ou para se determinar de acordo com essa avaliação,
XXXVIII - E a mesma motivação e argumentação é aplicável à actuação do indivíduo no âmbito do instituto do abuso do direito previsto no artigo 334º do Código Civil.
XXXIX - O regime prevê a sua aplicação em situações de exercício e tutela de direitos legítimos, mas que simultaneamente configuram actos contrários à boa fé, aos bons costumes, ou ao fim económico e social. E exige que esse esse abuso seja nítido, que seja manifesto.
XL -Questiona-se pois: como fazer a apreciação ás normas de conduta pela boa fé e bons costumes a um indivíduo que intrinsecamente é diferente da normalidade do padrão ético dos “normais” elementos da sociedade em que vive?
XLI- Justificando o Tribunal a quo que: “ Para que haja abuso de direito, na concepção objectiva, não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo, basta que tenha a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico, basta que objectivamente esses limites tenham sido excedidos de forma evidente.”
XLII - Sucede, porém que estamos em âmbitos completamente distintos.
XLIII - No caso dos autos temos uma análise prévia ao comportamento do indivíduo que condicionou todo o âmbito da sua responsabilização penal e civil e que lhe atribuíram regimes específicos próprios como acima elencados, seja no âmbito do direito penal seja no âmbito do direito civil um tanto ao quanto semelhante aos regimes positivos no que respeita aos menores, aos anteriormente denominados incapazes ou interditos, com regimes legais específicos e normas excepcionais.
XLIV - Donde resulta inquinada toda a apreciação de aplicação do instituto do abuso de direito previsto no disposto no artigo 334º do Código Civil ao caso concreto enquanto conceito indeterminado e determinável em concreto e na base da análise aos princípios gerais do direito e ás normas de conduta segundo a boa fé.
XLV - Revelando a sua aplicação ao caso concreto uma artificialidade porquanto não é possível dizer-se que aquele sujeito em especial, que por si já se encontra afastado do padrão da sociedade por natureza - ao contrário da regra da sociedade e dos sujeitos mentalmente saudáveis , tem uma situação excepcional de anomalia psíquica – irreversível - que o impediram de seguir os normais padrões normativos em sociedade , deve seguir os padrões de boa fé e costumes vigentes na sociedade no exercício dos seus direitos subjectivos.
XLVI - O Tribunal a quo vem em referência indicar como suporte jurisprudencial à sua decisão em declarar a incapacidade sucessória do Réu o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Janeiro de 2010 – Processo n.º 104/07.9TBAMR.S1, em www.dgsi.pt - recurso à jurisprudência, ao contrário do explanado, vem em auxilio à tese do Réu porquanto resulta que, no caso em concreto e naquele processo em concreto o pai violador é imputável, donde significa que agiu com consciência do acto ilícito que estava a praticar, agiu como quis, de forma voluntária, pelo que foi condenado na prática do crime contra a sua filha cuja herança queria receber.
XLVII - E este comportamento consciente e voluntário, sujeito a censura ético penal, implica a sua responsabilização penal , pelo que assim foi condenado em termos penais, pela prática, de um crime típico, ilícito e culposos do crime de violação, na pessoa da sua filha , bem como o querer receber a herança da filha constituiria um manifesto abuso de direito nos termos previstos no artigo 334º do Código Civil.
XLVIII - A regra geral de aplicação do instituto do abuso do direito aos comportamentos previamente em análise a nível da responsabilidade penal é pois a da imputabilidade resultando do facto de, sendo o homem um ser livre e racional por natureza, ele é normalmente imputável e com capacidade de avaliar, no momento da prática do facto, a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação.
XLIX- Ao contrário dos autos nos quais o Réu, diga-se mais uma vez reforçando
- foi declarado inimputável em razão de DOENÇA PSIQUIÁTRICA IRREVERSÍVEL – Esquizofrenia associada ao consumo de canabinóides - que o impede de avaliar, no momento da prática do facto, a ilicitude dos seus actos do prisma da realidade e de se determinar de acordo com essa avaliação.
- derivado a esse juízo de inimputabilidade foi afastada a culpabilidade do Réu na prática dos factos ilícitos porquanto isento de censura jurídico penal; não tendo existido crime e portanto tendo o Réu sido absolvido;
- motivo pela qual não foi aplicado ao Réu qualquer pena;
- A propósito da doença do arguido e da sua incapacidade para avaliar a ilicitude dos seus actos, os doentes esquizofrénicos laboram sobre uma realidade que não existe e que alucinam. ( acórdão fls. 34)
- o Réu laborava sobre um estado de coisas que não correspondiam à realidade, alucinando que o pai e a irmã corporizavam o mal, lhe queriam fazer mal e que tinha de deles defender-se e portanto numa realidade inexistente, e que o Réu não tinha capacidade para avaliar a ilicitude dos seus actos nem de se determinar de acordo com essa avaliação no quadro da realidade. E foi neste quadro que o arguido se determinou a praticar os factos e os consumou.
- o Réu, no momento da prática dos factos, não tinha condições, por motivos de doença psiquiátrica grave - a esquizofrenia- de discriminar a natureza ilícita da sua acção, não tinha consciência plena do que estava a fazer e não tinha nenhum domínio da sua vontade não se encontrando sujeita a um qualquer juízo de censura.
 L - Não sendo pois possível aferir qualquer juízo de censura sobre a actuação do réu não ´será igualmente possível aferir da boa ou má fé do Réu, nem do abuso manifesto quanto aos bons costumes e fim económico, não sendo possível aplicar o instituto do abuso do direito aos declarados inimputáveis.
LI- E no caso em concreto toda a liberdade de actuação do agente se encontra toldada pela doença e anomalia psíquica da qual o agente também ele é vitima , que o condicionou na sua actuação e que levou o agente a que, nas circunstancias da sua actuação típica e ilícita , não tinha capacidade , no momento da prática do facto ilícito, de avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de harmonia com essa avaliação, nem podia ou devia ter actuado de forma diferente.
LII - Porquanto a um indivíduo doente mental crónico, portador de anomalia psíquica, que levam à sua incapacidade de avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa mesma avaliação – no momento da prática do facto – que não tem qualquer domínio da vontade e capacidade para determinar o seu comportamento e sem qualquer capacidade de avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de harmonia com essa avaliação , não sendo esta a regra geral, é lhe aplicável um regime especial, seja no âmbito do Direito Penal seja no âmbito do Direito Civil.
LIII - Sendo certo que o Réu sempre poderá vir a ser sujeito a um Regime de Maior Acompanhado.
LIV - Este o ditame do principio da dignidade humana no dispositivo artigo 1º da Constituição da República Portuguesa onde se incluem os direitos dos doentes, doente mental crónico, portadores de anomalias psíquicas, protegidos nas suas especificidades e necessidades, nos Princípios fundamentais dos Estados de Direito Democráticos e nos principais instrumentos internacionais sobre direitos fundamentais de que o nosso país é parte estabelecendo a inviolabilidade da dignidade do ser humano e impor o dever de respeito e a obrigação de protecção aos mais fragilizados e doentes.
LV - Porque os doentes mentais são dos elementos mais frágeis das sociedades, marginalizados, vítimas de preconceito social, e nem sempre conseguem actuar dentro das normas da ética e das normas da sociedade. Não porque não queiram. Mas sim porque não têm controle de vontade sobre os seus comportamentos pela doença mental da qual padecem e que lhes é intrínseca.
LVI - Não pode ser igualmente tratado o inimputável e o imputável , este no sentido de indivíduo dotado de razão e capacidade, vontade e liberdade de realizar escolhas, da prática do facto , com faculdades psíquicas e físicas mínimas que o motivam a realizar esse acto , capaz de perceber a relação de causa e efeito de suas ações e orientá-las para o bem, com capacidade de discernimento e com compreensão do valor das próprias acções e a quem pode e deve ser exigido que actue dentro das normas Standard padrão da sociedade, na base da boa fé objectiva, no respeito pelos bons costumes, num dever de agir com base em valores éticos e morais da sociedade e Estado de Direito.
LVII - Um declarado inimputável, no caso do Réu, não está na posse de tais faculdades, há uma falha na consciência e na sua ligação à realidade, que tem uma percepção distorcida da realidade e de avaliar as suas consequências e repercussões, sem auto consciência ,sendo, por essa razão, incapaz de avaliar o ilícito e dirigir a sua actuação em função dessa avaliação, e adequar o seu comportamento através da compreensão das consequências do mesmo, que, por sua vez, evitaria o seu cometimento.
LVIII- Donde resulta que o indivíduo no seu estado de consciência “normal”, “lúcido”, não reagiria da mesma forma.
LIX - A culpa pode e deve ser atribuída à doença e não ao indivíduo em si não esquecendo que, conforme acima, por motivo da doença o Réu acreditava que o pai seria o Diabo , que estaria do lado do Mal, alucinações auditivo-verbais, que lhe davam ordens e que matou os seres maléficos que incorporavam o pai .
LX - Ou seja, lamentavelmente, e não é bonito de se dizer, mas o falecido J... foi progenitor de um louco, o qual aliás não pediu para nascer, e foi vítima dele.
LXI - Motivo pelo qual numa sociedade de cariz judaico cristã e de valores éticos pelo maior bem, pela compreensão e solidariedade fraterna e na circunstância concreta dos autos de inimputabilidade por anomalia psíquica e grave doença faz nos questionar quão grande seria o amor de um pai vitima de filho gravemente doente no sentido do perdão o qual não seria exclusivo nos autos tendo em conta, conforme comunicação social, casos concretos de mães que perdoam aos assassinos dos filhos .
LXII - Âmbito no qual o Código Penal e a Lei de Saúde Mental ( aprovada pela Lei n.º 35/2023, de 21 de julho ) e vários pactos internacionais e europeus da qual o Estado Português faz parte surgem como principais respostas sociais utilizadas pelo ordenamento jurídico para fazer face à perigosidade que o doente mental pode representar, e, com eles, podemos assim individualizar as seguintes linhas de orientação:
a) atribuição ao Estado da responsabilidade pelo desenvolvimento de políticas na área da saúde mental e assistencial com a devida participação da sociedade e da família com vista ao tratamento da doença e linhas terapêuticas
b) proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e proibição de qualquer forma e tratamento discriminatório de acordo com os princípios gerais de direito e da Constituição e designadamente o princípio da igualdade, fraternidade e da dignidade da pessoa humana.
LXIII - Assim como o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem vem indicando as características básicas que definem uma sociedade democrática nas suas noções de tolerância para com os doentes mentais nos quais a loucura assume vontade própria superando a vontade humana e sempre no respeito pela dignidade humana destes doentes.
LXIV - Naturalmente que não será possível ignorar que o Réu praticou factos que caracterizam um crime de homicídio contra o seu falecido pai. Atente-se, contudo, que tais factos foram praticados em circunstâncias de inimputabilidade, circunstâncias de excepcionalidade, e que devem ser tomadas em devida nota ás sanções, no caso civis, aplicáveis.
LXV - A natureza, a razão de ser e as motivações da não aplicação do instituto da indignidade aos declarados inimputáveis, sob pena de se tratar a excepção pelo princípio geral, são exactamente as mesmas à não aplicação do instituto do abuso de direito ao caso concreto.
LXVI - Pois ao inimputável são aplicadas normas e regimes específicos e positivados no Código Civil pela sua própria natureza de especialidade não sendo possível a aplicação de um instituto residual e de conceito indeterminado na base de uma “concepção objectiva do abuso de direito”
LXVII - O abuso do direito implica sempre uma ponderação do caso concreto, evitando-se legalismos e formalismos e, não obstante a sua concepção objectiva não pode afastar se das circunstâncias concretas que caracterizam as partes, no caso, da isenção de censura ao comportamento do indivíduo doente mental como o do caso dos autos.
LXVIII - Se o juízo de culpabilidade com base no poder de agir de outro modo é indemonstrável não é possível aplicar sanção civil baseada na violação dos ditames da boa fé.
LXIX - Não sendo pois possível a aplicação do instituto do abuso de direito aos declarados inimputáveis o Réu X... mantém pois plena capacidade sucessória na herança de seu pai J... sendo seu único e universal herdeiro.
LXX - E não se concluindo como acima sempre se dirá que, pelos motivos da inimputabilidade e da doença crónica do Réu, situação que não é atinente à moralidade e à boa fé, mas sim de natureza e intrínseca ao indivíduo não é possível concluir que o Réu, ao receber a herança de seu falecido pai, actue em manifesto abuso de direito e que exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito pelo que, mesmo admitindo a aplicação da figura do abuso de direito ao declarado inimputável sempre se dirá que, dada a sua especial natureza e doença crónica o exercício do seu direito não excede de forma manifesta, porque tem de ser manifesta os ditames da boa fé, bons costumes e fim económico pelo que não se encontram preenchidos os requisitos legais impostos para aplicação do disposto no artigo 334º do Código Civil mostra-se no caso concreto que não se encontram manifestamente excedidos os limites impostos pela boa fé
LXXI - Ao assim não decidir, errou o Juiz "a quo", por menos acertada a interpretação dos factos e menos correcta interpretação e aplicação do Direito no disposto nos art.ºs 334º do C. Civil e o princípio da dignidade humana aplicável a pessoa doente crónica, com anomalia psíquica, previsto no artigo 1º da Constituição da República Portuguesa.
LXXII – Bem assim foram violadas as normas quanto à responsabilidade civil objectiva aplicáveis a inimputáveis e artigos 488º n.º 1 e 489º n.º 1 do Código Civil. Termos em que, e pelo que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve dar-se provimento ao recurso, e, em consequência, deve a sentença judicial em recurso ser revogada proferindo-se nova decisão no sentido de não ser legalmente possível a aplicação do instituto do abuso de direito aos declarados inimputáveis pelos motivos acima expostos. Mantém o Réu X... plena capacidade sucessória na herança de seu pai J... sendo seu único e universal herdeiro. Em alternativa, ainda assim , considerando V.Exas. ser de aplicar o instituto do abuso de direito decidir , em respeito à condição e circunstância da inimputabilidade do Réu, que não se encontram manifestamente excedidos os ditames da boa fé e dos bons costumes no seu exercício do direito à herança por óbito de seu pai J... sendo seu único e universal herdeiro.
Os Autores apresentaram Contra-Alegações, que culminaram com as seguintes Conclusões:
“A) O Tribunal a quo não ignorou a factualidade atinente ao quadro patológico do Recorrente. Pelo contrário, conhecendo plenamente essa factualidade (aliás amplamente descrita nos documentos junto com a própria petição inicial), o Tribunal a quo proferiu a sua decisão não obstante a ter conhecido, mas não a ignorando. Veja-se, neste conspecto, o seguinte trecho da decisão recorrida:
B) Não se verificou por parte do Tribunal recorrido qualquer omissão no que concerne à apreciação e fixação da matéria factual.
C) Não existe o dever de enunciação exaustiva de toda e qualquer factualidade em sede de relatório, muito menos quando essa factualidade não seja determinante para contrariar o sentido de uma decisão judicial, tal como aqui não o seria.
D) Deverá o recurso apresentado improceder neste conspecto, não devendo ser ordenada qualquer alteração à matéria factual dada como provada por parte do Tribunal recorrido.
E) O instituto da indignidade deriva de uma conceção teleológica baseada no evidente repúdio de situações em que um herdeiro do de cujus se veja “investido” no benefício de vir a receber bens de uma pessoa que foi por si gravemente ofendida, ou mesmo assassinada como aqui sucede.
F) O ordenamento jurídico não se compagina nem se pode mostrar de modo algum conivente perante situações que equivalham a chancelar, em termos práticos e finalísticos, que uma determinada pessoa se veja favorecida e patrimonialmente enriquecida em virtude da prática de um ato ilícito por si perpetrado.
G) O instituto da indignidade sucessória representa uma salvaguarda de coerência com um ordenamento jurídico que, naturalmente, não aceitar premiar, direta ou indiretamente, a ilicitude dos atos praticados por quem quer que seja e tal desiderato mostra-se particularmente expressivo no campo sucessório.
H) No foro penal, o ora Recorrente foi considerado inimputável no que diz respeito à sua responsabilização criminal pela morte do seu pai, da sua irmã e do feto que a mesma carregava.
I) Conforme resulta da petição inicial, entendem os Recorridos que tal circunstância não obsta à consideração da indignidade sucessória do Recorrente no plano civil, o qual é inteiramente distinto do plano penal.
J) No plano jurídico-penal, o elemento subjetivo da culpabilidade assume uma função absolutamente fulcral, pois a medida da culpabilidade é um fator do qual depende inerentemente a censurabilidade da conduta do agente, a qual é o ponto de partida para a própria ratio da existência e atuação do direito penal, que se destina a sancionar condutas contrárias à noção juridicamente dominante de ordem pública.
K) Tal não sucede, como sabemos, no direito civil, o qual está ligado primordialmente à tutela de um princípio de equilíbrio no estrito domínio das relações entre sujeitos de direito privado, em que a culpabilidade assume uma importância e um alcance substancialmente diferente daquele que releva para o plano criminal.
L) Não se pode entender que o juízo de censura inerente à indignidade sucessória seja inteiramente coincidente com os padrões da culpabilidade penal, precisamente porque, insista-se, a indignidade sucessória se situa no campo do direito civil, no qual se censura, consabidamente, um largo conjunta de condutas que não se censuram necessariamente no campo penal.
M) A indignidade sucessória assume a natureza de uma sanção civil e não penal.
N) A declaração de indignidade sucessória tem de ter por base uma sentença, transitada em julgado, da qual se extraia a certeza jurídica sobre a prática dos factos que a fundamentam.
O) Tal exigência prende-se somente com a necessidade de que a declaração de indignidade sucessória seja alavancada por uma decisão judicial insindicável quanto aos seus factos, correspondentes à prática objetiva e comprovada de um comportamento criminoso contra o autor da sucessão - factos esses que carecem de ser qualificáveis como configurando, no prisma civilístico em que se move a indignidade, uma conduta intencional de factos ilícitos contra o de cujus.
P) Essa conduta deve resultar de uma sentença que
(i) julgue provados os factos tendentes à prática de um ato legalmente configurado como um homicídio, e
(ii) que esse homicídio tenha sido perpetrado através de uma conduta considerada como dolosa no sentido de ser intencional, e não meramente acidental ou negligente.
Q) A situação em apreço está abarcada pelo juízo de repúdio para o qual o nosso ordenamento civil reserva como consequência a indignidade sucessória.
R) Encontra-se provado, por força de uma decisão judicial transitada em julgado, que X... atentou intencionalmente contra a vida do seu pai e irmã grávida, de forma pérfida e perversa, sabendo que a sua conduta teria por causa direta e necessária a morte dos mesmos.
S) E tais factos, de resto, são o inexorável resultado de uma análise detida do comportamento de X... evidenciado em todos os elementos do processo e dos quais resulta clara a intencionalidade ofensiva da sua conduta.
T) No caso em apreço, não existem dúvidas sobre a prova da efetiva intencionalidade da conduta levada a cabo por X..., e muito menos sobre o facto de que essa intencionalidade é inequivocamente repudiada no plano civil e, como tal, carecida da tutela e sanção previstas no artigo 2034.º, al. a) do C. Civil.
U) Essa factualidade encontra-se dada como provada no acórdão proferido pelo Juízo Central Criminal de Loures, confirmado pelo Tribunal da Relação e que não deixa qualquer margem para dúvidas no que tange à conduta de X... contra o seu pai – não obstante as considerações atinentes ao juízo de inimputabilidade (penal, insista-se), tratou-se de uma agressão intencionalmente perpetrada pelo mesmo, com o intuito de vitimar os seus familiares e com plena representação e conhecimento de tal consequência.
V) Estão verificadas as condições legais tendentes à declaração de indignidade sucessória de X....
W) Tal entendimento não se baseia numa operação jurídica de analogia, consabidamente proibida no respeitante a normas de caráter excecional. Pelo contrário, o raciocínio jurídico supra descrito tem por base, tão-somente, uma mera interpretação extensiva da norma contida no artigo 2034.º, al. a) do CC, retirando do mesmo um resultado hermenêutico que, salvo melhor entendimento, se encontra plasmada na letra da referida norma jurídica em termos que não exigem o recurso à metodologia analógica, em virtude de todo o iter argumentativo acima deixado.
X) Motivos estes pelos quais não procede a argumentação expendida pelo Recorrente em sede de recurso e que sempre permitiriam ao Tribunal da Relação de Lisboa, ao abrigo da do princípio da livre configuração jurídica, determinar a indignidade sucessória do Recorrente ao abrigo do artigo 2034.º, al. a) do CC.
Y) Sem conceder no que concerne ao acima exposto em matéria de plena aplicabilidade do artigo 2034.º, al. a) do CC para efeitos de indignidade sucessória, sempre se dirá, a título subsidiário, que a sentença a quo não carece de qualquer reparo no que diz respeito ao apelo ao instituto do abuso de direito por forma a impedir a verificação de uma situação de viabilidade sucessória do Recorrente.
Z) A decisão penal proferida pelo Juízo Central Criminal de Loures (e confirmada por este Tribunal da Relação) deu como provado que o Recorrente, ao agir da forma acima descrita, tinha a consciência concreta de que estava a atentar contra a vida do seu pai e da sua irmã grávida e que, ciente dessa circunstância, agiu com o propósito deliberado de retirar a vida dos mesmos.
AA) A sentença penal não nega o quadro clínico do Recorrente – porém, ainda que o reconheça, e o valore para efeitos de sanção penal, não deixa de reconhecer que os atos do Recorrente foram intencionais e que o mesmo sabia qual seria o seu resultado, o qual era por si pretendido.
BB) A conduta do Recorrente foi uma conduta verdadeiramente intencional no que diz respeito à vontade de retirar a vida ao seu pai e à sua irmão – dúvidas não restam, no plano jurídico ou factual, face ao que resulta da já citada sentença penal cristalizada na ordem jurídica.
CC) Porém, o juízo de intencionalidade da conduta do Recorrente não se mostra sequer de capital importância para a aplicabilidade do instituto do abuso de direito, cujos efeitos impeditivos se bastam com a verificação de uma situação que clamorosamente se afigure como sendo de um abuso evidente, patente e objetivo, como se verifica in casu.
DD) O crime praticado pelo Recorrente assumiu contornos hediondos, pérfidos e de uma violência absolutamente atroz e incompreensível.
EE) Não podem restar, assim, quaisquer dúvidas de que, em qualquer caso e sob qualquer prisma, a conduta criminosa perpetrada intencionalmente pelo Recorrente jamais poderia, em caso algum, permitir que o mesmo fosse admitido a assumir a posição jurídica de herdeiro do seu pai que assassinou de forma tão brutal e ignominiosa.
FF) Motivos estes pelos quais, em suma, resta pugnar pela total improcedência do recurso ora em apreço e pela confirmação do teor da sentença a quo”.
*
Questões a Decidir
São as Conclusões da Recorrente que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de actuação do Tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, Abrantes Geraldes[1]), sendo certo que, tal limitação, já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.
In casu, e na decorrência das Conclusões da Recorrente importa verificar:
I - Da necessidade de alteração da factualidade apurada, no sentido de lhe serem acrescentados quatro factos decorrentes do Acórdão proferido no processo penal;
II – Da correcção jurídica da decisão quanto à procedência do pedido dos Autores de declaração de incapacidade sucessória do Réu, por indignidade (seja pena via do artigo 2034.º, seja pela do artigo 334.º do Código Civil), em face da inimputabilidade deste.
Cumpre decidir, cumpridos que foram os Vistos.
Os Factos
O Tribunal considerou provada a seguinte factualidade:
1. J... faleceu no dia 14 de Novembro de 2020, no estado de solteiro e sem ascendentes vivos.
2. Os Autores, P… e C…, são irmãos de J....
3. O Réu X... é filho de J....
4. Por Acórdão proferido pelo Juízo Central Criminal de Loures, Juiz …, no processo comum (Tribunal Colectivo) n.º 410/20.7GDTVD, transitado em julgado em 17/10/2022, foi decidido:
“-Absolver o arguido, X..., da prática dos crimes de Ofensa à Integridade Física Qualificada na forma tentada, p. p. pelos artigos 22º, 23º 143º e 145º nº 1 alínea a) e nº 2, por referência ao artigo 132º, nº 2, alíneas a), e) e j), do Código Penal, praticado contra M...;
- Absolver o arguido, X..., da prática dos crimes de Homicídio Qualificado p. p. respetivamente, pelos artigos 14º nº 1, 26º, 131º e 132º nºs 1 e 2, alínea a), do Código Penal, e 131º, 132º, nºs 1 e 2, al.s c), e) e j), do mesmo diploma, de que vinha acusado;
- Absolver o arguido, X..., pela prática de dois crimes de Ameaça Agravada, p. p. no artigo 153º e 155º nº 1, alínea a) do Código Penal, contra M... e J…, de que vinha acusado;
- Declarar que o arguido, X..., praticou factos qualificados pela Lei Penal como crime de Homicídio p. p. pelo art.º 131º, do Cód. Penal, na pessoa de J...;
- Declarar que o arguido, X..., praticou factos qualificados pela Lei Penal como crime de Homicídio p. p. pelo art.º 131º do Código Penal, na pessoa de S...;
- Declarar que o arguido, X..., praticou factos qualificados pela Lei Penal como crime de Aborto, p. p. no artigo 140º, nº 1, do Código Penal, de que vinha acusado;
- Declarar o arguido, X..., inimputável em razão de doença psiquiátrica irreversível – Esquizofrenia associada ao consumo de canabinóides - que o impede de avaliar a ilicitude dos seus atos do prisma da realidade e, consequentemente, não lhe aplicar qualquer pena;
- Declarar que existe perigo de prática de novos ilícitos criminais por banda do arguido, X..., e, consequentemente, aplicar-lhe medida de segurança de duração não inferior a três (3) anos e não superior a vinte e cinco (25) anos, cuja execução será avaliada nos termos previstos nos artigos 92º a 96º do Código Penal.
- Não suspender a execução da medida de segurança de internamento e tratamento em estabelecimento adequado imposta ao arguido.”
5. Da factualidade dada como provada no Acórdão referido em 4., consta além do mais que:
“- O arguido sabia que, ao desferir facadas na cabeça, costas e tronco de J... e na cabeça e zona torácica de S... provocaria a sua morte, como veio a acontecer.
- E também sabia que com a sua atuação iria causar a morte do feto que sabia que a irmã, S..., trazia em gestação, como veio a acontecer.
- Em suma, a atuação do arguido foi a causa direta e necessária, da morte de J... e de S..., ocorrida no local e verificada pelas 23h30m do dia 13 de Novembro de 2020.
- O arguido agiu com o propósito concretizado de tirar a vida a J... e a S..., fazendo-a abortar, sabedor que tal conduta lhe era vedada por lei”.
[2]6. Do referido Acórdão constam como factos provados os seguintes:
“Da Acusação Pública; da Acusação formulada pelo Assistente, do Pedido Cível e da discussão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. O arguido, X..., é filho de M... (doravante designada M…) e de J... (doravante designado J...) e irmão de S....
2. Desde meados do ano de 2010, em data não apurada, o arguido passou a residir na Rua---, nº---,, -----, área desta comarca de -----, com o seu pai J... e com a sua irmã S....
3. No dia 30 de Abril de 2019, em hora não concretamente apurada, o arguido encontrava-se na residência da sua mãe, M..., sita no ---, ---, a consumir produto estupefaciente.
4. M..., apercebendo-se de que o arguido estaria a consumir, proibiu-o de se manter na sua residência enquanto continuasse a consumir produto estupefaciente, sendo que, logo após, em face da expressão do arguido, aquela fugiu do último.
5. Na referida data e após o episódio descrito, M... proibiu o arguido de se deslocar e manter na sua residência.
6. No dia 2 de Maio de 2019, pelas 14h15m, o arguido deslocou-se à residência da mãe, M..., dizendo que queria ir buscar uns livros.
7. M... não permitiu que o arguido entrasse na residência e o arguido sentou-se no chão dizendo que iria ficar no local a desidratar ao sol.
8. Mais disse que ninguém o podia tirar dali, por se encontrar na via pública.
9. No local compareceu uma patrulha da Guarda Nacional Republicana de ----- composta pelos militares xxxxx e yyyyyyy que explicaram ao arguido que este necessitava de ser observado por um médico, ao que o arguido respondeu: “não faz sentido eu precisar de ajuda, preciso é de matar os meus pais, é a lei da vida, eles têm que morrer primeiro”.
10. Após o arguido foi transportado pelos Bombeiros de ----- até ao Hospital de SJ em Lisboa, para ser avaliado no âmbito de um processo de internamento compulsivo.
11.Ao proferir as expressões referidas em 9, o arguido agiu com o intuito de amedrontar e de prejudicar a liberdade de determinação daqueles que eram os seus pais,
12. fazendo-os temer pela integridade física e vida.
13. No dia 13 de Novembro de 2020, no período compreendido entre as 23h00m e as 24h00m, o arguido X... deslocou-se para a sua residência, após ter estado no estabelecimento “---”, sito na Praia de -----, -----.
14. Chegado à residência, J... encontrava-se na cozinha, a cortar alimentos com uma faca de serrilha (vulgo faca do pão), tendo-se ali iniciado uma troca de palavras entre ambos.
15. Acto continuo, o arguido retirou a referida faca de serrilha ao pai e desferiu-lhe vários golpes em locais distintos do corpo, nomeadamente, cabeça, costas e tronco.
16. Após, o arguido muniu-se de outra faca e continuou a desferir golpes, com a mesma, no corpo de J..., que, a certa altura conseguiu fugir para o quarto do arguido, tendo fechado a porta, dirigindo-se para a varanda, onde acabou por falecer.
17. S..., irmã do arguido, ao aperceber-se do sucedido, tentou socorrer o pai, acabando por ser várias vezes golpeada, com outra faca, pelo arguido, em diversas regiões do corpo, nomeadamente na cabeça e na zona torácica.
18. S... acabou por falecer na cozinha.
19. S... estava grávida, com período de gestação estimado entre 9 e 10 de semanas, sendo que o feto não apresentava anomalias feto-placentares, pelo que a morte do feto se deu in útero, devido ao falecimento da mãe.
20. Após, o arguido abandonou a residência, no veículo com a matrícula --------, propriedade do pai do arguido e que era utilizado pela irmã, S....
21. O arguido foi detido no Bairro do …, Lisboa, no dia 16 de Novembro de 2020, por agentes da Polícia de Segurança Pública, após ter passado a noite com ------, numa viatura abandonada nas imediações do referido bairro, a quem contou o sucedido.
22. Como consequência directa da actuação do arguido, J... sofreu as seguintes lesões:
- Na Cabeça: 6 feridas cortantes com formas e orientações diversas, dispersas pela região frontal, parietal esquerda, sobrancelha direita, hemiface direita, mento (superficial) e ramo esquerdo da mandibula, esta a maior, horizontal e profunda até ao plano ósseo (que não lesava), estendendo-se para baixo e para trás, até ao limite lateral superior do pescoço, ao nível da orelha, com 12,5cmx2cm e as duas extremidades em "V"; uma ferida corto-perfurante vertical, com 1 extremidade em "V" e a outra romba, na hemiface direita, centímetro e meio à frente da orelha respectiva, medindo 3cmx0,4mm, com trajecto subcutâneo para baixo e para a frente (ferida A);
- No pescoço: ferida cortante na região cervical esquerda alta, continuada da descrita na cabeça sobre o ramo homolateral da mandibula; 3 feridas cortantes sensivelmente horizontais, na face direita, a maior, superficial com 10cmx1,5cm; ferida corto-perfurante, abaixo da orelha esquerda, com 2cmx0,6cm, vertical e em rabo de peixe;
- No tronco: ferida corto-perfurante com 3cmx1cm, distando 2,5cm para a esquerda do bordo esternal, no plano horizontal do mamilo, de orientação vertical mas em forma de "L" alongado (movimento na ferida?) com 1 extremidade em "V" (ferida B), com trajecto para baixo, para trás e ligeiramente para a esquerda; ferida cortante superficial, cerca de 1,5cm para cima e para a direita da anterior, estendendo-se horizontalmente do esterno para a direita, medindo 10cm; 4 feridas superficiais, 2 sobre a grelha costal esquerda, 2 no flanco esquerdo e uma linear no epigastro; nove feridas corto-perfurantes fusiformes dispersas pelo dorso, da nádega direita à escápula homolateral, em correspondência com as descritas na roupa e com vários padrões (com 1 ou 2 extremidades em “V”, de orientações diversas, algumas em "rabo de peixe", 2 da nádega direita com cauda), a maior sobre a coluna dorsal baixa medindo 2cmx0,4mm perfurante até à coluna, mas sem interessar a medula, nenhuma delas logrando penetrar nas cavidades torácica ou abdominal; nestas se incluíam 2 feridas dorso-lombares justapostas, sobre a linha escapular posterior direita, distando a mais inferior e lateral cerca de 1 cm da outra, em possível relação com a perfuração renal descrita abaixo, duas feridas corto-perfurantes fusiformes, com apenas uma extremidade em "V", na face lateral direita do abdómen, fusiformes, de dimensão idêntica às anteriores;
- No membro superior direito: 5 feridas cortantes no dorso dos 1º, 20 e 30 dedos e 2 na palma da mão, a maior na falange distal do 30 dedo com 3cmx0,2cm; ferida linear com 8cm no terço médio da face posterior do antebraço - feridas de defesa;
- No membro superior esquerdo: ferida cortante na face anterior da falange distal do 30 dedo com 3cmx0,5cm - feridas de defesa;
- No membro inferior direito: 5 equimoses vermelhas dispersas pela coxa, perna e joelho, neste se situando as duas maiores, numa área com 6cmx2,5cm;
- No membro inferior esquerdo: ferida cortante na face lateral do terço médio da perna, ascendente para cima e para dentro, em relação com rasgão descrito na roupa no mesmo local, medindo 7cmx2cm, com cerca de 1 ,5cm de profundidade e 2 extremidades em "V";
- No pescoço: 2 perfurações altas da veia jugular interna, ao nível da bifurcação da carótida que estava íntegra; intensa infiltração sanguínea em redor que interessava os tecidos moles e envolvia toda a parótida direita, bem como a bainha carotídea em toda a sua extensão; vago direito intacto; todos estes ferimentos em provável relação com a ferida A;
- Nas paredes do tórax: ferida corto-perfurante (2 feridas?) no 5º espaço intercostal esquerdo (ferida B), com apenas uma extremidade em "V", medindo 3cmx0,6cm, não lesando as costelas, com trajecto infiltrado de sangue, que se continuava lateralmente e à esquerda do saco pericárdico, em profundidade nessa gordura, para a cavidade pleural e até ao pulmão (ver abaixo)
- No pulmão esquerdo e pleura visceral: 2 feridas corto-perfurantes cercadas de sangue, a maior medindo 3cm, na face mediastínica e posterior do lobo inferior, junto à coluna, com apenas uma extremidade em "V", distando uma da outra cerca de 2cm, em relação com a ferida B; e
- No rim direito: Infiltração sanguínea das gorduras pararrenal e perirrenal cercando também trajecto de ferida corto-perfurante que atingia o terço médio da face posterior do rim, em relação provável com as feridas da linha escapular posterior direita atrás descritas, sem interessar a medula.
23. A morte de J... deveu-se às lesões traumáticas do pescoço e torácicas descritas, sendo que tais lesões traumáticas constituíram a causa adequada de morte.
24. Estas lesões e as restantes lesões traumáticas descritas (com excepção das equimoses do membro inferior direito) denotam haver sido produzidas por instrumento de natureza cortante e corto-perfurante ou actuando como tal, podendo ter sido devidas a agressão com facas.
25. As feridas com responsabilidade letal foram as denominadas A e B com as seguintes direcções e trajectos:
Ferida A: na face com trajecto para baixo, para a frente e ligeiramente para dentro atingindo a veia jugular interna direita;
Ferida B: na face anterior do tórax, com trajecto para baixo, para trás e ligeiramente para a esquerda atingindo o pulmão esquerdo.
26. As lesões traumáticas observadas no membro inferior direito (equimoses) denotam haver sido produzidas por instrumento de natureza contundente ou actuando como tal, podendo ter resultado da agressão com faca.
27. Como consequência directa da actuação do arguido, S... sofreu as seguintes lesões:
- Na cabeça: 5 feridas cortantes na região da orelha direita, 3 no próprio pavilhão auricular, uma à frente pré-auricular, a maior, linear e vertical com 2cm e outra atrás da orelha, mais pequena;
- 6 feridas incisas na face, nas regiões frontal, zigomática e masseterina direitas (do canto da boca para a direita), nariz e sobre o ramo esquerdo da mandibula, onde se situava a maior, que se estendia da face cutânea do hemilábio esquerdo à orelha homolateral com 10cmx2cm, com pequena cauda ascendente;
- No nariz: equimoses roxas dispersas pelas regiões frontal, zigomática e mandibular direitas e dorso do nariz a maior na mandibular direita com 4 5cmx3cm;
- Na face lateral esquerda do pescoço: 13 feridas cortantes e perfurantes, sendo 5 maiores, mais profundas e eminentemente perfurantes, de morfologia distinta, mas com caudas que indiciam um sentido da direita para a esquerda, a maior sobre o ângulo esquerdo da mandibula (ferida A), complexa, irregular e destrutiva, medindo 7 ,5cmx3,3cm;
- Na face posterior do pescoço: 8 feridas cortantes e perfurantes, 7 na metade direita dispersas numa área com 11cmx4cm, a maioria fusiformes, mas com 1 triangular, a maior, mais superior e lateral, com 1 cm de base e 5,5cm de altura (ferida B); a ferida restante, situava-se na parte superior esquerda, era horizontal, em meia-lua de concavidade inferior e profunda até a coluna cervical com 6,5cmx2cm;
- Na face anterior do pescoço: várias feridas cortantes superficiais na face anterior, de orientações diversas, a maior horizontal, sobre a proeminência laríngea, com 7cmx7mm que se estendia para a face lateral esquerda;
- No tórax (dorso): 5 feridas corto-perfurantes numa área com 8,5cmx4,5cm, na parte média do dorso, em relação com os rasgões da roupa, de formas distintas, sendo 3 à esquerda (a mais inferior fusiforme com uma extremidade em "V" medindo 12mmx3mm), uma das direitas superficial e a outra, em forma de "T" oblíquo, medindo o ramo horizontal 2,5cm e o vertical 1,5cm, com pequena cauda infero-lateral;
- No abdómen: 2 feridas cortantes superficiais, uma paramediana direita, estendendo-se desde o epigastro ao limite superior do hipogastro com 12cm e outra peri-umbilical esquerda, horizontal, com 2 cm;
- No membro superior direito: 14 feridas incisas no terço inferior do antebraço, punho e mão, 7 na face palmar e a maior na face dorsal do punho, com 5cmx2,7cm, profunda até ao plano ósseo com secção de tendões e marca óssea cortante na face posterior do radio - feridas de defesa; equimose roxa-esverdeada com 7 cmx5 cm;
- No membro superior esquerdo: 12 feridas incisas, 4 palmares e todas superficiais com excepção da maior na face dorsal do punho que, ainda assim, não ultrapassava o plano aponevrótico – feridas de defesa; equimose roxa-esverdeada no terço media da face posterior do braço com 4cmx3cm;
- No membro inferior direito: equimose vermelha com 6cmx4,5cm no joelho; escoriação apergaminhada com 14cm x 1cm;
- No membro inferior esquerdo: 3 feridas incisas com uma e duas extremidades em "V" na face lateral da perna, a maior no terço inferior com 2cm, todas superficiais, 2 delas em relação com os rasgões das calças; 4 equimoses vermelhas, 2 nos joelhos e uma na perna, a maior no joelho com 7cmx5cm;
- No pescoço: perfuração transfixiva da membrana tiro-hioideia da esquerda para a direita - ferida A; 2 gânglios linfáticos cervicais profundos infiltrados de sangue à esquerda;
- Nos músculos do pescoço: secção irregular, quase completa, dos músculos platisma e esterno-cleido-mastóideo esquerdos no seu terço superior (ferida A); 3 feridas perfurantes laterais esquerdas em continuação de 3 das mais profundas feridas descritas na face lateral esquerda do pescoço e 1 mais atrás da e abaixo da ferida A, que ainda seccionava o bordo lateral do músculo trapézio; secção oblíqua para baixo e para a frente do terço superior do esterno-cleido-mastoideu direito (ferida B), acima da glândula tiróide, irregular, com perfuração da veia jugular interna direita; secção irregular do esterno-hioideu direito; tudo rodeado de infiltração sanguínea;
- Nos vasos, nervos e gânglios do pescoço: perfuração alta da veia jugular e da artéria carótida direitas com intensa infiltração sanguínea dos tecidos moles em redor e da bainha carotídea, ao nível da bifurcação da carótida; o vago homolateral estava íntegro (ferida B e/ou ferida A); Perfuração da veia retromandibular esquerda (jugular interna homolateral integra) e secção completa da carótida interna esquerda, presa apenas pela adventicia (ferida A);
- No útero e anexos: presença de útero gravídico, com saco gestacional íntegro medindo 8cmx5,5cm contendo líquido amniótico de aparentemente normal e feto com aspecto macroscópico de cerca de 3 meses, sem vida.
28. A morte de S... foi devida às lesões traumáticas do pescoço descritas, sendo que tais lesões traumáticas constituíram a causa adequada da sua morte. Estas e as restantes lesões traumáticas descritas denotam ter sido produzidas por instrumento de natureza cortante e corto-perfurante ou actuando como tal, podendo ter sido devidas a agressão com facas.
29. As feridas letais, denominadas A e B, tiveram as seguintes direcções e trajectos:
Ferida A: na face, no ângulo da mandíbula esquerda, com trajecto ligeiramente para baixo e para dentro;
Ferida B: na face posterior direita do pescoço, com trajecto para baixo, para a frente e ligeiramente para a esquerda.
30. As vítimas foram encontradas sem vida em traje de pijama, pelas 11:30 do dia 14.11.20, na respectiva habitação.
31. Nessa ocasião, não foi encontrada qualquer porta ou janela forçada ou danificada.
32. À data e já há alguns anos, que o arguido residia juntamente com as vítimas,
33. ninguém mais vivendo na habitação dos mesmos.
34. Logo a seguir aos factos, a viatura de matrícula --------, habitualmente conduzida pela falecida S... mas à qual o arguido também tinha acesso, deixou de ser vista nas imediações da residência das vítimas, vindo a ser localizada poucos dias depois num parque da EMEL, contendo, no respectivo interior, entre o mais, uma toalha com vestígios hemáticos quer do arguido quer das vítimas.
35. Após os factos, o arguido permaneceu incontactável, tendo sido localizado dois dias depois, com roupa que não lhe pertencia, no Bairro da …, a pernoitar no interior de uma viatura.
36. Nessa altura, o arguido calçava ténis em cujas solas se encontravam vestígios hemáticos das vítimas.
37. No dia 14.11.20 à noite, o arguido já apresentava os cortes nos dedos registados a fls. 222.
38. Desde 2019 que eram conhecidos ao arguido surtos psicóticos e alucinações auditivas.
39. Não são conhecidos quaisquer atritos mantidos entre as vítimas e terceiros.
40. As agressões começaram na sala da referida habitação e prolongaram-se para o quarto da vítima S... e corredor.
41. À data da prática dos factos, a doença do arguido encontrava-se já em fase aguda.
42. O arguido sabia que, ao desferir facadas na cabeça, costas e tronco de J... e na cabeça e zona torácica de S... lhes provocaria a morte, como veio a acontecer.
43. E também sabia que com a sua actuação iria causar a morte do feto que sabia que a irmã, S..., trazia em gestação, como veio a acontecer.
44. Em suma, a actuação do arguido foi a causa directa e necessária, da morte de J... e de S..., ocorrida no local e verificada pelas 23h30m do dia 13 de Novembro de 2020.
45. O arguido agiu com o propósito concretizado de tirar a vida a J... e a S..., fazendo-a abortar, sabedor que tal conduta lhe era vedada por lei.
46. O arguido foi submetido a exame pericial de avaliação psiquiátrica, o qual consta de fls. 757 a 767, que se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, tendo a perita médica com pelo diagnóstico de Psicose Esquizofrénica (CID-10: F 20, OMS, 1992), associada ao consumo de múltiplas substâncias, nomeadamente canabinóides (CID-10: F 19, OMS, 1992), sendo que ambas as situações eram prévias aos factos pelos quais se encontra indiciado.
47. Fruto da descompensação da sua anomalia psíquica grave, o arguido mantinha alterações do comportamento, acreditando que o pai seria o Diabo e a irmã uma cavaleira das trevas que incorporava a Guerra, e que ambos estariam do lado do Mal, enquanto o arguido estaria do lado do Bem. Fruto de alucinações auditivo-verbais, que lhe davam ordens e/ou que comentavam os acontecimentos, bem como de alucinações cenestésicas – sentiu que lhe tinham extraído o Tupac – o arguido resolveu agir, naquilo que considerava ser o mundo paralelo e para onde conseguiria passar através da dilatação da glândula pineal (outra crença delirante), tendo matado os seres maléficos que incorporavam o pai e a irmã.
48. Por força das referidas patologias e pelo facto de manter à data de hoje algum apelo ao consumo de estupefacientes – cujo efeito anula substancialmente a acção terapêutica -, o arguido, à semelhança do que sucedeu à data da prática dos factos, labora por vezes em cenários inexistentes pelo que não tem, nesses momentos, capacidade de avaliar a ilicitude dos seus actos do prisma da realidade existente, tendo concluído a I. Perita Psiquiatra por fundados receios de que venha a cometer actos delituosos semelhantes aos que estão em causa nos autos.
49. O referido complexo patológico de que padece o arguido, em relação aos efeitos que produz sobre o seu intelecto e a sua vontade, foi causal do comportamento que lhe é imputado e produziu, no momento da prática dos factos, um efeito psicológico susceptível de o incapacitar para avaliar a ilicitude do mesmo do prisma da realidade existente e de se determinar de acordo com essa avaliação, já que o conduziu a laborar sobre realidade alucinada.
50. O arguido é o mais novo de dois filhos de um casal de mediana condição económica, X... cresceu nos primeiros anos de vida no seio da família nuclear, constituída pelos progenitores e irmã nove anos mais velha, estrutura familiar que se alterou passados alguns anos, com a separação dos pais.
51. Regressados a Portugal, a separação do casal viria a ocorrer quando o arguido contava três anos de idade, tendo a mãe saído do lar familiar com os dois filhos, fixando residência na --------, em ----- local de residência de alguma proximidade geográfica à zona residencial do progenitor, também em ----.
52. Integrado no agregado materno e, apesar da separação dos pais, X... manteve um contacto regular com o progenitor, convívio que a partir dos nove anos de idade se tornou mais estreito, quando passou a pernoitar na sua habitação aos fins-de-semana.
53. Com um crescimento decorrido no agregado materno até aos dezoito anos, a dinâmica familiar ter-se-á regido por um clima harmonioso, impondo-se alguma intervenção pedagógica por parte da progenitora para com os dois descendentes.
54. A primeira experiência do arguido com substâncias estupefacientes (haxixe) terá ocorrido aos treze anos de idade.
55. O arguido era consumidor de substâncias estupefacientes, nomeadamente canábis, bem como a ingestão de bebidas de teor alcoólico elevado, adquiridas em supermercados por elementos mais velhos do grupo de pares, tendo-se agravado com os anos a sua conduta aditiva.
56. No plano escolar, o arguido regista um percurso regular e com aproveitamento satisfatório, tendo concluído aos dezoito anos, o 12º ano de escolaridade.
57. A sua primeira experiência laboral terá ocorrido em idade precoce, aos catorze anos, durante os fins-de-semana, onde colaborava com o pai na gestão do negócio familiar, no comércio de peixe congelado, auxiliando na sua entrega em restaurantes da zona.
58. Só mais tarde, aos dezasseis anos de idade, em períodos de férias, passou a colaborar de forma mais intensa, trabalho do seu agrado pessoal, mantendo um bom relacionamento com o progenitor.
59. A sua primeira experiência amorosa com ----, namoro com algumas interrupções ao longo do tempo, sendo a fase mais estável entre a idade de dezanove e de vinte e seis anos, data em que ocorreu a separação afetiva, tendo o casal chegado a viver em união de facto na casa do pai do arguido
60. A partir dos seus dezoito anos de idade, o arguido passou a residir definitivamente no lar paterno, opção como solução para a sua integração laboral a tempo inteiro junto do pai, por já ter concluído o 12º ano escolaridade e não desejar dar continuidade aos estudos.
61. O reencontro e adesão com as amizades associadas aos consumos de estupefacientes na zona residencial do pai, com saídas noturnas e festas rave, precipitou o arguido para novos consumos de haxixe e ingestão de bebidas brancas.
62. Nessa fase, optou por trabalhar numa loja ligada a videojogos, tendo inclusivamente passado a gerir esse negócio com um amigo durante cerca de um ano, negócio sem sucesso, tendo contado com o apoio do progenitor na amortização de algumas dívidas contraídas, retomando então o trabalho com o pai na empresa familiar.
63. O agravamento da adição e a mistura das várias substâncias químicas favoreceu um quadro progressivamente depressivo e marcado pelo isolamento social, tendo nessa sequência terminado a relação com a namorada e evitado o contacto com os amigos em comum, mantendo, contudo, a actividade laboral junto do progenitor.
64. Essa fase de isolamento social viria a ser ultrapassada cerca de ano depois, com o abandono dos medicamentos dirigidos à sua dieta, passando a evidenciar uma conduta mais extrovertida, retomando a ligação ao grupo de pares ligado ao consumo de drogas e a prática aditiva, esta última de forma descontrolada, não só com consumos de haxixe e canábis, mas adicionando outras substâncias sintéticas, nomeadamente LSD, MDMA, bem como cogumelos e cocaína (fumada e inalada), juntamente com a ingestão abusiva de bebidas brancas.
65. Por recomendação médica, o arguido ingressou na Clínica ----- em ----, para desabituação do consumo aditivo, tratamento também interrompido, por sua opção.
66. A recusa do arguido na continuidade de qualquer acompanhamento especializado e terapêutica medicamentosa, associado a uma conduta cada vez mais descontrolada de consumos de diversas drogas com álcool, foram factores promotores de maior instabilidade (descompensação pessoal), verificando-se maior frequência de episódios alucinatórios verbais contra o pai e por vezes contra a irmã, para além de outros episódios de delírio assente em visualizações, ocorrência que promoveu o seu abandono laboral com o pai, evitando-o na habitação familiar, recusando-se a partilhar refeições, por achar que estariam envenenadas.
67. Também no contexto de amizades, os amigos passaram a ser encarados de forma diferente, descrevendo-os como seres amigos de outras dimensões.
68. No Estabelecimento Prisional, o seu quotidiano, para além de algumas atividades psicoterapêuticas orientadas, é partilhado com a atividade laboral que desempenha como ajudante no café do seu piso, atividade do seu agrado pessoal.
69. Também regista uma postura colaborante perante o acompanhamento e atividades de que beneficia nesse contexto.
70. Tem beneficiado de visitas por parte de um irmão consanguíneo mais velho, sendo que a progenitora já anteriormente o visitou e mantém o seu suporte através do contacto telefónico e envio de algum quantitativo monetário para despesas várias e carregamento do cartão telefónico.
71. O assistente e a demandante tinham um relacionamento afectivo e familiar muito próximo das vítimas e sofreram profunda tristeza e transtorno com o falecimento das mesmas.
72. Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido”.
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O Tribunal considerou inexistirem factos Não Provados com relevância para a decisão a proferir.

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Apreciação da Matéria de Facto        
O artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil dispõe que o Tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que haja firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir para a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.
Neste momento processual releva ainda o artigo 662.º do Código de Processo Civil, que começa por afirmar que a “Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”[3].
Como, aliás, assinala o Conselheiro Tomé Gomes no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07 de Setembro de 2017 (Processo n.º 959/09.2TVLSB.L1.S1) é “hoje jurisprudência corrente, mormente do STJ, que a reapreciação, por parte do tribunal da 2.ª instância, da decisão de facto impugnada não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, pelo tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa”.
Quando uma parte em sede de recurso pretenda impugnar a matéria de facto[4], nos termos do artigo 640.º, n.º 1, impõe-se-lhe o ónus de:
1) indicar (motivando) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (sintetizando ainda nas conclusões) – alínea a);
2) especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada (indicando as concretas passagens relevantes – n.º 2, alíneas a) e b)), que impunham decisão diversa quanto a cada um daqueles factos, propondo a decisão alternativa quanto a cada um deles – n.º 1, alíneas b) e c).
Está aqui em causa, como sublinha com pertinência Abrantes Geraldes, o “princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”[5], sempre temperado pela necessária proporcionalidade e razoabilidade[6], sendo que, basicamente, o essencial que tem de estar reunido é “a definição do objecto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos pontos de facto em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova indicados e explicitados e com a assunção clara do resultado pretendido)”[7].
Como pano de fundo da apreciação a fazer dos factos que estejam em causa, também a circunstância de não se proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação “não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (art.ºs 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do C.P.C.)” (Acórdãos da Relação de Guimarães de 15 de Dezembro de 2016, Processo n.º 86/14.0T8AMR.G1-Maria João Matos[8] e da Relação de Lisboa de 26 de Setembro de 2019, Processo n.º 144/15.4T8MTJ.L1-2-Carlos Castelo Branco).
Assim, caberá ao Tribunal da Relação apreciar a matéria de facto de cuja apreciação o/a Recorrente discorde e impugne (fazendo sobre ela uma nova apreciação, um novo julgamento, após verificar a fundamentação do Tribunal a quo, os elementos e argumentos apresentados no recurso e a sua própria percepção perante a totalidade da prova produzida), continuando a ter presentes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e que “o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta”, pelo que “o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância[9] (sublinhado e carregado nossos).
Ana Luísa Geraldes sublinha mesmo que, em “caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte»[10].
O Tribunal da Relação deve usar aquilo a que Miguel Teixeira de Sousa chama de “um critério de razoabilidade ou de aceitabilidade dessa decisão. Este critério conduz a confirmar a decisão recorrida, não apenas quando for indiscutível que a mesma é correcta, mas também quando aquela se situar numa margem de razoabilidade ou de aceitabilidade reconhecida pela Relação”[11].
Verificadas as Alegações e Conclusões da Recorrente e porque formalmente o Réu-Recorrente preencheu nas suas Alegações todos os requisitos legais exigidos, apreciemos as discordâncias em causa.
Basicamente, entende o Réu-Recorrente que devem ser acrescentados quatro factos:
- O arguido (ora réu) foi submetido a exame pericial de avaliação psiquiátrica, tendo a perita médica concluído pelo diagnóstico de Psicose Esquizofrénica (CID-10: F 20, OMS, 1992), associada ao consumo de múltiplas substâncias, nomeadamente canabinóides (CID-10: F 19, OMS, 1992), sendo que ambas as situações eram prévias aos factos pelos quais se encontra indiciado (que corresponde ao Facto 46 do Acórdão do processo penal e ao artigo 36.º da Contestação destes autos);
- Fruto da descompensação da sua anomalia psíquica grave, o arguido mantinha alterações do comportamento, acreditando que o pai seria o Diabo e a irmã uma cavaleira das trevas que incorporava a Guerra, e que ambos estariam do lado do Mal, enquanto o arguido estaria do lado do Bem. Fruto de alucinações auditivo-verbais, que lhe davam ordens e/ou que comentavam os acontecimentos, bem como de alucinações cenestésicas – sentiu que lhe tinham extraído o Tupac – o arguido resolveu agir, naquilo que considerava ser o mundo paralelo e para onde conseguiria passar através da dilatação da glândula pineal (outra crença delirante), tendo matado os seres maléficos que incorporavam o pai e a irmã (Facto 47 do Acórdão do processo penal e artigo 37.º da Contestação destes autos);
- O referido complexo patológico de que padece o arguido, em relação aos efeitos que produz sobre o seu intelecto e a sua vontade, foi causal do comportamento que lhe é imputado e produziu, no momento da prática dos factos, um efeito psicológico susceptível de o incapacitar para avaliar a ilicitude do mesmo do prisma da realidade existente e de se determinar de acordo com essa avaliação, já que o conduziu a laborar sobre realidade alucinada (Facto 49.º do processo penal e artigo 38.º da Contestação destes autos);
- As conclusões patentes no Relatório Pericial escalpelizadas em sede de audiência, aludem, entre o mais, a que o arguido laborava numa realidade paralela quando praticou os factos, encontrando-se a sua doença em estado agudo, seguindo-se agravamento da mesma por falta de medicação (facto indicado no artigo 39.º da Contestação do Réu, Acórdão e Relatório Pericial nele produzido).

Os Recorridos, por seu turno, entendem nada haver a acrescentar ao que consta da Sentença proferida, uma vez que os elementos factuais em causa não foram desconsiderados, na Sentença proferida pelo Tribunal a quo, na qual não se infirmou nem se ignorou de modo algum a factualidade relativa à patologia do Recorrente, a qual se encontra fixada na sentença judicial, transitada em julgado, que se encontra junta aos autos, sendo certo que não existe o dever de enunciação exaustiva de toda e qualquer factualidade em sede de relatório, muito menos quando essa factualidade não seja determinante para contrariar o sentido de uma decisão judicial, tal como aqui não o seria.

Não há propriamente uma divergência entre as partes quanto a esta questão…
Mas importa deixar claro que, considerando o que está em causa neste processo (a indignidade sucessória e os seus pressupostos, o relevante (e foi isso que o foi para a decisão de que se recorre) é a factualidade que foi dada como provada no Acórdão proferido no processo penal, quanto ao homicídio do irmão dos Autores e pai do Réu.
É preciso sublinhar que, em face do teor dos artigos 623.º[12] (oponibilidade a terceiros da decisão penal condenatória) e 624.º[13] (eficácia da decisão penal absolutória) do Código de Processo Civil) e uma vez que o Réu nesta acção foi o arguido no aludido processo penal, essa matéria está assente “no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração”. Ou seja, a factualidade a este propósito dada como adquirida no processo penal também o deveria ser aqui.
Como se assinala no acórdão da Relação de Guimarães de 04 de Novembro de 2021 (Processo n.º 5193/19.0T8BRG-A.G1-Anizabel Sousa Pereira), o “artigo 623.º do CPC regula o caso de ter havido condenação pelo ilícito criminal e não ter sido exercido, nessa acção, o direito de pedir a indemnização. Ao contrário do que acontecia com a lei anterior segundo a qual a decisão condenatória definitiva constituía caso julgado quanto à existência e qualificação do facto punível e quanto à determinação dos seus agentes – presentemente a sentença condenatória transitada constitui apenas presunção ilidível quanto aos pressupostos da punição, aos elementos típicos legais e as formas do crime (art.º 10º a 30º do Cód. Penal). A decisão proferida em processo penal constitui, assim, uma presunção juris tantum (ilidível mediante prova em contrário de terceiro) da existência dos factos constitutivos em que se tenha baseado a condenação. Com efeito e, como sustenta Lebre de Freitas e Isabel Alexandre “não se trata, directamente, da eficácia extraprocessual da prova produzida no processo penal, mas da eficácia probatória da própria sentença”.
Essa possibilidade de ilidir a presunção nunca é concedida ao arguido condenado, a quem já foi dada a faculdade do contraditório. Ele teve oportunidade de juntar provas e aduzir as razões de facto e de direito, no processo penal e, não há falta de contraditório.[14]
Também Lopes do Rego defende que a norma do artigo 674.º- A (actual 623.º do CPC) estabelece “a relevância “reflexa” do caso julgado penal condenatório em subsequentes acções de natureza cível, materialmente conexas com os factos já apurados no processo penal – e tendo, nomeadamente em conta que a condenação penal pressupõe uma exaustiva e oficiosa indagação de toda a matéria de facto relevante, bem como a certeza “prática” de que o arguido cometeu a infracção que lhe era imputada”.
O artigo 623.º do CPC refere-se aos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como aos respeitantes às formas do crime.
Reconhecendo-se que a condenação penal pressupõe uma exaustiva e oficiosa indagação de toda a matéria de facto relevante, não poderá, em todo o caso, recusar-se também que essa eficácia se encontra necessariamente limitada aos factos – efectivamente – apurados na acção penal.
Em suma: segundo Lebre de Freitas, em síntese, se a presunção é invocável perante terceiros relativamente ao processo penal, entre as partes é inilidível.
Em verdade, enquanto os terceiros são alheios ao processo penal, o arguido teve oportunidade de defesa e de contraditório sobre as questões suscitadas.
“Não se trata aqui, diretamente, da eficácia extraprocessual da prova produzida no processo penal, mas da eficácia probatória da própria sentença, independentemente das provas com base nas quais os factos tenham sido dados como assentes. A presunção estabelecida difere das presunções stricto sensu, na medida em que a ilação imposta ao juiz cível resulta do juízo de apuramento dos factos por um ato jurisdicional com trânsito em julgado; não está, porém, em causa a eficácia do caso julgado (ao contrário do que a inserção dos artigos que regulam a matéria poderia levar a supor), mas a eficácia probatória da sentença penal. Ver MARIA JOSÉ CAPELO, “A sentença entre a autoridade e a prova: em busca de traços distintivos do caso julgado civil”, Coimbra, Almedina, 2015, ps. 149-224 e 394 : afastada a ideia de que a vinculação do juiz cível à sentença penal constitua um fenómeno de caso julgado, a autora entende que nos encontramos perante uma "situação sui generis, cuja consagração não tem em consideração tanto a dificuldade de prova dos factos "presumidos", mas sim uma "confiança” na averiguação dos factos feita pelo juiz penal”.
Por isso, aquela mesma autora (in ob cit, p. 169) refere que Lebre de Freitas/Montalvão Machado/Rui Pinto, no CPC Anotado, Vol. II, reconduzem o fenómeno a uma questão de “ distribuição de prova”, explicitando, por exemplo, a propósito da eficácia de uma sentença penal condenatória que “ o titular do interesse ofendido não tem ónus de provar na ação civil subsequente o ato ilícito praticado nem a culpa de quem praticou, sem prejuízo de continuar onerado com a prova do dano sofrido e nexo de causalidade”.
Sem embargo, e seja qual for a teoria utilizada para classificar a situação (ou a do efeito reflexo do caso julgado ou a teoria da extensão do caso julgado ou da eficácia probatória da sentença penal, enquanto questão de distribuição de prova), cremos que ainda assim se poderá dizer com toda a propriedade o seguinte:
-em relação ao arguido condenado no processo penal opera plenamente e sem quaisquer restrições a autoridade do caso julgado da sentença penal no que tange à matéria da autoria, da ilicitude e da culpa, estando vedado ao arguido num subsequente processo cível entre as mesmas partes ilidir a presunção decorrente da sentença penal. Dito de outro modo: os factos que foram considerados provados na sentença penal, têm de ser atendidos na sentença cível como factos provados, não sendo admissível contrariá-los por qualquer meio de prova.[15]
-apenas um terceiro é que poderá ilidir a presunção estabelecida no art.º 623º do CPC, em homenagem ao princípio do contraditório, alegando factos e produzindo prova para demonstrar que o arguido não praticou os factos pelos quais foi condenado”[16].

Em concreto, nos presentes autos, o Tribunal respigou apenas alguns dos factos dados como adquiridos no processo em causa, assim os incorporando na factualidade que considerou assente (no Facto 5.), mas, de facto, o mais correcto – considerando que estava também convocada para apreciação a matéria de um eventual abuso de direito que fundamentasse a indignidade sucessória do Réu – haveria de ter sido transcrita toda a factualidade naquele apurada.
E afirmamos que não há propriamente divergência quanto a esta questão factual, uma vez que o Réu em momento algum – mesmo nas suas Contra-Alegações – defende que os factos provados na Sentença penal não o vinculam, apenas entendendo que os que já foram transcritos são suficientes.
E até poderão sê-lo, mas é o acervo factual deles resultante permite ter a visão global essencial para a apreciação de todas as questões a decidir neste processo (considerando todas as possíveis apreciações de Direito que sobre ele incidam), motivo pelo qual se determina, dando parcial provimento à reclamação formulada, que passe a constar como Facto 6. toda a factualidade dada como assente no Acórdão proferido no Processo n.º 410/20.7GDTVD, a 18 de Maio de 2022, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte Juízo Central Criminal de Loures - Juiz ….
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O Direito
O Tribunal a quo prolatou a Sentença sob recurso assentando no seguinte processo de raciocínio:
A - Os Autores intentaram a presente acção pedindo que seja declarada a incapacidade sucessória do Réu, face ao seu pai, por indignidade, ou com fundamento no abuso de direito.
B - A capacidade sucessória consiste na idoneidade para ser destinatário de uma vocação sucessória, da aptidão para ser chamado a suceder como herdeiro ou como legatário, encontrando-se o seu princípio geral enunciado no artigo 2033.º do Código Civil.
C - A lei qualifica a indignidade como incapacidade sucessória nos artigos 2034.º e seguintes do Código Civil.
D – O artigo 2034.º elenca as causas que podem conduzir àquela incapacidade, sancionando, assim, a prática de determinados actos graves por alguém, contra o autor da herança, o seu cônjuge ou familiares diretos.
E - A indignidade baseia-se não numa razão objectiva (como a incapacidade natural ou física do herdeiro ou do legatário), mas numa circunstância de raiz puramente subjectiva, traduzida numa atitude de repúdio da lei pelos factos graves cometidos por alguém contra o autor da herança, seu cônjuge ou familiares mais próximos.
F - Conforme refere Oliveira Ascensão, as indignidades são situações em que, a um acto ilícito de um sucessível, praticado contra o autor da sucessão, a lei reage estabelecendo como sanção o seu afastamento da sucessão.
G - Muitas vezes, com a sanção da indignidade procura-se também evitar que o ato ilícito se torne lucrativo para aquele que o praticou.
H - A enumeração das causas de indignidade que constam do artigo 2034.º é taxativa, tendo sito essa a intenção do legislador, pois da letra da lei não resulta o caráter exemplificativo das causas de indignidade ou dos tipos legais de crime ali referidos, tratando-se de uma excepção à regra da capacidade sucessória prevista no artigo 2033.º, não sendo possível o recurso à analogia (artigo 11.º do Código Civil), nem à interpretação extensiva, pois resulta com clareza do texto da lei (artigo 2034.º, n.º 1, a), Código Civil), a intenção do legislador exigir a condenação como autor ou cúmplice de homicídio doloso (“O condenado como autor ou cúmplice de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, descendente, ascendente, adotante ou adotado”.
I – A indignidade é uma pena civil, que se funda no ato reprovável do indigno e que pune o indigno nos termos do n.º 1 do artigo 2037.º do Código Civil, que prevê: “Declarada a indignidade, a devolução da sucessão ao indigno é havida como inexistente, sendo ele considerado, para todos os efeitos, possuidor de má fé dos respetivos bens”.
J – A indignidade é uma consequência autónoma de natureza civil, da condenação penal, e não de um dano decorrente da prática do crime respetivo, que sobrepõe-se à vontade privada, ou seja, verificado o circunstancialismo previsto no artigo, o agressor perde a capacidade sucessória, quer a sua vítima queria, quer não.
K - Para que seja declarada a indignidade exige-se uma prévia condenação do indigno, por sentença transitada em julgado, como autor ou cúmplice da prática do crime de homicídio doloso em sentença penal, estando afastada a possibilidade de prova dos factos que constituem o ilícito em acção cível, pois a condenação em processo penal, transitada em julgado, constitui um pressuposto da propositura da acção declarativa de incapacidade por indignidade.
L - A lei restringiu a indignidade à forma mais ignominiosa do atentado contra a vida, o homicídio doloso, só que atendendo à sua especial gravidade abrangeu as diversas formas puníveis do iter criminis, na participação tanto de autoria como de cumplicidade, sendo que, face à importância dos efeitos, exigiu uma certeza da prática de tal crime, traduzida no requisito da existência de condenação, transitada em julgado.
M - São relevantes para efeitos de indignidade sucessória, não apenas o homicídio doloso consumado mesmo que atenuado (v.g. o homicídio a pedido da vítima), mas também a tentativa de homicídio e o homicídio frustrado, mas já não os casos de homicídio em que se verifique a exclusão da ilicitude e da culpa ou inimputabilidade do agente.
N – No caso dos autos, o Réu foi absolvido da prática do crime de homicídio qualificado (na pessoa de seu pai), de que vinha acusado, tendo sido declarado, porque assim resultou da factualidade provada, que praticou factos qualificados pela Lei Penal como crime de Homicídio p. p. pelo artigo 131.º do Código Penal.
O – Ou seja, resultou provado que o Réu, por decisão transitada em julgado, praticou factos qualificados como crime de homicídio doloso na pessoa do seu pai e que foi declarado inimputável em razão de doença psiquiátrica irreversível (esquizofrenia associada ao consumo de canabinóides, que o impede de avaliar a ilicitude dos seus actos do prisma da realidade), não lhe tendo sido aplicada qualquer pena (mas sim uma medida de segurança), mas declarado que existe perigo de prática de novos ilícitos criminais e aplicada a medida de segurança de duração não inferior a três anos e não superior a vinte e cinco anos, que não foi suspensa.
P – Esta factualidade não se enquadra na previsão do artigo 2034.º, alínea a) do Código Civil, não sendo possível, como já referido, o recurso à analogia ou interpretação extensiva do referido normativo.
Q – Importa verificar se, por força do instituto do abuso de direito, pode ser declarada a incapacidade sucessória do Réu, com recurso ao artigo 334.º do Código Civil.
R - Existe abuso do direito sempre que o respectivo titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, existindo quando um certo direito (admitido como tal em tese geral), surge num determinado caso concreto, exercitado em termos ofensivos da justiça.
S - Existirá, pois, abuso do direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado.
T - Pretende-se que, em certas circunstâncias concretas, um direito não seja exercido de forma a ofender gravemente o sentimento de justiça dominante na sociedade
U - Ou seja, os direitos subjetivos e o seu exercício não são garantidos sem limites, havendo que indagar se, no caso concreto, existem circunstâncias ou relações especiais em virtude das quais o exercício do direito incorre em contradição com a ideia de justiça.
V - A concepção adotada de abuso do direito é a objetiva. Não é necessária a consciência malévola de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social e económico do direito, basta que se excedam esses limites, ou seja, que a significação e alcance objectivo do comportamento do titular ultrapasse gravemente o uso normal do mesmo direito.
W - Não é necessário que o abusador tenha consciência de que a sua acção é realmente abusiva, bastando que, na realidade, o seja.
 X - Exige-se que o excesso cometido seja manifesto, isto é, deve ser clamorosamente ofensor da justiça, do sentimento jurídico socialmente dominante.
Y - In casu e com fundamento no instituto do abuso de direito, deve ser declarada a incapacidade sucessória do Réu na herança aberta por óbito de seu pai, uma vez que reconhecer-lhe capacidade sucessória relativamente ao pai, contra quem atentou intencionalmente contra a vida, como resulta da factualidade provada no processo penal, e ainda que tenha sido declarado inimputável, ofende o sentimento ético-jurídico dominante, os valores dominantes na sociedade actual, afronta a moralidade e os bens costumes e o sentido de justiça.
Z – É chocante e atentatório do mais elementar sentido de justiça que um filho que intencionalmente praticou factos que retiraram a vida a seu pai, possa ser seu herdeiro, consubstanciando um atentado ao fim social e económico do direito de suceder.
AA – No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07 de Janeiro de 2010 (Processo n.º 104/07.9TBAMR.S1-Pires da Rosa) - a propósito de uma situação que não tinha cabimento legal no artigo 2034.º do Código Civil – considerou-se existir abuso de direito, decidindo manter-se a declaração de indignidade (após concluir pela inaplicabilidade do artigo 2034.º), escreveu-se:
“(…) Quer então isto dizer, inelutavelmente, que ao réu BB deve ser reconhecida a capacidade sucessória na herança aberta por óbito de sua filha CC, deve ser-lhe reconhecido o direito de suceder a esta sua filha, que violou em 1993 quando ela tinha apenas quinze anos, que em 1994 obrigou a abortar, e que depois de cumprida a pena de seis anos que lhe foi aplicada continuou a injuriar, envergonhando-a e humilhando-a perante quem estivesse presente, como aconteceu ainda no ano de 2005, junto à estação rodoviária de Braga, quando se lhe dirigiu apelidando-a de “puta”?
Não, não deve. Isso seria de todo em todo intolerável, inaceitável para uma consciência ética e de valores, que não suportaria premiar com a vida, o valor da vida, aquele pai que sem contemplações roubou a honra de sua filha.
Isso brigaria frontalmente, e de uma forma violenta, com o princípio da dignidade da pessoa humana inscrito logo no art.º 1º da Constituição da República Portuguesa como conformador da nossa identidade enquanto povo soberano, porque seria dar a vida de alguém a quem a esse alguém roubou a honra.
Seria um atentado manifesto aos bons costumes e mesmo ao fim social e económico desse direito, o direito de suceder. E quando os limites assim impostos ao direito são dessa maneira tão manifestamente excedidos, o direito não é, o direito não existe.
O direito tem limites internos cuja ultrapassagem é a entrada no não direito.
É o abuso do direito tal como define o art.º 334º do C Civil.
Parece aqui haver alguma intrínseca contradição naquilo que vimos dizendo, uma vez que afirmamos atrás que o crime praticado pelo réu não está incluído na taxatividade definida como excepção no art.º 2034º e então, porque está fora dela, haveria que aceitar a regra da capacidade sucessória.
Não há contradição alguma.
Continuaremos a afirmar que, por si só, o crime praticado pelo réu não o faria cair na excepção da incapacidade por indignidade.
O que dizemos é que as circunstâncias concretas do caso conduzem a que o reconhecimento do direito do réu a suceder a sua filha – tão mais evidentes quanto a herança é o direito à indemnização por morte dela! – viola manifestamente aquilo que são as concepções ético-jurídicas dominantes; o reconhecimento desse direito afrontaria de uma forma clamorosa aquilo que a moralidade e os bons costumes exigem, afrontaria clamorosamente (também) aquilo que o direito tem em vista ao garantir, mesmo constitucionalmente (art.º 62º da Constituição), o direito à transmissão dos bens e que a lei civil, no caso da sucessão legal – art.º 2131º e seguintes – reconduz ao cônjuge e aos (certos) parentes (para além do inevitável estado, à falta daqueles).
A ideia de que os bens devem permanecer no domínio da família quando as gerações se sucedem umas às outras seria afrontosamente torturada se se concedesse a este, ao réu BB, o direito de suceder à falecida CC porque ele se auto-excluiu da substancial ideia de família.”
BB - Pelo exposto, e com fundamento no abuso de direito (por se encontrarem verificados os pressupostos legais), importa declarar a incapacidade sucessória do Réu quanto ao seu pai.

A Sentença mostra-se elaborada de forma consistente e estruturada, clara no seu raciocínio e bem fundamentada.
Resta saber se lhe assiste razão.
O Recorrente entende que não, basicamente por entender que o facto de ter sido julgado inimputável o exclui do âmbito do artigo 2034.º e de não haver fundamento para se fazer funcionar o abuso de direito.
A situação jurídica a apreciar não tem uma resposta fácil nem linear, uma vez que são várias as perspectivas que merecem atenção.
Normativamente começarmos por ser remetidos – em especial – para os artigos:
- 2031.º (momento e lugar), que define o onde e o quando se abre uma sucessão: “o momento básico de verificação dos pressupostos da vocação, é o da abertura da sucessão”[17];
 - 2032.º (chamamento de herdeiros e legatários), que “faz depender a vocação da «necessária capacidade», o que parece envolver em si mesma várias consequências:
Desde logo, a de a capacidade ser requisito da vocação, uma vez que a sua falta exclui o chamamento; mas, para além disso, a de a capacidade ter de existir no momento da abertura da sucessão (…)”[18]
- 2033.º (princípios gerais), que define quem tem capacidade sucessória (“para além do Estado, todas as pessoas nascidas ou concebidas ao tempo da abertura da sucessão, não exceptuadas por lei”[19]), de modo que – sem dificuldades – podemos dizer “que a capacidade sucessória é a regra”[20], sendo que, como discorre linearmente Cristina Pimenta Coelho, se trata de “uma noção típica do Direito das Sucessões, que podemos definir como a idoneidade para ser destinatário de uma vocação sucessória. É, por conseguinte, um conceito que em nada se relaciona com a noção de capacidade jurídica que conhecemos: não se trata de uma incapacidade natural, pelo que os menores, os interditos e os inabilitados não carecem, ipso facto, de capacidade sucessória. (…) Por outro lado, a capacidade sucessória é um conceito relativo, já que se reporta sempre à sucessão de uma pessoa determinada. Ninguém sofre de uma incapacidade sucessória genérica”[21]. Em suma e recorrendo a Pamplona Corte-Real, “o conceito de capacidade sucessória parece recondutível a um conceito de capacidade de gozo específico no campo sucessório e não a um conceito de capacidade de exercício”[22].
- 2034.º (incapacidade por indignidade)[23], que afirma carecerem de capacidade sucessória[24], por motivo de indignidade[25], aqueles que praticarem quatro tipos de actos[26]:
- condenados por autoria ou cumplicidade em homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, descendente, ascendente, adoptante ou adoptado (a));
- condenados por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas, relativamente a crime a que corresponda pena de prisão superior a dois anos, qualquer que seja a sua natureza (b));
- por meio de dolo ou coacção induzam o autor da sucessão a fazer, revogar ou modificar o testamento, ou disso o tenham impedido (c));
- dolosamente tenham subtraído, ocultado, inutilizado, falsificado ou suprimido o testamento, antes ou depois da morte do autor da sucessão, ou se tenham aproveitado de algum desses factos (d)).
Luís Menezes Leitão, a este propósito, afirma que, conforme “se pode verificar, a lei restringe as situações de indignidade a casos especialmente graves, de atentados contra a vida e honra do autor da sucessão e seus familiares, contra a liberdade de testar e contra o próprio testamento”[27].
Pires de Lima-Antunes Varela referiam que as “causas que justificam a incapacidade por indignidade baseiam-se “não numa razão objectiva (como a incapacidade natural ou física do herdeiro, ou do legatário), mas numa circunstância de raiz puramente subjectiva, traduzida numa atitude de repúdio da lei pelos factos graves cometidos por alguém contra o autor da herança, o seu cônjuge ou familiares mais próximos”[28].
Como de forma simples diz Rita Lobo Xavier, o “principal efeito da indignidade, é, nos termos do art.º 2032.º, n.º 1, parte final, tornar inexistente a eventual vocação do indigno”[29] e é por isso que estão em causa – claramente - situações excepcionais (pois todos têm, à partida, capacidade sucessória como decorre do citado artigo 2033.º, n.º 1), em que a lei, nas palavras de Rabindranath Capelo de Sousa, “considera certas pessoas, perante outras, como inidóneas para lhes sucederem como herdeiras ou legatárias, pelo que desde logo e radicalmente, não lhes atribui legitimidade para serem destinatárias da vocação sucessória relativamente ao património hereditário dessas outras pessoas.
Isto pode acontecer por legalmente se entender que, pelo seu comportamento face ao de cuius, determinadas pessoas se tornaram indignas, socialmente ou de acordo com a vontade presumível do de cuius, de lhe suceder (é o caso das situações do art.º 2034.º)”[30].
Paula Ribeiro de Faria vai mais longe e entende que o que guia a formulação deste artigo “ou, pelo menos, as suas alíneas a) e b), uma vez que o regime que corresponde as alíneas c) e d) parece ser completamente distinto, é a intolerabilidade social das condutas praticadas contra o autor da sucessão, e o consequente abuso de direito que traduziria o benefício da sucessão”[31].
No que à primeira situação se reporta (por ser a que releva para a apreciação dos presentes autos), conclui Oliveira Ascensão que, com a alínea a), “quis a lei desanimar o recurso ao homicídio como via de aquisição sucessória”[32], isto depois de assinalar que as indignidades se reportam a “situações em que, a um acto ilícito de um sucessível, praticado contra o autor da sucessão, a lei reage estabelecendo como sanção o seu afastamento daquela sucessão”, e acrescentar (o que pode ter relevância quando se tornar necessário iluminar a solução jurídica para a situação dos presentes dos presentes autos), que muitas “vezes, com a sanção de indignidade, procura-se também evitar que o acto ilícito se torne lucrativo para aquele que o praticou”[33].
João Paulo Remédio Marques, sobre esta alínea, afirma ser “inquestionável o fundamento ético desta previsão, punindo o sucessor que atenta contra a vida daquele a quem iria suceder mortis causa.
O que corresponde ao antigo provérbio germânico, segundo o qual “mão ensanguentada não apanha a herança” (blutige Hand nimmt kein Erbe), o mesmo se surpreendendo na apóstrofe do direito francês, de acordo com a qual “não se herda daquele que se assassina” (on n’héredite pás de ceux qu’on assassine).
Com efeito, nenhuma outra causa de indignidade revela tanta gravidade e causa tanto temor, repulsa e ignomínia, pois mostra o total desprezo e desrespeito do indigno pela vida e pela própria pessoa do de cuius. O que justifica que se faça cessar qualquer laço ético-jurídico que justifique a sucessão do criminoso na herança da vítima, do seu cônjuge, ascendentes ou descendentes”[34].
Focado na referida alínea a), Rodrigues Bastos escrevia o seguinte:
“Condição indispensável para se verificar a causa de indignidade prevista na alínea a) é a de que o herdeiro tenha sido condenado como autor ou cúmplice de homicídio doloso, consumado ou tentado; se faleceu antes da condenação, o preceito não é aplicável, o mesmo sucedendo se a acção penal prescreveu, ou se o facto foi amnistiado antes do julgamento[35].
Quid juris se o herdeiro matou o autor da sucessão em excesso de legítima defesa? A solução é duvidosa. Parece-nos, no entanto, que o carácter cominatório do preceito impõe que este seja interpretado restritivamente”[36].
Perante este contexto, a situação que o processo nos apresenta – o ora Réu praticou um homicídio[37] na pessoa do seu pai e outro na pessoa da sua própria irmã (incluindo um crime de aborto) - com uma violência que não permite qualificação distinta a brutal -, mas não foi por eles punido criminalmente, mas sim absolvido (por ter sido considerado “inimputável em razão de doença psiquiátrica irreversível – Esquizofrenia associada ao consumo de canabinóides - que o impede de avaliar a ilicitude dos seus atos do prisma da realidade e, consequentemente, não lhe aplicar qualquer pena”), tem como directa consequência a exclusão da aplicabilidade da alínea a) do artigo 2034.º.
Convém aliás ter presente que é significativa a circunstância de o Colectivo do processo penal em que o ora Réu foi julgado pelo homicídio do pai e da irmã, não ter aplicado a norma prevista no artigo 69.º-A[38] (Declaração de indignidade sucessória) do Código Penal, o qual refere que: “A sentença que condenar autor ou cúmplice de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, descendente, ascendente, adoptante ou adoptado, pode declarar a indignidade sucessória do condenado, nos termos e para os efeitos previstos na alínea a) do artigo 2034.º e no artigo 2037.º do Código Civil, sem prejuízo do disposto no artigo 2036.º do mesmo Código”[39] (ou seja, a declaração nos termos deste preceito, nem pressupõe a existência de um qualquer enxerto cível, nem está sujeita ao princípio do pedido, operando automaticamente).
E não o fez… porque não o podia fazer, uma vez que o ora Réu e ali arguido, não foi condenado pela prática do crime (ou seja, a declaração nos termos do artigo 69.º-A do CP não pressupõe qualquer enxerto cível nem está sujeita ao princípio do pedido, operando automaticamente[40]).
Os factos praticados pelo ora Réu estão provados, mas, como se assinalou no Acórdão da Relação de Lisboa de 23 de Setembro de 2010 (Processo n.º 1280/09.1TBMTA.L1-8-Caetano Duarte), todo “o regime da indignidade aponta para a necessidade de condenação criminal não bastando a prova dos factos que poderiam levar a essa condenação”[41].

De facto, como assertivamente conclui Jorge Duarte Pinheiro, as “causas enumeradas no art.º 2034.º são as únicas que podem implicar a indignidade, por esta carretar a aplicação de uma sanção punitiva (exclusão da sucessão devida à prática de certos factos considerados censuráveis), sujeita ao princípio da legalidade”[42].
Com a mesma clareza, Cristina Pimenta Coelho, sublinha que, tendo “a indignidade a natureza de uma pena civil, sendo vista como uma sanção de caráter civil, não nos parece que possamos alargar o elenco aqui previsto. Como a regra é a da capacidade sucessória, o art.º 2034.º assume o caráter de norma excecional, não admitindo aplicação analógica. Não é, assim, possível, alargar o elenco das causas de indignidade”[43] [44].
Na Doutrina portuguesa apenas Oliveira Ascensão[45] e João Lemos Esteves[46] alinham em distinto diapasão[47], defendendo que, sem prejuízo “se encontrar um acento restritivo no enunciado das causas de uma penalização tão grave como a exclusão da sucessão”, nos encontramos diante de uma tipicidade delimitativa. “Ou seja, que não é possível uma analogia livre, a partir do conceito de indignidade, mas é possível a analogia mais limitada, a partir de alguma das causas previstas na lei. Por outras palavras, seria possível a analogia iuris, mas já não seria possível a analogia legis[48].
Santos Justo, este propósito, eivado da base romanista do nosso direito, diz o seguinte: “No direito português, a doutrina questiona se as causas de indignidade previstas no art.º 2034º. do Código Civil são taxativas.
A resposta é unânime, mas a solução dada a situações muito semelhantes e não previstas não é pacífica: há quem entenda que pode recorrer-se à analogia legis e não à analogia iuris, por se tratar duma taxatividade delimitativa; e quem, invocando a metodologia que tende a impor-se nos nossos dias, considere que a analogia iuris (afinal a única analogia) não está afastada.
Assim se afasta, como indigno, quem se comportou de tal maneira que seria absurdo chamá-lo a herdar de quem tão gravemente ofendeu”[49].

Rodrigo Mazzei chama a atenção de que o “princípio da taxatividade (…) está vinculado à criação dos cardápios legais, ou seja, da própria eleição pelo legislador para integrar rol específico (numerus clausus). Com tal bússola, a taxatividade é facilmente aferível” – por exemplo, no nosso artigo 2034.º, diríamos nós – “quando se observa que o legislador apontou quais as condutas que resultam na exclusão de herdeiros e legatários da sucessão, isto é, a taxatividade consiste na seleção de hipóteses de indignidade”, mas também não pode esquecer-se que “taxatividade e tipicidade não se confundem, haja vista que a segunda diz respeito aos contornos peculiares de cada hipótese eleita pelo legislador, em outros termos, a tipicidade se volta à análise individual dos elementos que compõem cada instituto que integra a listagem legal, enquanto a primeira se refere ao próprio rol”[50].
E desenvolve (com referência expressa, também, a Oliveira Ascensão), acrescentando que a “depuração das áreas de taxatividade e da tipicidade não foi feita de forma clara no art.º 1.814 do Código Civil [que corresponde no direito brasileiro ao nosso 2034.º], pois os incisos do artigo de lei não só apontam as hipóteses que autorizam a exclusão da sucessão da indignidade (= taxatividade), como também as delimitam respectivamente (= tipicidade).
Na verdade, há uma “concentração” da taxatividade e da tipicidade no art.º 1.814 do Código Civil, uma vez o que o legislador não apenas enumera abstratamente as hipóteses de indignidade, como também as detalha em cada inciso.
Em outras linhas, extrai-se que o legislador discriminou hipóteses que autorizam a exclusão de legatários e de herdeiros da sucessão (taxatividade), bem como, em cada inciso do art.º 1.814 do Código Civil apresentou desenho próprio do encaixe, delimitando seus contornos (tipicidade).
A partir das ponderações até aqui aduzidas, infere-se que o inciso I do art.º 1.814 do Código Civil contempla tanto a taxatividade quanto a tipicidade. Isso porque apresenta tanto um rol fechado, que não permite o acréscimo de outras situações, assim como desenha as fronteiras das hipóteses eleitas, fechando os seus gabaritos.
Dessa forma, há de ser ter cuidado na análise do art.º 1.814 do Código Civil, pois a interpretação dos seus incisos pode se voltar à aferição da tipicidade e não necessariamente à taxatividade. A observação acima trazida merece atenção, pois, ainda que as áreas sejam diversas, a tipicidade também está atrelada à lei, de tal sorte que o intérprete não possui liberdade para alargá-la, senão em trechos permitidos pela própria legislação.(…)
Sem prejuízo do exposto, a taxatividade não pode ser vista com vínculo topológico, de modo a concentrar em norma única todas as figuras eleitas pelo legislador para determinada finalidade.
O rol legal, em outros termos, não precisa ser único, mas deve sempre estar composto de institutos ditados pela lei.
Assim, é perfeitamente admissível, sem ferir a taxatividade, que determinada figura não esteja contemplada no cardápio geral (que aglutina as hipóteses mais comuns), mas tenha também contemplação na lei, ou seja, com deslocamento geográfico no plano legal. (…)
As rápidas palavras cravadas mostram que a análise da taxatividade não pode ser hermética, caindo em interpretações gramaticais e topológicas (e que, inclusive, podem confundir com a sua análise com a da tipicidade das figuras).
Seguindo tal assertiva, há movimentos que devem ser feitos em favor da norma que dita a taxatividade, a fim de que esta possa ser perfeitamente dimensionada e identificada.
No particular, denominamos de acoplamento por atração o procedimento do intérprete em identificar situações que estão previstas em lei (e, portanto, em respeito à taxatividade) e que devem ser trazidas para a alocação no rol principal. (…)
Portanto, o procedimento de acoplamento por atração não vulnera a taxatividade, haja vista que o preenchimento em questão se dá a partir de figura ou hipótese prevista em lei.
Ademais, ainda que não se revele um método de interpretação propriamente dito, cumpre salientar que, em determinados dispositivos, o mecanismo permite a cognição correta da tipicidade que o artigo de lei molda”[51].
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No que à Jurisprudência portuguesa se reporta, encontramos:
- o Acórdão da Relação de Lisboa de 26 de Fevereiro de 1991 (Processo n.º  0038121-Santos Monteiro), onde se afirma que a “alínea a) do art.º 2034, do CC, não pode ser aplicada analogicamente, de modo a que, para a declaração da indignidade, bastasse a prova em processo cível da prática do crime de homicídio doloso”;
- o Acórdão da Relação de Lisboa de 09 de Dezembro de 2003 (Processo n.º  9860/2003-7-Proença Fouto), onde se afirma que o “herdeiro legitimário de sua mulher em relação à qual cometeu o crime de homicídio voluntário, carece de capacidade sucessória para herdar bens da herança aberta daquela que ele mesmo, dolosamente, perpetrou”;
- o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01 de Março de 2006 (Processo n.º 06P113-Silva Flor), onde, a propósito da questão de um putativo interesse em agir por parte dos assistentes (avós maternos dos filhos menores da vítima de homicídio, mãe destes, perpetrado pelo pai arguido, não tendo este sido condenado[52]):
- deu como presente esse interesse “na medida em que da condenação do arguido podem resultar efeitos a nível sucessório – o arguido poderá ser privado da sua capacidade sucessória (art.º 2034.º, al. a), do CC) - e a nível de direito de família - a condenação do arguido poderá eventualmente relevar para efeitos de inibição ou limitação do exercício do poder paternal (art.º 1915.º do CC)”;
- considerou que “a al. a) do art.º 2034.º do CCiv. estabelece expressis verbis que carece de capacidade sucessória, por motivo de indignidade, o condenado como autor ou cúmplice de homicídio doloso, contra o autor da sucessão, devendo a declaração de indignidade ser obtida por via de acção, a fim de ser havida como inexistente a devolução da sucessão ao indigno, sendo ele considerado para todos os efeitos, possuidor de má fé dos respectivos bens (cfr. art.ºs 2036.º e 2037.º do CCiv.);
- assumiu que “a expressão "condenação por homicídio doloso", constante da cit. al. a) do art.º 2.034.º do CCiv., não se confunde e muito menos é sinónimo do desfecho que os autos tiveram na 1.ª instância, que (além do mais) julgou "verificados os elementos típicos, de carácter objectivo, de um crime de homicídio qualificado (...), tendo os respectivos factos sido praticados pelo arguido", que foi aí julgado "inimputável relativamente à prática de tais factos" e sujeito à medida de segurança de "internamento (...) em estabelecimento adequado ao seu tratamento, por período não inferior a 3 (três) anos".
VI. Por outro lado, a condenação por homicídio doloso terá ainda inegáveis reflexos no que concerne ao poder paternal, seja na vertente mais ampla da inibição do respectivo exercício por parte do arguido e pai dos menores, seja somente em termos de limitação desse mesmo exercício”;
- o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Março de 2007 (Processo n.º 07P569-Alves Velho), onde se escreve que:
- não “pode haver lugar à declaração de indignidade sucessória do herdeiro que, indiciado por homicídio do autor da herança, não foi, pela prática do respectivo crime, condenado em processo penal”;
 - “Nada autoriza, designadamente em caso de extinção do procedimento criminal por morte do agente indiciado, a aplicação da norma do art.º 2034º-a) C. Civil, por via de recurso à analogia ou a interpretação extensiva do preceito”;
- “De harmonia com o disposto no art.º 10.º-1 C. Civil, deve o julgador aplicar aos casos omissos as normas que directamente disponham para casos análogos. A analogia existe, como do n.º 2 do preceito se colhe, quando no caso omisso concorram as mesmas razões justificativas da solução encontrada pela lei, isto é, quando “o critério valorativo adoptado pelo legislador para compor esse conflito de interesses num dos casos seja por igual ou maioria de razão aplicável ao outro” – BAPTISTA MACHADO (“Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, 202) – justificando-se o recurso à analogia por razões de coerência do sistema e de justiça relativa, tudo postulado pelo princípio da igualdade e pela certeza do direito”;
- “como referem P. DE LIMA e A. VARELA (ob. cit., I, 4ª ed., 59), (…) “a analogia das situações mede-se em função das razões justificativas da solução fixada na lei, e não por obediência à mera semelhança formal das situações”;
- a extinção do procedimento criminal contra o putativo indigno “não constitui, a nosso ver, um caso omisso, um caso que sendo relevante, não constitui objecto de disposição legal. Diferentemente, o caso é objecto de previsão e regulamentação justamente na al. a) da norma que se pretende ver aplicada por analogia”;
- “para além da previsão do facto ilícito gerador do efeito jurídico, a mesma norma exige um outro requisito, de natureza exógena e processual, que consiste na verificação e declaração definitiva do facto e sancionamento do agente pelo tribunal materialmente competente. Não se pode falar de incompletude ou falha de previsão que deva ser integrada, no sentido de que a lei não contém uma resposta à questão jurídica. A lei contempla a situação de comissão de homicídio contra o autor da herança, mas condiciona a eleição do acto criminoso a causa de declaração de indignidade à condenação penal transitada”;
- “tal sucede porque, certamente atendendo às razões subjectivas que sustentam o repúdio da lei pelos factos de natureza criminosa que, pela sua gravidade, elegeu à categoria de determinantes da indignidade, manteve deliberadamente a exigência de condenação penal que vinha do direito anterior, dispensando-a quanto aos factos que enuncia nas als. c) e d) do artigo, atendendo à sua diferente natureza”;
- “A tal não será certamente estranho o princípio, com consagração constitucional – art.º 32º-2 CR – da presunção de inocência, desde logo na sua vertente de dever considerar-se inocente quem não foi ainda julgado culpado por sentença transitada em julgado, mesmo sem curar aqui de questões que podem prender-se, por exemplo, com a imputabilidade do agente, o que não é indiferente face à opção pela natureza não objectiva das causas de indignidade”;
- a “gravidade da declaração de indignidade e dos factos que o legislador seleccionou como suas possíveis causas, bem como os requisitos de que as fez depender, conduzem-nos, ainda, ao entendimento que devem considerar-se taxativas as causas de incapacidade sucessória enunciadas no art.º 2034º”;
- “à razão de ser da lei, enquanto norma de fixação da causa de indignidade, não repugnaria a abrangência de casos como o ajuizado, demonstrado que fosse facto ilícito criminoso. Porém, como já se viu, nem a letra nem o espírito da lei comportam o entendimento de que a mesma diga menos o do que aquilo que pretendia dizer. Não se trata, mais uma vez, de a lei contemplar uma situação, estabelecendo o respectivo regime jurídico, deixando de fora situações que, pelos mesmos ou mais fortes motivos (argumentos a pari e a fortiori), haveriam de ser abrangidas pela mesma lei. A situação está contemplada, mas tem a respectiva relevância condicionada a certos requisitos de reconhecimento e eficácia”;
- o Acórdão da Relação do Porto de 14 de Novembro de 2007 (Processo n.º 0745542 - Abílio Ramalho), em cujo sumário nada se refere a esta matéria, mas que no seu texto (e a propósito de um pedido de indemnização cível formulado pelos ascendentes da autora da sucessão, ainda antes da condenação penal pelo homicídio causado pelo cônjuge da vítima e seu filho menor), aprecia em sede recursiva um Acórdão de 1.ª Instância em que:
- se questionou sobre “o que dizer de situações, como a vertente, em que uma das herdeiras (…)é, precisamente, a responsável pela morte do de cuius, e em que o outro dos herdeiros soube do plano que se gizava para causar a morte ao autor da sucessão, acompanhou o seu desenvolvimento, concordou com a sua concretização, foi mantido informado dos eventos pelos intervenientes em tais actos, e posteriormente até colaborou na destruição de vestígios resultantes da prática do homicídio aqui em questão?”;
- se disse que a “resposta a esta questão terá de encontrar-se (…) no artigo 2034.º do Código Civil, que estabelece carecerem «de capacidade sucessória, por motivo de indignidade: a)”, mas que “a lei só considera «indigno» o condenado como autor ou cúmplice de homicídio doloso, o que pressupõe que a responsabilidade criminal do presumível herdeiro ou legatário tenha sido objecto de declaração por decisão firme”, não tendo a arguida visto “a sua responsabilidade pelos factos que praticou ser reconhecida por decisão transitada, já que o seu julgamento decorre ainda, e é perfeitamente possível que deste acórdão venha, no futuro, a ser interposto recurso, por um ou vários dos arguidos[53]. Por outro lado, também a eventual participação do filho menor do malogrado D………. nos factos aqui em apreço (para cuja apreciação se extraiu, a fls. 1546, a devida certidão) não dará lugar à sua condenação, na medida em que, sendo inimputável em razão da idade, só lhe poderá ser aplicada uma medida tutelar”;
 - se concluiu que “há que compaginar a norma da alínea a) do artigo 2034.º do Código Civil com o princípio da adesão obrigatória que vigora em processo penal (cfr. o artigo 71.º do Código de Processo Penal), e reconhecer que tendo qualquer pedido de indemnização cível emergente da prática de um homicídio que ser deduzido, obrigatoriamente, no processo crime, nada impede que neste se tome uma decisão que pondere os efeitos das conclusões alcançadas no tocante à responsabilidade jurídico-penal dos arguidos no processo para efeitos juscivilísticos, o mesmo é dizer, que retire, da condenação que se assentou já que é aqui de proferir, as devidas consequências, também do ponto de vista jus-sucessório. E afigura-se-nos, ademais, que face ao estabelecido no artigo 7.º, n.º 1, do Código de Processo Penal – conjugado com o mesmo princípio da adesão obrigatória da pretensão cível fundada na prática de um crime ao processo penal – que nada impede que nestes autos se aprecie igualmente a intervenção do filho menor do malogrado D………. nos factos aqui em apreço, para efeitos de decisão do pedido de natureza civil que aqui foi deduzido”;
- em consequência do que se decidiu que “não havendo dúvidas que a arguida B………., por via da sua participação, como co-autora, nos factos aqui em questão, se há-de ter por indigna para suceder ao seu marido (que, em conjunto com o arguido C………., matou), igual indignidade se devendo considerar extensiva ao filho do casal, o falado H………., que acompanhou o planeamento da morte do seu pai, com ela se conformou, tendo mesmo, quando solicitado pelos arguidos, procedido à destruição de pertences e documentos pertencentes ao seu progenitor, que sabia ter sido liquidado nas condições supramencionadas (o que o coloca, a nosso modo de ver, em posição, similar à do cúmplice/encobridor dos factos em causa, para efeitos das normas relativas à indignidade sucessória), não pode o Tribunal deixar de apreciar o pedido cível deduzido nos autos, por o mesmo ter sido apresentado por quem, na ordem legal de sucessão legítima, se mostra legitimado para o efeito, por ser sucessor do malogrado D………. – no caso, os progenitores deste”.
O Acórdão da Relação acaba, todavia, por revogar a decisão da 1.ª Instância, entendendo que:
- “só na falta de cônjuge e filhos ou outros descendentes da vítima mortal assistirá legitimidade aos demais enunciados grupos familiares, pela respectiva ordem legal, para exigir qualquer indemnização por danos não patrimoniais decorrentes da privação da sua vida”;
- “o cônjuge sobrevivo – arguida B………. – se encontra obviamente excluído do primeiro grupo de titulares do direito indemnizatório pelos danos morais resultantes da morte de D………., por que foi co-responsável, apenas no filho H………. se reunirá tal abstracto direito, [cujo exercício ainda poderá – virtualmente – ser processualmente manifestado em acção própria até ao termo do prazo de 15 (quinze) anos subsequente à morte do progenitor, em conformidade com o disposto nos normativos 498.º, ns. 1 e 3, do Código Civil - com referência ao art.º 118.º, n.º 1, al. a), do Código Penal –, e 72.º, n.º 1, als. d) e i), do C. Processo Penal, por representante legal, como é evidente, durante a sua menoridade e consequente incapacidade, (cfr. ainda art.ºs 122.º, 123.º, 124.º, 129.º e 130.º, do C. Civil)], dele ficando, dessarte, inexoravelmente afastados os progenitores do falecido, ora assistentes/demandantes E………. e F……….);
- “Ainda que divergente interpretação do citado art.º 496.º, n.º 2, do C. Civil, se acolhesse, no sentido da ingressão do direito indemnizatório pelos padecimentos e perda da vida da vítima do atentado mortal na titularidade das pessoas aí elencadas por via sucessória do falecido – como a realizada pelo colectivo julgador –, nunca, na situação sub judice, se poderia, de modo juridicamente válido, alcançar a diversa preconizada/produzida solução jurídica, de afastamento de ambos os sucessores da primeira classe definida quer no citado dispositivo quer no 2133.º, n.º 1, al. a), do mesmo compêndio legal – cônjuge e descendente –, por indignidade, por imediata/directa aplicação do estatuído no art.º 2034.º, al. a), do dito C. Civil, e de subsidiário chamamento dos da classe imediata – progenitores –, desde logo por axiomática inconstitucionalidade – que aos tribunais se impõe acautelar, (vide arts. 18.º, n.º 1, 202.º, n.º 2, e 204.º, da Constituição Nacional) –, decorrente, máxime:
2.2.1 - De desrespeito do direito fundamental à presunção de inocência até ao trânsito em julgado do respectivo acto condenatório (prevenido no art.º 32.º, n.º 2, da CRP), pela autoria do homicídio do de cujus, quanto à arguida/cônjuge, posto que a incapacidade/ilegitimidade sucessória por indignidade por autoria – ou cumplicidade – de homicídio do autor da sucessão só opera na sequência de referente condenação, naturalmente transitada em julgado, [cfr. art.ºs 2034.º, a), e 2035.º/1, do C. Civil];
2.2.2 - E, fundamentalmente, no que tange ao filho – menor – H………., da absoluta e inquietante desconsideração:
2.2.2.1 - Da sua inimputabilidade criminal em razão da idade (somente tinha 12 anos à época do acto homicida do progenitor), de todo impeditiva de qualquer – friccionada e/ou análoga (!) – condenação penal pressuposta pelo citado preceito 2034.º, al. a), (cfr. art.º 19.º do C. Penal), ainda que a título de cumplicidade, figura jurídica a que o colégio julgador equiparou o – tido por adquirido – conhecimento pessoal dos atinentes planos e efectivo assassinato do pai, e de posterior colaboração com os homicidas na eliminação de vária da sua documentação (!), (…);
2.2.2.2 - Do seu – e de todos – basilar/fundamental direito a um processo judicial equitativo, prevenido pelos art.ºs 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH); 12.º e 40.º da Convenção Universal sobre os Direitos da Criança (CUDC); 6.º da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais; 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – instrumentos jurídicos de direito internacional vinculativo do Estado Português, a eles aderente, (cfr. arts. 8.º, 16.º, 17.º e 18.º, n.º 1, da CRP) –, 20.º, ns. 1, 4 e 5, máxime, da Constituição Nacional Portuguesa – e no 2036.º do Código Civil –, onde pudesse [naturalmente por intermédio de representante legal, em razão da sua incapacidade de exercício de direitos e judiciária inerente à menoridade], com garantia de efectiva tutela jurisdicional, exercer os seus elementares direitos de defesa contra a hipotética imputação de indignidade, procedimento de todo inexistente, já que no âmbito do vertente – atinente a diversos sujeitos – nenhuma providência tendente ao suprimento da sua incapacidade civil e judiciária e à realização do pertinente contraditório foi – nem, aliás, poderia, pela própria natureza das coisas, ter sido – tomada (!)”.
- 3 – Em razão de tão desconcertante e evidente afronta a normas de direito internacional, constitucional e legal de carácter imperativo, tutelares de direitos fundamentais, impõe-se a – oficiosa – invalidação, por apodíctica nulidade, da vertente decisório-civilística do acórdão em análise, [cfr. art.ºs 18.º, n.º 1, 202.º, n.º 2, e 204.º, da Constituição Nacional; 8.º, n.º 2, 9.º, 280.º, n.º 1, 286.º, 294.º e 295.º do Código Civil; e 9.º, n.º 1, e 379.º, n.º 1, c), do CPP].
Destarte, assim reposta a que se nos afigura correcta/regular legalidade, haver-se-ão, inevitavelmente, os cidadãos demandantes E………. e F………. como destituídos de legitimidade para a manifestada exigência indemnizatória dos arguidos pelos invocados danos morais resultantes do seu definido acto homicida – quer a si próprios quer à pessoa do seu vitimado filho D………. –, que, como vimos supra, (cfr. II.D, item 2.1), assistirá exclusivamente ao filho do falecido, H………., em conformidade com o estatuído no art.º 496.º, n.ºs 2 e 3, do Código Civil, (cfr. ainda art.º 26.º, n.ºs 1 e 2, do C. P. Civil).
Decorrentemente do conhecimento – oficioso – de tal excepção dilatória impor-se-á a absolvição da instância cível definida pelos id. os demandantes dos arguidos-demandados B………. e C………., [cfr. art.ºs 288.º, n.º 1, d), 493.º, n.ºs 1 e 2, 494.º, e), e 495.º, do C. P. Civil, aplicáveis por força do 4.º do C. P. Penal]”;
- o Acórdão da Relação de Guimarães de 22 de Janeiro de 2009 (Processo n.º 2612/08-1- Rosa Tching), no qual se decidiu que:
- num conceito abrangente de honra cabem “todos os valores que se prendem com a “moral sexual” de cada pessoa e com os “sentimentos gerais da moralidade sexual”, valores estes que estão na base da incriminação dos crimes sexuais, designadamente do crime de violação p. e p. pelos art.ºs 201º e 208º, nº 1. al a) e nº3 do Código Penal de 1982, pelo que não se vê razão para deixar de fazer subsumir a conduta apurada do réu na causa de indignidade prevista na alínea b) do citado art.º 2034º do C. Civil, por analogia com esta previsão, em conformidade com o disposto no art.º 11º, nº1 do C. Civil”;
- “O art.º 2034º, al b) do C. Civil tem de ser objecto de aplicação analógica, por forma a nele se poder integrar os condenados pela prática de outros crimes de ofensa à honra do autor da sucessão desde que sejam mais graves do que aqueles que o próprio legislador nele previu expressamente ou de idêntica gravidade”;
- é de “considerar como indigno o comportamento do réu, que violou a autora da sucessão, sua filha menor, que engravidou-a e obrigou-a a abortar aos quinze anos de idade, impondo-se, por isso, afastá-lo da respectiva sucessão nos termos do disposto no art.º 2034º, al. b) do C. Civil”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Janeiro de 2010 (Processo n.º 104/07.9TBAMR.S1- Pires da Rosa)[54], que confirmou o Acórdão da Relação de Guimarães que antecede, mas alterou a sua fundamentação de Direito, entendendo que:
- “O art.º 2033º, nº 1 do CCivil estabelece um princípio geral de capacidade sucessória passiva, sendo que um sucessor é um beneficiário, é alguém que vê ingressar no seu património os bens de quem morreu”;
- “Há, todavia, e no que à sucessão legal diz respeito, duas situações em que, na perspectiva relacional entre quem morre e quem lhe vai suceder, a lei não suporta de todo em todo a transmissão beneficente que o autor da sucessão (ou os seus mais próximos) tenha sido vítima por parte do (original) sucessor de um atentado à vida, ou de um atentado grave ao seu património moral, através da utilização ínvia da máquina da justiça”;
- “A regra é, portanto, a da capacidade (art.º 2033, nº 1 do CCivil); no que à sucessão legal se reporta, a excepção são – e são apenas, taxativamente – as excepções previstas nas alíneas a) e b) do art.2034º”;
- “No mais, ficará no património da vítima a “punição civil” da perda da capacidade sucessória: na sucessão legítima dispondo livremente dos seus bens, usando o mecanismo da sucessão testamentária; na sucessão legitimária, utilizando o mesmo mecanismo para deserdar o seu agressor, nas situações previstas no art.2166º do CCivil”;
- “Não pode todavia reconhecer-se capacidade sucessória a um pai que violou uma filha de 14 anos, a obrigou a abortar aos 15 anos, após cumprir a pena de prisão em que foi condenado persistiu na ofensa a sua filha (que nunca lhe perdoou) e se vem habilitar à herança desta sua filha por morte dela aos 29 anos, em acidente de viação – reconhecer-lhe essa capacidade seria manifestamente intolerável para os bons costumes e o fim económico e social do direito de lhe suceder e portanto ilegítimo, por abusivo, esse mesmo direito”[55];
- o Acórdão da Relação de Lisboa de 14 de Maio de 2009 (Processo n.º 1355/07.1TCSNT.L1-8- Teresa Prazeres Pais), que decidiu uma situação na qual o “indigno” não chegou a ser condenado no processo crime porque… morreu. Nele se escreve:
- não ser “possível, nem mesmo pelo recurso à analogia ou à interpretação extensiva, a aplicação do disposto no artigo 2034º a), do Código Civil, a casos em que o autor, embora indiciado por facto criminoso, não veio a ser condenado por sentença penal pela respectiva prática”;
- “De harmonia com o disposto no art.º 10.º-1 C. Civil, deve o julgador aplicar aos casos omissos as normas que directamente disponham para casos análogos. A analogia existe, como do n.º 2 do preceito se colhe, quando no caso omisso concorram as mesmas razões justificativas da solução encontrada pela lei, isto é, quando “o critério valorativo adoptado pelo legislador para compor esse conflito de interesses num dos casos seja por igual ou maioria de razão aplicável ao outro” - justificando-se o recurso à analogia por razões de coerência do sistema e de justiça relativa, tudo postulado pelo princípio da igualdade e pela certeza do direito”;
- a situação do falecimento do arguido putativo indigno não constitui “um caso omisso, um caso que sendo relevante, não constitui objecto de disposição legal. Antes pelo contrário, o caso é objecto de previsão e regulamentação justamente na al. a) da norma que se pretende ver aplicada por analogia. O que acontece é que para além da previsão do facto ilícito gerador do efeito jurídico, a mesma norma exige um outro requisito, de natureza exógena e processual, que consiste na verificação e declaração definitiva do facto e sancionamento do agente pelo tribunal materialmente competente. A tal não será certamente estranho o princípio, com consagração constitucional – art.º 32º-2 CR – da presunção de inocência, desde logo na sua vertente de dever considerar-se inocente quem não foi ainda julgado culpado por sentença transitada em julgado, mesmo sem curar aqui de questões que podem prender-se, por exemplo, com a imputabilidade do agente, o que não é indiferente face à opção pela natureza não objectiva das causas de indignidade”;
- a “gravidade da declaração de indignidade e dos factos que o legislador seleccionou como suas possíveis causas, bem como os requisitos de que as fez depender, conduzem-nos, ainda, ao entendimento que devem considerar-se taxativas as causas de incapacidade sucessória enunciadas no art.º 2034º”;
- o já citado Acórdão da Relação de Lisboa de 23 de Setembro de 2010 (Processo n.º 1280/09.1TBMTA.L1-8-Caetano Duarte) – onde se defendeu que só “se justifica a aplicação analógica do artigo 2034º do Código Civil no caso de haver condenação por crimes de gravidade idêntica ou superior à dos crimes previs­tos nas alíneas a) e b)” (o que, em todo o caso, irrelevaria para os presentes autos, por não haver crime de gravidade superior ao homicídio…);
- o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Junho de 2012 (Processo n.º  416/10.4JACBR.C1.S1-Oliveira Mendes), em que se afirma que o “texto legal ao estabelecer a incapacidade sucessória do indigno por homicídio doloso do autor da sucessão ou do seu cônjuge, descendente, ascendente, adoptante ou adoptado exige, de forma inequívoca, a condenação do indigno como autor ou cúmplice dos factos respectivos” e que tal incapacidade “não é mero efeito da prática do crime, sendo antes consequência autónoma da condenação. Como se consignou no acórdão deste Supremo Tribunal de 74.07.23, publicado no BMJ, 239, 224, a incapacidade sucessória por motivo de indignidade, não é simples efeito da prática de crime de homicídio contra o autor da herança – artigo 2034º, alínea a), do Código Civil – e não se reduz a mero efeito da pena em que o indigno haja incorrido – artigo 75º, do Código Penal – sendo antes “consequência autónoma no plano civil”, da respectiva condenação”;
- o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Dezembro de 2019 (Processo n.º 590/17.9T8EVR.E1.S2-Maria João Vaz Tomé), que depois de afirmar que a “indignidade sucessória não opera automaticamente”, conclui que “a posição jurídico-sucessória de outro herdeiro legal do de cujus apenas se consolida com a declaração judicial de indignidade do chamado que praticou atos delituosos contra o autor da sucessão ou alguns dos seus familiares mais próximos”;
- o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Fevereiro de 2021 (Processo n.º 5564/17.7T8ALM.S1-Maria João Vaz Tomé), onde se afirma que:
- o artigo 2034.º não estabelece uma tipologia meramente exemplificativa, considerando que admite “a analogia, se essa tipologia for considerada como delimitativa (i.e., apenas se permitindo a construção de novas figuras no caso de estas serem análogas a algum dos tipos normativamente previstos)”;
- a “segurança jurídica não implica o afastamento da exigência fundamental do tratamento igual de casos semelhantes, que está na base da analogia, desde que esta só possa funcionar a partir dos modelos dados pela lei – desde que se lance mão apenas da analogia legis Cf. José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Sucessões, Coimbra, Coimbra Editora, 1989, p. 293”;
- “mediante o instituto da indignidade, a lei sanciona alguns atos de especial gravidade praticados pelo herdeiro contra o autor da sucessão, o seu cônjuge ou os seus familiares mais próximos. Está em causa uma sanção civil, dotada de finalidade punitiva, aplicável independentemente da vontade da vítima, atendendo à reprovabilidade objetiva dos atos praticados. A lei não tolera a transmissão a favor do sucessor nas situações em que o autor da sucessão, ou o seu cônjuge, tenha sido vítima de um atentado à vida cometido pelo sucessível – como sucedeu no caso dos autos”;
- “Estão em causa crimes ou ilícitos especialmente graves, objeto de especial censurabilidade social. Reconhecer, nestes casos, aos autores dos crimes, o direito a suceder constituiria uma violação das conceções ético-jurídicas dominantes na comunidade social. Na verdade, não se trata de uma presunção daquela que seria a vontade do de cujus - de excluir um determinado sucessível em virtude de uma conduta sua particularmente censurável -, cuidando-se antes da repugnância que a sucessão do sujeito que pratica tais atos gera na consciência jurídico-social. Trata-se de uma consequência do facto de ter deixado de ser digno de ocupar a posição de herdeiro”;
- “A incapacidade sucessória fundada em homicídio doloso - a forma mais ignominiosa de atentado contra a vida - do autor da sucessão ou do seu cônjuge, descendente, ascendente, adotante ou adotado, não constitui mero efeito da prática do crime, sendo antes consequência autónoma, no plano civil, da condenação. Atendendo à gravidade dos seus efeitos, a lei exigiu a certeza da prática de tal crime, traduzida no requisito da existência de condenação, transitada em julgado”;
- “a declaração de indignidade em relação à sucessão do autor da sucessão opera ope legis, e não officio judici, em relação à sucessão do seu cônjuge e familiares mais próximos. Alastra-se à sucessão destes familiares. Não são necessárias várias declarações de indignidade, em ação penal ou cível: i.e., relativamente à sucessão da vítima e relativamente à sucessão de cada um dos familiares da vítima que se encontrem no âmbito de proteção do regime da indignidade. De acordo com o preceito do art.º 2034.º, al. a), do CC, a declaração de indignidade relativamente à herança da vítima de crime ou ilícito nele previstos estende-se à herança do cônjuge, ascendente ou descendente, adotante ou adotado. É o que resulta da interpretação declarativa desse preceito: elege-se, pois, o sentido que o texto direta e claramente comporta e que corresponde ao pensamento legislativo. Por conseguinte, o Autor/Recorrente é indigno relativamente à sucessão de sua Mãe, assim como também o seria, na situação hipotética por si referida, relativamente à sucessão de seu filho, se o tivesse e este falecesse antes de si”.
*
No caso dos presentes autos, somos remetidos para situação da inimputabilidade penal do sucessível do autor do homicídio do de cuius, pese embora a prova dos factos que fundamentam o tipo de ilícito do homicídio (incluindo o dolo).
Ora, a questão da inimputabilidade penal é algo que não é novo no direito pátrio, mas pode também dizer-se que é algo a que Doutrina e jurisprudência mais recentes, de algum modo tem procurado não abordar[56]
Em tempos idos, todavia, pelo menos dois Ilustres Juristas se pronunciaram expressamente sobre a questão:
- José Tavares, que no seu Sucessões e Direito Sucessório, (ob. cit., página 240), escreveu o seguinte:


Culminando este texto com a já aqui citada frase, “É, pois, só nos tribunais criminaes, e no campo do direito penal, que teem logar taes questões”;
-  e Manuel João da Palma Carlos, que, à pergunta “Quid jurisse o crime for cometido por um não imputável?”, respondeu desta forma:
“Como ensinou o Prof. José Tavares (Sucessões, pág. 223) o Código Civil Português evitou esta questão, no terreno do direito civil, declarando expressamente no art.º 1782.º que esta incapacidade por indignidade afecta os condenados.
A Rev. Leg. e Jur., aplaudida pela Rev. dos Trib., in ano 43.º, pág. 252, estudou o problema a págs. 487.º do seu ano 45.º, concluindo que «produz efeito a disposição testamentária a favor de pessoa que atentou contra a vida do testador, se o instituído foi declarado insusceptível de imputação por motivo de loucura».
Argumenta: «Para que ao arguido possa ser imposta uma pena, não basta que êste haja praticado um facto incriminado; é indispensável, além disso, que não se verifique qualquer circunstância dirimente da responsabilidade criminal. Uma dessas circunstâncias é a loucura (Código Penal, art.º 41.º, 42.º n.º 2 e 43.º, n.º 2). De sorte que o louco embora tenha cometido o crime não pode ser condenado. E, sendo assim, pouco importa que o louco haja atentado contra a vida do testador: como não pode ser condenado por esse acto, não incorre na incapacidade do art.º 1782.º do Cód.  Civil)”[57].
No Brasil, perante um similar artigo do Código Civil[58] (mas em que não se  exige, como em Portugal, a condenação prévia do sucessível no processo penal, por homicídio doloso), a matéria tem sido abordada com mais acuidade, nomeadamente a propósito da inimputabilidade por menoridade e sempre na consideração da discussão sobre a eventual taxatividade das situações de indignidade escolhidas pelo legislador[59].
Foi mesmo objecto de uma muito interessante (e relevante) decisão do Superior Tribunal de Justiça de 18 de Fevereiro de 2022[60] (RECURSO ESPECIAL Nº 1.938.984 - PR (2021/0151974-3) – Nancy Andrighi), onde se considerou que o “cardápio” do artigo 1.814, apesar de taxativo, tal não implica que a letra da lei tenha de ser interpretada “de forma gramatical”: “O fato de o rol do art.º 1.814 do CC/2002 ser taxativo não induz à necessidade de interpretação literal de seu conteúdo e alcance, uma vez que a taxatividade do rol é compatível com as interpretações lógica, histórico-evolutiva, sistemática, teleológica e sociológica das hipóteses taxativamente listadas”.
Em concreto, aí se afirma que:
- “parece correto concluir que o rol do art.º 1.814 do CC/2002 é realmente taxativo, do que resulta a impossibilidade de criação de hipóteses não previstas no dispositivo legal por intermédio da analogia ou da interpretação extensiva. Aliás, conforme já se decidiu nesta Corte, “a indignidade tem como finalidade impedir que aquele que atente contra os princípios basilares de justiça e da moral, nas hipóteses taxativamente previstas em lei, venha receber determinado acervo patrimonial...” (REsp 1.102.360/RJ, 3ª Turma, DJe 01/07/2010)”;
- “O fato de se estabelecer a premissa de que o rol do art.º 1.814 do CC/2002 é taxativo, contudo, não induz à necessidade de interpretação literal de seu conteúdo e alcance. Frequentemente, confunde-se taxatividade com interpretação literal (cronologicamente a primeira e substancialmente a mais pobre das técnicas hermenêuticas), o que, respeitosamente, é um equívoco. A taxatividade de um rol é perfeitamente compatível com as interpretações lógica, histórico-evolutiva, sistemática, teleológica, sociológica das hipóteses taxativamente listadas”;
- “há que se diferenciar o texto de lei, enquanto proposição física, textual e escrita de um dispositivo emanado do Poder Legislativo, da norma jurídica, enquanto produto da indispensável atividade interpretativa por meio da qual se atribui significado ao texto”;
- “Diante desse cenário, a interpretação literal (método hermenêutico) é uma das formas, mas não a única forma, de obtenção da norma jurídica (produto da interpretação) que se encontra simplesmente descrita no art.º 1.814, I, do CC/2002”;
- “é preciso examinar se a interpretação literal do art.º 1.814, I, do CC/2002, é aquela que melhor atende à hipótese ou se se deve adotar outro método hermenêutico, em especial o teleológico-finalístico”;
- “A partir de uma primeira leitura do texto do art.º 1.814, I, do CC/2002, poder-se-ia concluir, prima facie, de forma irreflexiva, não contextual e adstrita ao aspecto semântico ou sintático da língua(…) – que o uso da palavra homicídio possuiria um sentido único, técnico e importado diretamente da legislação penal para a civil, de modo que o ato infracional análogo ao homicídio praticado pelo filho contra os pais não poderia acarretar a exclusão da sucessão, na medida em que de homicídio, em sentido técnico, não se tratou”;
- “no ato de interpretar a regra prevista na legislação civil, transformando o texto abstrato em norma concreta – que é tarefa essencial do Poder Judiciário, não se pode deixar de considerar, juntamente com a literalidade, também os valores tutelados no art.º 1.814, I, do CC/2002”;
- “a exclusão do herdeiro que atenta contra a vida dos pais é uma cláusula geral que se encontra presente nas legislações desde o direito romano e que encontra correspondência, guardadas as devidas particularidades, na maioria dos ordenamentos jurídicos ocidentais contemporâneos (por exemplo, Itália, França, Bélgica e Alemanha, dentre outros)”;
- “A cláusula de indignidade fundada no atentado do herdeiro à vida dos pais se funda em razões éticas e morais. Como bem assinala Caio Mário da Silva Pereira, “reside o fundamento ético da indignidade em que repugna à ordem jurídica, como à moral, venha alguém extrair vantagem ao património de pessoa a quem ofendeu, além de constituir motivo que previne e pune o ilícito do herdeiro” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. VI: direito das sucessões. (Atual. Carlos Roberto Barbosa Moreira). 23ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 32)”
- “Na legislação brasileira, a regra que exclui o herdeiro que atenta contra a vida dos pais será aplicável na hipótese em que a conduta do herdeiro seja proposital (ou seja, dolosa), ainda que que o evento morte não se concretize (admite-se a exclusão na hipótese de tentativa), independentemente da motivação do herdeiro (a sua exclusão ocorre ainda que o propósito não seja recolher a herança). Assim era no art.º 1.595, I, do CC/1916 e continua sendo no art.º 1.814, I, do CC/2002”;
- “Daí porque se afirma na doutrina, com absoluto acerto, que o atentado contra os pais na modalidade puramente culposa não acarreta a exclusão do herdeiro, conquanto a doutrina discuta e divirja, mais enfaticamente, se o atentado contra os pais na modalidade preterdolosa (dolo no antecedente e culpa no consequente) justificaria a exclusão do herdeiro.
 - “essas discussões e conclusões estão, umbilical e objetivamente, associadas às razões de ordem ética e moral que justificaram a edição da regra do art.º 1.814, I, do CC/2002”;
- “A partir dessas diretrizes, a culpa é menos reprovável e não abrangida pela regra, ao passo que a motivação do herdeiro e o fato de o atentado não se consumar são absolutamente irrelevantes (pois o bem jurídico que se pretende proteger é à vida dos pais, inibindo condutas que ofendam esse valor e reprimindo, com uma sanção civil, quem atentar contra esse valor)”;
- “esses elementos compõem o núcleo essencial da regra do art.º 1.814, I, do CC/2002, que pode ser traduzida, a partir dessa concepção teleológica-finalística, a partir do seguinte enunciado: não terá direito à herança quem atentar, propositalmente, contra a vida de seus pais, ainda que a conduta não se consume, independentemente do motivo”;
- “a diferença técnico-jurídica entre o homicídio doloso (praticado pelo maior) e o ato análogo ao homicídio doloso (praticado pelo menor), conquanto seja de extrema relevância para o âmbito penal diante das substanciais diferenças nas consequências e nas repercussões jurídicas do ato ilícito, não se reveste da mesma relevância no âmbito civil”.
- “o ato praticado pelo filho, tentado ou consumado, de ceifar a vida dos pais (conduta reprimida pelo ordenamento jurídico), conquanto não seja tecnicamente um homicídio na esfera penal, isentando-o da reprimenda típica prevista nessa legislação, não deixa de ser um homicídio para os efeitos civis, pois os valores (ética e moral) e as finalidades (prevenção e repressão do ilícito) que nortearam a criação da pressupõem tratamento isonômico e produção dos mesmos efeitos, independentemente de se tratar de ato cometido por pessoa capaz ou por relativamente incapaz, sob pena de não se atingir a finalidade, sobretudo preventiva, da regra”;
- “a eventual compreensão de que o ato de atentar contra a vida dos pais, praticado pelo filho herdeiro menor, não acarreta a exclusão da sucessão implicaria em absoluto esvaziamento do conteúdo da regra em relação aos menores de 18 anos (pois a antijuridicidade da conduta é a mesma) e poderia produzir um efeito contrário ao pretendido pelo legislador, estimulando a prática desse gravíssimo ato escudado na inimputabilidade penal e desvirtuando as finalidades preventiva e pedagógica almejadas”.
*
Perante toda a panóplia de pronunciamentos sobre a questão que nos ocupa, cremos que o esforço para tentar ir além dos casos previstos no artigo 2034.º, sendo tentador para superar as insuficiências da lei e adaptá-la a realidades que até nela podiam caber com propósito (como o do homicídio do companheiro – não casado – do autor da sucessão[61]), esbarra na excepcionalidade da norma que consagra as situações de indignidade e numa reacção que não permite tomá-las como exemplificativas[62] (mesmo que exemplos-padrão fossem), nada autorizando que se faça uma forçada leitura da norma, para nela se incluir:
- exactamente o contrário do que nela se escreve (uma condenação, nunca poderia ser análoga a uma absolvição)[63];
- ou o que nela se pretendeu excluir (um homicídio negligente - ainda que a título de negligência grosseira - teria sempre de estar excluído de cogitação).
Ou seja, temos de entender o elenco de situações previstas no artigo 2034.º, alínea a), como taxativo e, como tal, concluir que o ora Réu não pode ser considerado indigno, à face de tal norma, por não ter sido condenado pelo homicídio doloso do seu pai e irmã, ao ser julgado inimputável.
Mas se assim é, a Ordem Jurídica, como um todo, tem mecanismos que lhe permitem evitar situações que possam ser tidas ou consideradas pela sociedade como inaceitáveis, repugnantes ou intoleráveis.
Ou seja, e para a temática que aqui releva, uma qualquer situação pode não caber na previsão do artigo 2034.º (e, portanto, o sucessível não poder ser considerado indigno), mas tal não significa que, tratando-se de uma situação limite, possa - ainda assim – herdar da sua vítima.
É para essas situações extremas, limite, que existe o abuso de direito.
É por existirem mecanismos como esse que Jorge Duarte Pinheiro, a propósito do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07 de Janeiro de 2010, conclui que “Efectivamente, há mecanismos que dispensam a identificação de causas de indignidade à margem do enunciado constante do artigo 2034.º, bastante duvidosa à luz dos elementos histórico e sistemático de interpretação”[64].
De facto, se a indignidade pode ter taxativamente definidas as circunstâncias em que ocorre[65], o abuso de direito não, do mesmo modo que não é configurável a aplicação da analogia no abuso de direito (por se reportar a concretas situações de exercício de direitos, sempre em contextos-limite).
Falta, assim, verificar se a situação dos autos foi bem enquadrada na Sentença proferida pelo Tribunal a quo.
Impõe-se que se equacione o recurso ao instituto jurídico do abuso de direito, que está legalmente consagrado no nosso ordenamento jurídico no artigo 334.º do Código Civil, o qual tem como epígrafe “abuso do direito” e preceitua que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Em causa estará o exercício abusivo do direito de exercer a vocação sucessória, o exercício abusivo do direito de aceitar a herança[66].
Embora se possa defender a  desnecessidade, no nosso sistema legal, desta norma, como faz Mafalda Miranda Barbosa[67], esta é não apenas a norma que delimita os seus contornos e limites no direito português (boa fé, bons costumes e fim social ou económico do direito), mas também a linha orientadora da apreciação da matéria respeitante ao abuso do direito, sem prejuízo de podermos ainda ir além dela[68].
Presente haverá sempre de estar a ideia de que o “direito deve ser exercido honestamente, como deveria ser exercido por uma pessoa de bem”[69], verificando-se “abuso sempre que o exercício de um direito se mostre em desconformidade com a teleologia desse mesmo direito, com o seu fundamento.(…) Pelo que se pode dizer que o exercício de um direito é abusivo quando choque com os princípios normativos do direito enquanto direito”[70].
Se se preferir, ele traduz – em palavras de Menezes Cordeiro - o “exercício disfuncional de posições jurídicas”[71] uma “disfuncionalidade de comportamentos jussubjectivos por, embora consentâneos com normas jurídicas, não confluírem no sistema em que estas se integrem”[72].
Pedro Pais de Vasconcelos diz – lapidarmente – que o abuso do direito, “como instituto jurídico, é uma válvula de segurança do sistema que atua sobre o exercício dum direito subjectivo (público ou privado) que existe, que tem vigência e que pertence ao seu titular. A questão é só de acertar o exercício do direito subjectivo dentro dos limites da boa fé, dos bons costumes e do seu fim social ou económico. Quer dizer, dentro dos limites da licitude”[73].
Embora sem preencher por completo os requisitos de cada uma das modalidades em que o instituto tradicionalmente se classifica (exceptio doli, venire contra factum proprium, tu quoque, inalegabilidades formais e supressio), a situação dos autos em muito se aproxima do tu quoque (que, como diz Menezes Cordeiro, aflora “uma regra pela qual a pessoa que viola uma norma jurídica não poderia, sem abuso, exercer a situação jurídica que essa mesma norma lhe tivesse atribuído”[74]).
Relativamente a esta modalidade, Pedro Pais de Vasconcelos/Pedro Leitão Pais de Vasconcelos assinalam que constitui “abuso do direito a invocação ou aproveitamento de um ato ilícito por parte de quem o cometeu. Trata-se de um caso de violação do dever de honeste agere que é eticamente inaceitável para o Direito (turpitudo sua non allegare) e que pode, com êxito, ser contrariado pelo exceptio doli[75]: “Trata-se de situações em que o exercício é inaceitavelmente contrário aos padrões de honestidade que devem reger as relações entre pessoas de bem”[76].
“O tu quoque serve assim para paralisar os feitos de uma violação (objectiva) da relação em detrimento da parte que, por violação anterior, alterou o equilíbrio substancial prosseguido”[77].
Este recurso jurídico só pode e deve ser utilizado para situações gritantemente injustas ou, como diz Carneiro da Frada, quando a “injustiça resultante do exercício da posição jurídica pelo sujeito é “excessiva”, isto é, não pode ser adequadamente removida mediante o ressarcimento dos danos. Não porque incompatibilidades menos graves com os (mesmos) ditames da justiça – com a boa fé, portanto – não ultrapassem o limiar da relevância jurídica e não mereçam a intervenção do Direito, mas pelo motivo de que, onde uma conduta não se apresenta à partida valorada como ilícita, há que ponderar, em nome da proporcionalidade, os meios que menos atinjam a liberdade do sujeito, para obviar à injustiça que ela possa gerar. A preclusão do exercício de um direito constitui efectivamente um recurso último, apenas justificável em situações extremas. É este o sentido da proibição da conduta abusiva”[78].
O artigo 275.º (Verificação e não verificação da condição), do Código Civil, no seu n.º 2, consagra, aliás, expressamente, este tipo de situação[79], quando procura impedir que aquele que provoca a verificação da condição (mais ainda praticando um acto ilícito) e disso se aproveitar, de tal não possa beneficiar, devendo considerar-se a condição não verificada.
 Por outro lado, temos os bons costumes que nunca poderiam permitir a situação configurada nos autos: no que à questão dos “bons costumes” (que juntamente com a boa fé, e o fim social ou económico do direito constituem os limites do abuso do direito) aventada no corpo do artigo 334.º respeita, há que sublinhar – com Oliveira Ascensão - que “não é necessário o elemento subjectivo, para a ilegitimidade de verificar; o acto não precisa de ser ilícito. Quem, por grosseria de consciência, não se apercebe de que o acto que pratica vai contra as concepções de dever ser ético vai contra as concepções de dever ser ético socialmente admitidas viola os bons costumes, não obstante não se aperceber que o está fazendo”[80].
Carvalho Fernandes concretiza, assinalando que estão “aqui em causa regras de comportamento no domínio de relações familiares e sexuais (logo, de moral social) e regras deontológicas” e que há “abuso, por violação de tais regras, se o exercício do direito exceder manifestamente os limites por elas impostos. Atende-se, assim, ao significado objectivo do comportamento adoptado, não relevando, portanto, para a qualificação do abuso, a intenção do titular do direito. Não é, sequer, exigível que ele tenha consciência de o seu acto envolver violação de limites impostos pelos bons costumes”[81].
Pedro Pais de Vasconcelos/Pedro Leitão Pais de Vasconcelos são esclarecedores quando escrevem que “Esta referência é feita também para uma eticidade imanente, para a natureza das coisas, enquanto etia moralia, para a realidade social, para os usos e costumes sedimentados na prática. Trata-se de uma normatividade imanente na sociedade, de um dever-ser imanente no ser, que não se encontra muitas vezes nas palavras da lei, mas que é respeitado no exercício do direito pelas pessoas de bem. Os direitos subjetivos com maior enraizamento institucional e profundidade histórica, que ganharam já um sedimento de tradições no conteúdo e no exercício, envolvem em si critérios de agir esperado e esperável. Cada direito subjetivo corresponde a uma posição ou a um papel socialmente típico que tem imanente uma certa normatividade um certo critério de agir que não pode deixar de ser relevante para o Direito. É preciso, contudo, sindicar, de entre os critérios de dever-se imanentes nas coisas, quais os que são aceitáveis e quais os que o não são, quais [82]os que são Bem e quais os que são Mal e quais os que não são Bem nem Mal (adiáfora); é preciso julgar”.
Ora, o “julgador do caso está perante um abuso do direito quando constata que este foi exercido, em termos objectivos, inequivocamente em ofensa da justiça ou quando se trata de uma conduta clamorosamente ofensiva da justiça (Manuel de Andrade) ou de uma afronta ao sentimento jurídico dominante (Vaz Serra)” como sintetiza, com simplicidade, Heinrich Ewald Hörster[83] e essa imagem impressiva está factualmente pintada nos presentes autos.
O Réu nestes autos, ao exercer a sua vocação sucessória, ao aceitar a herança de seu pai (e fá-lo, sem lugar a dúvida razoável, desde logo pela contestação que deduz à presente acção e pelo recurso que interpôs da Sentença proferida na 1.ª Instância) está - inequivocamente e sem qualquer rebuço - a aproveitar-se de um acto seu, ilícito, doloso[84] e chocante, que foi precisamente o homicídio violento daquele (leia-se, a prática dos factos susceptíveis de preencher o tipo legal de homicídio): dizem os Factos 44 e 45, do Acórdão do processo crime (acima transcrito no Facto 6), que “a actuação do arguido foi a causa directa e necessária, da morte de J... e de S..., ocorrida no local e verificada pelas 23h30m do dia 13 de Novembro de 2020” e que o “arguido agiu com o propósito concretizado de tirar a vida a J... e a S..., fazendo-a abortar, sabedor que tal conduta lhe era vedada por lei”.
Ou seja, o ora Réu pretende ser o herdeiro único (porque também matou a irmã e o bebé que esta transportava no ventre), daquele que matou selvaticamente[85] (o que é expressivo não só na descrição dos factos como o é das lesões provocadas – Factos 22 a 29 do Acórdão crime, transcritos no Facto 6).
Ou seja, o Réu, que tinha capacidade sucessória[86] nos termos dos artigos 2033.º, 2030º, 2133.º, alínea b) e 2157.º, provocou directamente o funcionamento da condição[87] (morte do pai, de cuius)  de que dependia a sua concretização, ao ser ele a determinar o momento em que se abriu a sucessão (artigo 2031.º e 2032.º).
Ou seja, o Réu pretende beneficiar do acto ilícito e doloso que praticou[88]. E ser o seu único beneficiário.
Esta consequência é, por si só, inadmissível, dir-se-á mesmo chocante, para a consciência jurídica e ética de qualquer um/a.
Certo que o Réu foi considerado (e bem) penalmente inimputável, face ao seu diagnóstico de Psicose Esquizofrénica[89], que lhe originou uma anomalia psíquica, que tinha como fruto “alterações do comportamento, acreditando que o pai seria o Diabo e a irmã uma cavaleira das trevas que incorporava a Guerra, e que ambos estariam do lado do Mal, enquanto o arguido estaria do lado do Bem. Fruto de alucinações auditivo-verbais, que lhe davam ordens e/ou que comentavam os acontecimentos, bem como de alucinações cenestésicas – sentiu que lhe tinham extraído o Tupac”, em consequência do que “resolveu agir, naquilo que considerava ser o mundo paralelo e para onde conseguiria passar através da dilatação da glândula pineal (outra crença delirante), tendo matado os seres maléficos que incorporavam o pai e a irmã”, complexo patológico este de que “foi causal do comportamento que lhe é imputado e produziu, no momento da prática dos factos, um efeito psicológico susceptível de o incapacitar para avaliar a ilicitude do mesmo do prisma da realidade existente e de se determinar de acordo com essa avaliação, já que o conduziu a laborar sobre realidade alucinada” (Factos 47 a 49, do Acórdão crime, transcritos no Facto 6).
Certo que, com essa inimputabilidade penal, e por isso foi absolvido, lhe falta o elemento censurabilidade, essencial para o elemento culpa (como diz Figueiredo Dias, “culpa é e há-de ser sempre censurabilidade[90]), mas a questão com que lidamos não é essa, é uma questão objectiva que prescinde da culpa.
O Réu, sendo um homem doente (todavia, civilmente, sem quaisquer constrangimentos, não havendo notícia, sequer, de se tratar de um maior acompanhado) matou o pai e a irmã grávida. E fê-lo duma forma que lembra um texto de Guy de Maupassant, sobre um juiz penal a quem depois de morto teria sido encontrado um papel em que sob o título “PORQUÊ?” explanava insanes considerações sobre crimes e morte: 
“Deparamo-nos, muitas vezes, com pessoas para quem aniquilar a vida é uma voluptuosidade. Sim, sim, decerto uma voluptuosidade, provavelmente a maior de todas, pois matar não é o que mais se assemelha a criar? Criar e destruir. Estas duas palavras resumem a história dos universos, toda a história dos mundos, tudo o que existe, tudo! Por que razão matar é inebriante?
Pensar que está ali um ser que vive, que anda, que corre… Um ser? O que é um ser? Essa coisa animada, que tem dentro de si o princípio do movimento e uma vontade que determina esse movimento! Essa coisa a que nada se agarra. Os seus pés, não se pregam ao solo. É um grão de vida que se movimenta sobre a terra: e este grão de vida. Vindo não sei de onde, podemos aniquilá-lo como quisermos. E então nada, mais nada. Putrifica. Acaba”[91].
Ou Charles Dickens quando, num conto, escreveu:
“Finalmente a loucura apoderou-se de mim e fiquei surpreendido de havê-la sempre temido. Poderia regressar ao mundo, neste momento, e rir e gritar como todos os homens. Eu sabia estar louco, mas eles nem sequer suspeitavam disso”[92].
Internado a cumprir uma medida de segurança pela prática dos seus tresloucados actos, cujo terrível descontrolado e inimputável desfecho, teve – diga-se – também o contributo do seu consumo de drogas (Factos 55, 61, 63 e 64, do Acórdão crime e transcritos no Facto 6, deste Acórdão) e desvalorização da medicação e tratamentos (65 e 66), este é o sucessível que se apresenta a pretender ficar como único herdeiro do seu pai. Da sua vítima.
Pois poderá não ser penalmente censurável a sua conduta[93], mas, civilmente (e objectivamente) seria ele a beneficiar do seu acto ilícito (faz surgir a condição – morte do de cuius e da irmã – e tudo a seu favor reverte – porque ficou único herdeiro). E civilmente nenhuma limitação existe quanto ao Réu: estamos num “plano extracontratual” e “o comportamento violador está na origem da situação jurídica que se pretende exercer e que tira vantagem dessa violação”, concluiria Carvalho Fernandes[94].
Portanto, mais do que a questão da censurabilidade, o que os factos nos impõem é que constatemos a intolerabilidade das suas consequências.
Há que sublinhar que se trata – efectivamente – de uma questão objectiva, em que “não é à finalidade psicológica do agente que se deve atender, mas objectivamente ao acto que representa o exercício do direito. Se esse acto representa a prossecução do fim ou de algum dos fins para o qual a lei confere o direito subjectivo, é exercício legítimo do direito; senão, se tem um fim injusto ou censurável, é abuso de direito”[95].
Mafalda Miranda Barbosa é muito clara quando afirma que o “nosso ordenamento jurídico consagra uma concepção objectivista de abuso do direito, não ficando a sua verificação dependente de um juízo de censurabilidade”[96].
O artigo 334.º do Código Civil assume essa vertente objectiva e aceita-a, fazendo-a sua, quando, na sua parte final – recorrendo agora a João de Castro Mendes – “qualifica de ilegítimo o acto pelo qual o titular de um direito o exerce , quando excede manifestamente os limites impostos pelo fim social ou económico desse direito”[97], sublinhando mesmo este Autor, que esta opção pela “teoria objectiva tem sobre a subjectiva, a vantagem de evitar o problema da relevância das finalidades psíquicas de loucos ou incapazes”[98].

Como refere o Acórdão STJ de 12 de Fevereiro de 2004 (Processo n.º 03B4273-Luís Fonseca), o “abuso de direito abrange o exercício de qualquer direito de forma anormal quanto à sua intensidade ou à sua execução de forma a poder comprometer o gozo dos direitos de terceiro e a criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício por parte do seu titular e as consequências que outrem tem de suportar”, constituindo “uma ‘válvula de segurança’ do sistema jurídico, destinado a fazer face e neutralizar situações de flagrante injustiça a que por vezes pode conduzir o exercício de um direito subjectivo”.
A Ordem Jurídica não pode sancionar este tipo de comportamento, claramente abusivo, nem pode deixar que – no âmbito do mais directo e nuclear seio familiar[99] – quem mata dolosamente o pai e a irmã[100], venha a ser o único beneficiário do seu acto[101].
Com directa aplicação à situação dos autos, Mafalda Miranda Barbosa explica que o “o que está em causa no abuso do direito não é a intenção de prejudicar terceiros, ou a desconformidade com a moral, mas sim a dissonância entre a estrutura formal do direito que se invoca e a intencionalidade normativa desse mesmo direito”, acrescentando que se verificará abuso “sempre que o exercício de um direito se mostre em desconformidade com a teleologia desse mesmo direito, com o seu fundamento” e que “o exercício de um direito é abusivo, quando o choque com os princípios normativos do direito enquanto direito”[102].
Estamos, manifestamente, perante um uso ilegítimo de uma posição jurídica (de filho, de sucessível, de herdeiro, na recepção do que restou da vida de seu pai: o seu património), que excede os limites do tolerável no nosso sistema jurídico: o facto de padecer de uma doença mental que lhe permitiu não ser condenado pela morte do pai e da irmã, para esses actos sendo julgado inimputável, não altera os termos da questão, pois civilmente, repete-se, não tem qualquer limitação.
Em qualquer caso a doença em causa se se não o pode prejudicar, também o não pode beneficiar (muito menos fazendo sentido falar em quaisquer putativas discriminações, desde logo porque não tem quaisquer limitações à sua capacidade).
Concluindo, é Inês Santos que afirma expressamente que “um dos tipos de abuso do direito apontados pela doutrina é o tu quoque, que consiste, entre outras situações, no aproveitamento da situação decorrente de um ato ilícito por quem o praticou. Quando, no caso concreto, os limites da boa fé sejam manifestamente excedidos, pelo facto de o autor retirar benefício do crime, por si praticado, que resultou na morte do autor da sucessão, salvo melhor opinião, estaremos perante um caso de abuso do direito”[103].
Mais, o “direito de suceder não existe por mero capricho do legislador: ele tem a sua função social, o seu lugar no nosso ordenamento jurídico. Foi instituído com fins específicos – entre os quais destacamos a preservação do património, a proteção da família e a realização da vontade (real ou presumida) do autor da sucessão – e existe dentro de um contexto em que imperam certos valores, que o sistema jurídico extrai da Ética – em particular, a boa fé e os bons costumes”[104].

Voltando à síntese de Hörster, o direito a suceder do seu pai, por si brutalmente assassinado - objectivamente - corresponde a uma conduta clamorosamente ofensiva da Justiça, ou mesmo a uma afronta ao sentimento jurídico dominante: chocaria qualquer um/a, chocaria o/a cidadão/ã comum, chocaria a já referida “pessoa de bem”, chocaria os bons costumes (seria a prevalência do Mal sobre o Bem, na linha do pensamento de Pedro Pais de Vasconcelos-Pedro Leitão Pais de Vasconcelos), e chocaria mesmo com o fim social do direito[105].
Assim o exercício do direito do Réu a suceder no património de seu pai é ilegítimo e tem de ficar paralisado, uma vez que corresponderia ao exercício abusivo de um direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil.
*
A esta mesma solução chegaríamos operacionalizando um método a que Pedro Pais de Vasconcelos chama, na sua “Última Aula”, de “Natureza das Coisas”[106]: para “a operacionalidade do método da “Natureza das Coisas” é necessário por em contacto o dever ser e o ser, mediados pela “Natureza das Coisas”. A mediação entre o ser e o dever-ser deve ser feita a dois níveis, ao nível da legislação – da criação da norma – e ao da concretização – da aplicação da norma aos factos concretos”.
É neste último plano que nos situamos in concretu: “Logo na clássica tarefa de interpretar a lei, a Natureza das Coisas intervém, como manda o artigo 9º do Código Civil, na reconstituição do pensamento legislativo a partir do texto, na tomada em consideração da unidade do sistema jurídico, das circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. Na interpretação da lei, de qualquer lei até da lei constitucional, deve ainda ser chamado a contribuir o modo como, na sua génese, no seu processo legislativo, foi tida em consideração e respeitada a Natureza das Coisas e corrigido, quando não tenha sido suficientemente ou não tenha sido bem tida consideração. Tratar-se-á então de uma interpretação corretiva praeter legis ou mesmo contra legis mas secundum ius[107].
E o campo das relações socialmente típicas é mesmo um dos campos de funcionamento privilegiado deste tipo de considerações: “Há muitas posições e relações no direito privado que são socialmente típicas” e que “têm, na Natureza das Coisas – enthia moralia – conteúdos de valor – de dever-ser e de dever-agir – que estão estabelecidos e estabilizados, que são típicas na sociedade e na vida, e que transportam consigo uma normatividade própria”, sendo que, “o seu conteúdo não está, nem tem de estar na lei, pelo menos, completamente. Tem de ser concretizado, caso a caso, conforme a situação em que se encontrem (…) de modo a se poder concluir qual é o modo de agir que cada uma das posições-em-relação espera da outra, tem uma expectativa de comportamento da outra, de que a outra se comporte deste modo e não se comporte daquele modo e se esse comportamento merece ser juridicamente protegido pela boa fé”[108].
O entendimento a que chegámos facilmente nos permite concluir termos chegado à boa decisão: nunca respeitaria a natureza das coisas permitir que alguém, mesmo que sem juízo penal de censurabilidade, matasse o pai (e a irmã) e beneficiasse da sua herança.
É este entendimento que permite atender à ordem jurídica no seu conjunto.
É este o entendimento que corresponde à “Natureza das Coisas” (ou, se se preferir a fórmula de Henrique Mesquita, à adaptação “aos interesses em jogo, apreciados e valorados à luz das soluções ditadas pelo legislador para os problemas que directa e expressamente se ocupa”).
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Chegados a este ponto e a esta conclusão, importa ir um pouco além do que foi o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07 de Janeiro de 2010 (Processo n.º 104/07.9TBAMR.S1-Pires da Rosa) e ponderar sobre as reais consequências[109] do abuso do direito de suceder, ou se se preferir do direito de aceitar a herança, uma vez que não podemos, sem mais, aplicar o regime da indignidade e suas consequências (artigo 2037.º).
De facto, Inês Santos chama a atenção[110] para a circunstância de, em tal Acórdão, não ter sido feita referência à ponderação a que se referem Pires de Lima-Antunes Varela, quando escrevem que com “base no abuso do direito, o lesado pode requerer o exercício moderado, equilibrado, lógico, racional do direito que a lei confere a outrem; o que não pode é, com base no instituto, requerer que o direito não seja reconhecido ao titular, que este seja inteiramente despojado dele”[111].
E prossegue – com pertinência – a mesma Autora, “Questiona-se, portanto, face ao caso concreto, qual será o uso adequado, o uso lícito do direito de suceder neste contexto.
O acórdão não nos dá resposta, dizendo até que «não há direito», que ele se extingue.
Porém, tal não é conforme à doutrina do abuso do direito.
A doutrina tem entendido que o uso abusivo do direito não extingue o mesmo, devendo apenas o âmbito do seu exercício ser reduzido às aplicações lícitas, isto é, não abusivas, do direito.
Pensamos que, no caso em presença, o modo de exercer o direito de suceder sem exceder os limites fixados pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito de suceder será exercendo os direitos associados à qualidade de sucessível, com exceção do direito de aceitar a herança ou o legado.
Assim sendo, o sucessível, nestas circunstâncias, poderia licitamente efetuar atos de administração e conservação dos bens da sucessão, nomeadamente celebrar contratos de locação, perceber os frutos naturais ou civis ou efetuar benfeitorias necessárias.
O que já constitui uso abusivo do direito é proceder ao ato de aceitação da herança nas circunstâncias em questão”[112].
Tudo visto, entendemos que, perante o constatado abuso do direito de aceitar a herança, nas circunstâncias do caso presente, bastará que – linearmente – por aplicação do artigo 334.º do Código Civil, seja declarado o uso ilegítimo de tal direito.
Na prática, tal corresponde a fazer aquilo que a 2.ª parte do n.º 2 do artigo 275.º, prevê (ou seja, tendo em conta que o Réu provocou a verificação da condição (morte do autor da sucessão) e disso beneficiou, aceitando a herança, como único sucessor, tem de considerar-se para si não verificada tal condição (e passando a herança para os sucessíveis seguintes, em conformidade).
O exercício abusivo do direito de aceitar a herança do pai que matou, será assim reconhecido, não podendo beneficiar com o património que faz parte de tal herança (com as consequências que daí terão de ser tiradas).

Por tudo o exposto, a Sentença sob recurso merece globalmente confirmação, embora com esta precisão final, assim improcedendo o recurso.
*
Nas palavras de Eric Voegelin as “sociedades dependem para a sua génese, a sua existência harmoniosa continuada e a sobrevivência, das acções dos seres humanos componentes. A natureza do homem e a liberdade da sua acção para o bem e para o mal, são factores essenciais na estrutura da sociedade"[113].
Recorrente e Recorridos escolheram o seu caminho de actuação.
Ao Tribunal resta, no "acto de julgar", não dar razão ao Recorrente, considerando improcedente o recurso (tendo, na linha de Paul Ricoeur, como "horizonte um equilíbrio frágil entre os dois componentes da partilha" - "demasiado próximos no conflito e demasiado afastados um do outro na ignorância, no ódio, ou no desprezo" - mas impondo-se, "por um lado, pôr fim à incerteza, separar as partes; por outro, fazer reconhecer a cada um a parte que o outro ocupa na mesma sociedade, em virtude do que o ganhador e o perdedor do processo seriam reputados ter cada qual a justa parte no esquema de cooperação que é a sociedade"[114]).
 ***
DECISÃO
Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos dos artigos 663.º e 656.º do Código de Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e às disposições legais citadas, julgar improcedente o recurso e, em conformidade:
I - confirmar a Decisão recorrida, alterando apenas os termos da parte decisória onde se passará a ler:
“Pelo exposto, decide-se:
a) relativamente ao Réu X..., paralisar o seu direito a suceder na herança aberta por óbito de seu pai J..., considerando ilegítimo, por abusivo, o exercício do direito de aceitar a sua herança, e tendo como não verificada a condição que lhe permitiu aceitá-la (passando esta para os sucessíveis seguintes, em conformidade);
b) Custas a cargo do Réu, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Custas do recurso a cargo do Ré, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.
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Registe e notifique.
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Lisboa, 05 de Dezembro de 2023
Edgar Taborda Lopes
Ana Mónica Mendonça Pavão
Paulo Ramos de Faria (vencido, conforme a declaração de voto que segue) 

1. Diz-nos a Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental que “[a] esquizofrenia é uma perturbação mental complexa e grave”, que afeta de forma séria “a capacidade de pensar da pessoa, a sua vida emocional e o seu comportamento em geral”, provocando “sintomas, conhecidos como ‘sintomas psicóticos’ (…), como alucinações (por exemplo ver ou ouvir coisas que não existem) e delírios (ter crenças de natureza bizarra ou paranoide que não se enquadram no senso comum), mas também défices cognitivos, como dificuldades em prestar atenção, concentrar-se e abstrair-se”, e sintomas “que traduzem uma espécie de dessubstancialização da personalidade, como a diminuição ou perda da vontade, a apatia, o embotamento emocional e afetivo e sintomas afetivos, como ansiedade, depressão e alterações emocionais em geral” – cfr. sppsm.org/informemente/esquizofrenia/.
“No conjunto das perturbações mentais a esquizofrenia é muitas das vezes considerada como a perturbação limite. Uma das doenças mentais mais graves pela sua caraterística de alienação total da realidade, pela sua cronicidade (…). ‘A esquizofrenia tem sido uma das doenças psíquicas com maior gravidade clínica, com particular dificuldade de tratamento e reabilitação e com um prognóstico reservado’” – cfr. Marli La-Salete Pinto Nogueira, Inclusão Social e Bem-Estar da Pessoa Doente Mental, Porto, polic., 2013, p. 98, disponível em <sigarra.up.pt/reitoria/pt/pub_geral.pub_view?pi_pub_base_id=29101>.
2. Esta doença mental tem, inevitavelmente, um impacto altamente nocivo na vida do doente (e daqueles que com ele interagem familiar e socialmente). Nos casos mais graves, esta patologia pode estar na origem de comportamentos da mais elevada nocividade, incluindo, como no caso tratado na decisão recorrida, atentados contra a vida daqueles que mais protegem e gostam do doente mental… e de quem este mais gosta.
A maioria dos estudos realizados ao longo das últimas décadas tem demonstrado uma associação estatisticamente significativa entre esquizofrenia e violência – cfr. Susana Almeida Cunha, Esquizofrenia e Crime, 2003, polic., p.  30, disponível em <https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/9825>. A atividade delirante persecutória tem sido referida como tendo importância relevante para a violência na esquizofrenia – idem, p. 54. Ainda com pertinência para o caso dos autos, tem sido observada uma significativa associação entre a não adesão terapêutica e atos violentos – idem, ibidem –, sendo comum “a resistência para com a mesma devido à incapacidade de insight do doente” – cfr. Marli La-Salete Pinto Nogueira, Inclusão Social e Bem-Estar da Pessoa Doente Mental, Porto, polic., 2013, pp. 117 e 118, disponível em <https://sigarra.up.pt/reitoria/pt/pub_geral.pub_view?pi_pub_base_id=29101>. O mesmo é dizer que a não adesão à terapêutica apresenta-se já como consequência da doença, sendo insuscetível de enquadramento, por exemplo, no n.º 4 do art.º 20.º do Cód. Penal,
Tendo o doente mental, durante um surto psicótico, praticado factos tipificados como crime contra pessoas da sua família nuclear – no caso, contra o pai e contra a irmã –, não podemos deixar de considerar que, também ele, é vítima desta atuação. Na verdade, o doente mental grave é várias vezes “castigado”: é “castigado” com a doença mental que destrói a sua vida; é “castigado” com a medida de segurança aplicada (o internamento); é “castigado” com a perda dos entes queridos; é “castigado”, nos momentos de lucidez, com a consciência de que tirou a vida àqueles que mais estimava e que mais o estimavam – para além de ser socialmente “castigado” com o estigma da sua doença mental. Fazendo vencimento a posição sufragada na sentença impugnada, será, ainda, “castigado” com a segura indigência em que cairá. Tudo isto, apenas e só, porque teve o infortúnio de padecer de uma doença mental grave e crónica. A ser assim, à luz do ordenamento jurídico português, estava errado o jurisconsulto romano Herennius Modestinus, quando afirmava que “Sufficit furiosum ipso furore puniri” (é suficiente castigo para o louco a sua própria loucura). Não, não é suficiente; é só o princípio.
Conforme resulta do acórdão penal que sujeitou o réu a uma medida de segurança, “ficou demonstrado que, à data e no momento da prática dos factos, o arguido laborava sobre um estado de coisas que não correspondia à realidade, alucinando que o pai e a irmã corporizavam o mal, lhe queriam fazer mal e que tinha de deles defender-se”. E concluiu-se em tal acórdão que “o arguido deve ser declarado inimputável por referência ao objeto do processo”. Recorde-se que, nos termos previstos no n.º 1 do art.º 20.º do Cód. Penal, “é inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação”.
Não estando em causa o caso previsto no n.º 4 do art.º 20.º do Cód. Penal, esta inimputabilidade impede, inelutavelmente, a responsabilização civil do doente mental (art.º 483.º, n.º 2, do Cód. Civil), exceto nos casos especialmente previstos na lei de responsabilidade sem culpa – cfr., por exemplo, o art.º 489.º do Cód. Civil. O mesmo é dizer que, como aliás resulta do aresto, não pode, em caso algum, ser a sujeição do réu a uma medida de segurança equiparada ao caso previsto na al. a) do art.º 2034.º do Cód. Civil.
4. Na posição que fez vencimento, foi afastado o enquadramento do caso na al. a) do art.º 2034.º do Cód. Civil, por a mesma não consentir uma aplicação por analogia (analogia legis). Até aqui acompanhamos a opinião maioritária, embora acrescentemos que, ainda que a norma consentisse aplicação analógica, não existe analogia possível. Dito de um modo simples, no caso previsto na al. a) do art.º 2034.º do Cód. Civil (no que importa agora) existe um agressor (o filho) e uma vítima (o pai). No caso dos autos, filho e pai são vítimas da doença do primeiro.
No entanto, afastado o enquadramento do caso na al. a) do art.º 2034.º do Cód. Civil, no passo seguinte, foi maioritariamente entendido que o réu exerceu abusivamente o direito de aceitar a herança de seu pai. Esta solução merece-nos sérias reservas, dela resultando, parece-nos, uma infundada pena de deserdação judicial.
Por um lado, assenta ela, sempre e só, nos factos praticados pelo réu quando se encontrava afetado por um surto psicótico, causado pela doença mental de que padece. É inegável que o direito à herança é recusado ao réu porque praticou factos num estado de delírio psicótico, que não pôde controlar e que a generalidade das pessoas tem a felicidade de nunca experimentar. Esta negação surge como uma pena civil, como se o réu tivesse querido, em estado de lucidez, praticar os atos que praticou.
Por outro lado, quer se considere a atuação do réu durante o surto psicótico, quer se olhe para a restante factualidade provada, nada tem o caso de relevantemente distinto, relativamente aos demais trágicos casos excecionais em que um filho, durante um episódio de total alienação cognitiva e de incapacidade de enquadramento axiológico da sua conduta, mata o pai. Ora, se este caso nada tem de excecional (hoc sensu), afirmar o exercício abusivo do direito mais não é do que transformar em regra aquilo que a lei não quis consagrar como tal: a prática pelo inimputável dos factos previstos na al. a) do art.º 2034.º do Cód. Civil como fundamento de indignidade sucessória. Se o réu, por ter morto o pai durante um surto psicótico, não pode exercer o seu direito à herança, então em caso algum um filho que mata o pai em estado de inimputabilidade o poderá fazer. E quanto mais (extraordinariamente) chocante for a atuação do agressor, mais evidente se revela o seu estado de “loucura”. Assim se chega ao resultado que, recusando-se uma analogia legis, se negou inicialmente: o afastamento do filho da vocação sucessória (agora através de uma verdadeira analogia iuris).
Sendo este caso de parricídio tão horrível e excecional como todos os outros casos de parricídio cometidos num contexto de um surto psicótico, poder-se-ia mesmo dizer que a medida de segurança imposta a um arguido por ter morto o pai em contexto de doença mental acaba, na prática, invariavelmente por envolver, como efeito necessário, a perda do direito civil à herança, em aberto conflito com o disposto no n.º 1 do art.º 65.º do Cód. Penal e indo mesmo além do disposto no art.º 69.º-A do Cód. Penal – que apenas se refere a penas, e não a medidas de segurança.
5. Dispõe o art.º 334.º do Código Civil (abuso do direito) que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Afigura-se apodítico que o réu exerce o seu direito à herança, em si mesmo considerado, nos mesmos termos e limites que qualquer outro herdeiro exerce igual direito. Não se vê, pois, que tenham sido excedidos os limites impostos pelo fim social ou económico desse direito.
Quanto aos restantes fundamentos do instituto, afigura-se-nos que é própria penalização do doente mental que se pode constituir como “clamorosamente ofensiva da justiça” [Manuel de Andrade] e como “uma afronta ao sentimento jurídico dominante” [Vaz Serra] – sentimento este a extrair dos princípios que informam o sistema jurídico, e não das opiniões expostas nas redes sociais ou em tabloides notados pela superficialidade dos seus conteúdos. Entre estes princípios, destacam-se a proteção dos mais fracos (isto é, dos mais carecidos de proteção) e o respeito pela dignidade da pessoa humana (art.º 1.º da Cons. Rep. Port.).
Devemos evitar soluções que tendam a refletir preconceitos em torno da condição do doente mental. Estamos seguros de que, se o réu tivesse morto o seu pai em resultado de uma afetação física – por exemplo, um ataque epilético ou um estado cegueira momentânea –, a solução dada ao caso pelo tribunal a quo seria diferente, por a morte não decorrer da sua vontade (lúcida). Aliás, ainda que o réu tivesse pleno controlo da sua vontade e das suas ações, não lhe seria aplicada esta pena civil, se a sua conduta apenas revelasse culpa grave (negligência grosseira), e não dolo.
Responsabilizar o doente mental pela sua doença, sem nenhuma base factual que revele que esta foi provocada pelo próprio, representa um desrespeito pela sua dignidade humana (art.º 1.º da Cons. Rep. Port.), cunhando-o com características de personalidade altamente censuráveis num indivíduo com capacidade de autodeterminação. Quando a doença domina o doente, levando-o a cometer um crime contra quem lhe é mais próximo, “[e]ncontramo-nos então, subitamente, na presença de um acto verdadeiramente estranho e que tanto nos surpreende pela fria crueldade que revela como pela ausência total de motivos penetráveis e acessíveis à nossa compreensão” [Sobral Cid]. Na procura desta compreensão e da reposição da tranquilizadora ordem social, buscamos uma explicação extraída quadros de referências que a nossa razão alcança, a qual nos leva, inevitavelmente, a condenar a doente pela sua doença. No entanto, “[h]á que renunciar a explicar estes crimes – como a tudo que é tipicamente esquizofrénico – pelo fogo natural dos afectos e das tendências humanas” [Sobral Cid].
O doente mental e a sua doença não estão do mesmo lado. A doença ataca e está contra o doente. Respeitar a “loucura”, imputando as suas manifestações à vontade do doente mental, é desrespeitar a pessoa vítima da doença.
6. A invocação da norma enunciada na segunda parte do n.º 2 do art.º 275.º do Cód. Civil inscreve-se na analogia iuris já acima referida, de tão remota que é a sua proveniência – saltando-se do Livro V do Cód. Civil (da secção dedicada à capacidade sucessória) para o Livro I (para a secção dedicada à declaração negocial). O facto futuro e certo da morte, no contexto da vocação sucessória, nada tem a ver com a estipulada subordinação dos efeitos do negócio jurídico a um acontecimento futuro e incerto, estipulação esta, sim, objeto da referida norma. Procura-se, pois, estabelecer um paralelismo (analogia) entre o fundamento daquela solução legal, conjugados com ouras soluções legais (al. a) do art.º 2034.º do Cód. Civil), e o fundamento da decisão encontrada para o caso.
Não julgamos que exista analogia bastante. Para afastarmos o argumento, parece-nos ser suficiente repisar que o réu atuou no contexto de um surto psicótico, não resultando dos factos provados que tenha agido com o propósito (consciente) de provocar a verificação da “condição” com vista à aquisição da herança. Aliás, levando esta extrapolação ao limite, poder-se-ia dizer que a “condição” de os autores herdarem é a ocorrência da declaração de indignidade sucessória do réu – ou o reconhecimento judicial do exercício abusivo do seu direito –, provocando eles, através da propositura da ação, a verificação desta “condição” – que assim se teria por não verificada. Afigura-se-nos que toda esta linha argumentativa é improcedente.
Por todas estas razões, entendo que a apelação deveria ter sido julgada procedente.
(Paulo Ramos de Faria)
_______________________________________________________
[1] António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183.
[2] Adiante determinado acrescentar.
[3] “O atual art.º 662º representa uma clara evolução no sentido que já antes se anunciava. Como se disse, através dos n.ºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia” - Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 332.
[4] Por todos, vd. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, páginas 193 a 210.
[5] António Abrantes Geraldes, Recursos…, cit., página 200.
[6] António Abrantes Geraldes, Recursos…, cit., páginas 201 a 205.
[7] António Abrantes Geraldes, Recursos…, cit., páginas 206-207.
[8] Que acrescenta, relevantemente, que “este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efetivo objetivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante» (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10, com bold apócrifo).
Logo, «por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente» (Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo nº 1024/12, com bold apócrifo).
Por outras palavras, se, «por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.» (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10, com bold apócrifo. No mesmo sentido, Ac. da RC, de 14.01.2014, Henrique Antunes, Processo nº 6628/10)”.
[9] Acórdão da Relação de Guimarães de 15 de Dezembro de 2016, Processo n.º 86/14.0T8AMR.G1-Maria João Matos.
[10] Assinalando ainda que “nessa reapreciação da prova feita pela 2ª instância, não se procura obter uma nova convicção a todo o custo, mas verificar se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável, atendendo aos elementos que constam dos autos, e aferir se houve erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto, sendo necessário, de qualquer forma, que os elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido” (Ana Luísa Geraldes, Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, publicado nos Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, Coimbra Editora, 2013, páginas 589 e seguintes(609), com o texto disponível on line em http://www.cjlp.org/materias/Ana_Luisa_Geraldes_Impugnacao_e_Reapreciacao_da_Decisao_da_Materia_de_Facto.pdf, páginas 17-18 [consultado a 14/11/2023].
[11] Blog do IPPC, 19/05/2017, Jurisprudência (623), em anotação ao Acórdão da Relação de Coimbra de 07/02/2017, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2017/05/jurisprudencia-623.html [consultado a 14/11/2023].
Vd. também, neste sentido, o Acórdão da Relação do Porto de 14 de Dezembro de 2022 (Processo n.º 1720/20.9T8GDM.P1-Fernanda Pinheiro.
[12] Artigo 623.º
“A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração”.
[13] Artigo 624.º
1 - A decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário.
2 - A presunção referida no número anterior prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil”.
[14] Carregado e sublinhado nossos.
[15] Carregado e sublinhado nossos.  
[16] Em especial sobre a “Prova na ação de responsabilidade civil fundada na prática de crime e factos provados na fundamentação da sentença penal”, vd. o artigo publicado por Cristina Dá Mesquita, na Julgar on line , Janeiro de 2018, disponível em https://julgar.pt/wp-content/uploads/2018/01/20180119-ARTIGO-JULGAR-Factos-provados-senten%C3%A7a-penal-Cristina-D%C3%A1-Mesquita.pdf [consultado a 23/11/2023).
[17] Pedro Pitta e Cunha Nunes de Carvalho, Direito das Sucessões - Lições, Exemplos Práticos e Jurisprudência, 2.ª edição, Almedina, 2021, página 88, onde acrescenta que, “sendo este princípio, naturalmente, aplicável à indignidade”, a lei “previu, contudo, excepções, bem compreensíveis”, como sucede com a “condenação pelos crimes mencionados nas als. a) e b) [que] pode ser posterior à abertura da sucessão, embora o crime tenha de ser anterior (art.º 2035º1)”.
[18] Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direito das Sucessões, 2.ª edição (reimpressão), Quid Juris?, 2004, página 174.
[19] Sendo que, “as únicas situações que a lei qualifica como incapacidade sucessória são as indignidades - Oliveira Ascensão, Direito Civil-Sucessões, 5.ª edição (revista), Coimbra Editora, 2000, página 138.
[20] Carlos Pamplona Corte-Real, Curso de Direito das Sucessões, Quid Juris?, 2012, página 205; Curso de Direito das Sucessões, Volume II, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal (137), 1985, página 53.   
[21] Cristina Pimenta Coelho in Código Civil Anotado - Volume II (Ora. Ana Prata), 2.ª edição, Almedina, 2019, página 968.
[22] Carlos Pamplona Corte-Real, Curso de Direito das Sucessões, Volume II, ob. cit., página 52.
[23] No Código Civil anterior, o artigo 1782.º (incapacidade resultante de atentado contra a vida do testador ou contra a liberdade de testamentificação), dispunha que “Os que forem condenados por haverem atentado contra a vida do testador ou concorrido por qualquer forma para tal delito, e os que impedirem, por violências ou com ameaças, ou fraude, que o testador revogue o seu testamento, , não poderão aproveitar-se das disposições feitas a seu favor”.
[24] Com particular pertinência, Rodrigues Bastos, refere que, neste artigo “a indignidade é regulada como uma incapacidade, mas deve salientar-se, (…) que enquanto as incapacidades em geral têm um fundamento independente da actividade do sucessor, as causas de indignidade, pelo contrário, têm origem na atitude deste” (Jacinto Rodrigues Bastos, Direito das Sucessões Segundo o Código Civil de 1966, I, 1981, página 89). No mesmo sentido, Jorge Pais do Amaral, Direito da Família e das Sucessões, 6.ª edição-reimpressão, Almedina, 2022, página 306.
Ainda que a propósito da ordem jurídica brasileira, Clóvis Beviláqua, assinala de forma certeira (depois de definir a indignidade como “a privação do direito hereditário cominada por lei, a quem cometeu certos actos ofensivos à pessoa ou aos interesses do hereditando”) que “existe considerável diferença entre a indignidade e incapacidade, porque a primeira é uma pena privada e a segunda é uma circunstância de facto” (Clóvis Beviláqua, Direito das Sucessões, Red Livros, 2000, páginas 119 e 120).
[25] Existe divergência na doutrina quanto à classificação correcta da indignidade como incapacidade ou ilegitimidade, mas a questão, que é teórica e conceptual, pode ser relevante para a situação que abordamos: quer Oliveira Ascensão (ob. cit., páginas 140-141), quer Eduardo dos Santos (O Direito das Sucessões, 2.ª edição, AAFDL, 2002, páginas 154-155), quer Rabindranath Capelo de Sousa (Lições de Direito das Sucessões, Volume I, 4.ª edição renovada, Coimbra Editora, 2000, páginas 293-294), entendem, “atendendo à distinção entre incapacidade (como um modo de ser do sujeito em si, visando tutelar interesses do próprio incapaz) e ilegitimidade (um modo de ser para com os outros, visando a tutela de interesses alheios), que as incapacidades sucessórias por indignidade, a que o art.º 2034.º se refere, enquadram-se melhor no conceito de ilegitimidade, dado o seu caráter relativo e a admissibilidade da reabilitação do indigno (art.º 2038.º) o que comprova que o afastamento da sucessão é estabelecido no interesse do autor da sucessão” (Cristina Araújo Dias, Código Civil Anotado - Livro V - Direito das Sucessões, 2.ª edição, Almedina, 2022, página 40; Lições de Direito das Sucessões, 6.ª edição, Almedina, 2017, página 113).
Branca Martins da Cruz propende para “uma interpretação restritiva do corpo do art.º 2034.º no tocante à expressão «capacidade sucessória» , onde sugerimos que se leia capacidade sucessória de exercício”, quer para respeitar a expressão escolhida pelo legislador (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), quer para  explicar o regime legal delineado, de acordo com o qual, como decorre do n.º 1 do artigo 2037.º - “o que tiver incorrido em indignidade, mesmo que esta já tenha sido judicialmente declarada” - e do n.º 1  do artigo 2038.º - “readquire a capacidade sucessória” - “a prática do facto indigno, se não acarreta ainda o afastamento daquela sucessão, produz já algumas consequências a ele conducentes. (…) Isto é: mesmo que não tenha havido ainda declaração judicial, já existe incapacidade, já se detecta uma certa forma de indignidade  - sujeita a confirmação judicial embora -, que impede o infractor de poder ser um herdeiro ou legatário pleno” (Branca Martins da Cruz, Reflexões Críticas sobre a Indignidade e a Deserdação, Almedina, 1986, páginas 49 a 53).
[26] As três primeiras situações anteriores à abertura da sucessão, a quarta, posterior – assim, Oliveira Ascensão, Direito Civil-Sucessões, ob. cit., páginas 138-139.
[27] Luís Menezes Leitão, Direito das Sucessões, Reimpressão, Almedina, 2021, página 111 (onde acrescenta tratar-se esta de uma “classificação elaborada por José Tavares, Sucessões, I, pp, 222 e sãs, que tem sido desde então adoptada pela doutrina. Cfr. Pereira Coelho, Sucessões, pp. 141 e ss., Capelo de Sousa, Sucessões, I, pp. 294 e ss., Jorge Duarte Pinheiro, Sucessões, p. 195 e Cristina Araújo Dias, Sucessões, p. 121”.
Vd., ainda, Inocêncio Galvão Telles, Sucessões – Parte Geral, Coimbra Editora, 2004, página 37.
[28] Pires de Lima-Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume VI, Coimbra Editora, 1998, página 37.
[29] Rita Lobo Xavier, Manual de Direito das Sucessões, Reimpressão, Almedina, 2023, página 93.
[30] Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Volume I, 4.ª edição renovada, Coimbra Editora, 2000, página 293; em concordância, Cristina Araújo Dias, Código Civil Anotado…, ob. cit., página 40.
[31] Maria Paula Bonifácio Leite Ribeiro de Faria, Os crimes Praticados contra Idosos, 3.ª edição, Universidade Católica Editora-Porto, 2015, página 173.
[32] Oliveira Ascensão, Direito Civil-Sucessões, ob. cit., página 138.
[33] Oliveira Ascensão, Direito Civil-Sucessões, ob. cit., página 138. 
Com acuidade, Maria Clara Marques de Queirós Ferreira Reis, escreve que o “que parece nortear a formulação deste artigo é a ideia de justiça, vista como um contrapeso da injustiça ou até da intolerabilidade social, penal e ética dos casos em que fosse permitido que aquele que, intencional e criminalmente, atentou contra os bens jurídicos do autor da sucessão viesse a beneficiar patrimonialmente do que lhe pertenceu em vida” (Indignidade Sucessória-Comportamentos sancionáveis e causas de indignidade, [em linha] Mestrado em Direito apresentado na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa-Escola do Porto e orientado por Rita Lobo X..., 2022, disponível em https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/39063/1/203060750.pdf [consultado a 28/11/2023].
[34] João Paulo Remédio Marques, A indignidade sucessória do artigo 2034.º, alínea a), do Código Civil português – Pode ser dispensada a específica declaração judicial de indignidade sucessória do criminoso em relação a cada uma das heranças posteriormente abertas por óbito das pessoas aí mencionadas?, [em linha] Revista Electrónica de Direito, Junho 2022, N.º 2 (Vol. 28), FDUP, páginas 84 a 126 (93), disponível em https://cij.up.pt/client/files/0000000001/5-remedio-marques_1923.pdf [consultado a 28/11/2023].
[35] Com palavras idênticas, Jorge Pais do Amaral, Direito da Família e das Sucessões, ob. cit., página 307.
[36] Jacinto Rodrigues Bastos, Direito das Sucessões…, ob. cit., página 89.
[37] Leia-se factos qualificados pela lei penal como homicídio.
[38] Introduzido pela Lei n.º 82/2014, de 30 de Dezembro que, na exposição de motivos dos Projectos de Lei que lhe deram origem (Projecto de Lei n.º 662/XII/4.ª e Projecto de Lei n.º 632/XII/3.ª), a propósito do que considerava “situação de o cônjuge homicida poder herdar os bens da vítima”, assumir que é “neste contexto que se fundamenta a presente iniciativa, visando a automaticidade da declaração de indignidade sucessória, no quadro de sentença condenatória pela prática do crime de homicídio, sendo este o propósito do legislador e que é também o que melhor se concilia com a letra do preceito, como vem aceitando a nossa melhor Jurisprudência”.
[39] Ou seja, a declaração que se faça nos termos do artigo 69.º-A do Código Penal nem pressupõe a existência de qualquer enxerto cível, nem sequer fica sujeita ao princípio do pedido, operando automaticamente.
[40] Assim, vd., o Acórdão da Relação de Lisboa de 24 de Fevereiro de 2022 (Processo n.º 96/20.9PHOER.L1-9-Calheiros da Gama): “No que concerne à incapacidade por indignidade, se esta reveste ou não carácter automático no caso de autor de crime de homicídio ser herdeiro do “de cujus”, afirma-se que, os problemas mais sérios que daí resultavam foram entretanto resolvidos pela Lei n.º 82/2014, de 30 de Dezembro, que entre o mais deu nova redacção ao art.º 2036.º do Código Civil, incumbindo o Ministério Público de intentar a ação destinada a obter a declaração de indignidade no caso de o único herdeiro ser o sucessor por ela afetado ou quando, tendo havido a condenação a que se refere a alínea a) do artigo 2034.º, a sentença penal não tenha declarado a indignidade sucessória, sendo obrigatoriamente comunicada ao Ministério Público para o mencionado efeito.
Com vista a contribuir para a resolução desta divergência, o legislador penal aditou ao CP o actual art.º 69º-A (Declaração de indignidade sucessória), que consagra que:” A sentença que condenar autor ou cúmplice de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, descendente, ascendente, adoptante ou adotado, pode declarar a indignidade sucessória do condenado, nos termos e para os efeitos previstos na alínea a) do artigo 2034.º e no artigo 2037.º do Código Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 2036.º do mesmo Código”.
É a parte final desta norma que revela a autonomia da via nele prevista de declaração da indignidade sucessória relativamente ao que se dispõe no art.º 2036.º do CC.

Ou seja, a declaração nos termos do art.º 69º-A do CP não pressupõe qualquer enxerto cível nem está sujeita ao princípio do pedido, operando automaticamente.
E seria o Projecto de Lei nº 662/XII/4ª, que conjuntamente com o Projecto de Lei nº 632/XII/3ª, esteve na origem da Lei nº 82/2014, após alusão à situação intolerável de o cônjuge homicida poder herdar os bens da vítima, que esclarece essa questão, dizendo:
É neste contexto que se fundamenta a presente iniciativa, visando a automaticidade da declaração de indignidade sucessória, no quadro de sentença condenatória pela prática do crime de homicídio, sendo este o propósito do legislador e que é também o que melhor se concilia com a letra do preceito, como vem aceitando a nossa melhor Jurisprudência”.

[41] “É, pois, só nos tribunais criminaes, e no campo do direito penal, que teem logar taes questões”, dizia já a propósito do Código Civil anterior, José Tavares (Sucessões e Direito Sucessório, Volume I, França Amado-Editor, 1903, página 240) .
[42] Jorge Duarte Pinheiro, O Direito das Sucessões Contemporâneo, 5.ª edição, Gestlegal, 2022, página 234.
[43] Cristina Pimenta Coelho in Código Civil…, ob. cit., página 968.
[44] Ainda que relativamente a outra realidade, ainda que com um regime jurídico semelhante e a levantar as mesmas questões e por isso aqui plenamente aplicável, Clóvis Beviláqua afirma que, da “indignidade se deve considerar uma pena privada, resulta: 1º, que as suas causas não podem ser outras, senão, exclusivamente, as indicadas na lei; 2º, que, os seus efeitos diretos, não podem ir além da pessoa do indigno” - Clóvis Beviláqua, Direito das Sucessões, Red Livros, 2000, páginas 119 e 120).
[45] Oliveira Ascensão, Direito Civil-Sucessões, ob. cit., página 139.
[46] João Lemos Esteves, O problema da tipicidade das causas de indignidade sucessória e os tribunais: Breve “estudo de caso”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Pamplona Corte-Real, Almedina, 2016, páginas 97 a 113.
[47] Curiosamente, enunciando a questão e – exaustivamente - os respectivos defensores, Luís Menezes Leitão, não chega a tomar posição expressa (Direito das Sucessões, ob. cit., página 111).
[48] Oliveira Ascensão, Direito Civil-Sucessões, ob. cit., página 139; O Direito-Introdução e Teoria Geral, 3.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, páginas 359 a 368 (367).
[49] António dos Santos Justo, A indignidade sucessória no direito romano: reflexos no direito português, Revista Lusíada. Direito. n.º 15 (2016), páginas 7-79 (77), disponível em http://repositorio.ulusiada.pt/bitstream/11067/4362/1/ld_15_16_2016_1.pdf [consultado a 29/11/2023].
[50] Rodrigo Mazzei, Indignidade sucessória e o  rol taxativo do art.º 1.814 do Código Civil: breves comentários ao julgamento do REsp. 1.943.848/PR, in Ensaios Sobre o Direito das Sucessões - Direito Material e Processo, Editora JusPodium, 2023, páginas 23-24, disponível em https://juspodivmdigital.com.br/cdn/pdf/JUS2818-Degustacao.pdf [consultado a 28/11/2023].
Ainda para o Direito brasileiro, vd. Leonardo Estevam de Assis Zanini-Odete Novais Carneiro Queiroz, A Exclusão da Sucessão do Herdeiro por Indignidade, Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, 28(2), 2022, 23, disponível em  https://revistas.direitosbc.br/fdsbc/article/view/1139 [consultado  em 28/11/2023].
[51] Rodrigo Mazzei, Indignidade sucessória…, cit., páginas 26 a 29.
[52] Uma vez que o tribunal a quo decidiu julgar verificados os elementos típicos, de carácter objectivo, de um crime de homicídio qualificado (p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1, do Código Penal, e de um crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho, entendendo que os respectivos factos haviam sido praticados pelo arguido, mas declarando-o inimputável relativamente a tal conduta, determinando o seu internamento em estabelecimento psiquiátrico adequado ao tratamento, por período não inferior a 3 anos, decisão de algum modo equivalente a uma absolvição.
[53] Tal Acórdão foi proferido antes da vigência do actual artigo 69.ºA do Código Penal.
[54] Referenciado em praticamente todos os Manuais de Direito das Sucessões posteriores à sua prolatação, como exemplo de decisão jurisprudencial, a propósito da questão da taxatividade das situações de indignidade.  
[55] Seria “de todo em todo intolerável, inaceitável para uma consciência ética e de valores, que não suportaria premiar com a vida, o valor da vida, aquele pai que sem contemplações roubou a honra de sua filha.
Isso brigaria frontalmente, e de uma forma violenta, com o princípio da dignidade da pessoa humana inscrito logo no art.º 1º da Constituição da República Portuguesa como conformador da nossa identidade enquanto povo soberano, porque seria dar a vida de alguém a quem a esse alguém roubou a honra.
Seria um atentado manifesto aos bons costumes e mesmo ao fim social e económico desse direito, o direito de suceder.
E quando os limites assim impostos ao direito são dessa maneira tão manifestamente excedidos, o direito não é, o direito não existe.
O direito tem limites internos cuja ultrapassagem é a entrada no não direito.
É o abuso do direito tal como o define o art.334º do CCivil.
Parece aqui haver alguma intrínseca contradição naquilo que vimos dizendo, uma vez que afirmámos atrás que o crime praticado pelo réu não está incluído na taxatividade definida como excepção no art.2034º e então, porque está fora dela, haveria que aceitar a regra da capacidade sucessória.

Não há contradição alguma.
Continuaremos a afirmar que, por si só, o crime praticado pelo réu não o faria cair na excepção da incapacidade por indignidade.
O que dizemos é que as circunstâncias concretas do caso conduzem a que o reconhecimento do direito do réu a suceder a sua filha – tão mais evidentes quanto a herança é o direito à indemnização por morte dela! – viola manifestamente aquilo que são as concepções ético-jurídicas dominantes; o reconhecimento desse direito afrontaria de uma forma clamorosa aquilo que a moralidade e os bons costumes exigem, afrontaria clamorosamente (também) aquilo que o direito tem em vista ao garantir, mesmo constitucionalmente (art.º 62º da Constituição), o direito à transmissão dos bens e que a lei civil, no caso da sucessão legal – art.º 2131º e seguintes – reconduz ao cônjuge e aos (certos) parentes (para além do inevitável estado, à falta daqueles).
A ideia de que os bens devem permanecer no domínio da família quando as gerações se sucedem umas às outras seria afrontosamente torturada se se concedesse a este, ao réu BB, o direito de suceder à falecida CC porque ele se auto-excluiu da substancial ideia de família.

Porque é um pai que roubou a honra de sua filha de apenas 15 anos, que lhe quer ficar agora com a vida, e que não fez nada de motu próprio para expiar o seu “pecado” e recuperar o afecto que criminosamente destruiu. Pelo contrário, depois de cumprir a pena (que lhe foi imposta) persistiu na sua conduta ofensiva da honra da filha de tal modo que, ainda em 1995 – no ano anterior ao acidente que a vitimou – a fez recolher a casa com tremuras, em pranto e grande aflição.
Dir-se-á que à filha, deste modo criminoso vítima do pai, estava aberto o caminho da deserdação previsto no art.2166º para, de forma total e definitiva, o afastar do caminho da sua herança. E que, portanto, quando a lei colocou no seu património privado, como se disse, o juízo da sua própria vontade, ela o não exercitou e por isso a capacidade do pai se mantém.
Mas não é assim.
Não é assim nesta situação concreta e é do concreto exercício do direito, de um direito, que falamos quando falamos de abuso de direito.
Esta mulher morre muito nova, antes dos 30 anos, e o réu é seu pai.
A lógica da vida – quando a vida tem lógica – conduz a que a filha sobreviva ao pai. Sobretudo quando ainda se não tem 30 anos e toda a lógica parece possível.

Na cabeça desta jovem não passaria nunca a necessidade de deserdar seu pai – o tempo encarregar-se-ia de colocar as coisas no seu devido lugar.
Sobretudo na cabeça desta jovem, cheia ainda do temor do pai que a violara e que persistia no comportamento ofensivo e que a fazia viver aterrorizada, angustiada, com vergonha e medo de vir a sofrer novas injúrias de seu pai. ( por isso nunca o tendo perdoado ), não haveria sequer tempo ( e espaço ) para colocar a necessidade de afastar o pai da sua herança quando a ordem natural das coisas seria colocá-la a ela a herdar do pai.
E este, que nunca se arrependeu, até à morte da filha, que não lamentou essa morte, como pode querer agora, sem atentar contra as concepções éticas e jurídicas que nos guiam, ficar-lhe com vida?!
Reconhecer ao réu BB capacidade sucessória na herança de sua filha CC seria sancionar um intolerável abuso do direito do réu a suceder-lhe.
E onde há abuso, abuso nos termos definidos no art.º 334º do CCivil, não há direito”.

[56] Mesmo recentes dissertações de Mestrado:
 - Filomena do Carmo Martins Vaz, Indignidade Sucessória e Deserdação:  Fundamentos Para Uma Alteração Legislativa, [em linha] Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Forenses, orientada por Mónica Vanderleia Alves de Sousa Jardim e apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Janeiro de 2015, disponível em https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/34733/1/Indignidade%20Sucessoria%20e%20Deserdacao%20Fundamentos%20Para%20Uma%20Alteracao%20Legislativa.pdf [consultada a 28/11/2023] – onde se sugere que o legislador vá “mais longe” para “possibilitar a prova do crime em ação cível, de forma a abranger as situações da extinção do procedimento criminal, por morte do seu agente, as quais face à atual legislação, ficam impunes” (página 57) e se propõe, face “à notória incapacidade de resposta do artigo 2034º do Código Civil a situações de flagrante injustiça e desigualdade”, que seja “ponderada a alteração legislativa da sua alínea a), no sentido de ele passar também a abranger:
a) o homicídio por negligência (…); 
b) as situações de abandono previstas e punidas no artigo 138º do Código Penal (…); 
c) o incitamento ou ajuda ao suicídio (art.º 135º nº 1 do Código Penal) (…);
d) os crimes de ofensas corporais, simples, grave, qualificada, privilegiada, agravada pelo resultado ou por negligência, previstos e punidos no art.º 143º e seguintes do Código Penal, nos quais se incluem ofensa ao “corpo” ou à saúde; 
e) o aborto ou a morte da grávida resultante de aborto, previsto nos artigos 140º e 141º do Código Penal”.
E ainda que seja:
 - “aditado ao artigo 2034º do Código Civil uma nova alínea, de forma a abranger algumas das situações de violência doméstica previstas e punidas no artigo 152º n.º 1 do Código Penal (…)”;
 - “completado o artigo 2034º, no sentido de referir expressamente que a indignidade se aplica a todas as formas de sucessão”;
- substituído no artigo 69º-A do Código Penal a expressão “pode” pela “deve”;
- alterado “o artigo 2036º do Código Civil, de forma a referir expressamente a possibilidade do recurso à ação de declaração de indignidade, nos casos de morte do autor do crime” (páginas 66-67).
 - Maria Luísa Pereira Fonseca Trigo da Romana, O Atual Regime da Indignidade Sucessória, [em linha] Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Forenses, orientada por Sandra Passinhas e apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Maio 2016, disponível em https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/41805/1/Tese%20Indice%2097-2003.pdf [consultado em 28/11/2023], onde se fende também que “o legislador deveria possibilitar a prova do crime em ação cível por forma a abranger situações de extinção do procedimento criminal por morte do seu agente, situações estas, que face à atual legislação ficam numa situação de impunidade. Tal como a não rejeição do recurso à analogia na interpretação do art.º 2034º do C.Civ., para que nele se integrem os condenados pela prática de outros crimes de ofensa à honra do autor da sucessão, desde que sejam mais graves do que aqueles que o próprio legislador nele previu expressamente ou de igual gravidade, pois afigura-se-nos que constitui uma clara ofensa aos princípios fundamentais constitucionalmente consagrados, nomeadamente uma violação clara do conceito de dignidade humana, bem como, da integridade moral e física, princípios que os arts.25º e 26º da Constituição da Republica Portuguesa dispõem como invioláveis e protegidos contra quaisquer formas de descriminação e, ainda, protegida pelas principais Leis Fundamentais, e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos” (página 38);
 - Maria Clara Marques de Queirós Ferreira Reis, Indignidade Sucessória-Comportamentos sancionáveis e causas de indignidade, [em linha] Mestrado em Direito apresentado na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa-Escola do Porto e orientado por Rita Lobo X..., 2022, disponível em https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/39063/1/203060750.pdf [consultado a 28/11/2023], que sem se referir à inimputabilidade, sugere “o alargamento das causas previstas no art.º 2034.º do CC a outras condutas que constituem crimes de elevada gravidade ou censurabilidade social, ou a condutas que, não constituindo crime, mas revelando uma incontestável violência para com o autor da sucessão, mereçam sanção civil de afastamento do sucessível agressor, com fundamento no respeito pelos princípios da dignidade humana e da justiça social, e pelo princípio das conceções ético-jurídicas da comunidade atual” (página 43).
 - Catarina Maria Alves Cardiga, A Indignidade e a Deserdação: Uma Perspetiva do Séc. XXI, [em linha] Mestrado em Direito e Prática Jurídica Especialidade em Direito Civil apresentado na Faculdade de Direito a Universidade de Lisboa, 2017/2018, disponível em https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/37620/1/ulfd137602_tese.pdf [consultado a 28/11/2023], não aborda a questão.
- Ana Rita Gomes da Silva, As Incapacidades na Sucessão Legitimária, ob. cit., página 72, toma posição no sentido de não se verificar a “indignidade nos casos de homicídio em que que se verifique a exclusão da ilicitude e da culpa (art.ºs 31.º e segs do CPenal) ou inimputabilidade do agente (art.ºs 19.º e 20.º) CPenal)”.
- Letícia Nascimento Pereira, O Fim da Sucessão Legitimária e Propostas de Reforma à Luz do Século XXI, [em linha] Mestrado em Ciências Jurídico-Civilísticas apresentado na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2022, disponível em https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/146175/2/595039.pdf [consultado a 28/11/2023], que defende a “atualização dos fundamentos, não apenas da deserdação, como também do instituto da indignidade” e das suas causas, por carecerem “de uma urgente adaptação à atualidade” (página 36 e 46).
[57] Manuel João da Palma Carlos, Das Sucessões, Volume 1.º, Edição da Procural, 1942, página 294.
[58] Artigo 1814 (Código Civil Brasileiro)
São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:
I- que houverem sido autores, coautores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;
II- que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro;
III- que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por atos de última vontade.
[59] “Como é de trivial sabença, a interpretação (e aplicação) do art.º 1.814 do Código Civil acerca das hipóteses que autorizam a “indignidade sucessória” é um tema nervoso, notadamente quando o foco da questão se volta à análise da taxatividade (ou não) do rol contido na referida norma legal”Rodrigo Mazzei, Indignidade sucessória e o  rol taxativo do art.º 1.814 do Código Civil: breves comentários ao julgamento do REsp. 1.943.848/PR, in Ensaios Sobre o Direito das Sucessões - Direito Material e Processo, Editora JusPodium, 2023, página 21, disponível em https://juspodivmdigital.com.br/cdn/pdf/JUS2818-Degustacao.pdf [consultado a 28/11/2023].
[60] Disponível em
https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202101790877&dt_publicacao=18/02/2022 [consultado a 28/11/2023].
[61] “Por conseguinte, salvo alteração da lei (que seria conveniente), o atentado contra a vida e a honra do companheiro do autor da sucessão (membro da união de facto, e não cônjuge) não permite afastamento do sucessível por indignidade” (Jorge Duarte Pinheiro, O Direito das Sucessões Contemporâneo, ob. cit., página 234).
[62] Ana Rita Gomes da Silva, desenvolve considerações pertinentes quando escreve que, “Lançando os olhos sobre as posições adotadas em doutrinas estrangeiras, na discussão de hipóteses semelhantes, verificamos que, se num caso ou outro se admite uma extensão da incapacidade ou da deserdação para além do círculo das previsões legais, em geral aceita-se sem discussão o caráter taxativo destas.
Se procurarmos, uma justificação doutrinária destas afirmações, para além do que parecem ser meras intuições, supomos que os autores tenderão a fundar-se:
• Na invocação de um princípio geral de capacidade sucessória;
• No próprio facto de a lei ter recorrido à tipificação.
No que respeita ao primeiro fundamento, ele encontra uma funda repercussão no art.º 2033.º do Código de 1966, em que se afirma que têm capacidade sucessória “... todas as pessoas... não excetuadas por lei.”
A incapacidade parece ser expressamente qualificada como uma exceção.
Carecem de capacidade sucessória, por indignidade, as pessoas que incorrem nalgumas das causas previstas na lei – logo poderia pensar-se que essas causas deveriam ser tomadas como exceções, em sentido próprio, ao princípio da capacidade, pelo que não permitiriam aplicação analógica. E nada adiantaria objetar que tecnicamente indignidade não é incapacidade: para este raciocínio basta a observação de que a lei a considerou como tal, pelo que sempre representaria exceções ao princípio geral da capacidade.
Temos, porém, as maiores dúvidas de que se possa utilmente trabalhar em direito com semelhantes jogos lógicos de regra e exceção, numa amplitude tão desmedida.
Sem dúvida que resulta da lei um princípio geral da capacidade; duvida ainda que desse princípio se pode tirar a consequência prática de que deixa de ser possível uma livre atividade no intérprete na fixação de casos de “incapacidade”.
Parece-nos, porém, de um certo primarismo lógico ter como suficiente a expressão legal para se afirmar que todas as regras sobre incapacidade são regras excecionais em sentido técnico.
Se este argumento não é decisivo, a grande razão em favor do caráter restrito estará no próprio facto da enumeração ou tipificação.
A índole limitativa resultará primacialmente de o legislador ter estabelecido um catálogo de causas relevantes. Com a codificação, e dentro da preocupação geral de reagir ao arbítrio judicial, as causas de indignidade passaram a ser previstas expressamente.
Mas com isto apenas reencontramos o que dissemos há pouco perante o princípio geral da capacidade: é de supor que tenha sido excluída uma livre atividade do intérprete na fixação das causas de indignidade ou da deserdação, mas isso não implica que toda a analogia seja vedada.
Essas tipologias podem ter significado muito diverso, pois podem ser:
• taxativas: quando a norma fixa todas as especificações possíveis de dado conceito;
• exemplificativas: quando é livre a fixação pelo intérprete de novas figuras, que correspondem igualmente àquele conceito;
• delimitativa: quando só é possível a elaboração de novas figuras se forem análogas a algum dos tipos normativamente previstos.
A enumeração legal das causas de indignidade e de deserdação tem na sua base, como vimos já, razões de segurança, e por isso automaticamente excluiremos que se aceitasse aqui uma tipologia exemplificativa” (As Incapacidades na Sucessão Legitimária, [em linha] Tese de Mestrado em Direito das Crianças, da Família e das Sucessões apresentado na Universidade do Minho-Escola de Direito e orientado por Cristina Dias, 2016, páginas 113-114, disponível em https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/50188/1/Ana%20Rita%20Gomes%20da%20Silva.pdf [consultado a 28/11/2023].
[63] Mais facilmente, nesta perspectiva, poderia estar o homicídio de um pai praticado por um menor de 14 anos, por exemplo, que sempre seria sujeito a uma medida tutelar, eventualmente de internamento.
[64] Jorge Duarte Pinheiro, O Direito das Sucessões Contemporâneo, ob. cit., página 234.
[65] E estas, como atrás vimos, já têm como base “a intolerabilidade social das condutas praticadas contra o autor da sucessão, e o consequente abuso de direito que traduziria o benefício da sucessão” - Maria Paula Bonifácio Leite Ribeiro de Faria, Os Crimes…, página 173.
[66] Com particular interesse, vd., Inês Maria Martins Santos, O Abuso do Direito no Direito das Sucessões, [em linha] Mestrado Profissionalizante em Ciências Jurídico-Forenses apresentado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2018, disponível em https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/37361/1/ulfd136447_tese.pdf [consultada em 29/11/2023].
[67] Mafalda Miranda Barbosa, Liberdade vs. Responsabilidade - A precaução como fundamento da responsabilidade delitual?, Almedina, 2006, páginas 317 a 323; também, Coutinho de Abreu (Do Abuso do Direito – Ensaio de um Critério em Direito Civil e nas Deliberações Sociais, Almedina, 2006 - reimpressão), admitindo a sua desnecessidade, não deixa de assinalar a sua conveniência, para ultrapassar dúvidas quanto à sua aplicabilidade, nomeadamente por parte de quem seja mais positivista-legalista (página 50).
[68] Vd., sobre esta matéria, recentemente, Daniel Bessa de Melo,  “O abuso do direito: contributos para uma hermenêutica do artigo 334.º do Código Civil português”, in Julgar on line, outubro de 2020, disponível in http://julgar.pt/wp-content/uploads/2020/10/20201029-JULGAR-O-Abuso-do-Direito-contributos-para-uma-hermen%C3%AAutica-do-art-334-do-C%C3%B3digo-Civil-portugu%C3%AAs-1.pdf; e Eva Dele, Abuso do Direito: para (e através da) superação do paradigma, Revista de Direito da Responsabilidade, Ano 2 – 2020, disponível in  http://flowpaper.com/flipbook/20205kr3/?wp-hosted=1 [consultados a 28/11/2023].
[69] Pedro Pais de Vasconcelos-Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 9.ª edição, 2019, página 278; Fernando Augusto Cunha de Sá, Abuso do Direito, Almedina, 1997 (reimpressão da edição de 1973), página 171.
[70] Mafalda Miranda Barbosa, ob. cit., página 322.
[71] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V Volume–Parte geral-Exercício jurídico, Almedina, 2011, página 372.
[72] Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, II, Almedina, 1984, página 882.
[73] Pedro Pais de Vasconcelos, O abuso do abuso do direito – um estudo de Direito Civil, Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2015-I, página 34.
[74] Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, II, ob. cit., página 837.
[75] Pedro Pais de Vasconcelos-Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Teoria Geral…, ob. cit., página 285. Sobre o honeste agere, vd. página 278.
[76] Pedro Pais de Vasconcelos-Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Teoria Geral…, ob. cit., página 278.
[77] Oliveira Ascensão, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. IV, Título V, As Situações Jurídicas, Lisboa, 1985, página 212.
[78] Manuel Carneiro da Frada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Almedina, 2007, página 861.
[79] Assim, também, Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, II, ob. cit., páginas 837-838.
[80] Oliveira Ascensão, Teoria Geral…, ob. cit., página 215.
[81] Luís Alberto Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Volume 2 - Fontes, conteúdo e garantia da relação jurídica, 5.ª edição, Universidade Católica Editora, 2017, página 626.
[82] Pedro Pais de Vasconcelos-Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 9.ª edição, 2019, páginas 280-281.
[83] Heinrich Ewald Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português – Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 1992, página 282.
[84] Vd., no Facto 6, a transcrição dos Factos 42 a 45 apurados no Acórdão do processo crime:
42. O arguido sabia que, ao desferir facadas na cabeça, costas e tronco de J…e na cabeça e zona torácica de S... lhes provocaria a morte, como veio a acontecer.
43. E também sabia que com a sua actuação iria causar a morte do feto que sabia que a irmã, S…, trazia em gestação, como veio a acontecer.
44. Em suma, a actuação do arguido foi a causa directa e necessária, da morte de J… e de S..., ocorrida no local e verificada pelas 23h30m do dia 13 de Novembro de 2020.
45. O arguido agiu com o propósito concretizado de tirar a vida a J… e a S..., fazendo-a abortar, sabedor que tal conduta lhe era vedada por lei.
[85] Vd., no Facto 6, a transcrição dos Factos 15, 16 17 e 18 (para além das lesões concretamente descritas nos Factos 22 a 29), apurados no Acórdão do processo crime:
15. (…) desferiu-lhe vários golpes em locais distintos do corpo, nomeadamente, cabeça, costas e tronco.
16. Após, o arguido muniu-se de outra faca e continuou a desferir golpes, com a mesma, no corpo de J..., que, a certa altura conseguiu fugir para o quarto do arguido, tendo fechado a porta, dirigindo-se para a varanda, onde acabou por falecer.
17. S..., irmã do arguido, ao aperceber-se do sucedido, tentou socorrer o pai, acabando por ser várias vezes golpeada, com outra faca, pelo arguido, em diversas regiões do corpo, nomeadamente na cabeça e na zona torácica.
18. S... acabou por falecer na cozinha.
19. S... estava grávida, com período de gestação estimado entre 9 e 10 de semanas, sendo que o feto não apresentava anomalias feto-placentares, pelo que a morte do feto se deu in útero, devido ao falecimento da mãe”.
[86]O sucessível titular da designação tem de sobreviver ao de cuius e, em regra, tem de possuir personalidade jurídica no momento da abertura a sucessão. Assim sendo, o pressuposto da existência do chamado desdobra-se em duas elementos; sobrevivência e personalidade jurídica”Jorge Duarte Pinheiro, O Direito das Sucessões – Sumários, AAFDL, 2010, página 145.
[87] Como refere Jorge Pais do Amaral, a “vocação -já existe no momento da morte do autor da sucessão, mas essa vocação é condicional e só virá a consolidar-se no momento da verificação da condição” (Jorge Pais do Amaral, Direito da Família e das Sucessões, ob cit., página 306).
[88] Como decorre dos Factos 42. (O arguido sabia que, ao desferir facadas na cabeça, costas e tronco de J… e na cabeça e zona torácica de S... lhes provocaria a morte, como veio a acontecer), 43. (E também sabia que com a sua actuação iria causar a morte do feto que sabia que a irmã, S..., trazia em gestação, como veio a acontecer) e 45. (O arguido agiu com o propósito concretizado de tirar a vida a J… e a S..., fazendo-a abortar, sabedor que tal conduta lhe era vedada por lei), da Sentença penal, transcritos no Facto 6 deste Acórdão.
[89] Bem descritos em todas as suas dimensões, por Juan José Varrasco Gómez-José Manuel Maza Martin, Tratado de Psiquiatría Legal e Forense, 4.ª edición, LA LEY, 2010, páginas 1411 a 1496: também, Nicolas Georgieff, A Esquizofrenia, Instituto Piaget, 1998; e o clássico Enrico Altavilla, Psicologia Judiciária, I – O processo psicológico e a verdade judicial, 3.ª edição, Arménio Amado-Editor, 1981, páginas  290-294.
[90] Jorge Figueiredo Dias, Liberdade-Culpa-Direito Penal, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1983, página 175.
Com interesse, vd., ainda, Fernanda Palma, O Princípio da Desculpa em Direito Penal, Almedina, 2005; Maria João Antunes, Medida de Segurança de Internamento e Facto de Inimputável em Razão de Anomalia Psíquica, Coimbra Editora, 2002; e Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de Inimputáveis e «in dubio pro reo», Coimbra Editora, 1997.   
[91] Guy de Maupassant, in Loucura e Clínica, 2.ª edição, Padrões Culturais Editora, 2010, páginas 124-125.
[92] Charles Dickens, in Loucura e Clínica, ob. cit., página 103.
[93] Como escreveu a Ministra Nancy Andrighi no já citado Acórdão do Superior Tribunal de Justiça do Brasil, de 18 de Fevereiro de 2022, “o ato praticado pelo filho, tentado ou consumado, de ceifar a vida dos pais (conduta reprimida pelo ordenamento jurídico), conquanto não seja tecnicamente um homicídio na esfera penal, isentando-o da reprimenda típica prevista nessa legislação, não deixa de ser um homicídio para os efeitos civis".
[94] Luís Alberto Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Volume 2…, ob. cit., página 628.
[95] João de Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, Volume I, AAFDL, 1978, página 358.
[96] Mafalda Miranda Barbosa, Liberdade vs. Responsabilidade…, ob. cit., página 321.
Nesta mesma linha, Manuel Carneiro da Frada, Teoria da Confiança…, ob. cit., página 858; Heinrich Ewald Hörster, A Parte Geral…, ob. cit., página 282; e Luís Alberto Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Volume 2…, ob. cit., página 626.
[97] João de Castro Mendes, Teoria Geral…, ob. cit., página 358.
[98] João de Castro Mendes, Teoria Geral…, ob. cit., página 358.
[99] A já aqui citada Filomena Vaz, escreve mesmo que “Se é verdade que a família é a célula base da nossa sociedade, também não é menos verdade que é precisamente no núcleo familiar que se levantam as questões de maior melindre e que por isso merecem toda a atenção do legislador. Ora, como comprovam estes casos, a solidez familiar não se pode manter enquanto não forem eficazmente prevenidas e punidas as situações de flagrante violação da dignidade de elementos da família” - Filomena do Carmo Martins Vaz, Indignidade Sucessória e Deserdação:  Fundamentos Para Uma Alteração Legislativa, ob. cit., página 69.
[100] Certo que existe o artigo 2034.º e que nele – taxativo como é, como vimos – apenas consta a condenação por homicídio doloso (A lei, através da aplicação de uma pena civil, retira ao agressor a capacidade sucessória que inicialmente detinha, impedido assim que possa adquirir os bens que pertenciam ao agredido autor da sucessão; na sua vertente punitiva, não aceita que o sucessível possa adquirir os bens que pertenciam ao autor da sucessão que tenha sido vítima de uma agressão, por parte desse mesmo sucessível; considera que aquele sucessível deixa de ser uma pessoa digna em relação à sucessão e ao autor desta” - Maria Clara Marques de Queirós Ferreira Reis, Indignidade Sucessória…, ob. cit., página 40).
Mas esses são os casos em que o legislador não quer que haja sequer dúvidas. Os outros, terão sempre de ser apreciados em concreto, de acordo com os restantes institutos que a Ordem Jurídica consagra e que lhe servem como válvula de escape para fugir a situações iníquas. Como o caso vertente.
[101] Inês Maria Martins Santos, O Abuso do Direito…, ob. cit., página 51-53, dá conta de, nos Estados Unidos da América, “apesar de a maioria dos tribunais entender não atribuir os bens ao homicida, com base no princípio de que ninguém deve beneficiar do seu próprio ato ilícito, outras decisões foram favoráveis aos homicidas. Por exemplo, a decisão proferida no processo conhecido como Carpenter’s Estate, julgado em 1895 na Pensilvânia, segundo a qual o tribunal manteve o direito de suceder do homicida do autor da sucessão, ao aplicar ao caso o princípio «não há pena sem lei» (nula poena sine lege), um princípio do Direito Penal, uma vez que entendeu que o afastamento da sucessão constitui uma pena civil e que a todo o direito sancionatório se aplicam subsidiariamente os princípios do Direito Penal.
Hoje em dia, porém, a maioria dos Estados integrantes da Federação tem legislação que exclui a sucessão pelo homicida relativamente ao património da vítima, mandando tratar o assassino como se tivesse falecido antes do de cuius”.
Mais assinala a existência de um caso “de um pai que foi autorizado a herdar o património da sua filha, apesar de ter sido alegado abuso da menor”.
[102] Mafalda Miranda Barbosa, Liberdade vs. Responsabilidade…, ob. cit., página 322.
[103] Inês Maria Martins Santos, O Abuso do Direito…, ob. cit., página 70.
[104] Inês Maria Martins Santos, O Abuso do Direito…, ob. cit., página 89.
[105] A propósito da situação decidida no já referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, escreve Inês Maria Martins Santos: “Por fim, o exercício deste direito pelo réu constitui ainda um excesso manifesto relativamente aos limites impostos pelo fim social ou económico do direito. O fim social e económico do direito de qualquer pai suceder à sua filha é a proteção da família, no entender unânime da doutrina do Direito das Sucessões. O fundamento é que o património (ativo ou passivo) acumulado pelo falecido deverá ser integrado pelo património daqueles que se pressupõe serem mais próximos: os seus familiares diretos” (O Abuso do Direito…, ob. cit., página 68).
[106] “A Natureza das Coisas recolhe o seu nome na tradicional Rerum Natura e pede-lhe emprestado algum do seu sentido, mas com uma modificação profunda. Não é uma natureza que as pessoas e as coisas tenham de permanente e imutável, determinada pelo Criador na Criação, também não é o presente estado das coisas, seja ele qual for – é algo de mais complexo.
Na esteira de Pufendorf, a Natureza das Coisas distingue enthia physica e enthia moralia. Pufendorf diz, de modo expressivo, que os enthia physica são o que Deus fez e os enthia moralia são o que o homem fez. É semelhante.
Os enthia physica são as realidades do mundo físico, como diz a expressão, com que o homem contacta e o envolvem, que o condicionam e que o limitam. São as coisas, as pedras, os rios, as aves, as forças da natureza, a sequência dos dias e das noites, as forças cósmicas, etc.
Os enthia moralia são as realidades morais e culturais em que as pessoas vivem, os usos, os costumes e as ideologias, a maneiras de viver, as religiões, as éticas e as morais, as estéticas, as ciências, a memória e a história, etc.
anto os enthia physica como os enthia moralia limitam, influenciam e condicionam a acção humana na vida. O Direito, como disciplina ética que é, realiza-se em comportamentos e ações humanas e, por isso, é também limitado, influenciado e condicionado pelos enthia physica e pelos enthia moralia que constituem a Natureza das Coisas. Esta é a consequência trivial da verdade nada trivial de que o Direito só rege sobre pessoas e só pode o que as pessoas puderem.
E assim, é totalmente ineficaz uma lei ou um comando jurídico que revogue a lei da gravidade, que proíba que o quadrado da hipotenusa seja igual à soma do quadrado dos catetos ou revogue a lei da morte ou que ordene a felicidade de todos. É impossível.
Não é, já ineficaz, mas é insensata, uma lei ou um comando jurídico que determine o que é perigoso ou imprudente, que decrete, por exemplo, limites de velocidade de circulação na estrada que sejam irrazoáveis, impostos injustos, políticas criminais contraproducentes, qualifique como crimes condutas que não atentem contra o bem comum nem contra a vida em sociedade e que a generalidade das pessoas considera lícitas e aceitáveis.
Os enthia physica e os enthia moralia tanto limitam e forçam, como condicionam e influenciam o Direito” – Pedro Pais de Vasconcelos, Última lição-A Natureza das Coisas, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa - 16 de Maio de 2016, edição do Autor, páginas 8-9.
[107] Pedro Pais de Vasconcelos, Última lição…, cit., página 11.
[108] Pedro Pais de Vasconcelos, Última lição…, cit., página 17.
[109]Todos os autores concordam na possibilidade de haver lugar a responsabilidade civil e na possibilidade de travar a concreta atuação abusiva, mas nem todos concordam, por exemplo, com a possibilidade de suprimir, por completo, a posição jurídica indevidamente exercida” - Inês Maria Martins Santos, O Abuso do Direito…, ob. cit., página 22.
[110] Inês Maria Martins Santos, O Abuso do Direito…, ob. cit., página 70.
[111] Pires de Lima-Antunes Varela, Código Civil anotado, Volume I, 4.ª edição revista e actualizada com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra Editora, 1987, página 300.
[112] Inês Maria Martins Santos, O Abuso do Direito…, ob. cit., página 70.
[113] Eric Voegelin, A Natureza do Direito e outros textos jurídicos, Vega, 1998, página 95.
[114] Paul Ricoeur, O Justo ou a Essência da Justiça, Instituto Piaget, 1997, páginas 168-169; cfr., também, com interesse, François Ost, A Natureza à Margem da Lei - A Ecologia à Prova do Direito, Instituto Piaget, 1997, páginas 19 a 24.