RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
BURLA TRIBUTÁRIA
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
NEXO DE CAUSALIDADE
COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS
Sumário


I - Uma realidade, é o nexo causal entre falsas declarações e as atribuições patrimoniais efetuadas pela administração da segurança social, de que resulta um enriquecimento ilegítimo do agente ou de terceiro pela atribuição de prestações sociais e, outra, é a dedução pela entidade empregadora das contribuições, no valor das remunerações devidas aos trabalhadores e sua entrega às instituições de segurança social, integradas no cumprimento do preceituado no art.43.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de setembro.
II - A compensação de créditos é o meio do devedor se livrar da obrigação, por extinção simultânea do crédito equivalente de que disponha sobre o seu credor.
III - Sendo as demandadas devedoras de indemnização pelos prejuízos emergentes de facto ilícito doloso, que deu lugar à sua condenação pela prática em coautoria material de um crime de burla tributária qualificada, não podem, designadamente a sociedade arguida, beneficiar da compensação de créditos neste processo, atento o disposto na alínea a), n.º 1 do art.853.º do Código Civil.

Texto Integral



Proc. n.º 2029/12.7TACBR.C1.S1


Recurso Penal



*




Acordam, em Audiência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça.


I - Relatório


1. Nos presentes autos de processo comum com intervenção do Tribunal Singular, que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Comarca de Coimbra - Juízo de Competência Genérica da ... – J... 1, foram submetidas a julgamento, sob acusação do Ministério Público, as arguidas AA, M... Unipessoal, Lda.” e BB, todas devidamente identificadas nos autos, imputando-se-lhes a prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de burla tributária qualificada, p.p. pelo art.87.º, n.º 3, do RGIT, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 15/2001, de 5 de junho, por decorrência legal dos artigos 6.º e 7.º do RGIT e, realizada a audiência de julgamento o Tribunal decidiu, por sentença de 28 de outubro de 2020, absolver todas as arguidas da prática do crime porque vinham acusadas e, julgar totalmente improcedente o pedido de indemnização deduzido pelo demandante “Instituto da Segurança Social, I.P.”, contra as demandadas AA, M... Unipessoal, Lda” e BB, absolvendo-as do pedido.


2. Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público para o Tribunal da Relação de Coimbra, que por acórdão de 17 de novembro de 202, julgou procedente o recurso do Ministério Público e, revogando a sentença recorrida, decidiu, quanto à alteração da matéria de facto:


1- Eliminar dos factos não provados da sentença recorrida os pontos A, B, C, D e E.


2- Aditar aos factos provados os seguintes factos:


31.Por forma a cumprir com as condições de atribuição das prestações previdenciais, as arguidas AA e BB, esta por si e em representação da sociedade arguida, na prossecução de um plano previamente por ambas gizado, decidiram, por meio fraudulento, determinar a administração da Segurança Social a efetuar atribuições patrimoniais à arguida AA que ambas sabiam esta não ter direito.


32. A qualificação da arguida AA como trabalhadora por conta da sociedade arguida e as declarações de remunerações a si respeitantes são falsas.


33. Tal qualificação e sua declaração extemporânea à Segurança Social, com valores como os mencionados, tiveram como único propósito permitir o enquadramento em regime de segurança social que viabilizasse desde logo o acesso aos subsídios elencados.


34. As arguidas tiveram o propósito de, em comunhão de esforços e de vontades, criar o circunstancialismo de facto subsumido às condições legalmente exigíveis para determinar a Segurança Social a favorecer a arguida AA, quer na atribuição, quer no montante do subsídio por risco clínico, subsidio parental inicial, subsídio para assistência a filho e subsidio parental alargado, através de comunicação de enquadramento como trabalhadora por conta de outrem e declarações de remunerações, extemporâneas e sem correspondência com a realidade, em momento coincidente ao conhecimento da gravidez da arguida AA, que a arguida BB, por si e em presentação da sociedade arguida, prestou aos serviços de Segurança Social, com montantes muito elevados a título de remunerações da arguida AA.


35. Agiram as arguidas de forma livre, voluntária e conscientemente, com o propósito, concretizado, de, por meio fraudulento - falsas declarações -, determinar a administração da Segurança Social a efectuar atribuições patrimoniais de valor consideravelmente elevado à arguida AA, obtendo esta para si um enriquecimento a que sabia não ter direito, causando o correspondente prejuízo patrimonial aos Cofres do Estado.


3) Julgar provada e procedente a acusação deduzida pelo M.P. e, consequentemente:


a) Condenar a arguida, AA, pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de burla tributária qualificada, p. e p. pelo art. 87º, nº 3 do RGIT, aprovado pelo DL nº 15/2001, de 5 de junho, por decorrência legal dos arts 6º e 7º do RGIT em dois anos e seis meses de prisão que se suspende na sua execução com a condição de pagar a indemnização arbitrada no prazo de três anos.


b) Condenar a arguida, BB, pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de burla tributária qualificada, p. e p. pelo art. 87º, nº 3 do RGIT, aprovado pelo DL nº 15/2001, de 5 de Junho, por decorrência legal dos artigos 6º e 7º do RGIT em três anos de prisão que se suspende na sua execução com a condição de pagar a indemnização arbitrada no prazo de três anos;


- Condenar “M... Unipessoal, Lda” pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de burla tributária qualificada, p. e p. pelo art.87º, nº 3 do RGIT, aprovado pelo DL nº 15/2001, de 5 de junho, por decorrência legal dos arts. 6º e 7º do RGIT numa multa de 600 dias à taxa diária de 1.000,00 (mil euros); e


- Condenar AA, M... Unipessoal, Lda e “BB” a pagar, solidariamente, ao Instituto de Segurança Social a quantia de € 95.614,62.


3. Inconformadas com o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de17 de novembro de 2021, dele interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça as arguidas M... Unipessoal, Lda, BB e AA, concluindo a sua motivação do modo seguinte (transcrição):


“1. O douto Acórdão recorrido é nulo, nos termos do disposto na al. a) do n.º 1, do artigo 379º do CP Penal, aplicável ex vi artigo 425º, n.º 4, do mesmo Código.


2. Na verdade, impunha-se ao Douto Colégio de Desembargadores explicitar cabalmente as razões por que condenou a pessoa colectiva, maxime no draconiano montante diário de mil euros de multa.


3. Ora, manifestamente, tal exercício de exame crítico – exactamente a expressão usada pelo n.º 2, do artigo 374º, do Código Penal Penal – não se mostra efectuado.


4. Na verdade, a decisão limita-se a acumular referências dogmáticas, sem os aferir pelo crivo da reflexão elucidativa.


5. Ou seja, parece que as preditas lucubrações valeriam a se, não carecendo de qualquer plus explicativo…


6. Tal ausência de discurso crítico e esclarecedor ganha particular acuidade no que tange, concretamente, ao referido montante diário de multa de recorrente M... Unipessoal, Lda


7. Na verdade, não se guarda uma linha que seja para justificar a exorbitante quantia – repete-se, mil euros diários – por que se condena a recorrente, pessoa colectiva.


8. Tudo ao arrepio daquilo que obriga a a Lei e a Constituição.


9. Na verdade, a obrigação de análise crítica ganha particular acuidade para que os arguidos e o povo percebam por que motivo se valorou a prova produzida, esclarecendo a(s) razão (ões)


pela(s) qual (is) percutiu(iram) o espírito dos julgadores.


10. E, quando assim se não procede, o vício está claramente referido na Lei processual penal como sendo o da nulidade.


11. Violando quer a citada norma do CP Penal – artigo 374, 2 – quer o comando constitucional decorrente do n.º 1 do artigo 205º da CRP.


Por outro lado,


12. O artigo 410º, n.º 2, do CP Penal plasma a chamada “revista alargada” que evidencia a faculdade de se controlar as decisões judiciais sempre que tenha lugar uma das específicas vicissitudes previstas no texto legal, designadamente a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.


13. Ora, está-se em crer, que a referida vicissitude inquina o Douto Acórdão precisamente porque a materialidade apurada para efeito de fixação do quantitativo diário da pena de multa aplicada prima pela escassez.


14. Com efeito, o lugar paralelo edificado no número 5, do artigo 90º-B, do Código Penal estatui que se deve atentar à situação económica e financeira da condenada e aos seus encargos com os trabalhadores.


15. Ora, o Douto Acórdão recorrido, a este propósito, limitou-se a fazer constar o valor dos lucros tributáveis da arguida.


16. Resulta, pois, com meridiana clareza, que inexiste materialidade que traduza a situação económica e financeira da empresa.


17. Assim, é apodíctica a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, como vem plasmado na al. a), do n.º 2 do citado artigo 410º do CP Penal, o que determinará, nos termos do artigo 426º, 1, do CP Penal, o reenvio para novo julgamento restrito a tal questão.


Ainda sem prescindir,


18. A decisão proferida pelo Juízo Local de Competência Genérica da ..., J... ., da Comarca de Coimbra, ponderou, com detalhe e minúcia, o acervo testemunhal e documental passível de ser examinado, de acordo com o inarredável princípio da livre apreciação da prova do artigo 127º, 2 do CP Penal;


19. Por isso, teve presente – com proficiência e rigor – todas as cambiantes da dita prova indiciária/indirecta.


20. Na verdade, a Mma. Juíza do Juízo da ..., perante a prova produzida no julgamento, beneficiando de uma indisputada imediação tantas vezes glosada como essencial à percepção global do comportamento dos depoentes, julgou não provados os factos nucleares integradores do tipo de burla tributária agravada, prevista e punida pelo artigo 87º, 1 e 3, do RGIT.


21. No entanto, a Douta Decisão em recurso – censurando a falta de atenção que a sentença revelou pela prova indirecta, privilegiando a prova directa – operou uma revolução coperniciana na factualidade, alterando os factos não provados – ditos de A) a E) – em factos provados, elencando-os de 31 a 35.


22. Todavia, a sobredita prova indirecta – por muito que possa ser alvo de elogiosos enlevos – não pode legitimar o massacre dos corolários da prova directa, apenas sustentada numa visão


ideológica do que deve ser a formação da convicção judicial!


23. Tal instrumento de formação da convicção não pode, de facto, erguer-se contra factualidade directamente demonstrada, nem pode ser tido como recurso inteligente para suprir as lacunas


probatórias das teses da acusação.


24. Ora, o mesmo é dizer que a prova indiciária não serve para contornar evidências factuais, meramente ao serviço das proposições fácticas constantes do libelo acusatório.


25. Assim, haverá que concluir que nos autos inexiste prova de que as recorrentes tenham construído uma realidade falsa atinente ao vínculo laboral da recorrente AA e, identicamente, tenham sustentado essa aparência pagando salários indevidos!


26. Repete-se, frisando: a prova documental existente nos autos e sumariada na sentença da primeira instância e a os testemunhos também aí alinhados corroboram o sentido da decisão absolutória aí proferida.


27. Face ao que se refere, decisão agora recorrida só pôde irromper com o sentido que se censura obnubilando que livre apreciação da prova não é arbitrariedade, 28. Antes se assume como um juízo objectivado na prova realmente produzida, tendo de arrancar desse momento, verdadeiramente indelével.


29. Juízo de sinal contrário – isto é, que tenha por demonstrados factos contra a prova realmente produzida – equivale a uma flagrante violação de princípios de matriz constitucional.


30. Designadamente, ignora a ideia de fair trial que deve perpassar todo o procedimento processual penal e decorrente do n.º 4 do artigo 20º da CRP.


31. Por outra banda, haverá de se sublinhar, pois, que a prova produzida não pode servir para legitimar as respostas factuais tidas em mira.


32. Ao decidir-se diferentemente sacrificou-se – inexoravelmente – o princípio da presunção da inocência com plasmação constitucional no artigo 32º, n.º 2 da Constituição da República


Portuguesa,


33. Exactamente enquanto princípio probatório traduzido na ideia do in dubio pro reo.


34. Este postulado impunha, de facto, que a ausência de densidade probatória demonstrada nos autos fosse valorada a favor da posição processual das arguidas, ora recorrentes.


35. Na medida em que, de acordo com a respectiva impressiva formulação, mais vale absolver um culpado do que condenar um inocente.


36. O que determinaria resposta de matriz inelutavelmente diferente daquelas criticadas – isto é, a manutenção da espécie de decisão factual correctamente eleita pelo Juízo Local de Competência Genérica da ....


37. Ora, a procedência da divergência supra explanada determinará, necessariamente, a absolvição de todas as recorrentes,


38. Uma vez que deixarão de existir os pressupostos factuais que permitem a afirmação da prática do crime de execução vinculada de burla tributária, agravada em função do valor.


39. Mesmo que se mantenha a decisão factual constante do Douto Acórdão recorrido, a recorrente sociedade comercial terá, necessária e imperativamente, de ser absolvida.


40. Com efeito, a factualidade demonstrada torna manifestamente impossível a imputação objectiva do facto à pessoa ficta – por ser impossível cumprir a exigência contida no citado n.º 1 do artigo 7º do RGIT.


41. Na verdade, a condenação da arguida pessoa colectiva por burla tributária, só é possível olvidando, olimpicamente, os ditames do citado artigo 7º.


42. Com efeito, uma pessoa colectiva só pode ser condenado por qualquer crime tributário, desde que acção realizada seja no nome e no interesse da pessoa ficta.


43. Ora, dos factos – agora – tidos por provados consta que a actuação das arguidas pessoas singulares visou o benefício exclusivo da arguida AA – cfr. ponto 34 (As arguidas tiveram o propósito de, em comunhão de esforços e de vontades, criar o circunstancialismo de facto subsumido às condições legalmente exigíveis para determinar a Segurança Social a favorecer a arguida AA – e 35 - Agiram as arguidas de forma livre, voluntária e conscientemente, com o propósito, concretizado, de, por meio fraudulento - falsas declarações -, determinar a administração da Segurança Social a efectuar atribuições patrimoniais de valor consideravelmente elevado à arguida AA, obtendo esta para si um enriquecimento a


que sabia não ter direito.


44. Ora, apodicticamente, tal factualidade não preenche os requisitos da norma punitiva decorrente do citado segmento do n.º 1, do artigo 7º, do RGIT,


45. Razão por que a interpretação que o Douto Acórdão deste efectua viola irremissivelmente o predito inciso legal.


Por outro lado,


46. Finalmente, ainda no que respeita ao segmento penal da decisão e independentemente do destino das anteriores conclusões – querem as recorrentes dar nota do seu dissídio relativamente às penas que lhes foram aplicadas.


47. Com efeito, no que tange às pessoas singulares, as medidas concretas das penas surgem claramente desfasadas dos preceitos normativos reitores deste segmento da juridicidade.


48. Designadamente, mostram-se violados os artigos 71º, n.º 1 e 40º, n.º 2 do CP.


49. Os sobreditos incisos plasmam os critérios determinantes da fixação das medidas das penas, elegendo uma teleologia essencialmente preventiva, todavia, temperada pelo princípio da culpa.


50. Nomeadamente, o n.º 2 do citado artigo quadragésimo estabelece que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa.


51. Assim, as penas aplicadas emergem como draconianas e em distonia com os preceitos invocados.


52. Até porque as razões preventivas de natureza especial não se alcandoram a níveis de especial exigência, dado o grau de inserção familiar e social das recorrentes AA e BB que, além do mais, são delinquentes primárias,


53. Sendo certo que não poderá ser a prevenção geral, dada a sua conformação positiva caracterizada por uma ideia de reiteração da confiança da comunidade nas normas jurídicas violadas, a legitimar a aplicação de sanções tão exageradas,


54. Atento, até, o período de tempo transcorrido desde a data da prática dos factos – quase uma década – o que, como é consabido, esvanece as razões preventivas desta específica índole.


55. No entanto, sublinhe-se, adere-se integralmente à substituição das penas de prisão fixadas pela suspensão de execução dessas penas privativas da liberdade,


56. No entanto, já não se alcança a fixação da condição “pagamento do montante recebido”, uma vez que esse já foi feito.


57. Ou seja, não tem sentido juridicamente útil subordinar a suspensão da pena de prisão ao cumprimento de um dever já anteriormente satisfeito pelas arguidas/recorrentes.


58. No que respeita às operações de determinação pena para os entes colectivos, regem ainda os critérios os dimanados do n.º 1 do artigo 71º do CP.


59. Ou seja, a medida da pena da pessoa colectiva terá de ser fixada em obediência às finalidades preventivas das penas (especial e geral), sem que emirja uma qualquer especificidade atendendo à respectiva e intrínseca natureza de “pessoa ficcional” (sem esquecer, contudo que o sujeito do crime é um “real construído”…).


60. Assim, a prevenção geral surge, única e simplesmente, informada pela reafirmação da validade do bem jurídico violado – o arguido é um sujeito de uma acção humana que urge sancionar, para que a sociedade veja reiterada a vigência intrínseca do bem jurídico violado.


61. Na prevenção especial adquirirá particular acuidade a ideia propedêutica de recuperação do arguido, dotando-o do manancial de instrumentos susceptíveis de contribuírem para uma relação padronizada com a sociedade em que se insere – no que tange aos entes colectivos urgirá criar mecanismos de interacção que lhe possibilitem organizar-se cabalmente de forma a trilharem caminhos eticamente sãos e jurídico-penalmente inócuos.


62. São estes os corolários que se extraem da Constituição – art. 1 e 18º, nº 2, – e da Lei – art.s 70 e ss. do CP.


63. No caso em apreço o Douto Colectivo de Desembargadores entendeu ter a ora recorrente cometido o crime abstractamente punível com uma moldura entre 480 e 2920 dias de multa e fixar a pena de 600 dias.


64. Neste segmento, dir-se-á, a pena nem peca por excessiva – muito embora, diga-se, a falta de relevância de exigências preventivas aconselhasse uma pena mais próxima do limite mínimo.


65. Já o montante diário é fixado no n.º 1 do artigo 15º (ainda e sempre do RGIT) e oscila entre 5,00€ (cinco euros) e €5.000,00 (cinco mil euros).


66. Ora, o montante tido por adequado é de €1000,00!!!


67. Manifestamente exorbitante e desadequado da realidade cogente à recorrente pessoa colectiva.


68. Na verdade, nada no seu estatuto económico, nenhum circunstancialismo conexo à sua actuação no mercado, nem os lucros tributáveis referidos (em 2011, 2012, 2017, 2018 e 2019 de € 97.967,07, € 459.242,49, € 16.122,37, € 18.017,94 e € 54.109,68) legitima uma condenação dessa esdrúxula grandeza.


69. Ou seja, tal montante – face ao despropósito que traduz – colide com o princípio constitucional da proporcionalidade e da proibição do excesso.


70. Na verdade, uma dimensão dessa ideia fundamental da proporcionalidade, referida na parte final do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, traduz a necessidade de equilíbrio entre meios e


fins: ao Estado, para prossecução da sua teleologia, está vedado o uso de meios que impliquem encargos excessivos para os destinatários.


71. O Estado, pois, não pode este utilizar meios inadequados, ou destituídos de proporcionalidade face aos fins que pretende almejar.


72. E, in casu, é – dir-se-ia – tristemente incontroversa a existência do desfasamento entre a solução julgada adequada e a realidade económica da arguida.


73. Na verdade, os critérios legais erigidos como fundamento para a fixação do quantitativo diário da pena de multa, a situação económica e financeira da empresa e respectivos encargos


justificam um montante diário significativamente diferente e muito substancialmente reduzido face ao fixado.


Finalmente,


74. A Douta Decisão que condena as recorrentes no montante indemnizatório de €95.614,62 emerge em inescapável contravenção com os ditames atinentes à fixação da responsabilidade civil, mormente do disposto no artigo 483º do Código Civil.


75. Na verdade, uma obrigação de reparar ou compensar os prejuízos causados a outrem, de natureza extracontratual, assenta na orientação dimanada do sobredito preceito civilístico,


76. Que preceitua: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.


77. Assim, como decorre com perspícua linearidade do sobredito inciso, são pressupostos da postulada obrigação de indemnizar um facto voluntário do agente, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima.


78. Ora, procedendo a censura à factualidade tida como provada no Acórdão recorrido deixará de haver factualidade capaz de preencher o tipo de crime de burla tributária agravada.


79. Por conseguinte, inexistirá um dos pressupostos da responsabilização civil das arguidas – exactamente a prática de facto ilícito.


80. Aliás, no que tange à recorrente M... Unipessoal, Lda, inexistirá qualquer facto ilícito por ela cometido, dado que resultou que a putativa acção delituosa desenvolvida pelas pessoas singulares, suas coarguidas, o foi exclusivamente em benefício de uma dessas pessoas.


81. Como já dito, falta um dos elementos elencados no artigo 7º do RGIT, para que as pessoas colectivas incorram na prática de crime tributário.


82. Implicando, necessariamente, a inexistência de facto ilícito e a sua consequente e incontornável absolvição do pedido de indemnização civil.


83. Por outra banda, haverá que indagar se existe o indispensável nexo causal entre os factos supostamente perpetrados pelas recorrentes e o dano reclamado pela demandante.


84. Na verdade, o dano reclamado pela demandante vai além do prejuízo alegadamente causado pelas recorrentes.


85. É que o montante em que as recorrentes foram condenadas - € 95.614,62 – não saiu todo dos cofres da demandante, dado que parte – justamente €30.163,00 – foi liquidado a título de


contribuições para a Segurança Social pelas arguidas AA e M.... ....... ...., Unipessoal.


86. Ou seja, o prejuízo da demandante não é igual a € 95.614,62, mas sim à diferença entre esse valor e aquele pago à demandante – i.é, €65.451,62 (sessenta e cinco mil, quatrocentos e cinquenta e um euros e sessenta e dois cêntimos).


Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, extraídos os corolários dimanados das “conclusões” tecidas.”


4. Admitido pela Ex.ma Desembargadora o recurso interposto pelas arguidas /demandadas, subiram os autos ao Supremo Tribunal de Justiça.


5. Por decisão sumária proferida 17 de janeiro de 2023 o relator, neste Supremo Tribunal, decidiu rejeitar, por inadmissibilidade legal, o recurso interposto pelas arguidas AA, M... Unipessoal, Lda.” e BB, quanto à parte criminal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 432.º, n 1, al. b), 400.º, n.ºs 1, al. e), 414.º, n.º 2 e 420.º, n.º 1, al. b), todos do C.P.P..


Mais decidiu: que “o recurso interposto pelas demandadas é admissível na parte cível, porquanto o valor do pedido (€ 95.614,62) é superior à alçada do tribunal recorrido (€30.000,00) e a decisão impugnada é-lhes desfavorável em valor superior a metade desta alçada, pois decaiu integralmente no pedido.”.


6. Apresentada pelas recorrentes reclamação para a Conferência da rejeição do recurso quanto à parte criminal, nos termos do art.417.º, n.ºs 6 e 8 do Código de Processo Penal, o S.T.J., por acórdão de 23 de março de 2023, decidiu indeferir a reclamação da Decisão Sumária de rejeição por inadmissibilidade legal do recurso, apresentado pelas arguidas AA, M... Unipessoal, Lda.” e BB.


7. Irresignadas, as arguidas AA e BB, num requerimento conjunto, e a M... Unipessoal, Lda.”, noutro requerimento, interpuseram recurso do acórdão de 23 de março de 2023, para o Tribunal Constitucional.


Através da Decisão Sumária n.º 289/2023, o Tribunal Constitucional decidiu, ao abrigo do disposto no n.º1 do art.78-A, n.º1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto dos recursos.


Apresentada reclamação pelas recorrentes desta Decisão Sumária, o Tribunal Constitucional, por acórdão n.º 434/2023, de 9 de julho de 2023, decidiu indeferir as reclamações.


O trânsito do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 434/2023 mostra-se certificado em 11 de setembro de 2023.


8. Colhidos os vistos realizou-se a audiência, restringida à matéria cível.


II – Fundamentação


9. A matéria de facto apurada, que resulta do acórdão recorrido é a seguinte (transcrição):


Factos provados


1. A arguida AA é beneficiária da Segurança Social, tendo-lhe sido atribuído o n.º .........42.


2. A sociedade arguida M... Unipessoal, Lda.”, contribuinte da Segurança Social n.º .........10, com o NIPC .......61, com sede em ... – ... – ..., dedica-se ao comércio de ouro, artigos de ourivesaria, metais preciosos, pedras preciosas e relógios, cuja gerência é da arguida BB e, desde 11.01.2013, também de CC.


3. A arguida AA é nora da arguida BB, sendo casada com o filho desta, CC.


4. Desde a data de início de actividade (Janeiro de 2010) até Abril de 2011, a sociedade arguida teve ao seu serviço apenas a respectiva sócia gerente, a arguida BB, auferindo mensalmente entre € 1.000,00 a € 1.500,00.


5. A partir de Maio de 2011, a sociedade arguida admitiu alguns trabalhadores, remunerados sensivelmente com o salário mínimo nacional (SMN).


6. No dia 21.02.2012, a arguida AA requereu prestações por doença, através de certificado de incapacidade temporária para o trabalho (CIT), para o período de 13.02.2012 a 24.02.2012, que renovou em 29.02.2012, 27.03.2012 e 26.04.2012.


7. No dia 23.05.2012, AA solicitou aos Serviços do Centro Distrital de ...do Instituto de Segurança Social, IP, subsídio por risco clinico durante a gravidez (SRC), com efeitos à data de início da atribuição das prestações de doença - 13.02.2012 - e fim em 09.05.2012, substituindo assim os CIT`s entretanto remetidos, por sobreposição de período, cessando por conseguinte as prestações de doença atribuídas.


8. Nessa mesma data, 23.05.2012, AA requereu ainda subsidio parental inicial da mãe por 150 (cento e cinquenta) dias (SPI), com efeitos a ....05.2012 (data do parto) e fim em 06.10.2012.


9. Mais requereu nessa mesma data, subsídio parental alargado (SPA), com efeitos a 07.10.2012 e fim em 04.01.2013.


10. E nesse mesmo dia, requereu ainda a mesma arguida subsídio para assistência a filho (SAF), com efeitos a 11.05.2012 (lapso de escrita rectificado em sede de julgamento no que respeita ao ano de 2012 e não de 2015) - dia a seguir ao parto -, cujo termo veio a verificar-se em 31.05.2012.


11. As prestações previdenciais requeridas pela arguida AA foram deferidas, processadas e pagas, concretamente: o subsídio por risco clínico durante a gravidez, prestação deferida em 28.05.2012, por 87 dias, no período de 13.02.2012 a 09.05.2012, no valor diário de €322,22, totalizando o montante de € 28.033,14; o subsídio por Assistência a Filho, prestação deferida em 05.06.2012, por 21 dias, no período de 11.05.2012 a 31.05.2012, no valor diário de € 286,48, totalizando o montante de € 6.016,0; o subsídio Parental Inicial da Mãe por 150 dias, prestação deferida em 28.05.2012, por 150 dias, no período de 10.05.2012, e de 01.06.2012 a 27.10.2012, no valor diário de € 352,59, totalizando o montante de € 52.888,50; o subsídio Parental Alargado, prestação deferida em 02.10.2012, por 90 dias, no período de 28.10.2012 a 25.01.2013, no valor diário de € 96,41, totalizando o montante de € 8.676,90.


12. No âmbito da parentalidade, o Centro Distrital de ... do Instituto de Segurança Social, IP, processou e pagou à arguida AA um total de € 95.614,62.


13. Os pagamentos feitos à arguida AA, entre 2012 e 2013, por conta dos subsídios previdenciais atribuídos, foram efectuados por carta cheque.


14. Os cheques foram depositados na conta Millennium BCP, conta titulada pela arguida AA e marido, CC, com excepção do cheque com o montante de € 4.480,20, que foi pago à boca de caixa ao seu apresentante, a arguida AA.


15. A arguida AA encontrava-se na situação de não trabalhadora entre 10.02.2010 e 31.07.2011 e foi enquadrada, em 10.11.2011, como trabalhadora por conta de outrem na sociedade arguida “M... Unipessoal, Lda” com efeitos reportados a 01.08.2011.


16. A arguida AA esteve qualificada como trabalhadora independente de 01.02.2005 a 09.02.2010 pelo esquema obrigatório, correspondendo a um registo em histórico de remunerações mensais na Segurança Social de € 628,83.


17. Desde então, de 10.02.2010 a 31.07.2011, não exerceu qualquer actividade profissional, seja como trabalhadora independente ou trabalhadora por conta de outrem.


18. No dia 10.11.2011, a sociedade arguida comunicou a inscrição na Segurança Social com base na celebração de contrato de trabalho com efeitos retroactivos, reportados a 01.08.2011, com a arguida AA, declarando remunerações mensais relativas à mesma: a) agosto 2011 – € 12.000,00; b) setembro 2011 – € 12.000,00; c) outubro 2011 – € 12.000,00; d) novembro 2011 – € 12.000,00 e ainda € 5.000,00 de subsídio de férias e € 5.000,00 de subsídio de natal; e) dezembro 2011 – € 12.000,00; f) janeiro 2012 – € 12.000,00; g) fevereiro de 2012 - € 4.800,00, correspondendo ao proporcional de 12 (doze) dias.


19. No período de 08/2011 a 02/2012, o valor total de remunerações declarado à Segurança Social como trabalhadora por conta de outrem ao serviço da sociedade arguida ascendeu, no período de 08/2011 a 02/2012, a € 86.800,00.


20. Na qualidade de trabalhadora por conta de outrem, com histórico de remunerações suficientes para cumprir com as condições de atribuição, designadamente prazo de garantia, a arguida AA pôde requerer as supra referidas prestações de parentalidade (subsídio por risco clínico, subsidio parental inicial, subsídio para assistência a filho e subsidio parental alargado).


21. O filho da arguida, cujo nascimento estava previsto para 04.07.2012, nasceu a ....05.2012, com trinta e duas semanas e dois dias de gestação, tendo a data de concepção ocorrido, provavelmente, entre 07.10.2011 e 13.10.2011.


22. As arguidas não têm antecedentes criminais.


23. As arguidas são bem consideradas no meio social em que se inserem.


24. A arguida AA recebeu da sociedade arguida montantes como sendo a título de salários respeitantes aos meses de Agosto de 2011 a Fevereiro de 2012, com deduções referentes à aplicação das taxas legais respeitantes à contribuição para a Segurança Social e a IRS, tendo a primeira feito constar tais rendimentos nas suas declarações de IRS respeitantes aos anos de 2011 e 2012, com a consequente e respectiva liquidação de IRS.


25. A arguida AA vive com o marido e os dois filhos, de 6 e 8 anos, e toma conta dos filhos a tempo inteiro.


26. O casal declarou rendimentos do ano de 2019 referentes ao marido no valor de € 12.000,00.


27. A arguida AA tem o 12.º ano e fez um curso profissional de estética e cosmética.


28. A arguida BB vive com o marido e continua a ser gerente da sociedade arguida juntamente com o filho, marido da arguida AA, desde 11.01.2013.


29. O casal declarou rendimentos do ano de 2019 no valor de € 17.376.92.


30. A sociedade arguida teve um lucro tributável em 2011, 2012, 2017, 2018 e 2019 de € 97.967,07, € 459.242,49, € 16.122,37, € 18.017,94 e € 54.109,68, respectivamente.


Factos aditados pelo acórdão da Relação de 17 de novembro de 2021:


31.Por forma a cumprir com as condições de atribuição das prestações previdenciais, as arguidas AA e BB, esta por si e em representação da sociedade arguida, na prossecução de um plano previamente por ambas gizado, decidiram, por meio fraudulento, determinar a administração da Segurança Social a efectuar atribuições patrimoniais à arguida AA que ambas sabiam esta não ter direito.


32. A qualificação da arguida AA como trabalhadora por conta da sociedade arguida e as declarações de remunerações a si respeitantes são falsas.


33. Tal qualificação e sua declaração extemporânea à Segurança Social, com valores como os mencionados, tiveram como único propósito permitir o enquadramento em regime de segurança social que viabilizasse desde logo o acesso aos subsídios elencados.


34. As arguidas tiveram o propósito de, em comunhão de esforços e de vontades, criar o circunstancialismo de facto subsumido às condições legalmente exigíveis para determinar a Segurança Social a favorecer a arguida AA, quer na atribuição, quer no montante do subsídio por risco clínico, subsidio parental inicial, subsídio para assistência a filho e subsidio parental alargado, através de comunicação de enquadramento como trabalhadora por conta de outrem e declarações de remunerações, extemporâneas e sem correspondência com a realidade, em momento coincidente ao conhecimento da gravidez da arguida AA, que a arguida BB, por si e em presentação da sociedade arguida, prestou aos serviços de Segurança Social, com montantes muito eleva dos a título de remunerações da arguida AA.


35. Agiram as arguidas de forma livre, voluntária e conscientemente, com o propósito, concretizado, de, por meio fraudulento - falsas declarações -, determinar a administração da Segurança Social a efectuar atribuições patrimoniais de valor consideravelmente elevado à arguida AA, obtendo esta para si um enriquecimento a que sabia não ter direito, causando o correspondente prejuízo patrimonial aos Cofres do Estado.


10. Âmbito do recurso


O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação (art.412.º, n.º1 do Código de Processo Penal). São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.1


Como bem esclarecem os Simas Santos e Leal-Henriques, «Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art. 684.º, n.º3 do CPC. [art.635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]» (in Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801).


No mesmo sentido refere Germano Marques da Silva, que “As conclusões resumem a motivação, e por isso, que todas as conclusões devem ser antes objeto de motivação. É frequente, na prática, o desfasamento entre a motivação e as correspondentes conclusões ou porque as conclusões vão além da motivação ou ficam aquém. Se ficam aquém a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões; se vão além também não devem ser consideradas porque as conclusões são o resumo da motivação e esta está em falta”.2


Face à não admissão do recurso na parte criminal, e às conclusões da motivação das recorrentes a questão ao decidir é a de saber se “o dano reclamado pela demandante vai além do prejuízo alegadamente causado pelas recorrentes”, devendo ser fixado em €65.451,62.


11. Apreciando


O art.129.º do Código Penal, sob a epígrafe «Responsabilidade civil emergente de crime», dispõe que «A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.».


Isto significa, por um lado, que os danos indemnizáveis são ocasionados pelo crime e, por outro, que a atribuição da indemnização em processo penal é regulada nos seus pressupostos pela lei civil.


É o art.483.º do Código Civil que enuncia os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, que obrigam a indemnizar o lesado.


Segundo os tratadistas nesta matéria, os pressupostos da responsabilidade extracontratual são seguintes: o facto voluntário; a ilicitude; o vínculo de imputação do facto ao agente a título de dolo ou mera culpa; o dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.


Assim e em termos muito sintéticos3:


O facto voluntário, consiste num facto dominável ou controlável pela vontade, podendo traduzir-se numa ação ou ato positivo ou numa omissão ou facto negativo.


A ilicitude, traduz a reprovação da conduta do agente, como sinónimo de violação de um comando geral. Será afastada quando se verificarem causas de justificação do facto.


A responsabilidade por facto ilícito exige um vínculo de imputação do facto ao agente a título de dolo ou mera culpa. Para a conduta do arguido ser censurável a título de culpa, deve o agente agir com conhecimento e vontade de realização das circunstâncias de facto que integram a violação do direito ou de uma norma tuteladora de interesses alheios e com consciência da ilicitude do facto (dolo), ou então, sem representar a possibilidade de realização do facto ou representado o mesmo como possível e sem se conformar com essa realização, proceder sem o cuidado a que segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz ( negligência ou mera culpa).


Os danos são os prejuízos sofridos pelo lesado, que podem ser de natureza patrimonial, quando atingem em si o património, fazendo-o diminuir ou frustrar o seu acréscimo, ou de natureza não patrimonial, quando atingem bens de carácter imaterial, desprovidos de conteúdo económico, insuscetíveis verdadeiramente de avaliação em dinheiro.


Por fim, para o preenchimento integral dos requisitos da responsabilidade civil por factos ilícitos, deve estabelecer-se um nexo de causalidade entre o facto e o dano.


A obrigação de reparação só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (art.563.º do Código Civil).


Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art.562.º do Código Civil), sendo que aquela só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (art.563.º do Código Civil).


Retomando o caso concreto.


O demandante “Instituto da Segurança Social – IP/Centro Distrital de ...”, baseia o pedido de indemnização civil deduzido contra as demandadas AA, BB e M... Unipessoal, Lda”, no prejuízo de € 95.614,62 que lhe adveio da prática pelas arguidas dos factos constantes da acusação pública que enquadram o crime de burla tributária qualificado, p. e p. pelo art.87.º, n.ºs 1 e 3 do RGIT.


O acórdão recorrido, após descrever os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de burla tributária previsto no artigo 87º nº 1 do R.G.I.T. subsumiu os factos dados como provados a este tipo penal imputado na acusação às arguidas e considerou que se mostravam preenchidos todos os seus elementos objetivos e subjetivos porquanto: “(…) no caso vertente, as arguidas, aproveitando-se da confiança e da boa-fé criada junto dos serviços administrativos da segurança social, usando para o efeito o contrato de trabalho já acima referenciado, conseguiram beneficiar das prestações sociais de maternidade a que não tinha direito a arguida AA. Portanto, as arguidas fizeram crer através do respectivo contrato, de uma forma verosímil e convincente, mas falsamente, que a arguida AA era trabalhadora da sociedade arguida, vindo depois, por via disso a obter as prestações no montante de € 95.614,62, com a qual beneficiou e em prejuízo da segurança social. Ou seja, os arguidos desenvolveram de facto uma conduta ativa que consubstancia o uso de meio fraudulento, através do qual não só determinou a Segurança Social a efetuar atribuição patrimonial a que a arguida sabia não ter direito, e da qual resultou um enriquecimento à custa do Estado (Segurança Social), como também o procedimento adotado se revelou objetivamente idóneo, pelas razões supra aduzidas, a provocar uma tal determinação.”.


Nesta sequência, passando, ao conhecimento do pedido de indemnização civil, fundado pela demandante na prática do crime de burla tributária, o acórdão recorrido decidiu o mesmo pedido nos seguintes termos:


O Instituto da Segurança Social, veio deduzir pedido de indemnização civil contra as arguidas/demandadas AA, BB e M... Unipessoal, Lda”, fundou o pedido de indemnização civil deduzido a fls. 2364 e segs, no crime de burla tributária por estas cometido, e que deu origem ao pagamento, de prestações de parentalidade no valor global de € 95.614,62, que as demandadas não devolveram, e concluiu pedindo a sua condenação no pagamento desta quantia.


A responsabilidade civil fundada na prática de crime de burla tributária é sempre responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, uma vez que o respectivo sujeito passivo violou norma destinada a proteger alheios (arts. 129º, do C. Penal e 483º, nº 1, do C. Civil).


As arguidas com a sua conduta levaram a que a arguida AA obtivesse vantagens patrimoniais ilegítimas que se traduziram em diversos subsídios parentais a que não tinha direito.


Portanto e dos factos apurados resulta que a ofendida com a actuação das arguidas sofreu danos que incumbe a estas ressarci-los e que se traduzem na devolução à Segurança Social das prestações indevidamente feitas.”.


As recorrentes/demandadas defendem que a decisão recorrida que as condena no montante indemnizatório de €95.614,62 emerge em inescapável contravenção com os ditames atinentes à fixação da responsabilidade civil, mormente do disposto no art.483.º do Código Civil.


Para além da alegação de inexistência da prática de facto ilícito que legitimou a condenação das recorrentes no crime de burla tributária – argumento já afastado pela condenação com trânsito em julgado das recorrentes pela prática, em coautoria material, de um crime de burla tributária qualificada –, invocam a ausência do indispensável nexo causal entre os factos supostamente perpetrados pelas recorrentes e o dano reclamado pela demandante, pois este vai além do prejuízo alegadamente causado pelas recorrentes.


É que, no seu entender, o montante em que as recorrentes foram condenadas - € 95.614,62 - não saiu todo dos cofres da demandante, dado que parte – justamente € 30.163,00 – foi liquidado a título de contribuições para a Segurança Social pelas arguidas AA e BB, Unipessoal. Ou seja, o prejuízo da demandante não é igual a € 95.614,62, mas sim à diferença entre esse valor e aquele pago à demandante, isto é, € 65.451,62.


Vejamos.


As recorrentes/demandadas confundem duas realidades diversas quando, ao invocar a inexistência de nexo causal entre os factos perpetrados pelas recorrentes e o dano reclamado pela demandante, chamam à colação o montante das contribuições deduzidas nas remunerações da arguida AA, por parte da “M... Unipessoal, Lda, e sua entrega à Segurança Social.


Uma realidade, é o nexo causal entre falsas declarações e as atribuições patrimoniais efetuadas pela administração da segurança social, de que resulta um enriquecimento ilegítimo do agente ou de terceiro pela atribuição de prestações sociais e, outra, é a dedução pela entidade empregadora das contribuições, no valor das remunerações devidas aos trabalhadores e sua entrega às instituições de segurança social, integradas no cumprimento do preceituado no art.43.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de setembro.


No caso concreto, existe um evidente nexo causal entre os factos praticados pelas demandadas, emergentes de um crime de burla tributária, e o prejuízo peticionado pela demandante, uma vez que está dado como provado que as arguidas AA e BB, esta por si e em representação da sociedade arguida “M... Unipessoal, Lda”, na prossecução de um plano gizada entre as arguidas, por meio fraudulento, conseguiram determinar a demandante a processar e pagar à arguida Teresa Dias vários subsídios no âmbito da parentalidade (subsídio por risco clínico durante a gravidez, subsídio parental inicial da mãe por 150 dias, subsídio para assistência a filho e subsídio parental alargado), no montante de € 95.614,62, quando a arguida AA não tinha direito a esses subsídios.


O artificio fraudulento, que permitiu à arguida AA aceder aos subsídios solicitados no âmbito da parentalidade, levando ao seu enriquecendo ilegítimo no montante de € 95.614,62, em prejuízo da Segurança Social, assenta na falsa qualificação daquela arguida como trabalhadora por conta da sociedade arguida “M... Unipessoal, Lda”, e nas consequentes falsas declarações por esta prestadas à Segurança Social de declaração de pagamento das remunerações à arguida AA como sua trabalhadora (ponto n.º 32 dos factos provados).


Ao contrário do sustentado pelas recorrentes/demandadas, o montante total de €95.614,62, correspondente a prestações sociais que a arguida AA recebeu indevidamente por a elas não ter direito, traduziu-se num prejuízo para os cofres da demandante, emergente da prática, em coautoria material, pelas três arguidas/demandadas, de um crime burla tributária.


Uma outra realidade, paralela a esta, é a dedução, pelas entidades empregadoras, no valor das remunerações devidas aos trabalhadores, do montante das contribuições por elas legalmente devidas no âmbito das declarações contributivas do sistema previdencial de Segurança Social.


A dedução, pelas entidades empregadoras, no valor das remunerações por estas legalmente devidas, e a não entrega, total ou parcial, das mesmas à Segurança Social, num determinado prazo, poderá integrar, sim, a prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelo art.107.º do RGIT.


No caso concreto, não está em causa este crime contra a Segurança Social , nem o montante das contribuições deduzidas pela sociedade arguida nas remunerações da arguida AA integra a causa de pedir do pedido de indemnização cível formulado pelo demandante, que como vimos emerge de um crime de burla tributária.


Está dado como provado, no acórdão recorrido, que a sociedade arguida “M... Unipessoal, Lda, declarou à Segurança Social ter deduzido, no período de 8/2011 a 2/2012, o montante das contribuições que seriam legalmente devidas à Segurança Social referentes às remunerações mensais da arguida AA, como “trabalhadora” por conta da sociedade, e que o valor total das remunerações ascendeu nesse período a €86.800,00 ( ponto n.º 19 dos factos provados).


Provado está ainda que “A arguida AA recebeu da sociedade arguida montantes como sendo a título de salários respeitantes aos meses de Agosto de 2011 a Fevereiro de 2012, com deduções referentes à aplicação das taxas legais respeitantes à contribuição para a Segurança Social e a IRS, tendo a primeira feito constar tais rendimentos nas suas declarações de IRS respeitantes aos anos de 2011 e 2012, com a consequente e respectiva liquidação de IRS.” (ponto n.º24 dos factos provados).


As recorrentes/demandadas ao afirmarem que o montante de € 95.614,62 não saiu todo dos cofres da demandante, dado que parte, € 30.163,00, foi liquidado a título de contribuições para a Segurança Social pelas arguidas AA e M... Unipessoal, Lda” e, por isso, o prejuízo da demandante é de € 65.451,62, mais não pretendem que efetuar uma compensação de créditos.


Ao fazerem esta afirmação acabam, no entanto, por aceitar que o prejuízo emergente do crime de burla tributária qualificada, pela qual foram condenadas, e que funda o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante “Instituto da Segurança Social – IP/Centro Distrital de ...”, cifrou-se em € 95.614,62 pois a compensação de créditos é, na definição de Antunes Varela, “o meio do devedor se livrar da obrigação, por extinção simultânea do crédito equivalente de que disponha sobre o seu credor”.4


Esta forma de extinção das obrigações, tem lugar quando duas pessoas sejam simultaneamente credor e devedor, depende não só da declaração de uma das partes à outra ( art.848.º, n.º1, do Código Civil), como ainda da verificação dos requisitos enunciados no art.847.º, n.º1, do mesmo Código, ou seja:


«a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele exceção, perentória ou dilatória, de direito material;


b) Terem as duas obrigações por objeto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.».


Mesmo que os créditos oponíveis reúnam todos os requisitos positivos ora enunciados, o art.853.º do Código Civil, enuncia várias circunstâncias que obstam à compensação.


Assim, dispõe no seu n.º1 que « Não podem extinguir-se por compensação:


a) Os créditos provenientes de factos ilícitos dolosos;


b) Os créditos impenhoráveis, excepto se ambos forem da mesma natureza;


c) Os créditos do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas, excepto quando a lei o autorize.».


Refere Antunes Varela, a respeito da razão justificativa da exclusão da compensação mencionada nesta alínea a), que ela está em que podendo a compensação traduzir-se num benefício para o compensante (que tem através dela , plenamente assegurada a realização indireta do seu contra crédito), não se considera justo que o autor do facto ilícito doloso aproveite de semelhante regime. O devedor tem, nesses casos, de cumprir a obrigação de indemnizar e de correr, quanto à cobrança do seu crédito, os riscos que suportam todos os demais credores. A ratio legis “ … é que a compensação pode operar os seus efeitos, se o compensante for o credor ( e não o devedor) da indemnização pelos danos provenientes do facto ilícito doloso.”.5


No caso concreto, a demandada M... Unipessoal, Lda” terá um crédito sobre a Demandante em resultado da entrega à Segurança Social das contribuições referentes ao pagamento de remunerações à trabalhadora AA, pois resultou provado que as contribuições descontadas não eram devidas à Segurança Social, uma vez que esta arguida/demandada não era efetivamente trabalhadora da sociedade arguida.


Este crédito sobre a Segurança Social resultante das contribuições deduzidas nas remunerações mensais do AA e entregues pela sociedade arguida àquela instituição, na ordem dos alegados € 30.163,00, não advém de um facto lícito, mas sim de um facto ilícito, pois integra o artificio fraudulento que as arguidas/demandadas usaram para, de comum acordo, fazerem crer que a arguida AA era trabalhadora da sociedade arguida e assim a AA poder vir a aceder aos subsídios de parentalidade, como acedeu, no montante global de € 95.614,62, a que de outro modo não tinha direito.


Sendo as demandadas devedoras da indemnização de € 95.614,62 pelos prejuízos emergentes de facto ilícito doloso, que deu lugar à sua condenação pela prática em coautoria material de um crime de burla tributária qualificada, não podem, designadamente a sociedade arguida, beneficiar da compensação de créditos neste processo, atento o disposto na alínea a), n.º1 do art.853.º do Código Civil.


Em conclusão: a responsabilidade civil das demandadas é consequência da condenação por infração penal; existe um nexo causal entre os factos perpetrados pelas recorrentes e o dano reclamado pela demandante; e existe uma circunstância que exclui a compensação de créditos implicitamente pretendida pelas recorrentes.


Deste modo, improcede o recurso quanto à matéria cível.


Decisão


Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça, em negar provimento ao recurso interposto pelas demandadas AA, M... Unipessoal, Lda” e BB e, consequentemente, confirmar o acórdão recorrido na parte cível.


Custas do pedido cível pelas demandadas.



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(Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.P.).



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Lisboa, 8 de novembro de 2023


Orlando Gonçalves (Juiz Conselheiro Relator)


Leonor Furtado (Juíza Conselheira Adjunta)


Agostinho Torres (Juiz Conselheiro Adjunto)


Helena Moniz (Juíza Conselheira Presidente da Secção)


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1. Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 (BMJ n.º 458º, pág. 98) e de 24-3-1999 (CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.)↩︎

2. “Direito Processual Penal Português – Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Universidade Católica Portuguesa, vol. 3, 2018, págs. 335/336.↩︎

3. Cf. Antunes Varela, in “Das obrigações em geral”, Vol. I, Almedina, 8.ª edição, pág. 532 e seguintes.↩︎

4. Cf. obra citada, Vol. II, 6.ª edição, Almedina, pág. 195.↩︎

5. Cf. obra citada, Vol. II, 6.ª edição, Almedina, páginas 206 e 207.↩︎