CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
INSTRUÇÃO DO PROCESSO
TRANSPORTE RODOVIÁRIO
REGISTO DO TEMPO DE TRABALHO
Sumário


I – Em sede de processo contraordenacional tem de ser comunicado aos arguidos os factos que lhe são imputados, a respetiva qualificação jurídica e as sanções em que incorrem, não se impondo, porém, que lhes seja igualmente comunicado os meios de prova em que a autoridade administrativa se alicerçou.
II – Relativamente a tais meios de prova, basta que os mesmos se encontrem disponíveis para consulta.
III – No processo contraordenacional quem procede à sua investigação e instrução é a autoridade administrativa, a qual possui autonomia para decidir se as diligências de prova requeridas pelos arguidos serão ou não realizadas, devendo, porém, fundamentar tal decisão, ao abrigo do disposto no art. 43.º do DL n.º 433/82, de 27-10.
IV – Nos termos do art. 121.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, ainda que ocorra nulidade, designadamente por falta de fundamentação pela autoridade administrativa da não realização de determinada diligência requerida pelos arguidos, sempre tal nulidade se considerará sanada se, em sede de impugnação judicial, os arguidos vierem a requerer a realização dessa mesma diligência de prova e a mesma venha a ser realizada nessa fase judicial.
V – O elemento objetivo do tipo da contraordenação prevista nos arts 25.º, n.º 1, da Lei n.º 27/2010, de 30-08, e 36.º, n.º 1, do Regulamento (EU) n.º 165/2014, de 04-02, preenche-se com a não apresentação imediata, no ato da fiscalização, de todos os registos referentes aos 28 dias anteriores ao da fiscalização ou de documentação que justifique tal não apresentação.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral


Proc. n.º 1872/23.6T8PTM.E1
Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
A recorrente “Mosca Portugal, Lda.” (arguida) veio impugnar judicialmente a decisão da Autoridade para as Condições de Trabalho (doravante designada ACT) que lhe aplicou uma coima no valor de €2.850,00, com a sanção acessória de publicidade, pela prática de uma contraordenação laboral muito grave, p. e p. pelos arts. 25.º, n.º 1, e 14.º, n.º 4, da Lei n.º 27/2010, de 30-08, 36.º, n.º 1, do Regulamento (EU) n.º 165/2014, de 04-02, 561.º e 562.º do Código do Trabalho.
O Tribunal de 1.ª instância, realizada a audiência de julgamento, por sentença proferida em 05-07-2023, julgou nos seguintes termos:
Em face do exposto, improcede totalmente a impugnação judicial e em consequência:
a) Mantêm-se a decisão administrativa que aplicou à recorrente "Mosca Portugal, S.A." a coima de € 2.850,00 (dois mil, oitocentos e cinquenta trinta euros) e a sanção acessória de publicidade da decisão condenatória, no âmbito do processo de contra-ordenação n.º 122 300 047, pela prática de uma contra-ordenação laboral, em violação do disposto no artigo do artigo 25.º, n.º 1, da Lei n.º 27 /2010, de 30 de Agosto, com referência ao artigo 36.º, n.º 1, do Regulamento (UE) 165/2014, de 4 de Fevereiro;
b) Condena-se a arguida/recorrente no pagamento de taxa de justiça, que se fixa em 3 (três) UC's - artigos 93.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, 8.0 e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.
Oportunamente comunique à autoridade administrativa.
Notifique e deposite.
Inconformada, veio a arguida “Mosca Portugal, Lda.” interpor recurso da sentença, apresentando as seguintes conclusões:
a) O tribunal a quo argumentou que a decisão administrativa não é nula pois os vícios existentes foram sanados e a arguida conseguiu exercer plenamente o seu direito de defesa;
b) A recorrente não concorda com esta posição porquanto que, o exercício pleno do seu direito de defesa implica que lhe seja dada a oportunidade de exercer o contraditório face a todos os documentos que a entidade administrativa julgue relevante para a tomada da decisão;
c) A recorrente não pode pronunciar-se sobre os documentos que suportam a reincidência e a sobre o volume de negócios;
d) Este último nem sequer referido pelo tribunal a quo, havendo omissão de pronúncia nessa parte;
e) Quanto à não inquirição da testemunha durante a fase administrativa, a recorrente também não se pode conformar com a sua sanação já em fase de impugnação judicial;
f) A testemunha em causa era o trabalhador, elemento chave na fase de instrução, e o único capaz de explicar porque não detinha consigo os registos em falta;
g) Tendo o exposto em consideração deve ser o procedimento administrativo considerado nulo, com as demais consequências legais.
h) Adicionalmente, o tribunal a quo não considerou adequadamente a causa de exclusão de culpa da recorrente;
i) O trabalhador referiu que não tinha os registos em falta por esquecimento seu, reportando-se esses dias a descanso semanal regular de 45 horas;
j) Tendo sido isto confessado, não pode a recorrente ser responsabilizada pelo sucedido;
k) Conforme já documentalmente provado na fase administrativa, a recorrente deu formação adequada ao trabalhador;
l) Além disso, organiza de forma adequada o trabalho do mesmo, veja-se que apenas faltavam 10% das folhas de registo, e que o mesmo deveu-se a esquecimento do trabalhador e não a falta de informação ou controlo da recorrente.
Nestes termos, deve ser revogada a decisão recorrida e substituída a mesma por outra que determine a absolvição da arguida.
O Ministério Público apresentou contra-alegações, pugnando, a final, pela improcedência do recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1. A recorrente não se conforma com a sentença proferida no processo suprarreferido, pelo que veio interpor recurso, pugnando no sentido de aquela decisão condenatória ser revogada e substituída por outra que determine a sua absolvição.
2. Refere a recorrente em primeiro lugar que não concorda com o tribunal a quo quando decidiu que a decisão administrativa não é nula por os vícios existentes se terem sanado.
3. Quanto às invocadas nulidades da decisão administrativa por violação do direito de defesa da arguida, o Tribunal baseou a sua decisão no texto do Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2003, Diário da República, 1.ª Série A, de 25-01-2003, de acordo com o qual, a ter ocorrido alguma nulidade na fase administrativa do processo, que motivasse que a arguida não tivesse acesso a todos os elementos necessários para conhecer todos os aspetos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o vício seria o da nulidade sanável (artigos 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal e 41. º, n. º 1, do regime geral das contra-ordenações), arguível, pelo interessado/notificado (artigos 120.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º n.º 1, do regime geral das contra-ordenações), no prazo de 10 dias após a notificação (artigos 105.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contraordenações), perante a própria administração ou, judicialmente, no ato da impugnação [artigos 121. º, n. º 3, alínea c), e 41.º n.º 1, do regime geral das contra-ordenações). Se a impugnação se limitar a arguir a nulidade, o tribunal invalidará a instrução administrativa, a partir da notificação incompleta, e também, por dela depender e a afetar, a subsequente decisão administrativa [artigos 121.º, n.os 2, alínea d), e 3, alínea c), e 122.º n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º n.º 1, do regime geral das contraordenações].
4. Todavia, se o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido (abarcando, na sua defesa, os aspetos de facto ou de direito omissos na notificação, mas presentes na decisão/acusação), a nulidade deve considerar-se sanada [artigos 121.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contraordenações).
5. Como no caso concreto, depois de notificada do auto de notícia, a recorrente, através do seu representante legal, apresentou a defesa escrita onde juntou prova documental e arrolou prova pessoal e, em sede de impugnação judicial da decisão administrativa, foram inquiridas as testemunhas AA e BB, que são as mesmas testemunhas que foram indicadas pela recorrente na defesa escrita e cujo depoimento não foi tido em conta pela entidade instrutora, a ter existido uma nulidade, ela foi considerada sanada pelo Tribunal, de harmonia com os artigos 121.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contraordenações.
6. Para além disso, a recorrente também referiu nas suas alegações que não concorda que o tribunal não tenha considerado a causa de exclusão da sua culpa que havia invocado na sua impugnação da decisão administrativa.
7. Refere a recorrente que a responsabilidade pela prática dos factos era da exclusiva responsabilidade do seu trabalhador que na altura da fiscalização não se fazia acompanhar dos documentos necessários que motivaram a condenação pela prática da contraordenação em causa nos autos.
8. Contudo, isso não é o que resulta da matéria de facto assente na douta sentença recorrida e o recurso da arguida apenas pode incidir sobre matéria de direito e não de facto (nº1 do artº 51º da Lei nº 107/2009, de 14 de setembro – regime processual aplicável às contraordenações laborais e de segurança social).
9. Entre os diversos “factos provados” que constam da douta sentença recorrida consta que:
9.1. No dia 26-01-2022, pelas 10h45m, na A2, ao km 235, 5/N, nas Portagens de Paderne, em Albufeira, circulava o veículo pesado de mercadorias, com a matrícula 43-XG-26, propriedade da arguida, o qual era conduzido pelo motorista BB, trabalhador ao serviço, sob as ordens, direção e fiscalização da arguida.
9.2. O condutor não se fazia acompanhar de todos os registos da atividade por si desenvolvida nos últimos 28 dias, estando em falta os registos tacográficos dos dias 3, 4 e 14 de janeiro de 2022 e o condutor não apresentou, in loco, qualquer documento justificativo que fundamentasse a falta daqueles registos tacográficos
9.3. A arguida não planeou, nem organizou o trabalho do trabalhador BB nos dias 3, 4 e 14 de janeiro de 2022.
9.4. A arguida não tomou assim as devidas medidas de implementação, vigilância e controlo passíveis de afastar a estatuição sancionada pela lei, como bem podia, devia e sabia que lhe era legalmente imposto de assegurar que o seu motorista fosse portador dos registos da sua condução e dos documentos necessários a apresentar perante o agente encarregado do controlo, nomeadamente da totalidade dos 28 dias anteriores à jornada de trabalho em curso, bem como documentos que justificassem a ausência dos mesmos.
9.5. A arguida omitiu esses deveres que sobre si impendiam, na qualidade de entidade empregadora, conhecendo a natureza contraordenacional do seu comportamento.
10. Provados estes factos, a não ser que a intenção da arguida seja impugnar os mesmos, não vemos como pode a Recorrente insistir no sentido de que a culpa relativa à circunstância de o seu motorista não se fazer acompanhar dos documentos obrigatórios era deste e não sua.
11. Efetivamente, a arguida poderia ter demonstrado que organizou o trabalho de modo a que o condutor cumprisse o disposto na lei, caso em que, de acordo com o previsto no nº2 do artº 13º da Lei 27/2010 de 30 de agosto, a sua responsabilidade seria excluída.
12. Mas não foi isso que se provou no julgamento como resulta da citada matéria de facto assente na douta sentença recorrida.
13. Competia à arguida entregar ao seu motorista toda a documentação necessária com a qual este se devia fazer acompanhar, e no caso, este não apresentou ao agente fiscalizador qualquer documento justificativo que fundamentasse a falta dos registos tacográficos referentes aos dias 3, 4 e 14 de janeiro de 2022 porque a sua entidade empregadora não emitiu e não lhe entregou o necessário documento para o efeito.
14. Consequentemente, podendo existir alguma responsabilidade do trabalhador que bem sabia que não se devia fazer à estrada sem esse documento, a culpa relativa à falta do documento em causa foi muito bem atribuída à arguida, a quem competia emitir e entregar o documento ao condutor antes de ele partir para realizar o trabalho programado pela empresa.
15. Não vislumbramos, assim, que a douta sentença recorrida esteja ferida de qualquer nulidade e, não tendo o Tribunal violado qualquer norma jurídica, parece-nos que a douta decisão objeto do presente recurso não merece qualquer reparo ou censura.
Nestes termos deverá ser negado provimento ao recurso interposto pela arguida “Mosca Portugal, Lda.”, confirmando-se a douta sentença recorrida nos seus precisos termos.
Assim decidindo, V. Exas. farão a costumada JUSTIÇA!
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo. Recebido o recurso neste tribunal, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, pugnando pela improcedência do recurso, devendo ser mantida a sentença recorrida.
A recorrente não veio responder a tal parecer.
Admitido o recurso nos seus precisos termos e colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.
II – Objeto do recurso
Nos termos dos arts. 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, ex vi do art. 41.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10 (RGCO) e arts. 50.º, n.º 4 e 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (art. 410.º, nºs. 2 e 3, do Código de Processo Penal).
No caso em apreço, as questões que importa decidir são:
1) Nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
2) Nulidade da decisão administrativa por violação do princípio do contraditório; e
3) Exclusão da culpa da arguida.
III. Matéria de Facto
A matéria de facto mostra-se fixada pela 1.ª instância, uma vez que o tribunal da relação, em sede contraordenacional laboral, apenas conhece da matéria de direito (art. 51.º, n.º 1, da Lei n.º 107/2009, de 14-09), com exceção das situações previstas no art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
A decisão da 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:
1. No dia 26-01-2022, pelas 10h45m, na A2, ao km 235, 5/N, nas Portagens de Paderne, em Albufeira, circulava o veículo pesado de mercadorias, com a matrícula 43-XG-26, propriedade da arguida.
2. Esse veículo era conduzido pelo motorista BB, trabalhador ao serviço, sob as ordens, direcção e fiscalização da arguida.
3. O veículo com a matrícula 43-XG-26 encontrava-se equipado com aparelho tacógrafo.
4. O condutor não se fazia acompanhar de todos os registos da actividade por si desenvolvida nos últimos 28 dias.
5. Na verdade, encontravam-se em falta os registos tacográficos dos dias 3, 4 e 14 de Janeiro de 2022.
6. O condutor não apresentou, in loco, qualquer documento justificativo que fundamentasse a falta dos registos tacográficos referentes aos dias 3, 4 e 14 de Janeiro de 2022.
7. A arguida não planeou, nem organizou o trabalho do trabalhador BB nos dias 3, 4 e 14 de Janeiro de 2022.
8. O trabalhador BB foi trabalhador por conta de outrem da arguida no período compreendido entre 23/12/2021 e 13/11/2022.
9. O trabalhador BB é detentor da categoria profissional de motorista de veículos pesados de mercadorias.
10. O motorista BB participou em formação inicial de motoristas, no dia 23/12/2021, com a duração de 1 hora, ministrado pela arguida.
11. A arguida desenvolve a actividade económica principal de aluguer de veículos automóveis pesados, encontrando-se no mercado desde 11/11/2016.
12. A arguida apresentou um volume de negócios de€ 23.160,710 no ano de 2021, possuindo 101 trabalhadores por conta de outrem ao seu serviço a 31/12/2021, 83 dos quais com a categoria profissional de motorista de pesados de mercadorias.
13.A arguida é reincidente e foi condenada por infracção muito grave, praticada a 04/04/2019, processo de contra-ordenação laboral número 261900553, com a referência n.º 261900717, com coima aplicada no valor de € 2.040,00.
14.A arguida não tomou assim as devidas medidas de implementação, vigilância e controlo passíveis de afastar a estatuição sancionada pela lei, como bem podia, devia e sabia que lhe era legalmente imposto de assegurar que o seu motorista fosse portador dos registos da sua condução e dos documentos necessários a apresentar perante o agente encarregado do controlo, nomeadamente da totalidade dos 28 dias anteriores à jornada de trabalho em curso, bem como documentos que justificassem a ausência dos mesmos.
15. A arguida omitiu esses deveres que sobre si impendiam, na qualidade de entidade empregadora, conhecendo a natureza contraordenacional do seu comportamento.
IV – Enquadramento jurídico
1) Nulidade da sentença por omissão de pronúncia
Considera a recorrente que a sentença é nula por omissão de pronúncia, uma vez que não se pronunciou sobre o vício da decisão administrativa de não ter deixado a recorrente pronunciar-se sobre os documentos que suportam a decisão sobre o seu volume de negócios.
À nulidade da sentença contraordenacional aplica-se igualmente o disposto no art. 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, em face do disposto nos arts. 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09, e 32.º do DL n.º 433/82, de 27-10.
Estipula o art. 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, que:
1 - É nula a sentença:
[…]
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Porém, é importante salientar que apenas existe omissão de pronúncia quando o tribunal não aprecia as questões que lhe foram submetidas pelas partes ou cujo conhecimento é oficioso, já não quando não aborda os argumentos, as opiniões os motivos que as partes apresentam para que tais questões sejam decididas num determinado sentido.
Conforme bem refere o acórdão do STJ proferido em 15-12-2011:[2]
III - Conforme estabelece o art. 379.°, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPP, é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, sendo tal disposição correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso, por força do n.º 4 do art. 425.° do mesmo diploma.
IV - A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. Tais questões são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetem à apreciação do tribunal (art. 660.°, n.º 2, do CPC) e as que sejam de conhecimento oficioso, de que o tribunal deva conhecer independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.
V - Como uniformemente tem sido entendido no STJ, a omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que como tal tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os dissídios ou problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respectivas posições, na defesa das teses em presença.
VI - A pronúncia cuja omissão determina a consequência prevista no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP – a nulidade da sentença – deve incidir sobre problemas, os concretos problemas, as questões específicas sobre que é chamado a pronunciar-se o tribunal (o thema decidendum), e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objecto que é submetido à cognição do tribunal e não aos motivos ou razões alegadas.
VII - A doutrina e jurisprudência distinguem entre questões e razões ou argumentos; a falta de apreciação das primeiras consubstancia a verificação da nulidade; o não conhecimento dos segundos, será irrelevante.

Acresce que apenas existe omissão de pronúncia quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre a questão invocada, já não quando se pronuncia sobre tal questão, mas fá-lo de forma deficiente, insuficiente ou errada.
No caso em apreço, a recorrente, aquando da sua impugnação judicial, fez consignar nas conclusões o seguinte:
1. A decisão administrativa que foi proferida considerou documentos que não foram apresentados à arguida, para esta, querendo, exercer o seu direito de defesa. O que integra violação do direito de defesa e importa assim a nulidade do procedimento de contra-ordenação, por violação do direito de defesa.

E nas alegações da sua impugnação judicial ficou a constar:
A decisão administrativa que antecede, contém, na sua proposta de decisão, a menção de que a arguida é reincidente. Contudo, os documentos em que a pretensa reincidência se fundam, não foram em momento algum apresentados à arguida.
Ora, a consideração de documentos, no âmbito de um processo de contra-ordenação, que não apresentados à arguida, designadamente para esta exercer o seu direito de defesa, traduzem uma violação do direito de defesa.
O mesmo valendo para os documentos alusivos ao volume de negócios.
O que importa a nulidade do procedimento de contra-ordenação.
O que expressamente se invoca a fim de ser judicialmente declarado com todas as legais consequências.

Por sua vez, a sentença recorrida decidiu esta questão nos seguintes termos:
A. Da nulidade da «decisão administrativa» por violação do direito de defesa:
A arguida/ recorrente, em primeiro lugar, invoca a nulidade da decisão administrativa, por violação do seu direito de defesa, por ter considerado documentos com os quais não foi confrontada e por a entidade instrutora não ter ouvido uma testemunha, por si indicada em sede de oposição.
Vejamos.
1. O artigo 15.º, n.º 1, da Lei n.º 107 /2009, de 14 de Setembro [regime processual aplicável às contra-ordenações laborais e de segurança social], estabelece que «o auto de notícia, a participação e o auto de infracção referidos nos artigos anteriores mencionam especificadamente os factos que constituem a contra-ordenação, o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que faram cometidos e o que puder ser averiguado acerca da identificação e residência do arguido, o nome e categoria do autuante ou participante e, ainda, relativamente à participação, a identificação e a residência das testemunhas».
Daqui resulta que o auto de notícia constitui uma das formas legalmente previstas para dar a «notícia da infracção» ou, dito de outra forma, por via do auto de notícia, a entidade administrativa dá a conhecer que considera que foi praticada uma determinada infracção ou várias infracções.
O auto de notícia, elaborado por inspectores do trabalho ou da segurança social, no âmbito das respectivas competências, reporta-se a infracções que o autuante tenha pessoalmente constatado ainda que de forma não imediata.
Trata-se dos casos em que o autuante comprova pessoalmente a verificação dos elementos constitutivos do tipo legal, seja por percepção directa no momento da ocorrência, seja por percepção mediata, mediante verificação documental ou outra - observação de coisas, pessoas ...
Em suma, como afirma JOÃO SOARES RIBEIRO, Contra-ordenações Laborais - Regime Jurídico, 2011, 3.ª edição, pp. 36 e 44, no auto de notícia, narram-se nos factos que constituem a contra-ordenação, bem como as circunstâncias em que foram cometidos, o tempo e o lugar da sua ocorrência.
Recentrando no auto de notícia de fls. 2-3, que se dá por reproduzido para todos os efeitos, elaborado na sequência da acção fiscalizadora a que a recorrente foi sujeita, extrai-se do mesmo, com suficiente grau de concretização, além dos dados de facto essenciais em que se baseia a infracção imputada (a identificação do trabalhador da arguida e a descrição dos factos imputados), a sua imputação subjectiva, as normas violadas e o tipo de sanções aplicáveis (moldura abstracta da coima aplicável, no caso de dolo ou de negligência).
Desta forma, o auto de notícia contém todos os elementos e factos considerados essenciais constitutivos da infracção que lhe foi imputada, as normas infringidas e respectivas consequências sancionatórias respeitando, portanto, todos os requisitos impostos por lei.
2. Noutro plano, importa avaliar se a decisão administrativa, por fazer referência à «reincidência», que não constou do «auto de notícia», e a entidade administrativa, por não ter inquirido uma das testemunhas indicadas pela recorrente [a outra não esteve disponível para a respectiva inquirição, na data e hora designadas], impediu o cabal exercício do direito de defesa da arguida, implicando a nulidade da decisão proferida.
De acordo com o artigo 50.º do Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, aplicável por força do artigo 60.º da Lei n.º 107 /2009, de 14 de Setembro, «não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre».
O que efectivamente releva, nesta matéria, é que ao arguido seja dada a oportunidade de se pronunciar sobre os factos que lhe são imputados.
O direito de defesa, embora muito relevante neste domínio, não tem a mesma natureza do que está estabelecido no domínio do direito penal.
Quanto a esta questão pode ver-se, com muito interesse, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 99/2009, acessível em www.tribunalconstitucional.pt, citado pela recorrente, onde se esclareceu que «conforme salientado já por este Tribunal, a norma do artigo 32.º, n.º 10, da CRP - introduzida pela revisão constitucional de 1989 quanto aos processos de contra-ordenação e alargada pela revisão de 1997 a quaisquer processos sancionatórios - implica a inviabilidade constitucional da aplicação de qualquer tipo de sanção, contra-ordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa), reagindo contra uma acusação prévia, apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade (cfr. Ac. n.º 659/06 e Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, p. 363).
Sem prejuízo dos demais direitos que outras normas constitucionais incluem no conjunto das garantias asseguradas aos arguidos em processos sancionatórios (cfr. Artigo 20º da CRP), o alcance atribuível à norma do n.º 10 do artigo 32º é, todavia, conforme igualmente acentuado na jurisprudência constitucional, apenas o que se deixou exposto, tendo sido rejeitada, no âmbito da revisão constitucional de 1997, uma proposta no sentido de se consagrar o asseguramento ao arguido, "nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios", de “todas as garantias do processo criminal” (artigo 32.º-B do Projecto de Revisão Constitucional n.º 4/VII, do PCP; cf. o correspondente debate no Diário da Assembleia da República, II Série-RC, n.º 20, de 12 de Setembro de 1996, pp. 541-544, e I Série, n.º 95, de 17 de Julho de 1997, pp. 3412 e 3466) [cfr. Ac. n.º659/06).
Quer isto significar que a configuração constitucional do processo contra-ordenacional, se o subordina ao reconhecimento de um conjunto de garantias inerentes à respectiva natureza sancionatória, não o equipara, contudo, ao processo penal, não conduzindo, por isso, no plano da aplicação do direito ordinário, à direita transposição para o primeiro de todas e quaisquer regras expressamente previstas para o segundo, designadamente em termos de os elementos que este particularmente inclui se tornarem, só por isso, comuns àquele.
Da modelação constitucional do processo contra-ordenacional extraem-se, portanto, duas ideias de sentido aparentemente oposto mas complementar: a de que o processo contra-ordenacional, como sancionatório que é, se encontra subordinado ao reconhecimento de um conjunto de garantias que o aproximam do processo penal; e a de que tais garantias não são equivalentes ou equiparáveis às garantias asseguradas no âmbito do processo criminal, designadamente em termos de viabilizar a conversão daquela aproximação numa sobreposição integral de regimes.
(...)
No epicentro de tais garantias encontrar-se-ão, assim, os direitos de defesa e de audiência correlativa assegurados no artigo 32.º, n.º 10, da CRP, e concretizados, para o processo contra-ordenacional, no artigo 50º do RGCO.
Sob a epígrafe “Direito de audição e defesa do arguido”, estabelece-se aí que “não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre”:
A redacção do artigo 50.º, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, veio enfatizar e incrementar o direito de audição e de defesa do arguido de modo a assegurar-lhe a faculdade de pronunciar-se sobre a contra-ordenação imputada e a sanção correspondente, atribuindo-lhe um alcance superior ao que resultava da primitiva versão do preceito (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 433/82 e mantida pelo Decreto-Lei n.0 356/89) que se limitava a assegurar ao arguido «a possibilidade de se pronunciar sobre o caso».
Assim, concretizando o que se deve incluir o direito de defesa no domínio contra-ordenacional encontra-se, decisivamente, o decidido no Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2003, Diário da República, Iª-Série A, de 25-01-2003: «os direitos de defesa e audiência assegurados no âmbito do processo contra-ordenacional implicarão, em síntese, que ao arguido seja dada previamente a conhecer “a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito”».
Não pode, contudo, deixar de se atender, naturalmente, aos fundamentos de tal decisão. Com efeito, ali se consignou que:
«I - Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50. º do RGCO, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido, notificá-lo-á para - no prazo que o regime específico do procedimento previr ou, na falta deste, em prazo não inferior a 10 dias - dizer o que se lhes oferecer (cf. artigo 101.º, n.º 1, do Código de Processo Administrativo).
II - A notificação fornecerá os elementos necessários para que o interessado fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito (artigo 101.º, n.º 2) e, na resposta, o interessado pode pronunciar-se sobre as questões que constituem objecto do procedimento, bem como requerer diligências complementares e juntar documentos (artigo 101.º, n º 3).
III - A omissão dessa notificação incutirá à decisão administrativa condenatória, se judicialmente impugnada e assim volvida «acusação», o vício formal de nulidade (sanável), arguível, pelo «acusado», no acto da impugnação [artigos 120.º, n.ºs 1, 2, alínea d), e 3, alínea c), e 41.º, n. º 1, do regime geral das contra-ordenações]. Se a impugnação se limitar a arguir a invalidade, o tribunal invalidará a instrução, a partir da notificação omissa, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa [artigos 121.º, n.os 2, alínea d), e 3, alínea e), e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações]. Mas, se a impugnação se prevalecer do direito preterido (pronunciando-se sobre as questões objecto do procedimento e, sendo caso disso, requerendo diligências complementares e juntando documentos), a nulidade considerar-se-á sanada [artigos 121.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações].
IV - Se a notificação, tendo lugar, não fornecer (todos) os elementos necessários para que o interessado fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o vício será o da nulidade sanável (artigos 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações), arguível, pelo interessado/notificado (artigos 120.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações), no prazo de 10 dias após a notificação (artigos 105.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações), perante a própria administração ou,judicialmente, no acto da impugnação [artigos 121.º, n.º 3, alínea c), e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações). Se a impugnação se limitar a arguir a nulidade, o tribunal invalidará a instrução administrativa, a partir da notificação incompleta, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa [artigos 121.º, n.os 2, alínea d), e 3, alínea c), e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações]. Todavia, se o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido (abarcando, na sua defesa, os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação, mas presentes na decisão/acusação), a nulidade considerar-se-á sanada [artigos 121.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações)». ( sublinhado nosso).
Ora, no caso concreto, notificada do auto de notícia, a recorrente, através do seu representante legal, apresentou a defesa escrita que consta de fls. 8 e seguintes, cujo teor se dá integralmente por reproduzido, onde juntou prova documental e arrolou prova pessoal.
Por outro lado, em sede de impugnação judicial da decisão administrativa foram inquiridas as testemunhas AA e BB, que são as mesmas testemunhas que foram indicadas pela recorrente na defesa escrita e cujo depoimento não foi tido em conta pela entidade instrutora.
Significa isto que, a ter existido uma nulidade, ela considera-se sanada, de harmonia com os artigos 121.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações.
Por outro lado, a alusão que é feita na decisão final à reincidência, que a arguida não contesta, não integra qualquer nulidade.
Ainda assim, vale dizer que mesmo entendendo que não constitui requisito da elaboração do auto de notícia a «argumentação jurídica», mas tão-só as normas violadas e as respectivas sanções aplicáveis, pelos motivos que se enunciaram, no caso concreto, contrariamente ao que afirma na impugnação judicial, a recorrente teve oportunidade - que legitimamente aproveitou - de se pronunciar sobre todas as questões - fácticas e jurídicas - que estiveram na base da sua condenação e em sede de impugnação judicial colocou todas as questões que entendeu e viu produzida toda a prova testemunhal que requereu, não tendo sido minimamente comprimido o seu direito de defesa.
Desta forma, por falta de fundamento legal, julga-se improcedente a nulidade suscitada.

Conforme resulta das próprias conclusões da recorrente a questão que foi colocada ao tribunal a quo foi a de decidir se constitui nulidade do procedimento contraordenacional, por violação do direito de defesa, a consideração na decisão administrativa de documentos que não foram apresentados à arguida, para esta, querendo, exercer o seu direito de defesa.
Ora, a essa questão o tribunal a quo, independentemente do seu acerto, clareza ou suficiência, decidiu, considerando inexistir tal nulidade, pelo que improcede, deste modo, a invocada nulidade da sentença por omissão de pronúncia.

2) Nulidade da decisão administrativa por violação do princípio do contraditório
Entende a recorrente que foi violado o seu direito de defesa, sendo a decisão administrativa nula, por não ter sido confrontada com os documentos que suportaram a sua condenação como reincidente e a indicação do seu volume de negócios; bem como por não ter sido inquirida durante a fase administrativa uma das testemunhas que tinha indicado para ser inquirida nessa fase.
Apreciemos.
a) A circunstância de a arguida não ter sido confrontada, previamente à notificação da decisão final, com os documentos que fundamentaram a condenação como reincidente e o volume de negócios que lhe foi atribuído
Dispõe o art. 17.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09, que:
1 - O auto de notícia, a participação e o auto de infração são notificados ao arguido, para, no prazo de 15 dias, proceder ao pagamento voluntário da coima.
2 - Dentro do prazo referido no número anterior, o arguido pode apresentar resposta escrita, em língua portuguesa, devendo juntar os documentos probatórios de que disponha e arrolar testemunhas, até ao máximo de duas por cada infração.
3 - Quando tiver praticado três ou mais contraordenações a que seja aplicável uma coima única, o arguido pode arrolar até ao máximo de cinco testemunhas por todas as infrações

Decorre ainda do disposto no art. 50.º do DL n.º 433/82, de 27-10, aplicável por força do disposto no art. 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09, que:
Não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre.

Assim, para além da notificação do auto de notícia, participação ou auto de infração, aos arguidos, terá de lhes ser concedido um prazo razoável para se pronunciarem sobre a contraordenação que lhes é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorrem, devendo estas informações constarem desse auto de notícia.
Na interpretação do alcance do citado art. 50.º, é fundamental ter-se presente as orientações constantes do Tribunal Constitucional n.º 537/2011,[3] que se cita:
Do objecto do recurso

5. A questão de constitucionalidade que vem colocada, nos presentes autos, consiste em saber se a interpretação do artigo 50. Do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO), no sentido de esta disposição permitir que a notificação do arguido para se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada não inclua qualquer enunciação/identificação dos concretos elementos de prova nos quais se alicerça o juízo de indiciação dos factos, viola o disposto nos artigos 32.° n.°10 e 267.° n.°5 da Constituição da República Portuguesa.
O tribunal a quo e os Recorridos entendem que a não indicação/enunciação das provas que sustentam os factos imputados ao arguido quando da sua notificação para pronúncia e exercício do direito de defesa em processo de contra-ordenação não merece qualquer censura no plano constitucional.
Vejamos.
b) Análise do mérito do recurso

6. O artigo 50.º do RGCO foi já apreciado por este Tribunal Constitucional. Embora estivesse, então, em análise, interpretação normativa diversa da que ora cumpre fiscalizar, os fundamentos que então foram apresentados são inteiramente transponíveis para a questão em apreço. Disse, então, este Tribunal, no acórdão n.º 278/99 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, n.º 43, pp. 447 e ss.), o seguinte:

“No processo civil e como observou Manuel de Andrade, o direito a ser ouvido exige que se dê a cada uma das partes a possibilidade de apresentarem as suas razões, ofereceram provas, controlarem as oferecidas pelas outras partes e pronunciarem-se sobre umas e outras (cfr. Noções Elementares de Processo Civil, I, Coimbra, 1976, pág. 377).

É, no entanto, no processo criminal que o contraditório (e independentemente de se fazer valer no direito processual em geral, ao fim e ao cabo como corolário do direito de acesso à Justiça e aos Tribunais) assume a dignidade constitucional que o nº 5 do artigo 32º da CR lhe atribui. A preservação das garantias de defesa do arguido passa, nos parâmetros do Estado de Direito democrático, além do mais, pela observância do contraditório, de modo a que sempre possa ser dado conhecimento ao arguido da acusação que lhe é feita e se lhe dê oportunidade para dela se defender. A intangibilidade deste núcleo essencial compadece-se, no entanto, com a liberdade de conformação do legislador ordinário que, designadamente na estruturação das fases processuais anteriores ao julgamento, detém margem de liberdade suficiente para plasticizar o contraditório, sem prejuízo de a ele subordinar estritamente a audiência: aqui tem o princípio a sua máxima expressão (como decorre do nº 5 do artigo 32º citado), nessa fase podendo (e devendo) o arguido expor o seu ponto de vista quanto às imputações que lhe são feitas pela acusação, contraditar as provas contra si apresentadas, apresentar novas provas e pedir a realização de outras diligências e debater a questão de direito em causa (cfr. o acórdão deste Tribunal, nº 352/98 e, ainda, inter alia, os nºs. 133/92 e 172/92, publicados no Diário da República, II Série, de 14 de Julho de 1998, 24 de Julho e 18 de Setembro de 1992, respectivamente).

Ou seja, ressalvado esse núcleo intocável - que impede a prolação da decisão sem ter sido dada ao arguido a oportunidade de “discutir, contestar e valorar” (parecer nº 18/81 da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, 16ºvol., pág. 154) - não existe um espartilho constitucional formal que não tolere certa maleabilização do exercício do contraditório (como, de resto, e ao menos implicitamente, se retira de certos arestos do Tribunal como, v.g., os nºs. 1185/96 e 358/98, publicados no citado Diário, II Série, de 12 de Fevereiro de 1997 e 17 de Julho de 1998, respectivamente).

No domínio do processo contra-ordenacional, este Tribunal tem-se pronunciado no sentido de uma não estreita equiparação entre esse ilícito e o ilícito criminal (cfr. acórdão nº 158/92, citado), sem deixar, no entanto, de sublinhar ‘a necessidade de serem observados determinados princípios comuns que o legislador contra-ordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matérias de processo penal’, como se escreveu no acórdão nº 469/97, publicado no mesmo jornal oficial, II Série, de 16 de Outubro de 1997. Na verdade, a menor ressonância ética do ilícito contra-ordenacional subtrai-o às mais ‘rigorosas exigências de determinação válidas para o ilícito penal’ (Maria Fernanda Palma e Paulo Otero, ‘Revisão do Regime Legal do Ilícito de Mera Ordenação Social’ in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol, XXXVII 2, 1996, pág. 564), o que não deixará de se reflectir no âmbito do contraditório.

De qualquer modo, desenvolvida a actividade sancionatória da Administração a montante do recurso para o tribunal comum e não impedida a recorrente de atempadamente, na própria fase procedimental onde ainda se não exercera o controlo jurisdicional, se fazer ouvir e se defender, a interpretação que o tribunal recorrido concedeu à norma do artigo 50º do Decreto-Lei nº 433/82 não se mostra colidente com o preceituado no nº 10 do artigo 32º da CR.

Com efeito, e como salienta o magistrado recorrido, não obstante a irregularidade advinda do lapso cometido - que, de resto, não foi arguida - a recorrente teve plena oportunidade de se defender, oralmente ou por escrito, o que, pura e simplesmente, não fez, quedando-se passivamente até ao julgamento (não obstante lhe ter sido nomeado patrono), só posteriormente tendo quebrado o seu silêncio.”

O Tribunal Constitucional tem vindo a salientar que, no domínio do processo contra-ordenacional, não se verifica uma estreita equiparação entre esse ilícito e o ilícito criminal, face à menor ressonância ética do primeiro, o que o subtrai às mais rigorosas exigências de determinação válidas para o ilícito penal.

7. A propósito da crescente aproximação do direito contra-ordenacional ao direito penal, Frederico de Lacerda da Costa Pinto salienta que o essencial é a existência de uma dogmática própria que podendo acolher os contributos da dogmática penal não se limite contudo a uma importação acrítica de regimes e figuras (Frederico Lacerda da Costa Pinto, in “O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade da intervenção penal”, Direito Penal Económico e Europeu/Textos Doutrinários, p. 209 e segs).

Quanto ao direito de audição e defesa do arguido, Figueiredo Dias salienta o princípio do contraditório e da audiência, no sentido da “oportunidade conferida a todo o participante processual de influir, através da sua audição pelo tribunal, no decurso do processo (…)” (Direito Processual Penal, I, 1974, p. 153).

Com efeito, se «não é permitida a aplicação de uma coima [...] sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção [...] em que incorre» (artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações), a concretização da «forma» e do «prazo razoável» de se assegurar esse «direito de audição do arguido» não poderá prescindir dessa audiencia, já que «os preceitos reguladores do processo criminal» não prevêem uma «decisão condenatória», ao cabo do «inquérito».

8. Na situação em apreço, no que respeita ao princípio do contraditório, a sua violação só ocorreria quando as partes ficassem impossibilitadas de controlar, às questões colocadas ou suscitadas no processo, o que não sucedeu.

O artigo 50.º do RGCO apenas exige que sejam comunicados aos arguidos os factos que lhe são imputados, a respectiva qualificação jurídica e sanções que incorrem, não impondo que a aludida notificação contenha a alusão às provas tidas em conta pela autoridade administrativa e que sustentam a imputação que lhes é dirigida. No entanto, tais obrigações legais referem-se às comunicações que se podem ter como essenciais de modo a que seja assegurado o direito de defesa. Com efeito, sem o acesso a tais informações, não poderiam os arguidos lançar mão, em termos substantivos, das garantias de defesa previstas na Constituição.

Também o Assento n.º 1/2003 do STJ defendeu que a notificação efectuada à sombra do mencionado artigo 50.º, deve fornecer os elementos necessários para que o arguido fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, não se retirando, no entanto, de tal aresto a exigência de que tal notificação deva ser acompanhada da indicação das provas que sustentam a decisão da autoridade administrativa.

9. Saliente-se que, na situação em apreço, os arguidos não foram impedidos de aceder ao processo, consultando-o, tendo exercido o seu direito a serem ouvidos e a defenderem-se, donde se conclui, igualmente, pelo respeito do seu direito de defesa.

Tiveram, com efeito, a oportunidade de conhecer o material probatório reunido pela CMVM, de apresentar novos meios de prova ou de requerer diligências e de, naturalmente, participar na decisão que lhes dizia respeito.

Por esta via se conclui que foram salvaguardadas as garantias constitucionalmente prescritas para situações deste tipo. Qualquer conteúdo normativo no sentido de estipular a obrigatoriedade de, aquando da notificação ao arguido nos termos do artigo 50.º do RGCO, a autoridade administrativa dever proceder à enunciação/identificação dos concretos elementos de prova nos quais se alicerça o juízo de indiciação dos factos, não resulta dos parâmetros constitucionais aplicáveis, designadamente dos convocados artigos 32.º n.°10 e 267.° n.°5 da Constituição da República Portuguesa.



Em face do exposto, aquilo que releva em sede de processo contraordenacional é que seja comunicado aos arguidos os factos que lhe são imputados, a respetiva qualificação jurídica e as sanções em que incorrem, não se impondo que com a aludida notificação sejam igualmente notificados das provas em que a autoridade administrativa se alicerça para sustentar o que lhes imputa. De igual modo, o que o citado art. 50.º impõe é que seja comunicado aos arguidos a essencialidade dos factos que lhe são imputados, já não toda a factualidade que lhe venha a ser imputada. E isto porque existindo uma menor repercussão ética no ilícito contraordenacional o próprio âmbito do princípio do contraditório terá de ser mais limitado.
Por outro lado, estando disponíveis para consulta dos arguidos os meios de provas em que a autoridade administrativa se fundamenta na sua imputação, inexiste qualquer impedimento a um efetivo direito de defesa daqueles.
Apreciemos, então, o caso concreto.
A arguida foi notificada do auto de notícia, onde constavam os factos que lhe eram imputados, assim como as disposições legais aplicáveis a tais factos (a arguida foi notificada do local, data e hora em que ocorreram os factos, bem como desses factos e das disposições legais que os punem enquanto contraordenação laboral muito grave, e ainda dos valores máximo e mínimo das coimas aplicadas, constando igualmente dessa notificação quem é a infratora e quem é o responsável solidário), pelo que foi dado integral cumprimento ao disposto nos arts. 17.º, n.º 1, da Lei n.º 107/2009, de 14-09, e 50.º do DL n.º 433/82, de 27-10.
Relativamente aos documentos relacionados com a sua reincidência e com o volume dos seus negócios, que a arguida reclama não lhe terem sido dado conhecimento, para além de, como se referiu supra, não ser exigível, em sede de processo contraordenacional, a concreta notificação da documentação que se encontre junta ao processo, não só não consta dos autos que a consulta do respetivo processo lhe tenha sido vedada, como, no caso concreto, estão em causa dois documentos de que a arguida tinha necessariamente que ter conhecimento. É o que se passa com o documento relativo ao volume de negócios no ano de 2021,[4] por se tratar de documento que consta da sua área pessoal da segurança social, e com o documento relativo a anterior condenação contraordenacional,[5] por se tratar de um facto pessoal.
Importará ainda referir, quanto ao primeiro documento, que, aquando da notificação efetuada nos termos do citado art. 50.º, foi igualmente notificada a arguida para apresentar determinados documentos, entre eles, a declaração de IRC respeitante ao exercício do ano transato, porém, como a arguida não deu cumprimento a tal notificação, a ACT obteve tal informação por outros meios.
Deste modo, e quanto a esta nulidade, cumpre apenas concluir pela sua improcedência.

b) A circunstância de uma das duas testemunhas indicadas em sede de processo administrativo não ter sido inquirida nessa fase
Entende a recorrente que a decisão administrativa é igualmente nula, por uma das suas testemunhas arroladas nessa fase não ter sido inquirida, concretamente o trabalhador que consta do auto de notícia, testemunha chave do processo, discordando que tal nulidade possa ter sido sanada, já em fase judicial, com a audição de tal testemunha.
Para além do que dispõe o já citado art. 17.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09, estatui igualmente o art. 21.º do mesmo Diploma Legal que:
1 - As testemunhas indicadas pelo arguido na resposta escrita devem por ele ser apresentadas na data, na hora e no local indicados pela entidade instrutora do processo.
2 - Os depoimentos prestados nos termos do número anterior devem ser preferencialmente realizados através de meios técnicos audiovisuais.
3 - Os depoimentos ou esclarecimentos recolhidos nos termos do número anterior não são reduzidos a escrito, nem é necessária a sua transcrição para efeitos de recurso, devendo ser junta ao processo cópia das gravações.

Consagra, por fim, o art. 22.º do mesmo Diploma Legal que:
1- A diligência de inquirição de testemunhas apenas pode ser adiada uma única vez, ainda que a falta à primeira marcação tenha sido considerada justificada.
2 - Considera-se justificada a falta motivada por facto não imputável ao faltoso que o impeça de comparecer no acto processual.
3 - A impossibilidade de comparecimento deve ser comunicada com cinco dias de antecedência, se for previsível, e no dia e hora designados para a prática do acto ou no prazo de vinte e quatro horas em caso de manifesta impossibilidade, se for imprevisível, constando da comunicação a indicação do respectivo motivo e da duração previsível do impedimento, sob pena de não justificação da falta.
4 - Os elementos de prova da impossibilidade de comparecimento devem ser apresentados com a comunicação referida no número anterior.

Aplica-se igualmente à presente situação, o disposto no art. 54.º do DL n.º 433/82, de 27-10, em face do art. 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09, que determina:
1 - O processo iniciar-se-á oficiosamente, mediante participação das autoridades policiais ou fiscalizadoras ou ainda mediante denúncia particular.
2 - A autoridade administrativa procederá à sua investigação e instrução, finda a qual arquivará o processo ou aplicará uma coima.
3 - As autoridades administrativas poderão confiar a investigação e instrução, no todo ou em parte, às autoridades policiais, bem como solicitar o auxílio de outras autoridades ou serviços públicos.

Em face do disposto nos artigos mencionados resulta que na fase do processo administrativo das contraordenações quem procede à sua investigação e instrução é a autoridade administrativa, a qual possui autonomia para decidir se as diligências de prova requeridas pelos arguidos serão ou não realizadas, devendo, porém, fundamentar tal decisão, ao abrigo do disposto no art. 43.º do DL n.º 433/82, de 27-10.
Conforme bem refere o acórdão proferido nesta Relação em 06-11-2018:[6]
I – O art.º 50.º, do Regime Geral das Contra-Ordenações consagra o direito de audição e defesa do arguido.
II – Esse direito de audição e defesa não se limita à possibilidade de o arguido ser ouvido no processo de contra-ordenação, abrangendo o direito de intervir neste, apresentando provas ou requerendo a realização de diligências.
III – Contudo, competindo, à autoridade administrativa a investigação e a instrução do processo, nos termos do n.º 2, do art.º 54.º, do RGCO, é a ela que cumpre decidir pela realização ou não das diligências de prova que lhe forem requeridas.
IV – Mas a autoridade administrativa, ao não aceitar as diligências de prova requeridas pelo arguido, terá de fundamentar a sua decisão, em obediência ao princípio da legalidade (art.ºs 43.º, do RGCO e 266.º, n.º 1, da CRP).
V – Não se pode imputar qualquer nulidade à autoridade administrativa se não procedeu à inquirição das testemunhas arroladas pela arguida porquanto entendeu ser desnecessária e irrelevante a sua audição, face à especificidade da matéria que se propunha provar, e se mostra de nenhuma, ou de fraca, importância a prova testemunhal.

Acresce que, nos termos do art. 121.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal,[7] ainda que ocorra nulidade, designadamente por falta de fundamentação pela autoridade administrativa da não realização de determinada diligência requerida pelos arguidos, sempre tal nulidade se considerará sanada se em sede de impugnação judicial os arguidos vierem a requerer a realização dessa mesma diligência de prova e a mesma venha a ser realizada nessa fase judicial.
Efetivamente, dispõe tal artigo que as nulidades ficam sanadas se os arguidos se tiverem prevalecido da faculdade a cujo exercício o ato anulável se dirigia.[8]

Posto isto, vejamos o caso concreto.
Em face da apresentação da defesa por parte da arguida,[9] na qual a mesma requereu a inquirição de duas testemunhas, a autoridade administrativa agendou uma data para tais inquirições, a realizar através do sistema de videoconferência, tendo notificado a arguida da data agendada, nos termos do art. 21.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09.[10] Na referida data, a testemunha BB não acedeu ao sistema de videoconferência, razão pela qual foi elaborado auto de não comparência.[11] Não foi igualmente apresentada qualquer justificação da falta. Posteriormente, a autoridade administrativa proferiu decisão final.
Na realidade, atento o disposto nos citados arts. 21.º, n.º 1 e 22.º, não tendo a referida testemunha acedido ao sistema de videoconferência da data e hora indicados, nem tendo apresentado qualquer justificação para tal não comparência, é justificável que não tenha sido agendada nova data para inquirição de tal testemunha, o que, aliás, nem sequer foi requerido pela arguida. Atente-se que, mesmo em situação de justificação da falta, a inquirição de testemunhas, em sede de processo contraordenacional na fase administrativa, apenas pode ser adiada uma vez. Pelo que inexiste qualquer vício na não inquirição da referida testemunha pela autoridade administrativa, em face do contexto mencionado.
De qualquer modo, como se referiu supra, mesmo que tivesse existido qualquer irregularidade nesta atuação da autoridade administrativa, uma vez que a arguida arrolou tal testemunha em sede de impugnação judicial, ou seja, prevaleceu-se da faculdade que lhe permitia, em sede de impugnação judicial, arrolar testemunhas, tendo tal testemunha sido efetivamente inquirida, esse vício sempre teria de se considerar sanado, em face do disposto no art. 121.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, apenas nos resta concluir, também nesta parte, pela improcedência da pretensão da recorrente.

3) Exclusão da culpa da arguida
Considera a recorrente que se mostra excluída a sua culpa, uma vez que o trabalhador não tinha os registos em falta por esquecimento seu, o que confessou, tendo a arguida dado formação adequada ao seu trabalhador, sendo que a arguida organiza de forma adequada o trabalho desse trabalhador, visto que apenas faltavam 10% das folhas de registo, e que o mesmo deveu-se a esquecimento do trabalhador e não a falta de informação ou controlo da recorrente.
Dispõe o art. 25.º, n.º 1, da Lei n.º 27/2010, de 30-08, que:
1 - Constitui contra-ordenação muito grave a não apresentação, quando solicitada por agente encarregado da fiscalização:
a) De folhas de registo e impressões, bem como de dados descarregados do cartão do condutor;
b) De cartão de condutor, das folhas de registo utilizadas e de qualquer registo manual e impressão efectuados, que o condutor esteja obrigado a apresentar;
c) De escala de serviço com o conteúdo e pela forma previstos na regulamentação comunitária aplicável.

Estipula, por sua vez, o art. 36.º do Regulamento (EU) 165/2014, de 04-02, que:
1. Se conduzirem um veículo equipado com tacógrafo analógico, os condutores devem apresentar, quando os agentes de controlo autorizados o solicitem:
i) As folhas de registo do dia em curso e as utilizadas pelo condutor nos 28 dias anteriores;
ii) O cartão de condutor, se o possuir; e
iii) Qualquer registo manual e impressão efetuados durante o dia em curso e nos 28 dias anteriores, tal como previsto no presente regulamento e no Regulamento (CE) n.º 561/2006.
2. Se conduzirem um veículo equipado com tacógrafo digital, os condutores devem apresentar, quando os agentes de controlo autorizados o solicitem:
i) O seu cartão de condutor;
ii) Qualquer registo manual e impressão efetuados durante o dia em curso e nos 28 dias anteriores, nos termos do presente regulamento e no Regulamento (CE) n.o 561/2006;
iii) As folhas de registo correspondentes ao período referido na alínea ii), no caso de terem conduzido um veículo equipado com tacógrafo analógico.
3. Os agentes autorizados de controlo podem verificar o cumprimento do Regulamento (CE) n.o 561/2006 através da análise das folhas de registo ou dos dados, visualizados, impressos ou descarregados registados pelo tacógrafo ou pelo cartão de condutor ou, na falta destes meios, da análise de qualquer outro documento comprovativo que permita justificar o incumprimento de quaisquer disposições, como as do artigo 29.º , n.º 2, e do artigo 37.º, n.º 2, do presente regulamento.

Ora, da conjugação destes dois artigos resulta, em primeiro lugar, que constitui contraordenação muito grave a não apresentação, quando solicitada por agente encarregado da fiscalização, (a) de folhas de registo e impressões, bem como de dados descarregados do cartão do condutor, (b) de cartão de condutor, das folhas de registo utilizadas e de qualquer registo manual e impressão efetuados, que o condutor esteja obrigado a apresentar; e (c) de escala de serviço com o conteúdo e pela forma previstos na regulamentação comunitária aplicável.
No caso em apreço, releva essencialmente a obrigação constante da alínea b), ou seja, a não apresentação, quando solicitada por agente encarregado da fiscalização, das folhas de registo utilizadas e de qualquer registo manual e impressão efetuados, que o condutor esteja obrigado a apresentar.
Em segundo lugar, resulta que o condutor de um veículo equipado com tacógrafo analógico está obrigado a apresentar, quando os agentes de controlo autorizados o solicitem, entre outros documentos, as folhas de registo do dia em curso e as utilizadas por si nos 28 dias anteriores.
Deste modo, e sem distinção do que tenha ocorrido nos 28 dias anteriores ao da fiscalização, designadamente se o condutor exerceu, ou não, a atividade da condução, se esteve, ou não, em gozo de folga ou de férias ou se esteve, ou não, em ações de formação, de acordo com o teor do disposto no ponto i) do n.º 1 do art. 36.º do Regulamento (EU) 165/2014, de 04-02, é sempre exigível ao condutor daquele tipo de veículos, quando solicitado por agentes de fiscalização, a apresentação das folhas de registo do dia em curso e das utilizadas nos 28 dias anteriores.
Acresce que a verificação do cumprimento do Regulamento (CE) n.º 561/2006[12] e do Regulamento (EU) 165/2014 pode ser efetuado pelos agentes de fiscalização através da análise das folhas de registo ou dos dados, visualizados, impressos ou descarregados registados pelo tacógrafo ou pelo cartão de condutor ou, na falta destes meios, da análise de qualquer outro documento comprovativo que permita justificar o incumprimento de quaisquer disposições, ou seja, inexistindo registos no tacógrafo, como será o caso dos dias em que o condutor não exerça a atividade da condução, essa inexistência de registo pode sempre ser comprovada por qualquer tipo de documento, desde que este seja adequado a atestar a razão dessa inexistência de registo no tacógrafo.
Deste modo, é evidente a irrelevância para o preenchimento do elemento objetivo do tipo da referida contraordenação se o condutor não apresentou todos os registos referentes aos 28 dias anteriores ao da fiscalização ou documentação justificativa dessa não apresentação ou se só não apresentou registo ou documentação justificativa para um único desses dias.[13] E, a ser assim, a mencionada contraordenação mostra-se praticada mesmo quando apenas não é apresentado o registo ou o documento justificativo dessa falta relativamente a um dos 28 dias anteriores ao da fiscalização.
Cita-se, a este propósito, o acórdão desta Relação, proferido em 24-05-2018:[14] [15]
I – Constitui contraordenação muito grave a não apresentação, quando solicitada por agente encarregado da fiscalização, de cartão de condutor, das folhas de registo utilizadas e de qualquer registo manual e impressão efetuados, que o condutor esteja obrigado a apresentar.
II – Por isso, a não apresentação ao agente encarregado da fiscalização rodoviária das folhas de registo dos 28 dias anteriores, com ausência de justificação imediatamente apresentada, preenche objetivamente o tipo de ilícito que a lei consagra;

Sobre a imputação à entidade empregadora regem os arts. 13.º da Lei n.º 27/2010, de 30-08, e 10.º, nºs. 2 e 3, do Regulamento (CE) n.º 561/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15-03-2006.
Ora, dispõe o art. 13.º da Lei n.º 27/2010, de 30-08, que:
1 - A empresa é responsável por qualquer infracção cometida pelo condutor, ainda que fora do território nacional.
2 - A responsabilidade da empresa é excluída se esta demonstrar que organizou o trabalho de modo a que o condutor possa cumprir o disposto no Regulamento (CEE) n.º 3821/85, do Conselho, de 20 de Dezembro, e no capítulo ii do Regulamento (CE) n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março.
3 - O condutor é responsável pela infracção na situação a que se refere o número anterior ou quando esteja em causa a violação do disposto no artigo 22.º
4 - A responsabilidade de outros intervenientes na actividade de transporte, nomeadamente expedidores, transitários ou operadores turísticos, pela prática da infracção é punida a título de comparticipação, nos termos do regime geral das contra-ordenações.

Estatui, de igual modo, o art. 10.º, nºs. 2 e 3, do Regulamento (CE) n.º 561/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15-03-2006, que:
2. As empresas de transportes devem organizar o trabalho dos condutores a que se refere o nº 1 de modo a que estes possam cumprir o disposto no Regulamento (CEE) nº 3821/85 e no capítulo II do presente regulamento. As empresas transportadoras devem dar instruções adequadas aos condutores e efectuar controlos regulares, para assegurar o cumprimento quer do Regulamento (CEE) nº 3821/85, quer do capítulo II do presente Regulamento.
3. As empresas de transportes são responsáveis por qualquer infracção cometida pelos condutores da empresa, ainda que essa infracção tenha sido cometida no território de outro Estado-Membro ou de um país terceiro. Sem prejuízo do direito que lhes assiste de responsabilizarem plenamente as empresas de transportes, os Estados-Membros podem tornar esta responsabilidade dependente da infracção aos nºs 1 e 2 por parte da empresa de transportes. Os Estados-Membros podem tomar em consideração quaisquer provas susceptíveis de demonstrar que não existem fundados motivos para imputar à empresa de transportes a responsabilidade pela infracção cometida.

Resulta, assim, destes artigos que as empresas de transportes são responsáveis por qualquer infração cometida pelos condutores, ou seja, impede sobre elas uma presunção de responsabilidade subjetiva, presunção essa que apenas será ilidida se tais empresas demonstrarem que organizaram o trabalho de modo a que os condutores pudessem cumprir o disposto no Regulamento (CEE) n.º 3821/85, do Conselho, de 20 de Dezembro, e no capítulo ii do Regulamento (CE) n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, sendo que tal organização do trabalho passa não só por dar instruções adequadas aos condutores como por efetuar controlos regulares para assegurar tais cumprimentos.
Sobre este assunto cita-se o acórdão do TRP, proferido em 19-03-2018:[16]
II - A responsabilidade pela contra-ordenação muito grave, prevista e punida nos termos das disposições conjugadas dos artigos 36º, nº1 do Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho de 4 de fevereiro de 2014, 14º nºs 1 e 4, al. a) e 25º nº 1, al. b) da Lei nº 27/2010, de 30/08 [não apresentação, pelo motorista, das folhas do registo tacógrafo relativas ao período dos 28 dias anteriores solicitadas pelo agente encarregado da fiscalização] impende, nos termos do nº 1 do artigo 13º da Lei 27/2010, de 30.08, sobre o empregador, a menos que este faça a prova da exclusão da sua responsabilidade nos termos previstos no nº 2 desse artigo 13º.
III - A Lei 27/2010 de 30.08., no artigo 13º, supõe uma “forma mitigada da responsabilidade objetiva ou presumida”, consagrando a responsabilidade da empresa transportadora com base numa presunção de culpa mas permitindo que esta alegue e prove não ter sido responsável pelo seu cometimento, para o que deverá demonstrar que organizou o trabalho de modo a que seja possível o cumprimento das imposições legais.
IV - Para exonerar a empregadora da responsabilidade por infração da obrigação de apresentação de documentos relativos a registo da circulação de veículo, pelo trabalhador, não chega a prova da formação ou instruções dadas a este, sendo necessário que a arguida demonstre que efetuou as diligências necessárias para que não ocorresse tal omissão.
V - “A organização do trabalho a que se reporta o nº 2 do art. 13º da Lei 27/2010 não tem a ver apenas com o cumprimento dos tempos de condução e repouso, mas também com o controlo dos mesmos, nomeadamente com a obrigação de apresentação das folhas de registo quando solicitadas pela autoridade competente, constituindo este um dos aspetos dessa organização.

Vejamos a situação em apreço.
Apurou-se que o condutor da arguida não se fazia acompanhar de todos os registos da atividade por si desenvolvida nos últimos 28 dias (facto provado 4); nem apresentou, in loco, qualquer documento justificativo que fundamentasse a falta dos registos tacográficos referentes aos dias em falta (facto provado 6); sendo que se provou igualmente que a arguida não planeou, nem organizou o trabalho do trabalhador BB nos dias 3, 4 e 14 de janeiro de 2022 (facto provado 7); não tendo tomado, assim, as devidas medidas de implementação, vigilância e controlo passíveis de afastar a estatuição sancionada pela lei, como bem podia, devia e sabia que lhe era legalmente imposto, para assegurar que o seu motorista fosse portador dos registos da sua condução e dos documentos necessários a apresentar perante o agente encarregado do controlo, nomeadamente da totalidade dos 28 dias anteriores à jornada de trabalho em curso, bem como documentos que justificassem a ausência dos mesmos (facto provado 14); e tendo, por isso, omitido esses deveres que sobre si impendiam, na qualidade de entidade empregadora, conhecendo a natureza contraordenacional do seu comportamento (facto provado 15).
Ora, para além de não ter resultado da matéria de facto dada como assente que o trabalhador da arguida se esqueceu dos registo em falta, não competindo a esta Relação proceder à reapreciação da matéria factual (art. 51.º, n.º 1, da Lei n.º 107/2009, de 14-09), e nem ter resultado da sentença recorrida qualquer dos vícios elencados no art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, sempre se dirá que, mesmo a ter-se provado qualquer esquecimento por parte do trabalhador da arguida, tal esquecimento apenas seria relevante se igualmente se tivesse provado que a arguida tinha adotado todo o tipo de procedimentos para que tal esquecimento não pudesse ocorrer, designadamente procedendo à entrega ao seu trabalhador de todos os registos, inclusive daqueles que estavam em falta, consciencializando-o da obrigação imperiosa de os transportar sempre consigo; e que se tivesse igualmente provado que a arguida, de forma a consciencializar os seus trabalhadores dessa obrigação, fazia fiscalizações regulares aos seus trabalhadores para verificação do cumprimento dessa obrigação, penalizando quem a incumprisse. Ora, nada disso consta da matéria dada como assente.
Por fim, a formação inicial de motorista que a arguida prestou ao seu trabalhador no dia 23-12-2021, com a duração de uma hora (facto provado 10), não é suficiente para afastar a presunção de culpa que recai sobre a arguida.
E, a ser assim, improcedendo a argumentação tecida pela arguida no sentido de afastar a sua culpa na prática da presente contraordenação que lhe é imputada, apenas nos resta concluir pela improcedência desta pretensão da recorrente.

V - Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (art. 8.º, n.º 7 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais).
Notifique.
Évora, 23 de novembro de 2023
Emília Ramos Costa (relatora)
Paula do Paço
Mário Branco Coelho

__________________________________________________
[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.ª Adjunta: Paula do Paço; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho.
[2] No âmbito do processo n.º 17/09.0TELSB.L1.S1, consultável em www.dgsi.
[3] Consultável em www.tribunalconstitucional.pt.
[4] Documentos de fls. 25 a 29 dos autos.
[5] Documento de fls. 30 dos autos.
[6] No âmbito do processo n.º 22/18.5T8ETZ.E1, consultável em www.dgsi.pt.
[7] Aplicável por força do disposto nos arts. 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09, e 32.º do DL n.º 433/82, de 27-10.
[8] Veja-se neste sentido os acórdãos do TRG proferido em 28-09-2023 no âmbito do processo n.º 1335/22.7T8BCL.G1; do TRL proferido em 23-03-2023 no âmbito do processo n.º 1878/22.2T9FNC.L1-9; e TRC proferido em 06-02-2013 no âmbito do processo n.º 471/12.2TBACB.C1; todos consultáveis em www.dgsi.pt.
[9] Fls. 8 a 15 dos autos.
[10] Fls. 17 a 20 dos autos.
[11] Fls. 31 dos autos.
[12] Que se mantém em vigor.
[13] Podendo tal ter apenas relevância em sede de aplicação da medida concreta da coima.
[14] No âmbito do processo n.º 977/17.7T8PTG.E1, consultável em www.dgsi.pt.
[15] Veja-se, igualmente, entre muitos, os acórdãos, do TRE proferido em 27-06-2019 no âmbito do processo n.º 2276/18.8T8EVR.E1; do TRE proferido em 24-05-2018 no âmbito do processo n.º 977/17.7T8PTG.E1; do TRE proferido em 08-11-2017 no âmbito do processo n.º 1523/15.2T8BJA.E1; do TRP proferido em 05-12-2011 no âmbito do processo n.º 68/11.4TTVCT.P1; do TRG proferido em 20-10-2016 no âmbito do processo n.º 1154/15.7T8BCL.G1; e do TRL proferido em 16-03-2016 no âmbito do processo n.º 196/15.7T8BRR.L1.4; todos consultáveis em www.dgsi.pt.
[16] No âmbito do processo n.º 2204/17.8T8MTS.P1, consultável em www.dgsi.pt.