CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
TRABALHADOR ESTRANGEIRO
ADMISSÃO
Sumário


I - A obrigatoriedade de o empregador comunicar à ACT, através de formulário eletrónico, a admissão de trabalhador estrangeiro, antes do início do contrato de trabalho, que era imposta pelo n.º 5 do artigo 5.º do Código do Trabalho, desapareceu com a entrada em vigor da Lei n.º 13/2023.
II - Se uma nova lei eliminar o facto que anteriormente era punível como contraordenação do número de infrações contraordenacionais, este deixa de ser punível, mesmo se já tiver havido condenação, independentemente de esta ter ou não transitado em julgado.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora

1. Relatório
DECORLINE, Unipessoal, Lda., veio interpor recurso da decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo do Trabalho de Tomar -Juiz 1 que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida pela ora recorrente e confirmou a decisão da Autoridade Para as Condições do Trabalho (ACT) que lhe aplicou uma coima no valor de € 1800, pela prática de uma contraordenação laboral, por violação do disposto no artigo 5.º, n.º 5, alínea a) do Código do Trabalho.
Fundamentou a interposição do recurso no artigo 49.º, n.º 2, da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, alegando que o recurso se mostra necessário à melhoria da aplicação do direito e à promoção da uniformidade da jurisprudência.
Sintetizou as alegações do recurso, através das seguintes conclusões:
«1) A Recorrente foi notificada do auto de contraordenação por lhe ter sido imputada a infração de “falta de comunicação à ACT de contrato de trabalho outorgado com trabalhador estrangeiro”, tendo apresentado a sua Defesa Escrita (supratranscrita), e tendo sido emitida, pela Diretora da Unidade de Apoio ao CL da Lezíria e Médio Tejo da ACT, em 13.02.2023, a decisão “concordo com a proposta acima referida a fs 44 a 54, que aqui dou por inteiramente reproduzida”;
2) A Recorrente impugnou a decisão administrativa, apresentando as suas Conclusões (supratranscritas), tendo-se posteriormente realizado a Audiência de Julgamento, produzido prova testemunhal desencadeando a emissão da Sentença recorrida que decidiu julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão supratranscrita, o que não se pode conceder;
3) Elaborou-se uma peça denominada de “proposta de decisão”, na qual se definiu o direito que se considerou aplicável, tendo sido, posteriormente, emitida uma peça processual designada de “Decisão”, na qual, pura e simplesmente, se fez constar: “concordo com a proposta acima referida a fs 44 a 54, que aqui dou por inteiramente reproduzida”, aplicando à Recorrente a coima de 1.800 €, ordenando a notificação nos termos do artigo 47.º do DL n.º 433/82, de 27/10;
4) A decisão em causa carece dos requisitos previstos nas als. a) a c) do n.º 1 do artigo 58.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/83, de 27/10, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14.09 – RGCO;
5) A decisão administrativa condenatória não pode limitar-se, como ocorre no caso presente, a um mero Despacho onde se refere que, de acordo com a proposta de decisão, com a qual se concorda, se condena a Arguida, ou seja, a um despacho tecnicamente de “concordo” reportando-se à proposta de decisão de fls. 44 a 54 dos autos;
6) Se o disposto no n.º 1, als. a) e b) do supramencionado preceito legal impõe que a decisão administrativa condenatória deve especificar, para além da identificação da arguida, quais os factos que considera provados e a fundamentação da decisão de facto com indicação das provas obtidas, temos de concluir que tal não ocorreu;
7) Importa, ainda, fundamentar a decisão não só de Direito, mas também quanto à medida concreta da coima e aplicação e medida de eventuais sanções acessórias, a justificação da medida da coima (artigo 58.º, n.º 1, al. d) do supramencionado diploma legal, pois a decisão administrativa tem de ter estes elementos, independentemente, de na proposta de decisão que a antecede eles constarem ou não o que não ocorreu;
8) A decisão da entidade administrativa competente não pode, nem deve traduzir-se numa adesão a uma opinião de um funcionário – cuja competência não está em causa – que carece de competência decisória
9) Houve uma informação de uma instrutora seguida de uma decisão que faz sua a fundamentação e proposta, ou seja, nada mais no que o “concordo” tão corrente na administração pública, o que implica que os juízos de valor sobre todas as matérias referidas no artigo 58.º, n.º 1 do supramencionado diploma legal são dados por um agente administrativo incompetente para a decisão, a que acresce que o agente competente tem o seu juízo na sensibilidade e ponderação alheias – o que em direito de contraordenação é inadmissível;
10) A decisão administrativa consubstancia um ato, a responsabilidade da autoridade administrativa não pode nem deve ser repartida, sendo um ato eminentemente jurisdicional praticado no âmbito de competência própria por um órgão decisor que não pode dispersar tal poder por agentes e órgãos da administração em termos de decisão final;
11) A Arguida/Recorrente tem direito ao decisor natural, sendo proibido o desaforamento da competência ou a criação de decisores ad hoc para certas matérias ou para certos casos ou até para certos arguidos, logo, é inadmissível a existência de sentenças proferidas por órgãos jurisdicionais por “concordo”;
12) Não pode a decisão administrativa objeto de impugnação ser apreciada pelo Tribunal por a mesma não ter os elementos que a lei reputa de fundamentais e limitar-se a remeter para uma proposta de decisão – uma informação;
13) A inobservância do disposto no artigo 58.º do RGCO, nos termos dos artigos 118.º, n.º 1 e 123.º, ambos do C.P.P., constitui o vício de inexistência jurídica, estando radicalmente violado o princípio da acusação por omissão total de fundamentação da decisão impugnada que devia constituir-se como conteúdo da acusação, constituindo a decisão proferida pela autoridade administrativa uma ofensa grave do princípio da acusação e põe em causa a estrutura acusatória do nosso sistema processual penal, sofrendo a decisão de nulidade, a qual se invoca com todos os efeitos legais;
14) No decurso dos presentes autos, a Agenda do Trabalho Digno, aprovada pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, veio trazer alterações em diferentes dimensões do Código de Trabalho e sua legislação conexa, eliminando, designadamente, a obrigatoriedade de comunicação da contratação de trabalhadores estrangeiros à ACT, estabelecendo, expressamente, a norma revogatória constante no artigo 33.º, alínea a) da Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, que é revogado o n.º 5 do artigo 5.º do Código do Trabalho;
15) Logo que oportuna e processualmente foi possível à Recorrente, a aplicação da referida norma foi invocada, dada a vigência do princípio da aplicação retroativa da lei penal mais favorável ao Arguido, porém, na Sentença de fls. entendeu-se que tal eliminação de obrigatoriedade não ocorreu, o que não se pode conceder, afigurando-se, o presente recurso, como manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito e à promoção da uniformidade da jurisprudência;
16) A Lei n.º 13/2023, de 3 de abril é mais favorável do que a redação do Código de Trabalho que se encontrava anteriormente em vigência àquela Lei, ao eliminar a obrigatoriedade de comunicação da contratação de trabalhadores estrangeiros à ACT, anteriormente prevista no artigo 5.º, n.º 5 do CT, que se encontra atual e expressamente revogada, nos termos do artigo 33.º, alínea a) da Lei n.º 13/2023, de 3 de abril;
17) Foi ilegal e inconstitucional a interpretação e aplicação efetuadas pelo Meritíssimo Sr. Dr. Juiz a quo à legislação que erroneamente aplicou, quando este, perante a entrada em vigor da nova Lei, não teve em consideração esta;
18) O fundamento usado na interpretação da Sentença de fls. é diretamente violador do princípio penal de tratamento mais favorável ao arguido, pelo que o entendimento vertido na decisão recorrida deverá ser alterado, por ser ilegal e inconstitucional, o que se requer, com todas as consequências legais daí resultantes;
19) Ao Meritíssimo Juiz a quo incumbia, pois, proferir decisão diversa, pelo que a Sentença de que se recorre é nula, nos termos dos artigos 374.º, 375.º, 377.º, 379.º e 410.º do CPP;
20) A decisão recorrida não indica factos concretos suscetíveis de revelar, informar, e fundamentar, a real e efetiva situação, do verdadeiro motivo da condenação da Recorrente, em violação do artigo 205.º da CRP, não sendo a decisão recorrida de mero expediente, antes uma Sentença condenatória – daí ter de ser suficientemente fundamentada;
21) A decisão recorrida viola do disposto no artigo 204.º da CRP, uma vez que esta norma é tão abrangente, que nem é necessário que os Tribunais apliquem normas que infrinjam a Constituição, basta apenas e tão só, que violem “os princípios nela consignados”;
22) A decisão recorrida viola os princípios consignados na CRP, nomeadamente consignados nos artigos 13.º, 27.º, 28.º, 29.º e 32.º e o artigo 202º, uma vez que: “Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos... e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”, sendo que, neste caso, essa circunstância não se verifica;
23) O Tribunal a quo, na decisão recorrida, não assegurou a defesa dos direitos da Recorrente, limitando-se a apenas e tão só, a emitir uma decisão “economicista”, não se apreciando devidamente a prova produzida nos autos conforme já vimos, pelo que estamos plenamente convictos que este Venerando Tribunal alterará a decisão proferida em primeira instância;
24) A decisão recorrida terá de ser REVOGADA, o que se requer, com todas as consequências legais daí resultantes.».
Não foi oferecida resposta ao recurso.
A 1.ª instância determinou que os autos subissem à Relação, a fim de ser apreciada a admissibilidade do recurso.
Já na Relação, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido que o recurso não dever ser admitido.
A recorrente respondeu.
Foi cumprido o exame preliminar do processo, elaborado o projeto de acórdão e colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar.

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2. Questão prévia: Da admissibilidade do recurso
Estipula o artigo 49.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, sob o título “Decisões judiciais que admitem recurso”.
«1-Admite-se o recurso para o Tribunal da Relação da sentença ou do despacho judicial proferido nos termos do artigo 39.º, quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa competente tenha aplicado uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente, ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 39,º.
2- Para além dos casos enunciados no número anterior, pode o Tribunal da Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da decisão quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
3- Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infrações ou a vários arguidos e se apenas quanto a algumas das infrações ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso sobre com esses limites».
No vertente caso, como já referimos, a recorrente socorre-se do n.º 2 do citado preceito legal para justificar a recorribilidade da decisão.
De harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 49.º, o Tribunal da Relação pode aceitar o recurso, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência
No que concerne à primeira situação prevista no normativo, o legislador não define o que entende por “melhoria da aplicação do direito”, pelo que, compete ao intérprete explicitar o conteúdo do conceito genérico utilizado.
Na interpretação da norma, deverá ter-se em consideração o consagrado no artigo 9.º do Código Civil, isto é, a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas deve visar reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (cf. nº 1 do artigo 9.º).
Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete, o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei, um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, de harmonia com o n.º 2 do normativo.
Por fim, nos termos do n.º 3 do artigo 9.º, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Ora, considerando estas regras da interpretação da lei, passemos, então, a explicitar o que se deve entender por “manifesta necessidade à melhoria da aplicação do direito”.
Sobre a questão em análise, este Tribunal já teve oportunidade de se pronunciar no Acórdão proferido em 21-02-2013, Proc. n.º 283/12.3 TTABT. E1, bem como em inúmeras decisões sumárias proferidas.
No identificado acórdão escreveu-se:
«Estipula o n.º 2, do aludido artigo 49.º, que «[p]ara além dos casos enunciados no número anterior, pode o Tribunal da Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da decisão quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência».
A lei não explicita o que deve entender-se por «manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência».
Todavia, tendo presentes os princípios gerais de direito quanto a situações “manifestas”, designadamente as que decorrem do artigo 334.º, do Código Civil, ou do artigo 669.º do Código de Processo Civil, tem de concluir-se que com tal expressão se visam situações evidentes, patentes, virtualmente incontrovertíveis que justificam a apreciação pelo tribunal superior.
Isto é, e dito de outro modo: para que se verifique a “manifesta” necessidade de melhoria de aplicação do direito é necessária a ocorrência de um erro jurídico grosseiro, patente, na aplicação do direito, não se bastando uma mera discordância quanto à aplicação do direito.».
Não vislumbramos qualquer razão para alterar tal posição.
Afigura-se-nos que o n.º 2 do artigo 49.º da Lei n.º 107/2009 visa possibilitar a via recursória quando a mesma não é admitida pelas regras “normais” (designadamente pelo n.º 1), mas, razões de interesse geral e de dignificação da justiça tornam pertinente a reapreciação do caso por tribunal superior. Daí que esteja dependente de requerimento e esteja dependente da aceitação do tribunal ad quem que, perante o processo e o decidido, deve verificar a existência das razões consagradas no normativo.
Assim, “a melhoria da aplicação do direito”, justifica-se quando a decisão proferida pelo tribunal a quo revela um erro evidente (manifesto), clamoroso, intolerável, incontroverso e de tal forma grave que não se pode manter, por constituir uma decisão absurda de exercício da função jurisdicional.
Distinta desta situação é a que decorre da existência de uma aplicação de direito, que se mostra devidamente fundamentada, mas com a qual o recorrente não concorda e considera que a solução jurídica deveria ser diferente.
Sobre a temática, escreveu-se, com interesse, no Acórdão da Relação de Guimarães, de 08/11/2004, P. 1073/04-1, disponível em www.dgsi.pt:
«Sendo certo que o próprio conceito de recurso para o tribunal superior tem implícito o fim de uma melhor aplicação do direito, que deverá concretizar-se, em cada caso, como um dos efeitos do recurso, temos para nós que não é ao melhor direito resultante – ou, em princípio, resultante – de cada decisão do Tribunal superior que o legislador se refere na disposição que nos ocupa.
Se assim fosse, justificar-se-ia sempre aceitar o recurso e a exceção transformar-se-ia em regra, inutilizando o regime que estabelecia esta, no caso o disposto no n.º 1 do art.º 73.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10.
Não é, portanto, à normal superação da ilegalidade resultante de uma errada aplicação do direito, nem a correção desta através da decisão do tribunal superior que legislador se refere. Se este tal quisesse, bastava-lhe conferir o direito ao recurso em termos mais amplos.
Nem mesmo, se bem pensamos, se refere aos casos de existência daqueles vícios que, por demais patentes, consignou no n.º 2 do art.º 410.º do C. P. P., como fundamentadores de recurso em matéria de facto, mesmo nos casos em que o Tribunal superior conhece apenas de direito. Isto, pelo mesmo argumento de que, tendo o legislador identificado e tipificado tais vícios, nada mais seguro do que transpor os termos da previsão, para a norma aqui em causa.
Tem, portanto, que ser algo mais do que isso.
Fazendo apelo ao argumento literal vemos que o legislador aplicou a expressão “melhoria da aplicação”, em vez de, por exemplo “uma melhor aplicação”. E enquanto, na segunda expressão – dada como mero exemplo comparativo – existe a conotação de uma mera superação de qualidade, que é dado pelo grau do adjetivo, na expressão usada pelo legislador a utilização do substantivo “melhoria”, introduz um significado de estabilidade da melhora. Melhoria significa “mudança para melhor.” Não se trata, já, apenas de melhorar, mas de conseguir que a melhora passe a ser a norma.
Em articulação, foi usada a expressão “manifestamente necessário”. Não se trata apenas de conseguir uma “melhoria” na aplicação do direito, mas de limitá-lo aos casos de isso ser manifestamente necessário. A um critério de necessidade acrescenta-se uma circunstância de premência, de avultamento do desacerto.
Se assim é, podemos concluir que é de aceitar o recurso quando na decisão recorrida o erro avultar de forma categórica e, pela dignidade da questão, pelos importantes reflexos materiais que a solução desta comporte para os por ela visados e generalidade que importe na aplicação do direito, seja inexoravelmente preciso corrigir aquele.»
Focando-nos agora na concreta situação dos autos, apercebemo-nos que a recorrente, através do recurso, visa “atacar”:
- a decisão que julgou improcedente a arguida nulidade do procedimento contraordenacional;
- e a decisão que entendeu que a recente Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, manteve o dever de o empregador comunicar ao serviço com competência inspetiva do ministério responsável pela área laboral (ou seja, à ACT), a celebração de contrato de trabalho com trabalhador estrangeiro ou apátrida.
Ora, no que concerne à decisão que julgou improcedente a arguida nulidade do procedimento contraordenacional, a mesma mostra-se fundamentada e resulta da interpretação e aplicação que foi feita da lei.
Não estamos perante uma solução jurídica patentemente errada, indigna, desprestigiante da própria magistratura.
A sentença recorrida não evidencia a existência de qualquer erro grosseiro[2], intolerável para o direito.
Trata-se, apenas, de uma interpretação da lei, dentro da liberdade de interpretação e valoração de normas jurídicas.
Por conseguinte, não se nos afigura que exista fundamento para admitir o recurso, nesta parte, ao abrigo da primeira situação prevista no n.º 2 do artigo 49.º da Lei n.º 107/2009.
Vejamos, então, se o recurso relativo a esta decisão se revela manifestamente necessário “à promoção da uniformidade da jurisprudência”.[3]
O conceito (igualmente) genérico utilizado na lei pressupõe a existência de diversas decisões contraditórias sobre uma questão essencial de direito.
Ora, no recurso interposto nada é referido sobre a possibilidade de a decisão recorrida ferir ou pôr em causa a uniformidade da jurisprudência.
Destarte, não se verifica a segunda situação legalmente prevista para a possibilidade de interposição de recurso, ao abrigo no n.º 2 do artigo 49.º da Lei n.º 107/2009.
Concluindo, entende-se que o recurso interposto da decisão que julgou improcedente a arguida nulidade do procedimento contraordenacional é legalmente inadmissível, nos termos do referido artigo 49.º, n.º 2, pelo que não se admite, nesta parte, o recurso.
Já no que respeita à decisão que entendeu que a recente Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, manteve a obrigatoriedade de o empregador ter de comunicar à ACT a celebração de contrato de trabalho com trabalhador estrangeiro ou apátrida, afigura-se-nos ser patente que a mesma encerra um erro de direito grosseiro e intolerável, e que não pode ser mantido, o que justifica a intervenção excecional do tribunal superior.
Nesta conformidade, ao abrigo do artigo 49.º, n.º 2, primeira parte, da Lei n.º 107/2009, admite-se, nesta parte, o recurso.
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3. Fundamentação de facto
A 1.ª instância considerou provada a seguinte factualidade:
A) A arguida Decorline, Unipessoal, Lda., exerce a atividade de estucagem.
B) No âmbito dessa atividade, no dia 20/07/2022, celebrou um contrato de trabalho com AA, de nacionalidade brasileira, para exercer de imediato as funções de servente.
C) A arguida não comunicou inicialmente a contratação do seu trabalhador estrangeiro à ACT.
D) No seguimento de uma ação e interpelação inspetiva da ACT realizada no dia 04/08/2022, a arguida veio depois a comunicar essa contratação.
E) A arguida conhecia a obrigação de comunicar ao serviço com competência inspetiva do ministério responsável pela área laboral a contratação de trabalhadores estrangeiros.
F) A arguida era capaz de realizar tal comunicação, porém, não o fez por razões não apuradas.
G) A arguida sabe que a lei sanciona tal omissão.
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E julgou não provados os seguintes factos:
H) AA havia requerido o estatuto de igualdade de direitos.
I) AA comunicou à arguida que tinha requerido o estatuto de igualdade de direitos.
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4. Fundamentação de Direito
A 1.ª instância condenou a recorrente pela prática de uma contraordenação laboral, resultante da violação do artigo 5.º, n.º 5, alínea a) do Código do Trabalho, tendo mantido a coima de € 1800 aplicada pela ACT.
O decidido apoiou-se na seguinte fundamentação:
«O art. 5.º, do Código do Trabalho, referia que:
1 - O contrato de trabalho celebrado com trabalhador estrangeiro ou apátrida está sujeito a forma escrita e deve conter, sem prejuízo de outras exigíveis no caso de ser a termo, as seguintes indicações:
a) Identificação, assinaturas e domicílio ou sede das partes;
b) Referência ao visto de trabalho ou ao título de autorização de residência ou permanência do trabalhador em território português;
c) Atividade do empregador;
d) Atividade contratada e retribuição do trabalhador;
e) Local e período normal de trabalho;
f) Valor, periodicidade e forma de pagamento da retribuição;
g) Datas da celebração do contrato e do início da prestação de atividade.
2 - O trabalhador deve ainda anexar ao contrato a identificação e domicílio da pessoa ou pessoas beneficiárias de pensão em caso de morte resultante de acidente de trabalho ou doença profissional.
3 - O contrato de trabalho deve ser elaborado em duplicado, entregando o empregador um exemplar ao trabalhador.
4 - O exemplar do contrato que ficar com o empregador deve ter apensos documentos comprovativos do cumprimento das obrigações legais relativas à entrada e à permanência ou residência do cidadão estrangeiro ou apátrida em Portugal, sendo apensas cópias dos mesmos documentos aos restantes exemplares.
5 - O empregador deve comunicar ao serviço com competência inspetiva do ministério responsável pela área laboral, mediante formulário eletrónico:
a) A celebração de contrato de trabalho com trabalhador estrangeiro ou apátrida, antes do início da sua execução;
b) A cessação de contrato, nos 15 dias posteriores.
6 - O disposto neste artigo não é aplicável a contrato de trabalho de cidadão nacional de país membro do Espaço Económico Europeu ou de outro Estado que consagre a igualdade de tratamento com cidadão nacional em matéria de livre exercício de atividade profissional.
7 - Constitui contraordenação grave a violação do disposto nos n.os 1, 3, 4 ou 5.
A recente Lei n.º 13/2023, de 3 de Abril, manteve a obrigação de comunicação do empregador [ao] serviço com competência inspetiva do ministério responsável pela área laboral, embora deslocando-a para diferente diploma legal (cfr. art.º 33.º-A, do Código dos Registos Contributivos).
Em vista da factualidade apurada e que resultava já do auto de notícia, não há dúvida que a arguida contratou um trabalhador estrangeiro e estava obrigada a comunicar tal contrato, por força da imposição legal desse dever. A arguida escusou-se com o argumento em como o seu trabalhador lhe comunicou que tinha requerido o estatuto de igualdade de direitos. Porém, tal argumento não colhe, porque não se demonstrou que a contratação do trabalhador em causa estivesse dispensada dessa comunicação.
Além disso, a argumentação da arguida nem sequer poderia proceder sob o prisma de um eventual erro sobre as circunstâncias do facto (art. 16.º, n.º 2, do Código Penal), na medida em que tal sempre assentaria numa conduta censurável da arguida: tinha o dever pessoal de comprovar e documentar os factos que determinariam a dispensa da comunicação; Porém, bastou-se com uma mera informação (verbal?) do trabalhador em causa, que era o próprio interessado na contratação! Isto, é uma situação de clamorosa leveza e de irresponsável demissão do dever legal. A empregadora tenta transferir o seu dever pessoal para a esfera do trabalhador, o que é inaceitável e apenas evidencia a deplorável e grave incapacidade para se conformar com a Lei, mesmo depois de confrontada com a infração.
No mais, não se vislumbram razões para alterar o decidido, nomeadamente em função da coima concretamente fixada, em razão dos elementos que se conhecem e que foram trazidos aos autos, e da sua prudente fixação por um valor muito próximo do mínimo legal.
Termos em que se decide julgar improcedentes todas as conclusões do recurso e confirmar a decisão impugnada.».
Vejamos.
A ACT aplicou à ora recorrente uma coima no valor de € 1800, por esta não ter comunicado àquela entidade administrativa a celebração, no dia 20/07/2022, de um contrato de trabalho com um cidadão de nacionalidade brasileira.
Efetivamente, na data da celebração do aludido contrato encontrava-se em vigor o n.º 5 do artigo 5.º do Código do Trabalho que, na sua alínea a), estipulava o dever de o empregador comunicar à ACT, mediante formulário eletrónico, a celebração de contrato de trabalho com trabalhador estrangeiro ou apátrida, antes do início da sua execução.
A violação do n.º 5 do mencionado artigo constituía contraordenação, de acordo com o prescrito no n.º 7 do mesmo artigo.
Sucede que, à data em que foi proferida a sentença recorrida[4] já havia entrado em vigor a Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, que veio alterar o Código do Trabalho e legislação conexa.
E esta Lei veio revogar o n.º 5 do artigo 5.º do Código do Trabalho[5].
Deste modo, desapareceu do Código do Trabalho a menção de qualquer obrigação do empregador de comunicar à ACT a celebração de contrato de trabalho com trabalhador estrangeiro ou apátrida, antes do início da sua execução.
E, ao contrário do decidido pela 1.ª instância, não se nos afigura que este dever tenha sido “deslocado” para diferente diploma legal, designadamente para o artigo 33.º-A do Código dos Regimes Contributivos.[6]
Prescreve esta norma legal:
Trabalhadores estrangeiros
Sempre que se verifique a comunicação pela entidade empregadora da admissão de trabalhador estrangeiro ou apátrida fora dos casos previstos no n.º 6 do artigo 5.º do Código do Trabalho, ou da cessação do correspondente contrato, são notificados os serviços de inspeção da Autoridade para as Condições do Trabalho.

Ora, em função desta nova norma, a comunicação da admissão de trabalhador estrangeiro, fora dos casos previstos no n.º 6 do artigo 5.º do Código do Trabalho, passou a ser feita à ACT através de comunicação direta de dados entre a Segurança Social e aquela entidade administrativa.
Ou seja, a obrigatoriedade de o empregador comunicar à ACT, através de formulário eletrónico, a admissão de trabalhador estrangeiro, antes do início do contrato de trabalho, que era imposta pelo n.º 5 do artigo 5.º do Código do Trabalho, desapareceu com a entrada em vigor da Lei n.º 13/2023.[7]
Logo, a contraordenação resultante da violação do n.º 5 do artigo 5.º, também deixou de existir.
Como é sabido, no nosso ordenamento jurídico contraordenacional vigora o princípio da legalidade, consagrado no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro[8] - que é um corolário do princípio constitucional consagrado no artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa.
De acordo com o referido artigo 2.º só será punido como contraordenação o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima.
Temos assim, que embora anteriormente à entrada em vigor da Lei n.º 13/2023, existisse uma contraordenação por violação do disposto no n.º 5 do artigo 5.º Código do Trabalho, a lei posterior não prevê idêntico ilícito contraordenacional.
Estipula o artigo 3.ª do Decreto-Lei n.º 433/82:
Aplicação da lei no tempo
1 - A punição da contraordenação é determinada pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que depende.
2- Se a lei vigente ao tempo da prática do facto for posteriormente modificada, aplicar-se-á a lei mais favorável ao arguido, salvo se este já tiver sido condenado por decisão definitiva ou transitada em julgado e já executada.
3 - Quando a lei vale para um determinado período de tempo, continua a ser punida a contraordenação praticada durante esse período.
Do texto legal não resulta qualquer referência às situações em que o facto punível, por efeito de lei nova é eliminado[9].
Tal lacuna resolve-se com a aplicação subsidiária do Código Penal, de acordo com o artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 433/82.
Dispõe o n.º 2 do artigo 2.º do Código Penal que se uma lei nova eliminar o facto do número de infrações, este deixa de ser punível, mesmo se já tiver havido condenação, independentemente de esta ter ou não transitado em julgado.
Esta solução decorre do princípio constitucional da retroatividade da lei penal mais favorável – artigo 29.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.
Em face do exposto, por conseguinte, é evidente que por força da eliminação da contraordenação imputada pela entidade administrativa à ora recorrente, o tribunal a quo não poderia ter considerado que a previsão da contraordenação se mantinha com a entrada em vigor da Lei n.º 13/2023.
Por isso, considerámos que a decisão recorrida cometeu um indubitável, clamoroso e inadmissível erro grosseiro na aplicação do direito, que não pode permanecer, e, por essa razão, admitimos o recurso ao abrigo do n.º 2, primeira parte, do artigo 49.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.
Considerando, assim, todo o exposto, é manifesto que a recorrente está coberta de razão na fundamentação do seu recurso, pois a aplicação retroativa da lei penal/contraordenacional mais favorável, deveria ter conduzido à sua absolvição.
Concluindo, o recurso admitido procede e, em consequência, a decisão recorrida tem de ser revogada, e a recorrente tem de ser absolvida da contraordenação.
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5. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente, e consequentemente, revogam a decisão recorrida e absolvem a recorrente DECORLINE, Unipessoal, Lda. da prática da infração contraordenacional que lhe foi imputada.
Sem custas.
Notifique.
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Évora, 23 de novembro de 2023
Paula do Paço (Relatora)
Emília Ramos Costa (1.ª Adjunta)
Mário Branco Coelho (2.º Adjunto)

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[1] Relatora: Paula do Paço; 1.ª Adjunta: Emília Ramos Costa; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho
[2] No acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07/05/2003, prolatado no Proc. n.º 638/06, consultável em www.dgsi.pt, escreveu-se, com interesse:
« III - Quando se fala de erro grosseiro para efeitos de responsabilização por atos jurisdicionais dos juízes tem-se em vista o desempenho judicial em desconformidade gritante com o mundo dos factos ou com o mundo do direito.
IV - Nos demais casos têm os destinatários que se conformar com a ideia de que o erro judicial, seja de facto, seja de direito, tem que ser tolerado em atenção à circunstância da atividade jurisdicional dos juízes se confrontar com particulares exigências e dificuldades.»
[3] Que é a segunda situação prevista no n.º 2 do artigo 49.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.
[4] A sentença foi prolatada em 11/07/2023.
[5] Cf. Artigo 33.º, alínea a) da Lei n.º 13/2023 de 3 de abril.
[6] Este artigo foi aditado ao Código dos Regimes Contributivos pelo artigo 16.º da Lei n.º 13/2023, de 3 de abril.
[7] Atualmente, a entidade empregadora apenas é obrigada a comunicar ao Instituto de Segurança Social, a admissão de trabalhador estrangeiro, bem como a cessação do respetivo contrato de trabalho.
[8] Este diploma legal consagra o Regime Geral das Contraordenações e aplica-se, subsidiariamente, às contraordenações laborais, nos termos previstos pelo artigo 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.
[9] Cf. António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral, “Notas ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas”, 2.ª edição, Almedina, págs. 30 e 31.