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JUNÇÃO DE DOCUMENTOS EM SEDE DE RECURSO
SUBSÍDIO DE TURNO
ACORDO DE EMPRESA
ABUSO DE DIREITO
Sumário
1. É extemporânea a junção de documentos pela Recorrente, em sede de recurso e já após as contra-alegações da parte contrária. 2. A manutenção do subsídio de turno aos trabalhadores que laboraram sujeitos a esse regime durante mais de 20 anos, e que por qualquer razão deixem de o estar – prevista na cláusula 75.ª n.º 5 do AE da ANA Aeroportos de Portugal, S.A. – aplica-se seja qual for o motivo pelo qual deixaram de prestar trabalho por turnos, e independentemente de outras condicionantes, como uma eventual progressão salarial, ou o desempenho temporário e reversível de outras funções, por nomeação expressa do conselho de administração. 3. Não age em abuso de direito a trabalhadora que reclama o pagamento do subsídio de turno naquelas condições – depois de ter estado a laborar durante mais de 26 anos em regime de turnos. 4. Qualquer acordo que eventualmente se pudesse entender ter ocorrido nas relações estabelecidas entre as partes, jamais poderia afastar a aplicação da cláusula 75.ª n.º 5 do AE, face ao primado deste instrumento de regulamentação colectiva. (Sumário elaborado pelo Relator)
Texto Integral
Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora
No Juízo do Trabalho de Faro, AA propôs acção de processo comum contra ANA – Aeroportos de Portugal, S.A., formulando pedidos relativos à manutenção do subsídio de turno que auferiu até Fevereiro de 2016.
Invocando a cláusula 75.ª n.º 5 do Acordo de Empresa, e visto que trabalhou em regime de turnos durante mais de 25 anos, afirma ter direito a manter o recebimento de tal subsídio, apesar de nessa data ter deixado de trabalhar nesse regime e lhe ter sido concedida a isenção de horário, auferindo o correspondente subsídio.
Na contestação, a Ré afirma que a A. foi nomeada, em Fevereiro de 2016, para as funções de coordenadora da área funcional de informação e apoio ao passageiro, e que as partes acordaram submeter a prestação de trabalho a um regime distinto – o da isenção de horário na modalidade de não sujeição aos limites máximos do período normal de trabalho, recebendo o correspondente subsídio. Assim, a A. deixou de laborar segundo uma escala pré-estabelecida de turnos, visando-se com aquele subsídio possibilitar uma maior abrangência do número de turnos cuja coordenação lhe compete. Tendo sido esclarecida previamente dos pressupostos remuneratórios, designadamente que passava a auferir isenção de horário e deixava de receber subsídio de turno, o que aceitou, ao peticionar o respectivo pagamento a A. actua em abuso de direito.
Após julgamento, a sentença julgou a acção procedente e condenou a Ré:
a) a reconhecer que a A. tem direito a auferir a quantia mensal de € 367,28, a título de subsídio de turno;
b) a pagar-lhe a quantia de € 30.949,46, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, incidentes sobre cada uma das prestações mensais que a compõem, desde a data do seu vencimento e até efectivo e integral pagamento; e,
c) a pagar as quantias referidas em a) que se foram vencendo desde a interposição da acção, em montante a fixar em liquidação de sentença, acrescidas dos juros de mora à taxa legal e até efectivo e integral pagamento.
Inconformada, a Ré recorreu.
As suas conclusões não são, definitivamente, um modelo de capacidade de síntese, como seria exigível que o fizesse, face ao disposto no art. 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil.
Visto que não existe qualquer obrigação legal de copiar tais conclusões, mas sim enunciar sucintamente as questões a decidir no recurso – art. 663.º n.º 2 do Código de Processo Civil – aqui se indicam as mesmas: 1.ª -Impugnação da matéria de facto:
- se deve a matéria constante do ponto 18 dos factos provados ser eliminada;
- se deve ser considerada provada a matéria que a sentença recorrida considerou não provada nos pontos 1 e 2;
- se deve ser eliminado o ponto 4 dos factos não provados e aditado aos factos provados um n.º 21, dizendo que: “Desde 23.02.2016, no exercício das descritas funções de coordenação de área funcional do serviço AFIA, a Autora pratica horário regular não sujeita aos limites máximos dos períodos normais de trabalho”;
- se deve o ponto 12 dos factos provados ser rectificado, no seguinte sentido: “A Autora no exercício das referidas funções de Coordenação de Área Funcional, passou a auferir remuneração mínima mensal, nível remuneratório R15, de € 2.100,64, acrescida de subsídio de isenção de horário de trabalho, de € 462,14”;
- se deve a redacção dos pontos 14 e 15 dos factos provados ser rectificada, pois não houve desconto de subsídio de turno, que não era devido a partir de 23.02.2016;
- se deve ser aditado à matéria de facto provada o teor do parecer da DRH de 09.12.2015, da proposta do director do aeroporto de Faro de 04.02.2016, e dos despachos que sobre o mesmo incidiram;
- se deve ser aditado à matéria de facto o seguinte ponto, que seria o n.º 24: “Em 23.02.2016 a Autora estava conhecedora das condições e pressupostos de enquadramento das funções de nomeação sujeitas a isenção de horário de trabalho para que foi nomeada, conforme Parecer da DRH de 09.12.2015”. 2.ª - Qual a interpretação e aplicação da prestação prevista na cláusula 75.ª n.º 5 do Acordo de Empresa. 3.ª - Se a A. age em abuso de direito.
A resposta da A. sustenta a manutenção do julgado.
Nesta Relação de Évora, a Digna Magistrada do Ministério Público produziu parecer, propondo que ao recurso seja negado provimento.
Cumpre-nos decidir.
***
Da admissão de documentos juntos após as alegações
Com as suas alegações de recurso, a Ré não juntou quaisquer documentos.
Mas, notificada das contra-alegações da A., a Ré veio aos autos juntar dois documentos, o que fez através de requerimento avulso de 29.05.2023, invocando o princípio da colaboração e cooperação para a descoberta da verdade material, dizendo que só agora reparou neles após consulta ao seu sistema de arquivo documental. Mais requereu a notificação da A. para juntar outro documento que estaria em seu poder.
A A. apresentou requerimento, pedindo o desentranhamento de tais documentos, e a Ré respondeu, defendendo a sua manutenção. Decidindo o incidente, podem as partes juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o art. 425.º do Código de Processo Civil, ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância – art. 651.º do mesmo diploma.
Da articulação lógica entre os arts 651.º n.º 1, 423.º e 425.º do Código de Processo Civil resulta que a junção excepcional de documentos na fase de recurso depende da alegação e da prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: superveniência do documento ou necessidade do documento revelada em resultado da novidade ou imprevisibilidade da sentença proferida na 1.ª instância.[1]
Quanto à superveniência, há que distinguir entre os casos de superveniência objectiva e de superveniência subjectiva: aqueles devem-se à produção posterior do documento; estes ao conhecimento posterior do documento ou ao seu acesso posterior pelo sujeito.[2]
Quanto à superveniência subjectiva, só são atendíveis razões das quais resulte a impossibilidade da parte, num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido anteriormente conhecimento da existência do documento.[3]
Quanto ao elemento surpresa, existe um entendimento generalizado no sentido de recusar a junção de documentos para prova de factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova[4], não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado.[5] Como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.04.2019, «no que toca à necessidade do documento, os casos admissíveis estão relacionados com a novidade ou imprevisibilidade da decisão, não podendo aceitar-se a junção de documentos quando ela se revele pertinente ab initio, por tais documentos se relacionarem de forma directa e ostensiva com a questão ou as questões suscitadas nos autos desde o primeiro momento.»[6]
A propósito, Abrantes Geraldes[7] sustenta que «podem ainda ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, maxime quando este seja de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo.»
Ora, a Ré não apresentou qualquer documento com as suas alegações, e apenas o fez em momento posterior, após ter sido notificada das contra-alegações da A., o que dita, desde logo, o indeferimento do seu requerimento, por extemporaneidade. Com efeito, o art. 651.º n.º 1 do Código de Processo Civil é bem claro: as partes podem juntar documentos às respectivas alegações, não em momento posterior.
De todo o modo, mesmo que tais documentos tivessem sido juntos pela Ré com as suas alegações, sempre deveriam ser rejeitados, pois nem são supervenientes nem a sua necessidade resulta de qualquer novidade ou imprevisibilidade da sentença proferida na 1.ª instância.
Com efeito, os documentos que a Ré ofereceu agora existem desde Dezembro de 2015 e estavam arquivados no seu sistema de arquivo documental. Logo, não são supervenientes do ponto de vista objectivo, e também não o são do ponto de vista subjectivo: tais documentos estavam arquivados no seu próprio sistema, e se só agora os encontrou, sibi imputat, se usasse de normal diligência em defesa dos seus interesses, tinha a obrigação de os obter e juntar logo com os articulados.
Finalmente, quanto ao requerimento de notificação da A. para juntar certo requerimento, é igualmente extemporâneo, pois o prazo é com o respectivo articulado – art. 423.º n.º 1 do Código de Processo Civil e art. 63.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho – não sendo admissível tal produção de prova já em sede de recurso. Decide-se, pois, indeferir o requerimento avulso de junção de documentos e notificação para a parte contrária juntar outro, deduzido pela Ré em 29.05.2023.
***
Impugnação da matéria de facto
(…)
Em resumo, a impugnação da matéria de facto deduzida pela Ré vai julgada totalmente improcedente.
***
A matéria de facto provada fixa-se assim nos precisos termos que constam da sentença recorrida:
1. A A. foi admitida para trabalhar por conta e sob a direcção da Ré em 2 de Janeiro de 1990.
2. Presentemente tem a categoria profissional de Técnica de Informação e Relações Públicas (TIRP).
3. A A. é sócia do SITAVA – Sindicato dos Trabalhadores da Aviação e Aeroportos.
4. A relação de trabalho da A. e Ré é regulada pelo acordo de empresa celebrado entre o SITAVA e a ANA, publicado no BTE 1.ª Série n.º 17, de 08 de Maio de 2015.
5. Em Janeiro de 2016 a A. tinha a categoria de Técnico Informação e Relações Públicas, nível de maturidade II, R13, auferindo a retribuição mínima mensal de € 1.780,32.
6. Em Janeiro de 2016 a A. auferia ainda subsídio de chefia no valor de € 106,82.
7. Desde a admissão que a A. vinha exercendo as funções na categoria em que foi sendo enquadrada no serviço de informação e apoio ao passageiro (AFIA) no aeroporto de Faro, sujeita a regime de turnos.
8. Por isso a A. auferia subsídio de turno que, em Janeiro de 2016, se cifrava em € 367,28.
9. Em 23 de Fevereiro de 2016 a A., sob proposta do Director do aeroporto e de parecer prévio da Direcção de recursos humanos, foi nomeada pela Ré para as funções de Coordenadora da área funcional de informação de apoio ao passageiro do Aeroporto de Faro – AFR.
10. Em 23 de Fevereiro de 2016, A. e Ré subscreveram acordo que denominaram de “Acordo de isenção de horário” declarando que “(…) a segunda contraente exerce as funções de supervisão técnico-operacional na área funcional de informação e apoio ao passageiro, na direcção do aeroporto de Faro (DAFR) (…) é previsível a ocorrência de situações em que se verifique a necessidade de execução de trabalhos que, pela sua natureza só possam ser efectuados fora dos limites do horário de trabalho; É celebrado o presente acordo relativo à prestação de trabalho em regime de isenção de horário de trabalho (…) na modalidade de não sujeição aos limites máximos dos períodos normais de trabalho, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art. 219.º da Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro (…). À segunda contraente é atribuído, no exercício efectivo das respectivas funções, um subsídio de isenção de horário de trabalho no valor de 22% da sua remuneração mensal mínima (…) de € 2.100,64 a que corresponde um subsídio mensal de isenção de horário de trabalho de € 462,14 (…).”
11. O serviço de informação e apoio ao passageiro (AFIA) no aeroporto de Faro funciona organizado em regime de turnos das 06 às 24h, com escalas.
12. A partir daquela nomeação a A. passou a ser enquadrada pela Ré no nível remuneratório R15, cabendo-lhe uma remuneração mínima mensal de € 2.100,64.
13. A partir da nomeação a A. deixou de fazer turnos.
14. Em Fevereiro de 2016 a R. pagou à A. € 367,28 a título de subsídio de turno, mas no mês de Março de 2016 descontou a este título a quantia de € 97,94, correspondente ao número de dias de Fevereiro de 2016 após a sua nomeação.
15. Após a Ré não mais pagou à A. subsídio de turno.
16. Em 7 de Novembro de 2017 a A. remeteu à Ré o escrito de fls. 20 que aqui se reproduz.
17. Em 14 de Novembro de 2017 a Ré respondeu à A. conforme escrito de fls. 21 que se reproduz.
18. A A. não deu o seu assentimento a que a Ré lhe retirasse o subsídio de turno.
19. Em 13.04.2020 a A. aderiu à redução do PNT 80% e, posteriormente efectuou novo acordo de redução ente 13/07 e 31.12.2020.
APLICANDO O DIREITO Da cláusula 75.ª n.º 5 do Acordo de Empresa
Está em causa a interpretação e aplicação da cláusula 75.ª n.º 5 do Acordo de Empresa (AE) da Ré, publicado no BTE n.º 17/2015.
Pelo seu interesse, aqui se transcreve essa cláusula: “5- Os trabalhadores que tenham estado sujeitos ao regime por turnos, e que por qualquer razão deixem de o estar, manterão o direito ao respectivo subsídio nas seguintes condições: a) Com mais de 5 anos de serviço e menos de 20 naquele regime: o valor do subsídio de turno auferido nessa data, o qual será reabsorvível por futuras progressões profissionais e aumentos salariais, reabsorção esta que será, em cada momento, até ao limite máximo de 50% do respectivo aumento; b) Com 20 ou mais anos de serviço naquele regime: o valor do subsídio auferido nessa data, valor esse que não será passível de sofrer os aumentos da tabela salarial.”
A trabalhadora esteve em regime de horário por turnos desde a sua admissão, em Janeiro de 1990, e até 23.02.2016, ou seja, durante mais de 26 anos.
Em Janeiro de 2016 auferia pelo nível R13, auferindo a retribuição mensal de € 1.780,32, a que acrescia subsídio de chefia no valor de € 106,82, e subsídio de turno no valor de € 367,28.
Em 23.02.2016 foi nomeada pela Ré para as funções de coordenadora da área funcional de informação de apoio ao passageiro do aeroporto de Faro, deixando de trabalhar por turnos. Nesta data foi enquadrada no nível remuneratório R15, cabendo-lhe a remuneração mensal de € 2.100,64, e celebrou um acordo de isenção de horário de trabalho, auferindo a esse título um subsídio no valor de € 462,14.
A Ré entende que a A. não tem direito a manter o subsídio de turno ao abrigo da cláusula 75.ª n.º 5 al. b) do AE, argumentando, no essencial, que a atribuição de tal prestação não é automática e não ocorre apenas em função da trabalhadora deixar de laborar por turnos. Defende a Ré que esta cláusula surge associada à diminuição de rendimento que representa a perda do subsídio de turno. Ademais, cessando a A. as funções de nomeação que actualmente desempenha, regressará ao regime de horário por turnos, retomando então o correspondente subsídio.
Diremos, no entanto, que a argumentação da Ré não tem suporte no texto da cláusula.
Desde logo, a utilização da expressão “por qualquer razão” implica desde logo a intenção de aplicar a referida cláusula a todos os trabalhadores que deixem de estar sujeitos ao regime por turnos, seja qual for o motivo, e independentemente de outras condicionantes, como uma eventual progressão salarial, ou o desempenho temporário e reversível de outras funções, por nomeação expressa do conselho de administração – como previsto na cláusula 77.ª do AE.
De resto, a diferença de regimes das duas alíneas da referida cláusula 75.ª n.º 5 indica que uma eventual progressão salarial não constitui obstáculo à aplicação do seu regime. Com efeito, os trabalhadores que estiveram entre 5 anos e menos de 20 no regime turnos, mantêm o valor do subsídio de turno, mas este é reabsorvido por futuras progressões profissionais e aumentos salariais, até ao limite máximo de 50% do respectivo aumento; mas no caso dos trabalhadores que estiveram 20 ou mais anos de serviço naquele regime, nem essa reabsorção tem lugar, pois mantêm o valor do subsídio auferido, que apenas deixa de ser passível de sofrer os aumentos da tabela salarial.
Acompanhamos, pois, plenamente a sentença quando escreve: «(…) ainda que não se olvide que, muitas vezes, a alteração daquele modo de prestação da actividade (por turnos) acarreta repercussões financeiras, em sede de interpretação não se pode considerar o que na letra da lei não tenha o mínimo de correspondência e, tendo presente tal premissa, a letra do n.º 5 da cláusula 75.ª, a nosso ver, não autoriza a conclusão de que o mesmo vise acautelar a diminuição de rendimentos do trabalhador, o que sempre demandaria uma análise casuística da situação, análise que por aquela letra não está minimamente legitimada. E não permite também considerar que a sua aplicação depende do carácter irreversível da alteração do modo de prestação do trabalho ou sequer que se exige estar-se perante alteração alheia à vontade do trabalhador. Em face do que se vem afirmando, estando o n.º 5 da cláusula 75.ª inserido em cláusula (a 75ª) que versa sobre a atribuição de subsídio de turno que, como já dissemos, tem subjacente a compensação pelo maior desgaste associado a tal forma de prestação de trabalho, exigindo-se que, para a sua aplicação, os trabalhadores tenham estado sujeitos ao regime por turnos durante mais de 20 anos, estamos em crer que a razão de ser primacial de tal norma é, indubitavelmente, o maior desgaste que dele decorreu, mantendo-se aquela compensação, desta feita pelo trabalho que se prestou (durante 20 anos) e não pelo que se presta, seja qual for a razão porque o trabalho deixou de ser prestado por turnos, abrangendo-se desta forma mais situações do que as plasmadas nos n.ºs 3 e 4 da mesma cláusula, que versam sobre impedimento decorrente de razões de saúde e cuja previsão, a nosso ver, não constitui óbice àquela conclusão, porquanto, por um lado, as razões de saúde aí previstas não têm que decorrer da prestação do trabalho por turnos e, por outro, porque ninguém dúvida que a prestação de trabalho por turnos durante mais de 20 anos acarreta desgaste físico, nem sempre impeditivo do trabalho mas condicionante, a longo prazo, da qualidade de vida.»
Porque subscrevemos integralmente esta fundamentação, improcede nesta parte a argumentação da Ré.
Do abuso de direito
Entende a Recorrente que a trabalhadora age em abuso de direito, alegando que esta conhecia e aceitou as condições que a empregadora exigiu para o desempenho das novas funções a partir de 23.02.2016, e que desde então exerceu a sua prestação laboral, em cargo de nomeação pelo conselho de administração, aceitando não auferir o subsídio de turno.
Face ao art. 334.º do Código Civil, para que o exercício do direito seja considerado abusivo, exige-se que o titular exceda de forma manifesta e clamorosa os limites que lhe cumpre observar, impostos quer pelo princípio da tutela da confiança (boa-fé), quer pelos padrões morais de convivência social (bons costumes), quer pelo fim económico ou social que justifica a existência desse direito, de tal modo que o excesso, à luz do sentimento jurídico socialmente dominante, conduz a uma situação de flagrante injustiça.
No entender de Antunes Varela, para determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade; quando esses limites decorrem do fim económico e social do direito impõe-se apelar para os juízos de valor positivo consagrados na própria lei.[8]
A aplicação do instituto do abuso de direito, como forma de paralisação de uma declaração de nulidade, reveste carácter excepcional, exigindo-se sempre uma actuação intoleravelmente ofensiva do sentimento ético-jurídico dominante.
Ponderando estes princípios, não está demonstrando que a A. conhecia a intenção da Ré de não lhe pagar o subsídio de turno, ou sequer que tenha concordado em renunciar ao seu pagamento. Muito pelo contrário, o comportamento da A., reclamando o pagamento do subsídio de turno logo em Novembro de 2017 – atempadamente, note-se, e a Ré nem sequer questiona a prescrição desse direito – demonstra o seu não conformismo com a perda da prestação que lhe era garantida pela cláusula 75.ª n.º 5 do AE.
Acresce que a aludida prestação resulta de um instrumento de regulamentação colectiva do trabalho, cujo clausulado só pode ser afastado pelo contrato de trabalho quando este estabeleça condições mais favoráveis para a trabalhadora – art. 476.º do Código do Trabalho.
Como se escreveu no Acórdão da Relação do Porto de 10.09.2018, «estando (…) em causa a aplicação de princípio plasmado na lei, assim o disposto no artigo 476.º do CT, que impõe o primado de que as disposições de instrumento de regulamentação colectiva de trabalho só podem ser afastadas quando se trate de estabelecer condições mais favoráveis para o trabalhador, impõe-se o nesse estabelecido, independentemente pois de qualquer eventual acordo anterior em contrário celebrado entre as partes, sem que se possa dizer que ocorre abuso de direito, na modalidade venire contra factum proprium.»[9]
Logo, qualquer acordo que eventualmente se pudesse entender ter ocorrido nas relações estabelecidas entre as partes, jamais poderia afastar a aplicação da cláusula 75.ª n.º 5 do AE, face ao primado deste instrumento de regulamentação colectiva.
Resta assim confirmar a muito bem elaborada sentença recorrida.
DECISÃO
Destarte, decide-se:
a) indeferir o requerimento avulso de junção de documentos e notificação para a parte contrária juntar outro, deduzido pela Ré em 29.05.2023; e,
b) negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Taxa de justiça a cargo da Ré, devida pelo incidente de junção de documentos: 5 UC – art. 7.º n.º 4 do RCP.
As custas da acção e do recurso pela Recorrente.
Évora, 23 de Novembro de 2023
Mário Branco Coelho (relator) Paula do Paço Emília Ramos Costa
__________________________________________________
[1] Neste sentido, vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.04.2019 (Proc. 22946/11.0T2SNT-A.L1.S2), disponível em www.dgsi.pt.
[2] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.04.2019, identificado na nota anterior.
[3] Acórdão da Relação de Coimbra de 18.11.2014 (Proc. 628/13.9TBGRD.C1), ainda em www.dgsi.pt.
[4] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.06.2000, CJ II-131, e Acórdão do Tribunal de Coimbra de 11.01.1994, CJ I-16.
[5] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.03.1989, in BMJ 385-545 e da Relação de Guimarães de 27.02.2014 (Proc. 323/12.6TBFLG-E.G1), também em www.dgsi.pt.
[6] Identificado na nota 2.
[7] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3.ª ed., Almedina, 2016, págs. 203-204.
[8] Das Obrigações em Geral, vol. I, 10.ª ed., 2000, pág. 546.
[9] Proc. 14891/15.7T8PRT.P1, publicado em www.dgsi.pt.