ACIDENTE DE TRABALHO
TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO
FALTA DE ACORDO
FASE CONCILIATÓRIA
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA NO TRABALHO
DIREITOS INDISPONÍVEIS
Sumário


1. Se na tentativa de conciliação, para a qual foram convocados apenas o sinistrado e a seguradora, esta declarar que não se concilia por, entre outros motivos, o acidente se ficar a dever à inobservância das regras de segurança por parte da empregadora, não pode o Magistrado do Ministério Público dar por encerrada a fase conciliatória.
2. Deve, antes do mais, proceder à devida averiguação das circunstâncias em que ocorreu o acidente, solicitando o competente inquérito à ACT, assim permitindo a todos os intervenientes melhor tomarem posição na tentativa de conciliação acerca das matérias sobre as quais ali se devem pronunciar, com o devido conhecimento dos factos relevantes a essa tomada de posição.
3. Deve, depois, designar nova tentativa de conciliação, desta vez com a participação da empregadora.
4. Havendo desacordo quanto à responsabilidade da empregadora por violação das regras de segurança, não pode o juiz proferir sentença nos termos do art. 138.º n.º 2 do Código de Processo do Trabalho, pois a discordância não se resume à questão da incapacidade.
5. Os direitos do sinistrado por actuação culposa da empregadora não são renunciáveis.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral


Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo do Trabalho de Portimão, foi participado acidente de trabalho sofrido em 07.04.2021 por AA, quando exercia as funções de ajudante de instalador de ar condicionado, sob as ordens e direcção de Greenclima – Instalações Técnicas, Unipessoal, Lda., a qual havia transferido sua responsabilidade infortunística para Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A..
Na fase conciliatória, não foi realizada qualquer diligência ou inquérito acerca das circunstâncias em que ocorreu o acidente, constando dos autos apenas a informação inscrita na participação inicial.
Realizado exame médico singular, foi designada data para a tentativa de conciliação, para a qual foram convocados o sinistrado e a seguradora.
Nesta, o Digno Magistrado do Ministério Público, após ter confirmado que o sinistrado estava parcialmente pago da indemnização devida por incapacidades temporárias, propôs que a seguradora pagasse o capital de remição calculado em função da IPP que o afectava, e do remanescente devido por incapacidades temporárias.
O sinistrado declarou que aceitava o acordo proposto pelo Ministério Público.
A seguradora, por seu turno, declarou o seguinte:
«…reconhece a existência e caracterização do evento a que os autos se reportam: “acidente de trabalho ocorrido em Lagos, no dia 07-04-2021, em consequência do qual o sinistrado sofreu traumatismo do punho esquerdo provocado pela lâmina de uma máquina rebarbadora, quando procedia ao corte de um varão metálico”, assim como reconhece que nessa data a responsabilidade infortunística da entidade empregadora, relativamente ao sinistrado, se encontrava para si transferida pelo valor de uma retribuição anual de € 10744,34 [(€ 685,00 x 14) + (€ 104,94 x 11)], mas não concorda com o resultado da perícia médico-legal, designadamente no que respeita aos períodos, natureza e grau das incapacidades, e ao nexo causal entre o acidente e as lesões, considerados pelo perito médico-legal, e entende que o acidente se deveu à inobservância das regras de segurança por parte da entidade empregadora, motivos pelos quais não aceita o acordo proposto pelo Magistrado do Ministério Público.»
O Magistrado do Ministério Público declarou assim as partes não conciliadas e determinou a devolução dos autos.
Recebidos os autos na secretaria judicial, com o Ministério Público a assumir o patrocínio do sinistrado, o Mm.º Juiz a quo proferiu o seguinte despacho:
«De notar que ambas as partes estão de acordo na existência de um acidente de trabalho. A alegação da seguradora (de que o acidente se ficou a dever a culpa da entidade empregadora) não afasta a sua responsabilidade e apenas poderia servir ao sinistrado (que, no entanto, não manifestou essa posição).
Não existem, por isso, razões para que se aguarde por uma petição inicial.
Por outro lado, discordou a seguradora do resultado da perícia, mas não veio requerer, no prazo legal, a submissão do sinistrado a novo exame por junta médica.
Segue, por isso, sentença.»
E de imediato proferiu sentença, invocando a norma do art. 138.º n.º 2, segunda parte, do Código de Processo do Trabalho, condenando a seguradora no remanescente de incapacidades temporárias e no capital de remição calculado de acordo com a retribuição e a IPP atribuída na fase conciliatória.

Eis a sentença da qual a seguradora recorre, concluindo:
I. A Douta Sentença violou o disposto nos artigos 8º, 14º, 18º e 79º da Lei nº 98/2009 de 04/09 e artigo 607º e artigo 615º do Código de Processo Civil e artigos 112º e 131º do Código de Processo de Trabalho, pelo que, merece reparo, a bem da justiça.
II. A Douta Sentença não descreve a “forma como o acidente ocorreu”.
III. Nem o auto de Tentativa de (não) Conciliação, consta a forma como o acidente ocorreu.
IV. Daí ser irrelevante a consideração /conclusão de direito constante do Auto, de que se trata de um “acidente de trabalho”.
V. No Auto de Tentativa de (não) Conciliação, faltam factos essenciais para que a ora constante se possa pronunciar (aceitando ou não), nomeadamente quanto a:
a) Eventual descaracterização do acidente de trabalho, ao abrigo do disposto no artigo 14º da Lei de Acidentes de Trabalho;
b) Eventuais consequências ao abrigo do disposto nos artigos 18º e 79º da Lei de Acidentes de Trabalho.
VI. Nomeadamente:
a) A hora da ocorrência;
b) O local preciso da ocorrência;
c) O tipo de tarefa que o sinistrado executava;
d) As características do “varão metálico”;
e) Qual a “extensão do varão metálico”;
f) Qual o equipamento /utensílio utilizado pelo sinistrado no “corte do varão metálico”;
g) O modo como o “corte do varão metálico” era efectuado;
h) Se existia ou não “barra de estabilização do “varão metálico em corte” ou qualquer outro mecanismo para segurar a peça em corte;
i) As medidas de protecção utilizadas pelo sinistrado, no “corte do varão metálico”;
j) A falta ou inobservância das condições de segurança, pelo empregador no “corte do varão metálico”;
Termos em que,
Deve ser dado provimento ao recurso interposto, anulando-se a Sentença, e, por consequência que os autos voltem à fase graciosa a fim de proceder a nova Tentativa de Conciliação.

A resposta sustenta a manutenção do julgado.
Cumpre-nos decidir.
A matéria de facto relevante à decisão é a descrita no relatório.

APLICANDO O DIREITO
Dos intervenientes que devem participar na tentativa de conciliação
A fase conciliatória do processo emergente de acidente de trabalho é dirigida pelo Ministério Público, inicia-se com a participação do acidente – art. 99.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho – e conclui-se com a tentativa de conciliação, na qual participam o sinistrado ou os seus beneficiários legais, e as entidades empregadoras ou seguradoras, conforme os elementos constantes da participação – art. 108.º n.º 1 do mesmo diploma.
Caso as declarações prestadas na tentativa de conciliação revelem a necessidade de convocação de outras entidades, o Ministério Público deve designar data para nova tentativa – art. 108.º n.º 2 do Código de Processo do Trabalho.
Note-se que o objectivo da tentativa de conciliação é a promoção pelo Ministério Público de um acordo, do qual deve constar a identificação completa dos intervenientes, a indicação precisa dos direitos e obrigações que lhes são atribuídos e ainda a descrição pormenorizada do acidente e dos factos que servem de fundamento aos referidos direitos e obrigações – arts. 109.º e 111.º do Código de Processo do Trabalho.
Na falta de acordo, devem ser consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída – art. 112.º n.º 1 do mesmo diploma.
Como vem sendo repetidamente afirmado na jurisprudência, desta norma resulta que, frustrando-se a tentativa de conciliação, as partes devem pronunciar-se sobre as matérias ali consignadas, de modo a delimitar o objecto do litígio a dirimir na fase contenciosa, e sobre as matérias em que ocorreu acordo já não será possível renovar a sua discussão na fase contenciosa, por assim ficarem retiradas do objecto do litígio.[1]
Ora, no caso não houve acordo por três motivos:
1.º a seguradora discordou do resultado da perícia médico-legal, designadamente no que respeita aos períodos, natureza e grau das incapacidades;
2.º a seguradora também não aceitou o nexo causal entre o acidente e as lesões, considerados pelo perito médico-legal; e,
3.º a seguradora entendeu que o acidente se devia à inobservância das regras de segurança por parte da entidade empregadora.
Tendo o Magistrado do Ministério Público verificado que o desacordo incidia não apenas sobre a incapacidade e sobre o nexo causal entre o acidente e as lesões, mas também sobre a responsabilidade da empregadora – que não havia sido convocada, sequer, para a tentativa de conciliação – deveria ter adoptado outro procedimento: primeiro, averiguar com maior pormenor as circunstâncias do acidente, para se apurar da eventual falta de observância das condições de segurança ou de saúde no trabalho, solicitando o competente inquérito à ACT, como decorre do art. 104.º n.º 2 al. c) do Código de Processo do Trabalho (assim permitindo a todos os intervenientes melhor tomarem posição na tentativa de conciliação acerca das matérias sobre as quais ali se devem pronunciar, com o devido conhecimento dos factos relevantes a essa tomada de posição); segundo, convocar nova tentativa de conciliação, desta vez com a presença da empregadora, como imposto pelo art. 108.º n.º 2.
Note-se que não se pode aceitar o argumento dos direitos do sinistrado, resultantes da violação de regras de segurança por parte da sua entidade patronal, serem renunciáveis, como parece resultar da decisão recorrida. Não o são, como proclama o art. 78.º da LAT, e há a recordar que o sinistrado tem direito ao ressarcimento da totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, em caso de actuação culposa do empregador – art. 18.º n.ºs 1 e 4 da LAT.
A circunstância do sinistrado não ter proposto a petição inicial não significa, por modo algum, que tenha renunciado ao direito de exercer os direitos previstos no referido art. 18.º da LAT, tanto mais que a falta de propositura da acção no prazo de 20 dias implica, tão só, a suspensão da instância, podendo o sinistrado propor a petição logo que tenha reunido os elementos necessários – art. 119.º n.º 4 do Código de Processo do Trabalho.
Por outro lado, a também a seguradora tem interesse em ver resolvida a questão do eventual exercício do direito de regresso contra o empregador – art. 79.º n.º 3 da LAT – e pode suscitar na contestação a questão da entidade responsável, como permitido pelo art. 129.º n.º 1 al. b) do Código de Processo do Trabalho.
Em resumo, não podia o Mm.º Juiz a quo aplicar a norma do art. 138.º n.º 2 do Código de Processo do Trabalho, pois o desacordo não era apenas sobre a questão da incapacidade, como em bom rigor a fase conciliatória não havia sido devidamente instruída nem concluída com a intervenção de todas as pessoas que nela deveriam intervir, neste caso, a empregadora, a quem se imputou a violação de regras de segurança, do que poderá resultar a sua responsabilidade agravada.
Será, pois, a sentença revogada, e os autos devolvidos ao Ministério Público, para devida instrução e conclusão da fase conciliatória.

DECISÃO
Destarte, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida e determina-se a devolução dos autos ao Ministério Público, para:
a) requisição de inquérito à ACT sobre as circunstâncias em que ocorreu o acidente, nomeadamente se resultou da falta de observância das condições de segurança ou de saúde no trabalho – art. 104.º n.º 2 al. c) do Código de Processo do Trabalho; e,
b) realização de nova tentativa de conciliação, desta vez com a intervenção da entidade empregadora – art. 108.º n.º 2 do mesmo diploma.

O sinistrado está isento de custas – art. 4.º n.º 1 al. h) do RCP.

Évora, 23 de Novembro de 2023

Mário Branco Coelho (relator)
Paula do Paço
Emília Ramos Costa

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[1] Neste sentido, vide os Acórdãos da Relação do Porto de 16.12.2015 (Proc. 19/14.4TUVNG.P1), da Relação de Coimbra de 25.10.2019 (Proc. 5068/17.8T8LRA-A.C1), e desta Relação de Évora de 26.10.2017 (Proc. 176/14.0TTLRA.E1), de 13.05.2021 (Proc. 1539/15.9T8EVR.E3) e de 14.09.2023 (Proc. 383/21.9T8STR-B.E1), todos publicados em www.dgsi.pt.