SEGURO DO RAMO DE VIDA
EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA
EXECUTADO
FALECIMENTO DE PARTE
EMBARGOS DE EXECUTADO
ABUSO DE DIREITO
Sumário


1 – Para que existisse abuso de direito por parte do banco/exequente que intentou execução para pagamento das quantias devidas por um determinado devedor/mutuário, já falecido aquando da entrada da execução, e sem antes accionar o seguro de vida que garantia esses créditos, seria necessário demonstrar antes do mais que o banco ao instaurar a execução já tinha conhecimento do falecimento do mutuário.
2 – Sem que se demonstre o prévio conhecimento do óbito não é possível censurar o normal exercício do direito de acção, tal como não se pode estranhar a falta de accionamento da seguradora, cuja responsabilidade pelos débitos sempre dependeria da verificação do evento coberto pelo seguro.
3 - A procedência de uma eventual excepção de abuso de direito, v. g. invocada em embargos de executado, tornaria inexigível todo o crédito exequendo, com a consequente extinção da totalidade da execução fundada no contrato de mútuo.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral


ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO
A exequente Caixa Geral de Depósitos instaurou execução sumária para pagamento da quantia certa contra AA, BB e CC, com base em escritura pública outorgada pela exequente e pelos executados, o primeiro na qualidade de mutuário e os segundos como fiadores.
No decurso do processo veio a verificar-se que AA tinha falecido, em momento anterior à propositura deste, pelo que a exequente promoveu incidente de habilitação de herdeiros no qual houve decisão de habilitação dos sucessores do falecido, sendo julgados habilitados os seus filhos, DD e EE, ambos menores e representados nos autos pelas respectivas progenitoras.
Na sequência dessa habilitação prosseguiram os autos os seus termos, nomeadamente com a citação para a causa dos sucessores habilitados.
Nunca foram deduzidos embargos de executado, nem oposição à penhora (encontra-se penhorado um imóvel que por hipoteca garantia os débitos exequendos).
Porém, através de requerimento entrado a 17-02-2022, veio a executada, EE invocar a existência de um seguro de vida a favor da exequente Caixa Geral de Depósitos, SA, que esta teria omitido, concluindo pela inexigibilidade da quantia exequenda e requerendo a suspensão da instância e da penhora “pelo tempo que se julgar necessário à apreciação do Seguro de Vida do Mutuário falecido”.
Em face desse requerimento, o juiz do processo entendeu que se perfilava uma possível situação de abuso de direito, que conduziria à suspensão da instância, e convidou as partes a pronunciar-se sobre esta matéria.
A exequente respondeu que aquilo que é alegado no requerimento da executada constitui matéria de embargos de executado, e que a executada foi citada para a execução a 14-12-2020, pelo que terminara há muito o prazo para dedução de embargos quando foi apresentado o requerimento em questão.
Decidindo, em despacho de 24-10-2022, o julgador veio a considerar que “a situação em causa configura efectivamente uma situação de abuso de direito, por violação da regra da conduta da boa-fé objectiva, tendo em conta que o banco exequendo, tomador e beneficiário no âmbito do contrato de seguro em causa, poderia e deveria ter-se dirigido, em primeiro lugar, à entidade seguradora para, junto dela, reclamar o capital em dívida.
E com base nesse considerando decidiu a “suspensão da instância quanto aos executados EE e DD, habilitados na sequência do falecimento de AA, mormente no que à venda do imóvel Fração Autónoma designada pela Letra “R”, destinada a habitação, que faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., em Elvas, descrito na Conservatória do Registo Predial de Elvas sob o número ...49, e inscrito na respectiva matriz predial urbana ...84, penhorado nos presentes autos, até que a exequente demonstre a impossibilidade de cobrança do crédito em causa junto da Companhia de Seguros Fidelidade, S.A., tudo sem prejuízo do disposto no art. 281.º, n.º 5, do C.P.C.

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II – DA APELAÇÃO
Não se conformando com o decidido, a exequente intentou então o presente recurso de apelação, apresentando as suas alegações, que terminou com as seguintes conclusões:
a) A 24-04-2020, a Recorrente instaurou acção executiva para pagamento de quantia certa contra AA e outros, consequência do incumprimento de um contrato de mútuo com hipoteca e fiança, no qual AA outorgou como mutuário;
b) O Executado AA faleceu no dia .../.../2019;
c) A Recorrente teve conhecimento do óbito na pendência da acção executiva, por comunicação da Agente de Execução datada de 13-08-2020;
d) A Recorrente deduziu incidente de habilitação de herdeiros por falecimento do Executado AA contra DD e EE, solteira, menor, legalmente representada por FF;
e) A Recorrente obteve a informação dos herdeiros, através do assento de óbito do Executado, do qual consta que foi efectuada escritura de habilitação de herdeiros, tendo-a solicitado ao cartório notarial competente;
f) As legais representantes dos menores não deduziram oposição ao incidente de habilitação de herdeiros;
g) Consequentemente, a 25-11-2020, foi proferida sentença, a qual julgou totalmente procedente o incidente de habilitação de herdeiros e habilitou os Requeridos DD e EE, para em substituição do Executado AA prosseguirem os termos da execução na qualidade de sucessores daquele;
h) A Executada EE é menor, foi citada para a execução na pessoa da sua legal representante, a mãe, FF, cujo aviso de recepção foi assinado por esta última a 14-12-2020;
i) Não foram apresentados Embargos à Execução ou à penhora;
j) Por Requerimento de 17-02-2022, veio a Executada EE, em suma, invocar a existência de um seguro de vida a favor da Caixa Geral de Depósitos, SA, concluindo pela inexigibilidade da quantia exequenda;
k) A Recorrente alegou que tudo quanto é alegado no Requerimento da Executada datado de 17-02-2022, constitui matéria de Embargos de Executado e que há muito que havia terminado o prazo para dedução de Embargos de Executado;
l) Pugnou assim a ora Recorrente pelo indeferimento daquele Requerimento nos termos do artigo 732º n.º 1 alínea b) do Código de Processo Civil;
m) Até à presente data, nunca o Tribunal a quo se pronunciou quanto à extemporaneidade do requerimento da Executada de 17-02-2022;
n) Por despacho datado de 24-10-2022, o Tribunal a quo considerou que a Recorrente agiu em abuso de direito ao não ter tentado obter o pagamento junto da seguradora, com fundamento em óbito do executado e, consequentemente, suspendeu a execução;
o) Com o argumento de que, em causa nos presentes autos, está um contrato de seguro vida e que a seguradora devia ter sido interpelada para pagar o capital em dívida à data do óbito;
p) Ónus que fez impender sobre a ora Recorrente, beneficiária da prestação da seguradora ou tomador do seguro;
q) No caso dos autos o óbito do executado nunca foi comunicado ao banco mutuante pelos seus herdeiros, facto ignorado pelo Tribunal a quo;
r) Ignorou ademais o douto Tribunal a quo que, a seguradora, veio aos autos informar que o contrato de seguro foi anulado no dia 1 de março de 2019 por falta de pagamento;
s) Era assim de presumir que, em Agosto de 2020, quando o Exequente cuidou de deduzir o competente Incidente de Habilitação de Herdeiros do executado falecido, há muito que o seguro se encontraria caducado por falta de pagamento do respectivo prémio;
t) Não resulta minimamente demonstrado que a executada haja sequer indagado junto do banco/exequente pela comunicação do óbito do mutuário ou da possibilidade de accionamento do seguro, ou que essa possibilidade haja sido negada pelo banco exequente;
u) A Executada reconhece, no s/ Requerimento datado de 26-08-2022 que a obtenção de documentos se tornou “manifestamente impossível, pelo facto da referida FF não ter qualquer grau de parentesco com o falecido” não obstante a existência de habilitação de herdeiros, junta aos autos;
v) A douta decisão a quo nos moldes em que foi proferida encontra-se, pois, ferida das nulidades previstas no artigo 615.º n.º 1 alíneas b) e c) do CPC, ex vi artigo 607.º do CPC porquanto não só não especifica os fundamentos de facto - os fundamentos que apresentam não fundamentam o sentido da decisão - que justificam a decisão como os fundamentos estão em oposição à decisão proferida;
w) Caso assim se não entenda, o que apenas por hipótese se equaciona, sempre a douta decisão sob recurso padece de manifesto e grosseiro erro de julgamento;
x) De forma absolutamente infundada e inexplicável, o douto Tribunal a quo decidiu fustigar a Recorrente, tomando as dores da Executada, exonerando -a, sem mais, de toda e qualquer responsabilidade quanto ao accionamento de um seguro que, verdadeiramente, só a ela realmente beneficiava;
y) Já que é aos herdeiros que compete despoletar os trâmites junto da seguradora;
z) Acresce que, tendo a Executada tido oportunidade de demonstrar a alegada conduta abusiva da Recorrente – designadamente que, tendo-lhe oportunamente comunicado o óbito de seu pai e solicitado o accionamento do seguro de vida, esta voluntariamente recusou fazê-lo /optou por não o fazer – nada provaram.
aa) Para merecer acolhimento o julgamento feito pelo Mmo Juiz a quo teria que ter resultado, no mínimo, provada tal factualidade;
bb) O que, manifestamente, não sucedeu;
cc) Entre o óbito do executado e o chamamento dos herdeiros à acção, inexiste qualquer conduta abusiva por parte da Recorrente, mas, pelo contrário, o exercício legítimo do direito em ver ressarcido o seu crédito, por via, dos bens que o garantem;
dd) Mostrando-se a dívida exequenda plenamente exigível nos exactos termos e pelo montante peticionado em sede de requerimento executivo;
ee) Em todo o caso, o mero facto de existir um seguro de protecção do crédito individual, não exonerava, por si só, os devedores do pagamento da dívida;
ff) A existir, a ser válido e eficaz, o contrato de seguro dos autos sempre consubstanciaria um contrato a favor de terceiro (nos termos do artigo 443º, nº 1, do Código Civil) e teria uma natureza comercial;
gg) Pelo que, os mutuários / devedores e a Companhia de Seguros Fidelidade, seriam solidariamente responsáveis no pagamento da dívida ao Exequente (cfr. art.º 100.º do Código Comercial);
hh) O que significa que, nos termos do artigo 519.º do Código Civil, sempre assistiria ao Exequente o direito de exigir junto dos mesmos a quantia exequenda – não lhe sendo exigível o accionamento da Seguradora;
ii) Face ao supra exposto resulta evidente que a aqui Exequente pautou a sua conduta pelos deveres de lealdade, correcção, prudência e cuidado não agindo em momento algum com intenção maliciosa (má fé em sentido psicológico) ou com leviandade ou imprudência (má fé em sentido ético) pelo que não se verifica no seu comportamento qualquer abuso de direito;
jj) Devendo a douta decisão a quo ser revogada por ter incorrido em manifesto erro de julgamento tendo feita errada interpretação e aplicação e assim violando o artigo 334.º 443º, nº 1, 519.º todos do Código Civil, artigo 100.º do Código Comercial e por manifesta omissão da aplicação do disposto no artigo 732º nº 1 alínea a) do Código de Processo Civil.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a douta decisão recorrida pois só assim será feita a acostumada justiça.
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III – DAS CONTRA-ALEGAÇÕES
Foram apresentadas contra-alegações pelo Ministério Público (a executada EE é menor), defendendo nestas a improcedência do recurso e a consequente confirmação da decisão impugnada.
Pela própria executada e recorrida também foram apresentadas contra-alegações, mas estas foram rejeitadas por extemporâneas.
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IV – DA MATÉRIA A CONSIDERAR
A factualidade considerada relevante para a decisão proferida, tendo em conta o que foi consignado no despacho impugnado, foi a seguinte:
(i) o falecido executado AA celebrou com a Companhia de Seguros Fidelidade S.A. um contrato de seguro do ramo vida, em 26-06-2005, no qual a exequente figura como tomadora, no âmbito e como pressuposto da contratualização do contrato de mútuo que constitui o título executivo subjacente à presente execução (cfr. informação da companhia de seguros em causa - ref.ª 2035959, e documento complementar ao contrato de mútuo que consubstancia o título executivo;
(ii) a companhia de seguros em causa pertencia ao grupo empresarial da exequente (conforme deflui do respectivo documento complementar, nomeadamente da redacção da cláusula 4.ª, n.º 2, al. b) - [O] referido spread foi atribuído tendo em conta a relação que a parte devedora vem mantendo com a credora e com empresas do Grupo Caixa, relevando para o efeito a detenção dos seguintes produtos e serviços bancários ou financeiros: (…) Seguro de vida»);
(iii) a exequente tinha conhecimento da celebração do referido ontrato de seguro aquando da instauração da presente execução (conforme o aludido documento complementar);
(iv) o primitivo executado AA faleceu em .../.../2019 (vide certidão de óbito junto aos autos);
(v) de acordo com o requerimento executivo, o falecido executado incorreu em incumprimento dos contratos celebrados com a exequente nos dias 01-04-2019 e 20-04-2019 (no mês subsequente ao seu falecimento;
(vi) a exequente teve conhecimento do óbito do primitivo executado (quanto mais não seja através do incidente de habilitação de herdeiros tramitado nos presentes autos); e
(vii) antes de instaurar a presente execução, a exequente não se dirigiu / interpelou / ou demandou a referida companhia de seguros (conforme resulta da posição assumida no requerimento de 05-09-2022 por esta apresentada nos autos).
Para efeitos de decisão do recurso, afigura-se ainda necessário ter em conta o que consta do relatório inicial, e a factualidade referida pela recorrente nas suas alegações relativa à tramitação processual, para a qual remetemos.
Além disso, aditamos ainda que consta dos autos desde 31-03-2022 informação da Companhia de Seguros Fidelidade, emitida a pedido do tribunal, na qual esta junta os elementos documentais relativos ao seguro de vida aludido, informando nomeadamente que o contrato foi celebrado em 20-06-2005 e foi anulado em 01-03-2019 por falta de pagamento de prémios (documentação que foi notificada às partes e não foi de nenhuma forma questionada).
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V – DO OBJECTO DO RECURSO
1 - Como é sabido, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC).
Sublinha-se ainda a este propósito que na sua tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC).
No caso presente, as questões colocadas ao tribunal de recurso, tendo em conta o conteúdo das conclusões que acima se transcreveram, traduz-se em apreciar se a decisão recorrida padece das nulidades previstas no artigo 615.º n.º 1 alíneas b) e c) do CPC, ex vi artigo 607.º do CPC, como defende a recorrente, e ainda, não se verificando tais nulidades, se incorreu em erro de direito ao declarar suspensa a instância com fundamento no apontado abuso de Direito.
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VI – FUNDAMENTAÇÃO
1 – DAS NULIDADES
Como se verifica da leitura das suas conclusões, a apelante sustenta em primeiro lugar que a decisão impugnada é nula, por o tribunal ter incorrido nas nulidades previstas no artigo 615.º n.º 1 alíneas b) e c) do CPC.
Resulta das disposições citadas que a decisão judicial padece de nulidade quando não especifica os fundamentos de facto e de direito que a justificam e quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Examinado o despacho recorrido, afigura-se que a recorrente não tem razão.
Não existem os apontados vícios de falta de fundamentação, nem os fundamentos utilizados estão em oposição com a decisão, nem esta sofre de ambiguidade alguma.
A decisão proferida foi a suspensão da instância, com base num apontado abuso de direito, e decorre claramente do raciocínio jurídico exposto para a sustentar.
Isso mesmo entendeu a recorrente, que não teve dificuldade em compreender a decisão, nem os fundamentos em que assentou, e logo apresentou a respectiva impugnação por via de recurso.
Diga-se, aliás, que se apresenta como incompatível dizer que a decisão não apresenta fundamentos e logo a seguir dizer que os fundamentos estão em contradição com a decisão.
Na realidade, e vistas as suas alegações, a recorrente vem alegar perante o tribunal superior que a decisão incorreu em erro de julgamento e deve ser revogada.
Portanto, não aponta um vício formal na decisão, alega em rigor que essa decisão está errada, considerando o Direito aplicável.
Ora isto, embora seja um equívoco frequente, não pode subsumir-se a uma nulidade.
Como tem sido repetidamente salientado, as nulidades da sentença são vícios intrínsecos da formação desta peça processual, previstos taxativamente no nº 1, do art. 615º, do CPC, correspondendo a vícios formais do silogismo judiciário relativos à harmonia formal entre premissas e conclusão, não podendo ser confundidas com eventuais erros de julgamento, de facto ou de direito.
Na realidade o art. 615º do Código de Processo Civil dispõe que é nula a sentença, nomeadamente, quando esta não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (alínea b) do n.º 1).
Porém, sempre tem sido entendido que o dever de fundamentação, causa de nulidade da sentença, diz respeito à falta absoluta de fundamentação.
Assim, a nulidade contemplada nesse preceito só ocorre quando não se especifiquem os fundamentos em que se funda a decisão, e explica-se por razões de ordem prática, uma vez que os sujeitos processuais necessitam conhecer os motivos da decisão, desde logo a fim de impugnar o respectivo fundamento, em caso de recurso.
A mera deficiência da fundamentação não integra a causa de nulidade da decisão prevista no artigo 615º, nº 1, al. b) do C.P.C.
Não é o caso da decisão recorrida. Esta, mesmo para quem dela discorda, indica suficientemente os fundamentos em que se apoia, de forma compreensível e impugnável pelos destinatários.
Não é possível confundir este vício com o eventual erro de julgamento, quanto aos factos ou quanto ao direito, e na verdade o que se encontra nas alegações da recorrente é a discordância em relação ao decidido.
De igual forma não é possível descortinar a nulidade prevista no segmento inicial da al. c) do nº. 1 do citado artº. 615º, a contradição entre os fundamentos e a decisão, pois esta só ocorre quando os fundamentos de facto e/ou de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão, existindo, pois, uma contradição entre as suas premissas e a decisão final.
E também não existe o vício de nulidade por ambiguidade ou obscuridade, previsto na segunda parte daquela mesma norma, já que este pressupõe ininteligibilidade de uma decisão, de forma que não seja possível com segurança determinar-se o sentido exato dessa decisão ou resposta.
Em conclusão, julgamos que a decisão recorrida não enferma de qualquer nulidade, restando analisar do invocado erro de julgamento que é o real fundamento do recurso interposto.
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2 – DO MÉRITO DA DECISÃO
A apelante sustenta, essencialmente, que não tem fundamento legal a decisão de suspender a instância assumida no despacho impugnado.
Desde logo, aponta a circunstância de tal decisão ter surgido na sequência de um requerimento da executada no qual esta veio invocar a existência de um seguro de vida a favor da exequente Caixa Geral de Depósitos, SA, que esta teria omitido, concluindo pela inexigibilidade da quantia exequenda e requerendo a suspensão da instância e da penhora “pelo tempo que se julgar necessário à apreciação do Seguro de Vida do Mutuário falecido”.
Ora, diz a exequente, esta alegação configura uma oposição à execução, que não foi apresentada pela via própria e em tempo oportuno.
Com efeito, nunca foram deduzidos embargos à execução, nem oposição à penhora, e o prazo para tal estava ultrapassado há muito.
Ora o art. 728º, n.º 1, do CPC, estipula que o executado pode opor-se à execução por embargos no prazo de 20 dias a contar da citação, e verifica-se que a citação da executada EE tinha ocorrido a 14-12-2020 e o requerimento referido deu entrada na execução a 17-02-2022.
Julgamos que a razão está do lado da exequente, e que efectivamente o teor do requerimento traduz uma oposição à execução (alega mesmo a inexigibilidade da quantia exequenda) e teria que constar do meio processual adequado.
Em face do disposto nos arts 729º, al. e), e 731º do CPC conclui-se que os fundamentos para a defesa do executado incluem nomeadamente a dita inexigibilidade e ainda quaisquer outros que possam ser invocados como defesa no processo de declaração (como é o caso sem dúvida do falado abuso de direito).
Desta forma, a executada só podia ter invocado esse fundamento para sua defesa no momento próprio e pelo meio processual adequado, sendo que por falta de preenchimento desses dois requisitos o requerimento apresentado na execução não podia ser atendido.
O julgador, no despacho recorrido, não entra na apreciação desta questão, mas pode deduzir-se que dela se apercebeu uma vez que enveredou decididamente por outro caminho.
Como pode ler-se no despacho em análise, “o Tribunal deverá conhecer oficiosamente da excepção peremptória imprópria do abuso de direito”.
E acrescenta que “o art. 734.º, n.º 1, do C.P.C., permite ao juiz «conhecer oficiosamente, até ao primeiro acto de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do art. 726.º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo» e segundo o “art. 726.º, n.º 2, al. c) «[O] juiz indefere liminarmente o requerimento executivo quando: fundando-se a execução em título negocial, seja manifesta, face aos elementos constantes dos autos, a inexistência de factos constitutivos ou a existência de factos impeditivos ou extintivos da obrigação exequenda de conhecimento oficioso».
Ou seja, a decisão impugnada foi tomada ao abrigo dos poderes oficiosos do julgador e não em consequência do deferimento do requerimento apresentado pela executada.
Neste ponto, depara-se-nos um primeiro reparo a fazer ao raciocínio exposto.
Na verdade, se a questão consiste numa hipotética causa justificativa do indeferimento liminar do requerimento executivo, agora o seu conhecimento tardio conduziria à extinção da instância, de acordo com a citada al. c) do n.º 2 do art. 726º.
E essa decisão de extinção da instância executiva seria a única coerente com a figura do abuso de direito, que a decisão toma por fundamento.
Na verdade, o próprio despacho chama-lhe “excepção peremptória”, e nos termos do art. 576º, n.º 3, do CPC, “as exceções perentórias importam a absolvição total ou parcial do pedido e consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor.
Existe, portanto, desarmonia entre a natureza da figura jurídica invocada e a consequência processual dela retirada. A consequência processual do reconhecimento da existência de um abuso de direito, como facto impeditivo dos efeitos jurídicos pretendidos pela exequente, teria que ser a extinção da instância e não a sua suspensão.
Adiantamos, porém, que se nos afigura não haver lugar nem à extinção da instância nem à suspensão da instância que foi decidida.
E cremos que a idêntica conclusão se chega examinando com atenção os três acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça mencionados no despacho recorrido em apoio da decisão tomada.
São eles os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26-06-2014, no processo n.º 3220/07.3TBGDM-A.P1.S1, de 24-11-2016, no processo n.º 7531/12.8TBMTS-A.P1.S1, e de 07-11-2019, processo n.º 4118/17.2T8GMR-A.G1.S2.
No primeiro deles, os executados fiadores fizeram valer a seu favor a excepção do abuso de direito que invocaram, através da competente oposição à execução. Ficou provado que a exequente ao executar os fiadores, sem reclamar primeiro o pagamento junto da seguradora, sabia do falecimento do mutuário, por lhe ter sido oportunamente comunicado. Em consequência, foi declarada extinta a execução, por haver abuso de direito.
No segundo, trata-se de uma reclamação de créditos em que um banco veio reclamar um crédito sobre os executados, que o impugnaram dizendo precisamente que existia um seguro de vida a garantir o mútuo e que o banco beneficiário tinha sido informado do sinistro coberto pelo referido contrato de seguro, apresentando-se a reclamar o crédito junto dos executados sem antes se ter dirigido à seguradora. Em consequência, não foi admitido o crédito reclamado, dado o abuso de direito.
No terceiro, proferido em embargos de executado, os executados embargantes conseguiram também a extinção da instância por terem provado que o banco exequente teve conhecimento atempado da ocorrência do sinistro coberto por seguro de vida e ignorando a seguradora havia instaurado execução contra eles (consta do sumário que “o abuso de direito constitui matéria de excepção susceptível de ser alegada como defesa em processo de declaração, por isso igualmente viável no âmbito da oposição à execução não baseada em sentença - artigo 731º do Código de Processo Civil” e que ”concluindo-se pelo abuso de direito, o crédito exequendo surge como inexigível e, por isso, torna a execução inviável, o que implica que se ordene a sua extinção”).
Veja-se a este respeito também o Acórdão da Relação de Lisboa de 24-06-2021, no processo n.º 173/10.4TBSCR-B.L1-6, relatora Cristina Neves, onde em síntese também vem sublinhada posição idêntica:
“1- Verifica-se o exercício abusivo de um direito por parte do banco/exequente que, no âmbito de um mútuo garantido por seguro de vida/grupo a que os mutuários aderiram, sendo o banco tomador e beneficiário e com cobertura do dano morte, ocorrendo o óbito de um dos mutuários, intenta execução para pagamento das quantias devidas por esse mútuo, sem acionar em primeiro lugar o seguro, por exceder os limites impostos pela boa fé (artº 334 do C.C.), desde que tenha prévio conhecimento do óbito e não se verifique qualquer causa de exclusão da garantia de seguro.
2- A procedência da excepção de abuso de direito, torna inexigível todo o crédito exequendo, com a consequente extinção da totalidade da execução fundada no contrato de mútuo.”
Como é bom de ver, nenhum destes arestos serve para apoiar a solução encontrada nos presentes autos.
Desde logo, nada permite afirmar que no momento em que instaurou a execução o banco exequente sabia da morte do mutuário, contra quem aliás instaurou a execução.
Na realidade o que resulta da tramitação da execução é que tentada a citação após penhora do executado AA (estamos em execução sumária) essa citação veio devolvida ao remetente com a indicação de “objecto não reclamado”, tendo na sequência disso a agente de execução pesquisado nas bases de dados e apurado que o executado havia falecido.
Assim, o máximo que os autos permitiram afirmar ao julgador da primeira instância foi aquilo que foi feito constar no despacho em causa como ponto VI: “a exequente teve conhecimento do óbito do primitivo executado (quanto mais não seja através do incidente de habilitação de herdeiros tramitado nos presentes autos”.
Obviamente que assim é, tanto mais que requereu a habilitação de herdeiros para prosseguir a execução.
Mas o que seria indispensável para a conclusão pretendida era apurar se a exequente teve conhecimento do falecimento do mutuário, contra quem instaurou a execução, antes de ter dado entrada a este procedimento.
Com efeito, sem conhecimento prévio da morte do mutuário e beneficiário do seguro de vida torna-se perfeitamente natural que contra ele instaurasse a execução; e torna irrelevante a afirmação de que “tinha conhecimento da celebração do referido contrato de seguro aquando da instauração da presente execução” (ponto III), uma vez que a cobertura fornecida pelo contrato de seguro de vida só poderia ser invocada no caso de verificação do evento coberto.
Ora nada nos autos, designadamente nas intervenções da executada, permite concluir que a exequente teve conhecimento da morte do mutuário em momento anterior à execução, nomeadamente por lhe ter sido comunicado pelos interessados, seus sucessores.
Não pode a situação dos autos ser reconduzida e equiparada a uma situação em que os devedores deram efectivo conhecimento do sinistro ao banco mutuante e solicitaram a activação do seguro ao banco mutuante e este nada fez, vindo a executar os ditos devedores sem primeiro se dirigir à seguradora.
Acresce que, como referimos, consta dos autos desde 31-03-2022, anteriormente ao despacho proferido (despacho de 24-10-2022), uma informação da Companhia de Seguros Fidelidade, emitida a pedido do tribunal, na qual esta junta os elementos documentais relativos ao seguro de vida aludido, informando nomeadamente que o contrato foi celebrado em 20-06-2005 e foi anulado em 01-03-2019 por falta de pagamento de prémios, documentação e informação que foi notificada às partes e não foi de nenhuma forma questionada.
Portanto, dificilmente se compreende a determinação de suspensão da instância, por tempo indefinido, “até que a exequente demonstre a impossibilidade de cobrança do crédito em causa junto da Companhia de Seguros”.
Perante o que fica dito, entendemos que caem pela base os pressupostos em que assentou a conclusão do julgador, ao enquadrar a actuação da exequente na figura do abuso de direito regulada no art. 334º do Código Civil, afigurando-se antes que a propositura desta execução representa apenas o normal exercício dos direitos que lhe assistem.
E mais concluímos que houve no caso uma errada aplicação da possibilidade de suspensão oficiosa da instância, prevista no art. 272º do CPC, visto que nenhum motivo justificado se encontra para tal suspensão.
Assim sendo, termina-se reconhecendo a procedência da apelação em apreço, com a consequente revogação da decisão impugnada.
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VII - DECISÃO
Por todo o exposto, acordamos em julgar procedente a apelação em apreço, revogando a decisão recorrida e ordenando o prosseguimento dos autos.
Custas pelos recorridos, considerando o decaimento verificado (cfr. art. 527.º, n.º 1, do CPC).
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Évora, 23 de Novembro de 2023
José Lúcio
Manuel Bargado
Albertina Pedroso