ACÇÃO ESPECIAL
DESPEJO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO
FALTA DE PAGAMENTO DE RENDAS
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
Sumário


1 – O procedimento especial de despejo previsto nos art.s 15º a 15º-S do NRAU constitui um procedimento extrajudicial, de natureza injuntiva, constituindo o meio processual adequado para concretizar o despejo na sequência da resolução extrajudicial do contrato, nos caso em que a lei a permite.
2 – Requerido procedimento especial de despejo, pode o arrendatário notificado deduzir a oposição que tiver, nos termos previstos no art. 9º do diploma citado.
3 – Apresentada oposição, o procedimento passa para uma fase judicial, na qual incumbe ao locatário afastar os fundamentos alegados pelo senhorio para o despejo.
4 – Sendo invocada pelo senhorio a resolução extrajudicial do arrendamento por falta de pagamento de rendas, compete ao arrendatário a alegação e prova de que estas se encontram pagas e que tal resolução ficou sem efeito.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral


ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO
A Autora, AA, residente em Olhão, requereu contra a Ré BB, residente também em Olhão, procedimento especial de despejo (inicialmente dois, com os n.ºs 1603/21.5YLPRT e 1602/21.5YLPRT, mas que foram apensados para julgamento conjunto) pretendendo a desocupação dos locais arrendados a que se referem dois contratos de arrendamento vigentes entre as mesmas partes relativamente a dois locados sitos em Peares, Quelfes, Olhão, um referente a um armazém inscrito na matriz urbana da freguesia de Quelfes como parte do ...41 e outro referente a outro armazém, com uma dependência anexa destinada a habitação, inscrito na matriz urbana da freguesia de Quelfes, também parte do mesmo ...41, em ambos os casos os arrendamentos destinados a arrecadação de frutos e caracóis.
Segundo a Autora, houve resolução dos arrendamentos em causa por notificação judicial avulsa realizada em 22 de Abril de 2021, pela qual ficou a Ré informada dessa resolução, do seu fundamento (falta de pagamento de rendas, a Ré teria deixado de pagar as rendas a partir de Agosto de 2020) e dos montantes que estavam em dívida.
A Ré deduziu oposição, dizendo que em relação a ambos os locados se encontra tudo pago desde Setembro do ano de 2020 a Abril do ano de 2021, sendo que a partir dessa data não foi mais nada pago uma vez que a Autora se recusou a receber as rendas, através do seu advogado, não sendo após isso obrigada a recorrer à consignação em depósito.
Refere ainda que, mesmo que assim não fosse, constitui abuso de direito o facto de a Autora se recusar a receber as rendas e de seguida instaurar procedimento especial de despejo com vista à desocupação do locado.
Dada a oposição, foram os autos remetidos a tribunal e distribuídos como acção especial de despejo.
Notificada, a Autora respondeu à oposição, impugnando a factualidade alegada pela Ré e sustentando a procedência da sua pretensão.
Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença na qual foi julgado improcedente a acção e consequentemente absolvida a ré do pedido de despejo formulado pela autora.

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II – O RECURSO
Inconformada com o decidido, a Autora intentou então o presente recurso de apelação, apresentando as suas alegações, que terminou com as seguintes conclusões:
A) A presente ação encontra-se incorretamente julgada de facto e de direito.
B) O facto 8) dos factos dados como provados deve assim ser alterado, para total clareza com os fundamentos supra alegados que aqui se dão por reproduzidos, devendo o mesmo passar a ter a seguinte redação:
8) A partir de Agosto de 2020, a ré deixou de pagar as rendas de ambos os locados.
C) O Tribunal a quo admitiu que não teve a perceção da totalidade do depoimento da testemunha CC, filha da Ré, porquanto, parte do depoimento desta foi impercetível, uma vez que a mesma falava língua espanhola, a totalidade do depoimento desta testemunha não pode ser tido em conta para formar a convicção do julgador, porquanto só um depoimento que tenha sido percecionado e compreendido no seu todo pode ser adequadamente analisado e ponderado e assim servir para formar aquela convicção, bem como servir para através dele se poder sindicar a decisão judicial tomada.
D) A tomada em consideração do depoimento da testemunha CC, mesmo em parte seletiva do mesmo, que na verdade a sentença não especifica qual seja, viola o princípio da livre apreciação da prova (art.º 607.º, n.º 5 C.P.C.) na medida em que não permite ao Tribunal um exame correto de tal meio de prova, nem às partes sindicar este concreto meio de prova, violando também o princípio da forma dos atos orais estabelecido no art.º 133.º, n.º 1 C.P.C.), não podendo assim ser considerado no seu todo, sob pena de arbitrariedade do julgador, a qual não é permitida pelo primeiro referido princípio.
E) Com os fundamentos supra alegados que aqui se dão por reproduzidos, o facto 12) encontra-se mal julgado e deverá ser eliminado dos factos provados.
F) Os factos que dizem respeito aos montantes concretamente entregues pela R. à A. através do advogado desta, i.e., os factos provados 13), 14) e 15) encontram-se incorretamente julgados nos termos dos fundamentos supra alegados que aqui se dão por reproduzidos, e na consequência dos quais:
a. No facto provado 13) deveria ter sido dado como provado apenas que:
13) Após isto, a primeira vez que se dirigiu ao escritório do advogado da Autora, em 20.05.2021, a Ré pagou uma quantia de € 2.000,00.
b. No facto provado 14) deveria ter sido dado como provado apenas que:
14) Na segunda vez que se dirigiu ao escritório do advogado da Autora, em 05.07.2021, a Ré pagou uma quantia de € 1.000,00.
c. E o dado como assente em 15) não deveria ter sido dado como provado por falta absoluta de prova sobre o mesmo.
G) Por sua vez, os factos provados 16), 17), 18), 19) e 25) encontram-se julgados com imprecisões e deficiências cuja correção se impõe face aos documentos que se encontram juntos aos autos, com os fundamentos supra alegados que aqui se dão por reproduzidos, e em consequência:
a. O facto provado 16), deve ser corrigido passando a ter a seguinte redação:
16) Consta dos recibos de renda eletrónicos que no dia 20 de Maio de 2021, foi paga uma renda, na quantia de € 210,71, relativa ao armazém dois e relativa a Setembro de 2020.
b. O facto provado 17) deve ser reapreciado e alterado, passando a ter a seguinte redação:
17) No mesmo dia foram pagas mais quatro rendas, na quantia, cada uma, de € 210,71, relativas ao armazém dois e relativas aos meses de Outubro, Novembro e Dezembro de 2020 e Janeiro de 2021.
c. O facto provado 18) deverá ser corrigido, passando a ter a seguinte redação:
18) Ainda nesse dia foram pagas outras rendas, na quantia de € 168,60, relativo ao armazém um (um compartimento e anexo) e relativos aos mesmos meses indicados em 16 e ainda a Fevereiro de 2021.
d. O facto provado 19), deverá ser corrigido, passando a ter a seguinte redação:
19) Ainda no mesmo dia, 20 de Maio de 2021, foi paga parcialmente a renda relativa ao armazém dois e ao mês de Fevereiro de 2021 no montante de € 103,45.
e. O facto provado 25), deverá ser alterado devendo passar a ter a seguinte redação:
25) A Autora, AA, emitiu em 20.07.2021 um recibo de indemnização no qual refere que “recebi da Sr.ª D. BB (…), inquilina de um armazém, designado por «armazém 2», do qual eu AA (…) sou proprietária e cuja renda é de € 210,71 (…), a importância de 66,67 € (…) referente a indemnização pelo período de 22 de Abril a 1 de Maio de 2021, nos termos do artigo 1046º do Código Civil.
f. O facto provado 25), deverá ser alterado devendo o mesmo passar a ter a seguinte redação:
25) A Autora, AA, emitiu em 20.07.2021 um recibo de indemnização no qual refere que “recebi da Sr.ª D. BB (…), inquilina de um armazém, designado por «armazém 2», do qual eu AA (…) sou proprietária e cuja renda é de € 210,71 (…), a importância de 66,67 € (…) referente a indemnização pelo período de 22 de Abril a 1 de Maio de 2021, nos termos do artigo 1046º do Código Civil.
H) Em face dos documentos juntos pela A. referidos em 48., não impugnados e que foram totalmente ignorados pelo Tribunal recorrido, deveriam ter sido dados como provados os seguintes factos:
a. que as rendas relativas aos meses de Fevereiro e Março de 2021 do armazém um também foram pagas pela R. em 05.07.2021, devendo em consequência ser acrescentado um facto provado com o seguinte teor:
No mesmo dia 05.07.2021 foram pagas as rendas relativas ao armazém um e aos meses de Fevereiro e Março de 2021, no montante de € 168,60 cada.
b. que existe correspondência entre as quantias entregues pela R. e os montantes constantes dos recibos provisórios emitidos pelo advogado da A., devendo em consequência ser acrescentado um facto provado com o seguinte teor:
De todas as entregas de dinheiro que a R. efetuou ao advogado da A., este emitiu sempre e entregou à R. um recibo provisório, declarando ter recebido por conta da A. a exata quantia que a R. lhe entregou, declarando destinar-se a ser imputada nas dívidas relativas aos arrendamentos, tituladas na notificação judicial avulsa n.º 261/21.1T8OLH do Juízo de Competência Genérica de Olhão, Juiz 1 e que o(s) recibo(s) devido(s) da quantia paga seriam emitidos pela credora da quantia recebida, a A..
I) Salvo melhor entendimento e com os fundamentos supra alegados que aqui se dão por reproduzidos, o facto provado 26) deverá ser eliminado por absoluta falta de prova e no facto provado 27) deverá ser dado como assente, apenas, que:
27) Para além da entrega de € 1.000,00 realizada em 07.07.2021, a R. não realizou qualquer outro pagamento à A.
J) Alterada que seja a matéria de facto nos termos supra alegados, outra deverá ser a decisão da presente ação especial de despejo, pois prova-se que:
a. através da NJA que dirigiu à R. a A. resolveu de forma efetiva e válida os dois contratos de arrendamento sub judice;
b. nos termos do n.º 3 do art.º 1084.º C.C., a R. dispunha de um mês a contar do dia em que recebeu a NJA a comunicar-lhe a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas para paralisar os efeitos da resolução pondo fim à mora, ou seja, pagando todas as rendas em dívida acrescidas de 20% desde Agosto de 2020, o que não fez, pois o pagamento que realizou em 20.05.2021, dentro daquele prazo, foi inclusivamente insuficiente para liquidar todas as rendas que, em singelo, se encontravam em dívida naquela data.
c. Os pagamentos que a R. realizou à A. através do advogado desta também não foram liberatórios porque a R. também não pagou a indemnização de 20% sobre o devido, prevista no art.º 1041.º C.C..
d. Operada a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas por via da receção pelo inquilino da competente NJA, o senhorio não se encontra impedido de receber as rendas em dívida, em singelo, que o inquilino voluntariamente lhe ofereça, sem que isso impeça o efeito da resolução do contrato, porquanto o recebimento dessas rendas é um direito do senhorio e o correspetivo pagamento corresponde ao cumprimento (retardado) de uma obrigação do inquilino.
K) Termos em que a presente ação deveria ter sido julgada procedente.
Nestes termos e nos demais de direito, deverá a sentença recorrida ser revogada e por dos autos constarem todos os factos necessários à decisão da causa, deve ser proferido acórdão, que, alterando a matéria de facto nos termos pugnados, julgue a oposição totalmente improcedente e em consequência condene a Recorrida a desocupar imediatamente os dois locados e a pagar à Recorrente, relativamente a ambos, as rendas ou a indemnização nos termos do art.º 1045.ºque se mostrem devidas até à efetiva entrega dos mesmos, a liquidar
em execução de sentença.
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III – DAS CONTRA-ALEGAÇÕES
Pela recorrida foram apresentadas contra-alegações, sustentando que a sentença recorrida decidiu bem quanto aos factos e ao Direito, pelo que deve ser mantida.
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IV – DA MATÉRIA A CONSIDERAR
Na primeira instância foi declarada provada a seguinte factualidade, considerada relevante para efeitos de decisão da causa:
1 - No dia 15 de Maio de 2001 foi celebrado um contrato em que consta como senhoria DD, mãe da aqui Autora, e como inquilina BB do qual consta que “pelo primeiro outorgante foi dito que é dono do armazém sito em Peares, Quelfes Olhão ...41 (parte)” e que “pretendo levar a efeito o arrendamento do referido prédio ao segundo outorgante, por este contrato faz tal arrendamento nos termos e sob as clausulas seguintes (…)”.
2 - O referido contrato foi celebrado pelo período de cinco anos que se considerou iniciado no dia 1 do mês de Junho de 2001, e foi-se renovando por sucessivos e iguais períodos.
3 - A renda estipulada foi de trinta mil escudos, vencível no 1º dia do mês àquele a que respeitar, sendo paga em dinheiro no domicílio da senhoria.
4 - Foi celebrado outro contrato em que consta como senhoria DD e como inquilina BB no qual consta na sua alínea a) que pela primeira outorgante foi dito que “é dona de um armazém com uma pequena dependência anexa, destinada a habitação de trabalhador a qual dependência faz parte integrante do armazém e do presente contrato no sítio de Peares, Quelfes, Olhão, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...41 do qual é parte”.
5 - Continua referindo, na sua alínea b) “que pretendo levar a efeito o arrendamento do referido prédio à segunda outorgante, inquilina, por este contrato faz tal arrendamento nos termos e sob as clausulas seguintes”.
6 - O referido contrato teve início no dia 1 de Março de 2004, tendo sido feito pelo prazo de cinco anos, renovando-se por períodos de um ano.
7 - Foi estipulada uma renda mensal de € 200,00, vencível no 1º dia do mês anterior àquele que respeita, tendo-se determinado que seria paga em moeda corrente no domicílio da senhoria ou outro local indicado, por escrito, pela mesma.
8 - A partir de Agosto de 2020, a Ré deixou de pagar as rendas.
9 - Foi-lhe enviada notificação judicial avulsa em Abril de 2021, requerida pela Autora, na qual se indicou a vontade desta de resolver ambos os contratos, que identificou como “arrendamento 1” e “arrendamento 2” e os valores em dívida, designadamente € 1.348,00, relativamente ao primeiro, continuando-se a vencer rendas no valor de € 168,60 e € 1.685,68, relativamente ao segundo, continuando-se a vencer rendas no valor de € 210,71.
10 - Após, a Ré demonstrou perante a Autora vontade de continuar com os contratos de arrendamento e de pagar as rendas.
11 - A Autora transmitiu à Ré para falar com o seu advogado, ao que esta acedeu.
12 - Foi acordado entre o advogado da Autora e a Ré para esta proceder ao pagamento das rendas para continuar com os contratos celebrados.
13 - Após isto, a primeira vez que se dirigiu ao escritório do advogado da Autora, a Ré pagou uma quantia de € 3.000,00.
14 - Na segunda vez pagou uma quantia de € 1.800,00.
15 - Na terceira vez pagou uma quantia não determinada.
16 - Consta das facturas que no dia 20 de Maio de 2021, foi paga uma renda, na quantia de € 210,71, relativo ao armazém dois e relativa a Setembro de 2020.
17 - No mesmo dia foram pagas mais diversas rendas, na quantia, cada uma, de € 210,71, relativo ao armazém dois e relativa aos meses de Novembro e Dezembro de 2020 e Janeiro de 2021.
18 - Ainda nesse dia foram pagas outras rendas, na quantia de € 168,60, relativo ao armazém um (um compartimento e anexo) e relativos aos mesmos meses indicados em 6 e ainda a Fevereiro de 2021.
19 - Ainda no mesmo dia, 20 de Maio de 2021, foi paga uma renda na quantia de € 103,45, relativo ao armazém dois e ao mês de Fevereiro de 2021.
20 - No dia 5 de Julho de 2021 foi paga uma renda na quantia de € 107,26 relativo ao armazém dois e relativa também ao mês de Fevereiro de 2021.
21 - No dia 5 de Julho de 2021, foi paga uma renda, na quantia de € 210,71, relativo ao armazém dois e relativa ao mês de Março de 2021.
22 - No dia 5 de Julho de 2021, foi paga uma renda, na quantia de € 168,60, relativa ao armazém um (um compartimento e anexo) e relativa ao mês de Março de 2021.
22 - No mesmo dia foi paga outra quantia de € 154,52, a título de renda, relativo ao armazém dois e relativa ao mês de Abril de 2021.
23 - Ainda nesse dia foi paga uma quantia de € 123,64, em relação ao armazém um (um compartimento e anexo) e relativa ao mês de Abril de 2021.
24 - A Autora, AA, emitiu um recibo de indemnização no qual refere que “recebi da snra. D. BB (…), inquilina de um armazém, designado por «armazém 2», do qual eu AA (…) sou proprietária e cuja renda é de € 210,71 (…), a importância de 66,67 € (…) referente a indemnização pelo período de 22 de Abril a 1 de Maio de 2021, nos termos do artigo 1046º do Código Civil”.
25 - Na quarta vez que se dirigiu ao escritório, em Agosto de 2021, iria entregar € 800,00 e foi-lhe dito pelo advogado que tal quantia não chegava para cobrir rendas uma vez que ficava para cobrir o valor da indemnização.
26 - Assim, a Ré não chegou a deixar no escritório aquela quantia e, a partir daí, não pagou qualquer outra.
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V – DO OBJECTO DO RECURSO
1 - Como é sabido, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC).
Sublinha-se ainda a este propósito que na sua tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC).
No caso presente, as questões colocadas ao tribunal de recurso, tendo em conta o conteúdo das conclusões que acima se transcreveram, resumem-se em decidir em primeiro lugar o que se refere ao julgamento da matéria de facto, que a Autora impugnou, e de seguida, perante os factos a considerar, decidir da eventual procedência da oposição deduzida pela Ré à resolução dos arrendamentos operada pela Autora.
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VI – FUNDAMENTAÇÃO
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A – DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Como se verifica da leitura das suas conclusões, a apelante pretende em primeiro lugar a alteração da matéria de facto, impugnando o julgamento feito na instância recorrida.
A alteração pretendida é uma possibilidade legal aberta pelos artigos 640º e 662º do Código de Processo Civil, pelo que, tendo a recorrente deduzido impugnação nos termos previstos na primeira das disposições legais referidas impõe-se conhecer das razões que lhe assistam e proceder às alterações que se justifiquem.
Note-se que em face apenas das conclusões apresentadas pode entender-se que as mesmas não satisfazem por inteiro as especificações previstas no citado art. 640º, n.º.ºs 1 e 2.
Todavia, ainda assim, conjugando o teor dessas conclusões com o conteúdo das alegações para que remetem, afiguram-se suficientemente cumpridos os ónus a cargo do recorrente nesta matéria, na sua tríplice exigência, sendo possível identificar com nitidez quais os pontos que são impugnados, quais as alterações pretendidas, e quais os fundamentos, no que se refere a meios de prova, que imporiam essa alteração.
Passamos, assim, a conhecer da aludida impugnação quanto à matéria de facto.
Começa a apelante por requerer um aditamento ao ponto 8 dos factos provados: este deve ser alterado, para total clareza, devendo o mesmo passar a ter a seguinte redação:
“8) A partir de Agosto de 2020, a ré deixou de pagar as rendas de ambos os locados.”
Na verdade, o que consta do aludido ponto 8 é simplesmente que “A partir de Agosto de 2020, a Ré deixou de pagar as rendas”. Pensamos que do conjunto da factualidade em que se insere já pode deduzir-se com segurança que se trata das rendas de ambos os locados, e isso mesmo se deduz da própria motivação apresentada pelo julgador. Aliás, vistas as posições das partes entende-se que tal circunstância nem sequer se mostra controvertida.
Assim, aceitando o argumento da clarificação invocado pela Autora, defere-se a esta pretendida alteração.
Prossegue a Autora pedindo que o facto 12 seja eliminado da matéria de facto considerada.
Este ponto tem o seguinte teor:
“12) Foi acordado entre o advogado da Autora e a Ré para esta proceder ao pagamento das rendas para continuar com os contratos celebrados.”
Sucede, porém, que na oposição que deduziu ao despejo a Ré nunca mencionou esse acordo (parecendo lógico esperar que o referisse, caso ele existisse).
O que a Ré alegou foi antes, num requerimento muito curto e sintético, em relação a ambos os locados, que se encontrava tudo pago desde Setembro do ano de 2020 a Abril do ano de 2021, que a partir dessa data não foi mais nada pago uma vez que a Autora se recusou a receber os mesmos, não sendo após isso obrigada a recorrer à consignação em depósito; e que constitui abuso de direito o facto de a Autora se recusar a receber as rendas e, após, instaurar procedimento especial de despejo com vista à desocupação do locado.
Estamos assim perante um facto não alegado, sendo certo que na sua oposição teria a Ré que alegar os fundamentos pelos quais se opunha ao pedido de despejo formulado pela Autora.
O facto em questão não pode ser considerado instrumental em relação aos que foram alegados, nem constitui complemento ou concretização dos que a Ré tinha alegado, nem é um facto notório ou de que o tribunal tenha conhecimento por força das suas funções, não se enquadrando, em suma, em nenhuma das hipóteses referidas no n.º 2 do art. 5º do CPC, em que o tribunal poderia considerar factos não alegados pelas partes.
Consequentemente, dada a expressa consagração do princípio do dispositivo constante do n.º 1 do art. 5º do CPC, não podia o tribunal ter levado em conta o facto em causa.
Assim sendo, deve realmente ser eliminado o aludido ponto 12, por traduzir uma violação ao disposto no citado art. 5º do CPC, por se tratar de matéria não alegada.
Acresce que o fundamento referido na sentença para inserir tal facto é o depoimento da Ré, apoiado pela testemunha, sua filha. Ora acontece que, como consta dos autos (v. acta da audiência) a Ré foi ouvida em depoimento de parte, que não constitui certamente um meio de prova idóneo a demonstrar os factos do seu interesse (o depoimento de parte, previsto nos arts. 452º e seguintes do CPC, visa a prova por confissão das partes, e a confissão consiste na admissão de factos desfavoráveis ao confitente).
Julgamos, pois, procedente, esta parte da pretensão impugnatória da Autora.
Quanto à valoração pelo tribunal do depoimento da única testemunha ouvida, a filha da Ré, mencionada nas conclusões C) e D) da recorrente como implicando a violação do princípio da livre apreciação da prova a que se refere o art. 607.º, n.º 5, CPC, e também o princípio da forma dos actos orais estabelecido no art.º 133.º, n.º 1, CPC, diremos que tal linha de argumentação se mostra prejudicada, até por desnecessária e portanto inútil, uma vez que as pretensões apresentadas pela recorrente quanto à matéria de facto que tal valoração poderia suportar foram expressamente atendidas, pelos motivos supra expostos.
Continuando, temos que a apelante impugna o que foi julgado provado nos pontos 13, 14 e 15, relativos a pagamentos feitos pela Ré.
No facto provado 13 alude-se à quantia de € 3.000, no facto provado 14 à quantia de € 1.800 e no facto provado 15 a uma quantia não determinada (por a Ré não conseguir lembrar-se).
Na motivação do tribunal relativamente a estes factos, diz-se apenas que “os pontos 13 e 14 dos factos provados resultam das declarações da Ré que se mostraram credíveis, por espontâneas e serenas, bem como o ponto 15, não tendo a mesma conseguido lembrar-se da quantia entregue na terceira vez que se dirigiu ao escritório.
É forçoso recordar aqui o que dissemos a propósito do depoimento de parte. Não podia esse meio de prova servir para a própria Ré provar os factos do seu interesse. E soma-se que mais nenhum elemento probatório é mencionado para fundamentar tais respostas, pelo que também assiste razão à recorrente ao impugnar os referidos pontos da matéria de facto.
Resta, portanto, decidir quais as respostas a dar em sede de recurso sobre a matéria de facto em causa, relativa aos pagamentos efectuados pela Ré para obstar à resolução comunicada pela Autora através da notificação judicial avulsa concretizada a 22 de Abril de 2021.
A este respeito, julgamos importante relembrar algumas orientações essenciais que nos conduzem neste caso a uma melhor compreensão de quais são os factos relevantes a considerar para a decisão da presente causa e de quais os meios de prova disponíveis para o efeito.
Os presentes autos começaram como procedimento especial de despejo, regulado nos arts. 15º e seguintes da Lei n.º 6/2006, com a redacção introduzida pela Lei n.º 31/2012.
Nestes procedimentos, invocando o senhorio que procedeu extrajudicialmente à resolução do contrato por falta de pagamento de rendas, o arrendatário que pretenda obstar ao pedido de despejo tem que deduzir oposição nos termos do art. 15º-F do diploma citado.
E, deduzindo oposição, a ele compete demonstrar os fundamentos pelos quais entende que não deve haver desocupação do local arrendado.
Como diz Maria Olinda Garcia, no seu “Arrendamento Urbano Anotado,” 2ª edição, a págs. 208, “o arrendatário tem o ónus de demonstrar que os fundamentos extintivos constantes dos documentos que o senhorio apresentou para justificar o recurso ao BNA não sustentam, em concreto, a sua pretensão”.
Esta repartição do ónus probatório está aliás inteiramente de acordo com a natureza exceptiva da oposição deduzida, como disposto no art. 342º do Código Civil.
Ora assim sendo, e vistos os autos e a oposição realmente deduzida, o que é possível considerar como provado no respeitante a pagamentos feitos pela Ré à Autora, na sequência da notificação judicial avulsa, é aquilo que resulta dos documentos juntos com a oposição apresentada.
Com efeito, esses documentos são recibos emitidos pela Autora, documento particular que constitui meio próprio para demonstrar esses pagamentos, e que não foram impugnados de modo nenhum.
Julgamos, assim, que todo o conteúdo dos pontos 13 a 23, relativos a pagamentos feitos pela Ré, e impugnados pela Autora, deve ser reformulado de forma a reflectir o que consta dos documentos apresentados pela Ré com a sua oposição, emitidos pela Autora e cujo conteúdo esta não contesta.
Quanto ao art. 24º, deve também ser reformulado de acordo com o documento a que alude.
Quanto aos pontos 25º e 26º, tal como agora se apresentam, julgamos que devem ser simplesmente eliminados da matéria de facto a considerar. Na realidade, e desde logo, quando se refere que a Ré nada mais pagou a inclusão desse facto não tem qualquer utilidade para a decisão a proferir, uma vez que era a ela que competia provar que pagou e o que pagou; e quanto à deslocação ao escritório do advogado da Autora para esse efeito (teria a intenção de pagar mais €800), independentemente da relevância do facto, não se encontra nenhum apoio probatório para o mesmo (na sentença apenas se refere, mais uma vez, a credibilidade das declarações da Ré, o que nos obriga a recordar de novo que ela foi ouvida em depoimento de parte).
Em conclusão, julgamos parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto tal como vem deduzida pela Autora/apelante, nos termos expostos, pelo que passamos a reformular a matéria de facto a considerar, de acordo com o que fica exposto.
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B – DA MATÉRIA DE FACTO A CONSIDERAR
Concretizando as alterações, eliminações e reformulações acima referidas, é a seguinte a matéria de facto a considerar para a decisão da causa, organizada com nova numeração:
1 - No dia 15 de Maio de 2001 foi celebrado um contrato em que consta como senhoria DD, mãe da aqui Autora, e como inquilina BB do qual consta que “pelo primeiro outorgante foi dito que é dono do armazém sito em Peares, Quelfes Olhão ...41 (parte)” e que “pretendo levar a efeito o arrendamento do referido prédio ao segundo outorgante, por este contrato faz tal arrendamento nos termos e sob as clausulas seguintes (…)”.
2 - O referido contrato foi celebrado pelo período de cinco anos que se considerou iniciado no dia 1 do mês de Junho de 2001, e foi-se renovando por sucessivos e iguais períodos.
3 - A renda estipulada foi de trinta mil escudos, vencível no 1º dia do mês àquele a que respeitar, sendo paga em dinheiro no domicílio da senhoria.
4 - Foi celebrado outro contrato em que consta como senhoria DD e como inquilina BB no qual consta na sua alínea a) que pela primeira outorgante foi dito que “é dona de um armazém com uma pequena dependência anexa, destinada a habitação de trabalhador a qual dependência faz parte integrante do armazém e do presente contrato no sítio de Peares, Quelfes, Olhão, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...41 do qual é parte”.
5 - Continua referindo, na sua alínea b) “que pretendo levar a efeito o arrendamento do referido prédio à segunda outorgante, inquilina, por este contrato faz tal arrendamento nos termos e sob as clausulas seguintes”.
6 - O referido contrato teve início no dia 1 de Março de 2004, tendo sido feito pelo prazo de cinco anos, renovando-se por períodos de um ano.
7 - Foi estipulada uma renda mensal de € 200,00, vencível no 1º dia do mês anterior àquele que respeita, tendo-se determinado que seria paga em moeda corrente no domicílio da senhoria ou outro local indicado, por escrito, pela mesma.
8 - A partir de Agosto de 2020, a Ré deixou de pagar as rendas de ambos os locados.
9 - Foi-lhe enviada notificação judicial avulsa em Abril de 2021, requerida pela Autora, na qual se indicou a vontade desta de resolver ambos os contratos, que identificou como “arrendamento 1” e “arrendamento 2” e os valores em dívida, designadamente € 1.348,00, relativamente ao primeiro, continuando-se a vencer rendas no valor de € 168,60 e € 1.685,68, relativamente ao segundo, continuando-se a vencer rendas no valor de € 210,71.
10 - Após, a Ré demonstrou perante a Autora vontade de continuar com os contratos de arrendamento e de pagar as rendas.
11 - A Autora transmitiu à Ré para falar com o seu advogado, ao que esta acedeu.
12 – No dia 20 de Maio de 2021 a Ré pagou, com respeito ao arrendamento 1:
- €168,60 como renda do mês de Setembro de 2020;
- €168,60 como renda do mês de Outubro de 2020;
- €168,60 como renda do mês de Novembro de 2020;
- €168,60 como renda do mês de Dezembro de 2020;
- €168,60 como renda do mês de Janeiro de 2021;
13 - No mesmo dia 20 de Maio de 2021 a Ré pagou, com respeito ao arrendamento 2:
- € 210,71 como renda do mês de Setembro de 2020;
- € 210,71 como renda do mês de Outubro de 2020;
- € 210,71 como renda do mês de Novembro de 2020;
- € 210,71 como renda do mês de Dezembro de 2020;
- € 210,71 como renda do mês de Janeiro de 2021;
- € 103,45 como parte da renda do mês de Fevereiro de 2021.
14 - No dia 5 de Julho de 2021 a Ré pagou, referente ao arrendamento 1:
- €168,60 como renda do mês de Fevereiro de 2021;
- €168,60 como renda do mês de Março de 2021;
- 123,64 como parte da renda do mês de Abril de 2021.
15 - No mesmo dia 5 de Julho de 2021 a Ré pagou, referente ao arrendamento 2:
- € 107,26 como parte da renda do mês de Fevereiro de 2021;
- € 210,71 como renda do mês de Março de 2021;
- 154,52 como parte da renda do mês de Abril de 2021;
16 - A Autora, AA, emitiu a 20 de Julho de 2021 uma declaração intitulada recibo de indemnização no qual refere que “recebi da snra. D. BB (…), inquilina de um armazém, designado por «armazém 2», do qual eu AA (…) sou proprietária e cuja renda é de € 210,71 (…), a importância de 66,67 € (…) referente a indemnização pelo período de 22 de Abril a 1 de Maio de 2021, nos termos do artigo 1046º do Código Civil”.
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C – DO MÉRITO DA CAUSA
Em primeiro lugar, importa relembrar que os presentes autos emergem de um procedimento especial de despejo (aliás dois), figura que o legislador estabeleceu para decorrer perante uma entidade de natureza administrativa, o Balcão Nacional de Arrendamento, entretanto redenominado Balcão do Arrendatário e do Senhorio (BAS).
Visa esse procedimento a agilização do processo de despejo do locado, quando se verifique a cessação do contrato de arrendamento e o senhorio pretenda reaver o locado.
Tal é o caso dos autos, onde conforme se descreve na factualidade apurada, a Autora/senhoria requereu o despejo de dois locais (armazéns para arrecadação) que trazia arrendados à Ré alegando que tinha antes procedido à resolução extrajudicial desses arrendamentos, por meio de notificação judicial avulsa concretizada a 22 de Abril de 2021 na qual comunicou à arrendatária a sua vontade de resolução dessas relações contratuais, informando qual o fundamento das resoluções (falta de pagamento de rendas) e quais os montantes nesse momento em dívida.
Não se nos oferece dúvidas que a Autora fez deste modo uso da faculdade legal que lhe assiste, de acordo com o disposto no art. 15º e seguintes da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, na redação actualmente em vigor, afigurando-se que cumpriu devidamente o disposto no art. 15º-B do diploma referido.
Pretendendo o arrendatário opor-se ao despejo pretendido, estabelece a lei o meio adequado, que vem a ser a oposição prevista no art. 15º-F do diploma em referência.
Deduzindo o arrendatário essa oposição, passam os autos a uma fase judicial, com a sua remessa à distribuição.
Ou seja, o procedimento especial de despejo é um meio processual que se destina a efectivar a cessação do arrendamento, entretanto concretizada extrajudicialmente, quando o arrendatário não desocupe o locado na data fixada.
Tendo essa resolução resultado de comunicação, no nosso caso por meio de notificação judicial avulsa, o senhorio requerente junta o contrato de arrendamento acompanhado da comunicação ao arrendatário na qual invoque, fundamentadamente, a obrigação incumprida.
No caso, a Autora/senhoria por notificação judicial avulsa feita à Ré em 22 de Abril de 2021, comunicou a sua vontade desta de resolver ambos os contratos, que identificou como “arrendamento 1” e “arrendamento 2”, e informou os valores que considerava em dívida, sendo designadamente € 1.348,00, relativamente ao primeiro, continuando-se a vencer rendas no valor de € 168,60 e € 1.685,68, relativamente ao segundo, continuando-se a vencer rendas no valor de € 210,71.
Os valores em dívida seriam referentes aos meses de Setembro de 2020 a Abril de 2021, que a Ré não havia pago.
Acontece que a Ré, na sua oposição, não impugna essas circunstâncias de facto. Limita-se a dizer que, entretanto, já se encontra tudo pago, conforme os documentos que junta.
Recordamos que no seu requerimento de oposição afirma tão só que em relação a ambos os locados se encontra tudo pago desde Setembro do ano de 2020 a Abril do ano de 2021, sendo que a partir dessa data não foi mais nada pago uma vez que a Autora se recusou a receber as rendas, através do seu advogado, não sendo após isso obrigada a recorrer à consignação em depósito, e ainda que, mesmo que assim não fosse, constitui abuso de direito o facto de a Autora se recusar a receber as rendas e de seguida instaurar procedimento especial de despejo com vista à desocupação do locado.
São esses fundamentos de oposição ao despejo aqueles que relevam e se impõe apreciar nesta sede.
Como já em 2013 observava Elizabeth Fernandez (O Procedimento Especial de Despejo, revista Julgar, n.º 19), ao estabelecer estas vias de cessação extrajudicial dos contratos de arrendamento, como é o caso da resolução por falta de pagamento de rendas, “o legislador prevê que tais causas de cessação operem por comunicação, isto é, extrajudicialmente, o que significa que a introdução de um contencioso em juízo a propósito da verificação ou não verificação da causa de resolução ou denúncia vai ser introduzida pelo sujeito contra o qual se exerce o direito e não por aquele que o exerce.
Assim, ao fazer operar tais causas de cessação por via de mera declaração, ainda que obediente a determinadas formalidades, o legislador permitiu a inversão do contencioso que habitualmente orbita em torno destas particulares causas de cessação, deslocando o impulso processual inicial do senhorio para o inquilino.”
Por outras palavras, ao arrendatário que se oponha ao despejo cabe fazer a prova de que não se verificam os fundamentos para a resolução invocada pelo senhorio.
Na situação dos autos, a senhoria comunicou a resolução ao abrigo do disposto no art. 1083º, n.º 3, do Código Civil:
“É inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário ou de oposição por este à realização de obra ordenada por autoridade pública, sem prejuízo do disposto nos n.os 3 a 5 do artigo seguinte”.
A isto se reconduz a comunicação feita sobre as rendas em dívida, constante da matéria de facto supra exposta.
Segundo a Autora, estariam em dívida nesse momento (Abril de 2021) as rendas relativas aos meses de Setembro de 2020 a Abril de 2021, referentes ao que designa como “arrendamento 1” e “arrendamento 2”, sendo designadamente € 1.348,00, relativamente ao primeiro, continuando-se a vencer rendas no valor de € 168,60 e € 1.685,68, relativamente ao segundo, continuando-se a vencer rendas no valor de € 210,71.
Provou-se que assim era na realidade, visto que desde Agosto de 2020 a Ré não pagava as rendas e assim estavam em falta a rendas relativas aos meses de Setembro de 2020 a Abril de 2021, referentes aos “arrendamento 1” e “arrendamento 2”.
Acontece que a Ré só voltou a fazer pagamentos com essa finalidade em 20 de Maio de 2021.
Pode então questionar-se se os pagamentos feitos nessa data terão a consequência prevista no n.º 3 do art. 1084º do Código Civil:
“3 - A resolução pelo senhorio, quando opere por comunicação à contraparte e se funde na falta de pagamento da renda, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário, nos termos do n.º 3 do artigo anterior, fica sem efeito se o arrendatário puser fim à mora no prazo de um mês.”
Todavia, como claramente deflui da matéria de facto provada, os pagamentos realizados em 20 de Maio de 2021, portanto dentro do mês posterior à notificação, não podem ter a consequência mencionada no preceito transcrito.
Os pagamentos feitos nesse dia serviram para saldar as rendas em singelo dos meses de Setembro de 2020 a Janeiro de 2021, quanto ao arrendamento 1, e de Setembro a Janeiro e ainda parte de Fevereiro quanto ao arrendamento 2.
Portanto, se existia mora, e realmente existia, ela não deixou de existir em consequência desse pagamento (concretamente, tratou-se de uma entrega de €2000). A ré continuou em mora, relativamente a três meses de renda, designadamente por subsistirem montantes de rendas por pagar quanto aos meses de Fevereiro, Março e Abril em causa.
Apresenta-se mesmo como desnecessária a discussão sobre se seria devido, para fazer cessar essa situação de mora, o pagamento adicional de 20% sobre as quantias das rendas em causa (veja-se, no entanto, o disposto no art. 1041º do Código Civil).
Quanto ao pagamento adicional de €1000 feito em 5 de Julho seguinte (como resulta da soma das parcelas mencionadas nos arts. 14, 15 e 16 da matéria de facto apurada), situa-se muito para além do prazo de um mês referido no citado art. 1084º, n.º 3, não podendo ser considerado para os termos aí previstos.
Deste modo, concordamos com as conclusões da recorrente quando esta argumenta que “nos termos do n.º 3 do art.º 1084.º C.C., a R. dispunha de um mês a contar do dia em que recebeu a NJA a comunicar-lhe a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas para paralisar os efeitos da resolução” e que “o pagamento que realizou em 20.05.2021, dentro daquele prazo, foi inclusivamente insuficiente para liquidar todas as rendas que, em singelo, se encontravam em dívida naquela data”.
Por outro lado, também é verdade que “operada a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas por via da receção pelo inquilino da competente NJA, o senhorio não se encontra impedido de receber as rendas em dívida, em singelo, que o inquilino voluntariamente lhe ofereça, sem que isso impeça o efeito da resolução do contrato, porquanto o recebimento dessas rendas é um direito do senhorio e o correspetivo pagamento corresponde ao cumprimento (retardado) de uma obrigação do inquilino.
Pelo exposto, improcede a oposição apresentada pela Ré com este fundamento, devendo reconhecer-se à Autora o direito ao despejo que pretende exercer.
Por outro lado, também o outro fundamento de oposição alegado não pode proceder.
De facto, disse ainda a Ré que constituiria abuso de direito o facto de a Autora se recusar a receber as rendas e de seguida instaurar procedimento especial de despejo com vista à desocupação do locado.
Porém, não logrou a Ré fazer a prova dessas circunstâncias de facto que consubstanciariam o abuso de direito (que tivesse havido recusa de recebimento das rendas).
Consequentemente, também não se aplica ao caso vertente a invocada norma do art. 334º do Código Civil (“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”), afigurando-se estarmos em face do exercício normal do direito que assiste à Autora.
Tudo ponderado, e em resumo, julgamos que é procedente o recurso da Autora e que, inversamente, improcede a oposição deduzida pela Ré em sede de procedimento especial de despejo.
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VII - DECISÃO
Por todo o exposto, acordamos em julgar procedente a apelação, e em revogar a sentença recorrida, julgando improcedente a oposição deduzida pela Ré ao pedido de despejo apresentado, devendo esta entregar o imóvel tal como peticionado.
As custas caberiam à Ré, como parte vencida (cfr. art. 527.º, n.º 1, do CPC), verificando-se, no entanto, que lhe foi concedido apoio judiciário.
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Évora, 23 de Novembro de 2023
José Lúcio
Manuel Bargado
Albertina Pedroso