PRINCIPIO NE BIS IN IDEM
CASO DECIDIDO
CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS
Sumário

I - Embora não se possa falar de caso julgado ou de decisão transitada em julgado a propósito de despachos do Ministério Público de arquivamento do inquérito, dado que não se trata de uma decisão jurisdicional e por isso é que um inquérito arquivado pode ser “reaberto”, o certo é que tal reabertura apenas pode ocorrer se surgirem novos elementos de prova, conforme dispõe o artigo .279.º, n.º2, do Código de Processo Penal; o arquivamento está, pois, sujeito à cláusula rebus sic stantibus.
II - Trata-se de um instituto paralelo ao do caso julgado, o “caso decidido”, que igualmente se manifesta no artigo 282.º,. n.º 3, do Código de Processo Penal e que visa, afinal, salvaguardar o princípio constitucional non bis in idem (artigo 29.º, n.º5, da Constituição).
III - O inquérito só poderá ser reaberto se, tendo sido arquivado nos termos do nº2, do artigo 277º, ou seja, por insuficiência da prova quanto à verificação de crime ou da identidade dos seus autores, surgirem novos elementos de prova, como tal devendo ser entendidos todos os que não tiverem sido juntos aos autos, ainda que fossem já do conhecimento do requerente.
III - Os elementos probatórios também são novos e, por isso, em abstrato, aptos para invalidar os fundamentos do despacho de arquivamento sempre que representem uma alteração importante do depoimento anterior; uma testemunha que se retrata, passando a assumir uma versão diferente dos factos será, assim, uma prova nova; o mesmo poderá acontecer com as declarações do arguido, do coarguido, do assistente, das partes civis ou, até, com a prova pericial; mais do que a pessoa ou coisa, interessa o caráter inédito da declaração que agora se anuncia ou dela se consegue extrair.
IV - Os novos elementos de prova devem ser novos, id est desconhecidos pelo magistrado do Ministério Público que determinou o arquivamento e, por isso, ali não considerados; para efeitos de invalidação dos fundamentos do despacho de arquivamento, podem ser utilizados os elementos noviter reperta (aquilo que surge depois do despacho de arquivamento) e noviter producta (aquilo que, embora já existisse, ainda que de forma censurável, não tenha sido introduzido no inquérito); ao invés, os elementos noviter cógnita (tudo aquilo que, ainda que disponível no processo, não tenha sido valorado) são aqui inadmissíveis
V - A novidade dos elementos de prova deve ser aferida só em relação ao titular da ação penal e não ao assistente ou testemunha, sendo indiferente se algum deles vier a contradizer o seu depoimento anterior ou prestar declarações depois de as ter recusado inicialmente ao abrigo do artigo 134.º do Código Processo Penal.
VI - A decisão de rever o despacho de arquivamento não pode, à margem de estritos critérios objetivos de legalidade, servir para censurar a conduta processual dos intervenientes; fazê-lo, a pretexto de responsabilizar os interessados pela sua conduta processual (colaboração ou falta dela), é perder de vista o único propósito para que foi criada a possibilidade de reabertura do inquérito pelo Ministério Público, ou seja, a investigação da verdade material em torno da existência de um crime, seus agentes e responsabilidade, com base em novos elementos de prova.

Texto Integral

Proc. n.º 417/21.7PVNG.P1




Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:


I – RELATÓRIO
No processo comum n.º417/21.7PIVNG do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Criminal do Porto, Juiz 9, o arguido AA foi submetido a julgamento e, a final, proferido acórdão, em 27/6/2023, de cujo dispositivo consta:
“Em face de tudo o exposto, acordam os juízes que compõem este Tribunal Colectivo do Juízo Central Criminal do Porto em julgar parcialmente procedente a acusação/pronúncia e, em consequência:
a) Declaram prescrito o procedimento criminal relativo ao crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1 e 2, do Código Penal (na redacção dada pela Lei nº 7/2000, de 27 -05), respeitante aos factos descritos na acusação/pronúncia situados entre Novembro de 2004 a Junho de 2005, de que estava acusado/pronunciado o arguido AA (tendo com vítima a ofendida BB), com consequente extinção, nesta parte, do presente procedimento criminal;
b) Declaram prescrito o procedimento criminal relativo ao crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1 e 2, do Código Penal (na redacção dada pela Lei nº 7/2000, de 27 -05), respeitante aos factos descritos na acusação/pronúncia situados entre Fevereiro de 2006 e Julho de 2006, de que estava acusado/pronunciado o arguido AA (tendo com vítima a ofendida BB), com consequente extinção, nesta parte, do presente procedimento criminal;
c) Julgam verificada a violação do princípio ne bis in idem, excepção que agora se conhece e se declara, relativamente aos factos que se reportam ao terceiro período ou ciclo de violência doméstica, i.e., de Julho de 2006 a Julho de 2017 (3º crime imputado ao arguido AA, relativamente à ofendida BB), com consequente impossibilidade de apreciação/consideração de tal factualidade no âmbito dos presentes autos;
d) Julgam verificada a violação do princípio ne bis in idem, excepção que agora se conhece e se declara, relativamente aos factos que se reportam ao terceiro período ou ciclo de violência doméstica, i.e., de Julho de 2006 a Julho de 2017 (crime imputado ao arguido AA, relativamente ao ofendido CC), com consequente impossibilidade de apreciação/consideração de tal factualidade no âmbito dos presentes autos;
e) Absolvem o arguido AA da prática de um crime de violência doméstica (art. 152º, nº 1, al. d), do Código Penal) (na pessoa da menor DD);
f) Absolvem o arguido AA da prática de um crime de violência doméstica agravada (art. 152º, nº 1, al. b) e nº 2, al. a), do Código Penal) (na pessoa da ofendida BB);
g) [Por convolação] Condenam o arguido AA, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples (art. 143º, nº 1, do Código Penal) (na pessoa da ofendida BB), na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de €10,00, no total de €1.000,00;
h) Decidem não aplicar ao arguido AA as penas acessórias de proibição de contactos com a ofendida BB, de proibição de uso e porte de armas e de obrigação de frequentar programas específicos de prevenção da violência doméstica (art. 152º, nºs 4 e 5, do Código Penal);
i) Julgam parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante BB e, em consequência, condenam o arguido AA a pagar-lhe, a título de danos não patrimoniais, a quantia de €500,00, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal anual dos juros civis, desde a data da presente decisão até efectivo e integral pagamento.
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, extraindo da motivação, as seguintes conclusões (transcrição):
1. O objeto do recurso prende-se com a questão prévia, invocada no acórdão, que declarou verificada a violação do principio ne bis idem, exceção que agora conheceu e declarou, relativamente aos factos que se reportam ao terceiro período ou ciclo de violência doméstica, i.e., de Julho de 2006 a Julho de 2017 (crimes imputado ao arguido AA, relativamente à ofendida BB), com consequente impossibilidade de apreciação/consideração de tal factualidade no âmbito dos presentes autos e bem assim, julgaram verificada a violação do princípio ne bis in idem, excepção, relativamente aos factos que se reportam ao terceiro período ou ciclo de violência doméstica, i.e., de Julho de 2006 a Julho de 2017 (crimes imputado ao arguido AA, relativamente à ofendida BB), com consequente impossibilidade de apreciação/consideração de tal factualidade no âmbito dos presentes autos e, ainda, relativamente aos factos que se reportam ao terceiro período ou ciclo de violência doméstica, i.e., de Julho de 2006 a Julho de 2017 (crime imputado ao arguido AA, relativamente ao ofendido CC), com consequente impossibilidade de apreciação/consideração de tal factualidade no âmbito dos presentes autos;
2. Objetivando-se a nossa discordância em duas vertentes: uma de natureza formal e outra, substancial;
3. Quanto à primeira, o M. Juiz de julgamento, ao receber a acusação, não verteu essa questão prévia referente a considerar a acusação publica e correspondente despacho de pronúncia, com a exceção invocada ao principio “ne bis in idem”, pois nada disse nesse sentido, embora, então, devesse tê-lo feito, porquanto é nessa fase processual, porque se trata de um saneamento de processo, o local próprio para conhecer dessas questões prévias ou incidentais;
4. É certo que esta questão, a colocar-se, deveria tê-lo sido, na fase instrutória, que decorreu promovida pelo arguido, na qual o Mº JIC, conheceu de todas estas questões – não apenas de natureza substancial referentes à existência de indícios suficientes para imputação dos ilícitos imputados ao arguido em sede acusatória (inquérito), mas também se pronunciou em termos formais, como quanto a esta questão e outras, de natureza incidental;
5. Assim e de acordo com o disposto no artigo 311º nº1, do CPP, o Mº Juiz ao receber a acusação e a subsequente pronuncia, deveria ter obrigatoriamente de conhecer estes factos imputados ao arguido e passiveis de integrarem tais ilícitos penais, porquanto tal preceito legal determina o conhecimento das nulidades e outras questões incidentais, que obstem à apreciação do mérito da causa e de que possa desde logo conhecer;
6. Não o tendo feito, deveria, assim, ter obrigatoriamente de conhecer e julgar pela procedência - ou não -, desses factos, conhecendo-os do seu mérito e não apenas por forma meramente formal, ter absolvido o arguido, na fase de julgamento, porquanto o Mº Juiz, aceitou esses factos como bons e passiveis de poderem ser imputados ao arguido;
7. Sob pena de ter violado uma decisão proferida pelo próprio, aquando do recebimento de acusação pública, já transitada; Tal como uma outra decisão anteriormente prolatada pelo Mº Juiz de Instrução em sede própria;
8. Do ponto de vista substancial, discorda-se da descriminalização desta conduta do arguido, como o M. Juiz referiu, reportada aos factos anteriores a 06 setembro de 2006, em julho de 2006 a julho de 2107 ( crimes imputados ao arguido e na pessoa da ofendida BB) e ainda quanto ao crime praticado sobre o menor CC, desde logo porque o Mº Juiz menciona um principio constitucional mencionado como tratando-se de “ne bis in idem”, quando o mesmo e quanto ao inquérito não ocorre nem poderá ser aplicado;
9. Na verdade, em 11 de setembro de 2017, foi proferido um despacho de arquivamento nos autos apensos de inquérito nº567/17.4PIVNG/apenso A, do DIAP de Vila Nova de Gaia, em relação aos crimes de violência doméstica, da previsão do artigo 152º nº1 al. b) e nº2, do Código Penal, quanto às pessoas dos ofendidos BB e do seu filho menor CC;
10. Arquivamento esse baseado no disposto no artigo 277º nº2, do CPP;
11. Em 22/7/2021, viria este mesmo processo a ser reaberto, nos termos do artigo 279º do CPP, perante novos factos ilícitos, também imputados ao arguido;
12. Porquanto e em relação aos iniciais factos ilícitos - de violência doméstica - se apuraram novos elementos passíveis de se poderem imputar ao arguido o cometimento dos anteriores crimes;
13. Assim, foram nestes autos, juntamente com aqueles reabertos com o nº567/21.7PIVNG, que prévia e inicialmente foram juntos aos nossos com o nº417/21.7PIVNG, aplicada uma medida coativa, após ter sido detido e submetido a interrogatório judicial;
14. Assim, em 17/9/2021, o MP entendendo já terem resultado do inquérito indícios suficientes do cometimento de tais crimes de violência doméstica, por parte do arguido, lavrou competente material para detenção e apresentação deste arguido ao Mº JIC para interrogatório judicial e aplicação de medidas coativas;
15. Por decisão de 07/10/2021 e após o seu interrogatório judicial foram-lhe aplicadas as medidas decorrentes do TIR e a proibição de permanecer na casa morada de família e de contactar com as vítimas;
16. E, mais tarde, foi promovido em 07/10/2022, foi promovido num novo despacho, complementar, a fim de contemplar factos referentes a esse mesmo inquérito, entretanto reaberto, com vista a melhor proteger os ofendidos BB e CC, do arguido, determinando-lhe que passem a beneficiar de apoio psicossocial;
17. Em 14/10/2022, foi proferido despacho de pronúncia onde se conheceu dos episódios que foram levados com a acusação pública e constavam do inquérito nº567/17.4PIVNG, Apenso A, que inicialmente havia sido arquivado, nos termos do artigo 277º nº2, do CPP e por falta de colaboração da vitima;
18. Situação esta não impeditiva de poder ser desenvolvida posteriormente na investigação sobre esses mesmos factos, depois da ocorrência de novos episódios na atualidade e vontade de colaboração pela vítima que antes não tinha existido; como aqui aconteceu;
19. Na verdade, o inquérito do ponto de vista material é um monte de papéis com determinada organização, havendo mais do que um inquérito a tratar do mesmo crime, não é relevante em qual dos dois inquéritos em concreto a investigação se desenvolveu;
20. Tanto mais que o arguido conhecia todos os factos na sua totalidade e em todos os momentos; 21. Já quanto à não concordância sobre o despacho de reabertura e a falta de elementos novos que o Sr. Juiz entendeu inexistir para a sua reabertura, o Mº Juiz de julgamento, não poderá agora e nesta fase processual sindicar tal despacho;
22. Não cabendo ao Juiz de julgamento sindicar os poderes do MP na parte em que ordenou, quer o arquivamento, quer a reabertura, dos presentes autos e em relação a este arguido; Como, efetivamente veio a acontecer!
23. O que é indispensável é que o arguido não responda em Juízo mais do que uma vez pelo mesmo crime;
24. Esta conclusão é ofensiva, inclusive, da separação de poderes e de função dos do Juiz e do MP que se encontram consagrados na lei fundamental (artigo 219º da CRP) e na lei penal (principio da legalidade, previsto no artigo 1º do Código Penal) e da lei processual penal (prevista no artigo 53º do Código de Processo Penal), cabendo ao MP levar a julgamento os agentes cujas condutas sejam passiveis de poderem integrar ilícitos penais desde que existam indícios suficientes (artigo 283º nº1 do CPP), de que contra eles resulte uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, pena ou medida de segurança;
25. Devendo, nesta conformidade, ser a decisão revogada, nessa parte, determinando-se que o Tribunal “ad quo” possa agora, conhecer os factos que não foram, nesta fase processual apurados, para poderem ser analisados e o arguido - caso os mesmos resultem comprovados -, como se nos afigura que o foram, puder ser punido;
26. Assim, esta douta decisão deverá ser revertida, nos nossos propósitos, que aqui peticionamos, ou seja, que venha a ser conhecido e valorado os factos referentes ao contexto de violência doméstica entre o período de julho de 2006 a julho de 2017, referentes aos crimes imputados ao aqui arguido nas pessoas de BB e CC;
27. Sob pena de violação do disposto nos artigos 29.º, nº5, 32.º n.º5, 219.ºambos da Constituição da Republica Portuguesa, 152º nº1 al. b), d), nº2 al. a), 70º, 71º e 77º, todos do Código Penal, 24º, 25º, 277º nº2, 279º, 283º, 308º e 311º, todos do Código Processo Penal.
O arguido respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência (referência 36622514).
Remetidos os autos ao Tribunal da Relação e aberta vista para efeitos do art.416.º, n.º1, do C.P.Penal, o Exmo.Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado improcedente, porquanto na falta de fundamentação do despacho de reabertura do inquérito apensado a estes autos, a apreciação da factualidade objeto do inquérito apensado constituiria uma violação do princípio ne bis in idem (referência 17296115) .
Cumprido o disposto no art.417.º, n.º2, do C.P.Penal, não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO
Decisão recorrida
O acórdão recorrido, quanto à questão objeto do presente recurso, decidiu nos seguintes termos:
“2.2. Questão prévia respeitante à excepção de violação do princípio ne bis in idem.
A) O arguido AA encontra-se acusado/pronunciado pela prática de quatro crimes de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, al. b) e nº 2, al. a), do Código Penal (na pessoa da ofendida BB).
O arguido encontra-se também acusado/pronunciado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, al. d), do Código Penal (na pessoa do ofendido CC).
De acordo com a acusação/pronúncia, existem quatro “períodos” / “ciclos” de violência doméstica, a que correspondem os quatro crimes imputados ao arguido, respeitantes à ofendida BB e ao ofendido CC, com a seguinte configuração temporal:
1º: De Novembro de 2004 a Junho de 2005;
2º: De Fevereiro de 2006 a Julho de 2006;
3º: De Julho de 2006 a Julho de 2017;
4º: De Julho de 2017 a Setembro de 2021.
A propósito do terceiro período ou ciclo de violência doméstica (3ºcrime imputado ao arguido, relativamente à ofendida BB, e crime imputado ao arguido, relativamente ao ofendido CC [sendo certo que nos factos do quarto período ou ciclo de violência doméstica não há qualquer referência ao ofendido CC, sendo certo que, nesta altura, este ofendido já não morava com o arguido e a ofendida BB), a acusação/pronúncia descreve factos que se iniciam em Julho de 2006 e terminam em Julho de 2017:
“Na semana seguinte [por referência a Julho de 2006], mais uma vez, o arguido pediu desculpa à ofendida e esta perdoou-lhe e foi novamente viver com ele.
Sempre que chegava a casa do trabalho (…). (…)
O arguido adoptava condutas rudes para com o filho da ofendida (…). (…)
Desde 2008 a 2017 que pode diversas vezes o arguido agrediu a ofendida (…).
Em Julho de 2017, a ofendida chegou a casa do trabalho, tendo dito ao arguido que o mesmo teria de ir à Makro (…).
(…)
Entretanto, a ofendida conseguiu fugir da residência e apresentou queixa na PSP de ..., tendo dado origem ao processo nº 567/17.4PIVNG.
Em momento posterior, a ofendida telefonou para o seu filho CC, que a informou que poderia regressar a casa pois o arguido havia ido embora da mesma.”.
B) O Inquérito nº 567/17.4PIVNG foi instaurado no DIAP de Vila Nova de Gaia, em 06/07/2017 (que actualmente está apensado aos presentes autos, constituindo o Apenso nº 417/21.7PIVNG-A), na sequência de «Auto de Denúncia (Violência Doméstica)» elaborado pela PSP – Esquadra de ..., Vila Nova de Gaia, aí surgindo como «denunciante» e «vítima» BB e como «denunciado» AA e como «outras vítimas» CC, aí surgindo como data da ocorrência (que ditou a intervenção policial a pedido da vítima na residência sita na Praceta .... ...., Vila Nova de Gaia) o dia 04/07/2017, pelas 17h e 40m, e aí constando, no que agora releva, a seguinte «descrição narrativa dos factos»:
“Compareceu neste Departamento Policial a vítima a comunicar que no período acima mencionado o seu companheiro (suspeito) no interior da sua residência a agrediu, deitando-a ao chão na cozinha, apertando-lhe o pescoço e dando-lhe vários pontapés no braço esquerdo e na perna direita. Aquando das agressões, o seu filho CC, ao ver a mãe ser agredida, tentou parar as mesmas, saltando para cima do suspeito, pedindo para parar e ter cuidado, pois a filha de ambos de 18 meses de nome DD encontrava-se ali no meio a chorar bastante.
A vítima mais informa que esta situação se deveu ao facto de se sentir cansada e ter pedido ao suspeito que fosse ele fazer as compras para o lar bem como para o estabelecimento de snack bar que a vítima possui no centro comercial ... sito na ..., Porto.
Informa ainda que tem sido vítima constante de ameaças de morte e agressões físicas, desde o início da relação, há cerca de 07 anos a esta parte, no entanto nunca efetuou qualquer denúncia contra o mesmo, dado que os sogros sempre lhe pediram para não o fazer.”.
Nos termos do art. 14º do DL nº 112/2009, de 16-09, foi atribuído à vítima o estatuto de vítima.
Foi elaborado a Ficha de RVD-1L.
Foi dado conhecimento à CPCJ de Vila Nova de Gaia (uma vez que os factos foram presenciados pelo(s) menor(es) [identificado(s) como outra(s) vítima(s)], importando acautelar a intervenção para a promoção dos seus direitos e protecção da sua segurança ou do seu equilíbrio emocional).
A ofendida BB foi sujeita a perícia de avaliação do dano corporal em direito penal e a entrevista social, no INMLCF, Delegação do Norte.
Em 24/08/2017 (cfr. auto de inquirição de fl. 36 dos Apenso A), a ofendida declarou não pretender prestar declarações sobre os factos participados (informando ser companheira do arguido há cerca de 12 anos e invocando o disposto no art. 134º, nº 1, do CPP). Mais declarou a ofendida não pretender procedimento criminal contra o denunciado, seu companheiro, e que não voltaram a acontecer factos análogos aos participados.
Em 11/09/2017 (fls. 37 a 39 dos autos), o Ministério Público proferiu despacho de encerramento do inquérito com o seguinte teor (no que agora releva):
“Os presentes autos de inquérito tiveram origem na denúncia apresentada por BB, cujo teor, por economia processual, aqui se dá por integralmente reproduzido, na qual alega ter sido vítima de violência física e verbal por parte do seu companheiro AA.
A factualidade assim denunciada seria eventualmente susceptível de consubstanciar, em abstracto, o crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º nº1 b) e nº 2 do Código Penal.
Realizaram-se as diligências de prova tidas por convenientes, úteis e necessárias ao esclarecimento dos factos e apuramento da verdade.
Não foram localizados inquéritos com os mesmos intervenientes e por factos de idêntica natureza.
A fls. 36 a ofendida exerceu a faculdade de não prestar depoimento sobre os factos e declarou desejar desistir do procedimento criminal.
A ofendida foi submetida a exame médico-legal de cujo relatório resulta que apresentava lesões determinantes de 10 dias de doença.
Não são conhecidas testemunhas dos factos e não se logrou recolher qualquer outro elemento de prova.
Perante a não concretização e comprovação da denúncia apresentada, e em face do disposto no art. 58º nº 1 a) do Código de Processo Penal, não foi constituído arguido e interrogado o denunciado.
Não se vislumbra a realização de outras diligências com efeito útil para os autos.
Tendo em conta a factualidade descrita e o resultado das diligências feitas, verifica-se que não se mostram suficientemente indiciados os factos participados no que concerne à eventual prática do crime de violência doméstica, perpetrado contra a ofendida.
Com efeito, os factos descritos no auto de denúncia não se mostram corroborados por outros elementos de prova, designadamente pela própria ofendida ou por testemunhas, pelo que resta nos autos a perícia médico-legal da qual resulta que aquela apresentava lesões físicas, o que se afigura insuficiente para julgar demonstrado ter sido o denunciado o autor das mesmas.
Os indícios recolhidos são assim manifestamente insuficientes para sustentar um juízo de imputação dos factos ao denunciado quanto ao eventual crime de violência doméstica, para o qual se exige a demonstração de um comportamento reiterado do agente durante um determinado período de tempo, ou pelo menos, a verificação de uma situação isolada que, pela sua gravidade, seja susceptível de integrar o conceito de “maus tratos físicos”.
Conclui-se portanto que face à insuficiência dos indícios recolhidos e à ausência de outras diligências de prova cuja realização suprisse tal insuficiência, não existem elementos que permitam sustentar uma acusação quanto aos mencionados factos, eventualmente integradores de um crime de violência doméstica, já que a acusação deduzida com base nesses factos teria como destino mais provável a absolvição do seu autor (cfr. art. 283º nº2 do Código de Processo Penal).
Neste termos, determino o arquivamento dos autos quanto ao crime em apreço, nos termos do art. 277º nº 2 do Código de Processo Penal, sem prejuízo da sua reabertura caso surjam novos elementos que infirmem os fundamentos da presente decisão.”.
Este despacho foi notificado à ofendida, por via postal simples com prova de depósito.
C) O Processo (Inquérito) nº 417/21.7PIVNG (presentes autos) foi instaurado no DIAP do Porto, em 14/06/2017, na sequência de «Auto de Denúncia (Violência Doméstica)» elaborado pela PSP – Esquadra de ..., Vila Nova de Gaia, aí surgindo como «denunciante» e «vítima» BB e como «denunciado» AA e como «outras vítimas» DD, aí surgindo como data da ocorrência (que ditou a intervenção policial a pedido da vítima na residência sita na Rua ..., Vila Nova de Gaia) o dia 03/06/2021, pelas 18h.
D) Por despacho de 23/06/2021, o Magistrado do Ministério Público titular do Processo nº 417/21.7PIVNG (presentes autos) determinou que se solicitasse a remessa do Inquérito nº 567/17.4PIVNG para consulta, o que foi deferido (ofício de 25/06/2021) (fls. 40 e 43 dos autos).
E) Em 22/07/2021, foi aberta conclusão no Processo (Inquérito) nº 417/21.7PIVNG (presentes autos), com a apresentação do Inquérito nº 567/17.4PIVNG, tendo o Magistrado do Ministério Público proferido o seguinte despacho (datado de 22/07/2021): “Apense o inq. 567/17.4PIVNG e proceda à sua reabertura.” (cfr. fls. 76 e 77 dos autos).
F) Por ofício de 23/07/2021, o Processo (Inquérito) nº 417/21.7PIVNG (presentes autos) solicitou ao Processo nº 567/17.4PIVNG a remessa electrónica dos autos, para apensação (uma vez que o suporte físico do processo já se encontrava nos Serviços do MºPº), tendo sido efectuada a referida remessa electrónica (fls. 78, 80 e 81 dos autos).
Perante os factos e incidências processuais acabadas de descrever, a questão que se coloca é a de saber se os factos constantes do inquérito arquivado podem ou não constar da acusação proferida nos presentes autos.
Apreciando.
Previamente, importa ponderar a possibilidade de agora (i.e., no presente momento processual) ser conhecida a questão em análise.
Ora, aderindo ao entendimento vertido, por exemplo, no Ac. RP, de 03/05/2023 (relator: Moreira Ramos; proferido no Processo nº 739/21.7PRPRT, do Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 8), nada obsta a que a questão entendida como uma nulidade parcial da acusação seja apreciada e decidida após a realização da audiência de julgamento (convocando-se, a propósito, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 2/95, de 16-05, in DR, IS-A, de 12/05/1995).
Passando à apreciação da substância da questão em análise.
Encerrada a investigação, o Ministério Público, após ponderação dos elementos probatórios aí recolhidos, profere decisão, cabendo-lhe concluir se a acção penal deve ou não prosseguir.
A acção penal não prosseguirá, sendo o processo arquivado, quando o MºPº conclua, suportado em prova bastante, pela ausência de verificação de crime, pela ausência de responsabilidade penal do arguido ou pela inadmissibilidade do procedimento (art. 277º, nº 1, do CPP: arquivamento pleno ou de mérito), o mesmo sucedendo quando não tiver sido possível ao MºPº obter indícios suficientes da verificação de crime ou de quem foram os agentes (art. 277º, nº 2, do CPP: arquivamento por falta de prova).
Porém, por via do disposto no art. 279º, nº 1, do CPP, expirado o prazo previsto para a intervenção hierárquica, o inquérito, depois de arquivado, pode ser reaberto, renovando-se a acção penal, se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo MºPº no despacho de arquivamento.
A matéria do carácter definitivo ou não definitivo das decisões do Ministério Público, em termos endoprocessuais ou extraprocessuais, com referência às noções de «força análoga ao caso julgado», ou de «caso decidido», tem sido debatida com alguma frequência na jurisprudência a propósito dos despachos de arquivamento (com particular incidência em processos respeitantes a crimes de violência doméstica).
É sabido não ser apropriado falar-se de caso julgado ou de decisão transitada em julgado a propósito de despachos do Ministério Público.
Isso não significa, no entanto, que as decisões do Ministério Público, proferidas em inquérito, não tenham efeitos processuais de certo modo preclusivos.
Como já foi referido, o arquivamento do inquérito, por falta de prova, ao abrigo do disposto no art. 277º, nº 2, do CPP (e só esta situação interessa para a análise do caso dos presentes autos), não tem efeitos preclusivos definitivos, pois o inquérito pode ser reaberto nos termos do art. 279º, nº 1, do mesmo diploma.
Nas palavras de Paulo Pinto Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª Ed., 2011, pag. 752), no caso do art. 277º, nº 2, do CPP, a decisão do MºPº pode estar viciada pelo desconhecimento de factos relevantes que só posteriormente venham a ser descobertos, não se justificando, pois, qualquer tutela da confiança dos sujeitos processuais na definitividade do caso decidido).
Contudo, para garantir que o Estado não possa perseguir mais do que uma vez a mesma infracção (ou os mesmos factos puníveis), a reabertura de um inquérito só pode ocorrer caso surjam novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento.
Quer dizer, forma-se «caso decidido» sobre o despacho de arquivamento, mas apenas relativamente à matéria probatória apreciada nesse despacho.
O despacho de arquivamento que não seja objecto de intervenção hierárquica, ao abrigo do art. 278º do CPP, nem dê lugar a requerimento de abertura de instrução, consolida-se na ordem jurídica. Não se trata propriamente de caso julgado material, que é restrito às decisões jurisdicionais, mas de paralelo instituto de caso decidido, ou quase caso julgado, das decisões do Ministério Público, a que subjazem os mesmos interesses de salvaguarda da paz jurídica do arguido, ínsitos no princípio ne bis in idem (art. 29º, nº 5, da CRP: “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.”)
Na verdade, este princípio tem autonomia relativamente ao caso julgado material, residindo o seu núcleo na garantia de que o Estado não pode perseguir mais do que uma vez a mesma infracção (os mesmos factos puníveis). Esse âmbito de garantia vai além da própria sentença transitada, abrangendo as decisões do Ministério Público, em ordem a impedir que uma pessoa seja penalmente perseguida mais do que uma vez pelos mesmos factos.
Quer dizer, a tese maioritária, por nós seguida, com relevante lastro na doutrina e na jurisprudência nacionais, é a que afirma a aplicação do princípio ne bis in idem ao inquérito, ao exercício da acção penal (cfr., entre outros, Tiago Geraldo, “A Reabertura do Inquérito (ou a Proibição Relativa de Repetição da Acção Penal)”, in Revista de Concorrência e Regulação, Ano 4, Nº 13 (Jan-Mar 2013), pags. 189 e ss.; Ac. STJ, de 30/10/2019; relator: Vinício Ribeiro; in www.dgsi.pt e Acs. RP, de 10/01/2018 e 25/11/2020; relator: José Carreto; in www.dgsi.pt)
Contudo, como já foi referido, se a limitação da repetição do exercício da acção penal pelo Ministério Público é algo que se impõe pela aplicação do princípio ne bis in idem ao despacho de arquivamento, tal limitação não é absoluta, pois o inquérito que foi arquivado (ao abrigo do disposto no art. 277º, nº 2, do CPP, i.e., por falta de prova, sendo esta a situação que interessa para a análise do caso dos presentes autos) pode ser reaberto, nos termos do art. 279º, nº 1, do CPP.
A possibilidade de reabertura de um inquérito que foi arquivado nos termos do art. 277º, nº 2, do CPP tem como requisito essencial a existência de novos elementos de prova, verificados e analisados no despacho de reabertura.
A exigência de um despacho de reabertura não se mostra difícil de justificar.
Se a reabertura obriga à ponderação da existência de novos elementos de prova que sejam susceptíveis de invalidar os fundamentos do despacho de arquivamento, faz sentido exigir-se a prolação de uma decisão [formal] de reabertura do inquérito (onde tal ponderação seja efectuada).
De resto, quando está em causa um requerimento de reabertura formulado pelo assistente ou pelo denunciante com a faculdade de se constituir assistente, cabe reclamação para o superior hierárquico do despacho que deferir ou recusar a reabertura (art. 279º, nº 2, do CPP).
Discute-se o que sejam novos elementos de prova (expressão utilizada pelo legislador no art. 279º, nº 1, do CPP).
Previamente, importa reconhecer a existência de um objecto (ou tema) do processo inerente à prolação de um despacho de arquivamento, que inclui, quer o thema decidendum (os factos do inquérito arquivado), quer o thema probandum (as provas do inquérito arquivado).
É essa, de resto, a direcção para a qual a lei parece apontar: as limitações decorrentes do regime de reabertura do inquérito previsto no art. 279º do CPP só valerão, em concreto, para um (novo) inquérito relativo a um determinado conjunto de factos, fixado como tal no despacho de arquivamento, o que naturalmente pressupõe a fixação prévia de um objecto do processo (cfr. Tiago Geraldo, ob. cit., pags. 192 e 193).
A novidade dos factos terá de ser aferida, por um lado, do ponto de vista normativo (idêntico àquele que, em matéria de objecto do processo e de caso julgado, é decisivo para a resolução do problema da identidade do facto) e, por outro lado, com rigor e critério semelhantes aos que orientam a rescisão de sentenças condenatórias com base em factos novos.
A reabertura de um processo posterior a um despacho que o manda aguardar melhor prova é com efeito, no fundo, uma verdadeira revisão (sendo o recurso de revisão apontado como um lugar paralelo da reabertura do inquérito, embora de sentido inverso mas sem que isso impeça a aplicação da racionalidade material do recurso de revisão à reabertura do inquérito), embora simplificada no que toca à sua tramitação processual e diferente quanto à autoridade que a ordena (cfr. Ac. RL, de 19/01/2021; relator: Jorge Gonçalves; in www.dgsi.pt, citando a lição de Figueiredo Dias).
Estando assente que o conjunto de factos que integrou o tema do arquivamento (com inclusão das provas ponderadas em tal arquivamento) corresponde ao conjunto de factos que integra (total ou parcialmente) o objecto do novo inquérito (maxime, o objecto do processo fixado na acusação do novo inquérito), haverá violação do princípio ne bis in idem sempre que o objecto do novo inquérito não se baseie em novos elementos de prova, ponderados em despacho de reabertura do novo inquérito, como já foi referido.
Numa primeira aproximação ao conceito de novidade dos elementos de prova, surge a evidência de não ser possível reabrir o inquérito, nos termos do art. 279º, nº 1, do CPP, com prova igual àquela que conduziu ao arquivamento.
Assim, devem considerar-se novos elementos de prova aqueles que eram desconhecidos pelo Ministério Público aquando do arquivamento.
É frequente a presença de uma ideia de responsabilização na obtenção e produção da prova, com consequente efeito preclusivo sobre aquele que, tendo a seu cargo o dever de produzir essa prova, só não o fez por culpa sua.
Logo, só poderão fundamentar a decisão de reabrir o inquérito os elementos de prova que, sendo desconhecidos pelo Ministério Público à data do arquivamento, também não poderiam por este ter sido conhecidos nesse momento, sendo este o critério pelo qual deve ser aferida a aptidão dos meios de prova para despoletar a abertura do inquérito.
Na qualidade de dominus do inquérito, o Ministério Público tem o ónus de investigar e recolher toda a prova possível, sendo exemplo de uma situação em que o desconhecimento de elementos de prova é imputável ao Ministério Público o caso em que foi decidido não ouvir uma testemunha, cuja identidade era conhecida na altura [por ter sido indicada pela vítima, por exemplo], querendo depois fundamentar a reabertura do inquérito com base no seu depoimento.
Pelo contrário, não será imputável ao Ministério Público o desconhecimento de um determinado meio de prova quando essa prova for objectivamente superveniente e, bem assim, quando por causa imputável ao arguido ou à defesa no seu conjunto, o arquivamento se tiver baseado em prova falsa ou manipulada (cfr. Tiago Geraldo, ob. cit., pags. 214 a 217).
No que concretamente se refere à prova testemunhal (questão com relevo para o caso dos autos), entende-se que uma testemunha que já tenha sido inquirida não pode ser considerada um novo elemento de prova, mesmo que haja ampliação do depoimento, i.e., mesmo que a testemunha venha a ser questionada e a depor sobre matérias sobre as quais não incidiu o seu depoimento anterior (cfr. Tiago Geraldo, ob. cit., pag. 219, citando o Ac. STJ, de 01/07/2004, in CJ, STJ, 2004, 2, pag. 247).
Também na hipótese de uma testemunha não ter sido ouvida (por ex., porque o MºPº entendeu que o seu depoimento seria irrelevante), deve considerar-se que o desconhecimento desse meio de prova é imputável ao titular da acção penal e, como tal, não se pode concluir pelo preenchimento do requisito da novidade exigido pelo art. 279º, nº 1, do CPP (cfr. Tiago Geraldo, ob. cit., pags. 219 e 220).
De igual modo, não se pode concluir pelo preenchimento do requisito da novidade exigido pelo art. 279º, nº 1, do CPP, no caso de uma testemunha que validamente se recusou a depor (ao abrigo do disposto no art. 134º do CPP) e que, mais tarde, se dispôs a depor, provocando a “reabertura” do inquérito.
Como é referido no Ac. RP, de 03/05/2023 (relator: Moreira Ramos; já citado), a regra deverá ser a de considerar as declarações da ofendida uma prova pré-existente (não existindo um real novo elemento ou meio de prova) nas situações em que, em momento anterior, a ofendida se remeteu ao silêncio, assim impossibilitando a consideração de tal prova (aceitando o aresto citado como excepção à apontada regra o caso em que o silêncio da vítima não surge como livre, mas pressentidamente condicionado pela delicada situação / ligação existente entre a vítima e o agente).
Uma derradeira questão a analisar é a que se prende com as consequências decorrentes de uma reabertura irregular do inquérito e, concretamente, com a possibilidade de tal “irregularidade” ser apreciada em sede de julgamento (maxime, na decisão final [sentença / acórdão]).
Nos termos do disposto no art. 279º, nº 2, do CPP, do despacho do Ministério Público que deferir ou recusar a reabertura do inquérito há reclamação para o superior hierárquico imediato.
Pode suceder que o visado pela (nova) investigação realizada no inquérito reaberto não tenha sido notificado dessa reabertura (por ex., porque não houve sequer despacho de reabertura ou este não foi notificado ao arguido, o que sucede com frequência nos casos em que a reabertura não é feita a requerimento, mas antes oficiosamente pelo Ministério Público).
Neste caso (e também no caso em que a reclamação hierárquica seja indeferida), o arguido pode atacar os fundamentos da reabertura do inquérito, caso seja deduzida uma acusação contra si, requerendo a abertura da instrução (art. 287º, nº 1, al. a), do CPP), contestando, nesta sede, a verificação dos requisitos necessários a tal reabertura (cfr. Tiago Geraldo, ob. cit., pag. 224 e, por exemplo, a Decisão Instrutória proferida no âmbito do Processo nº 357/20.7PBVLG, do Juízo de Instrução Criminal do Porto – Juiz 3, que deu origem ao Processo com o mesmo número que corre termos no Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 9).
Não desconhecendo a existência de divergência jurisprudencial, entende-se que a verificação dos requisitos necessários à reabertura do inquérito (em ligação com a proibição do ne bis in idem, questão acima analisada) pode igualmente ser conhecida até à prolação da decisão final (o que inclui o conhecimento realizado na própria decisão final).
Para além do Ac. RP, de 03/05/2023 (relator: Moreira Ramos; já citado), onde expressamente se refere que o juiz não está impedido de conhecer, após a realização da audiência de julgamento, aquilo que entendeu constituir uma nulidade parcial da acusação, podem citar-se os seguintes Acórdãos:
- Ac. STJ, de 30/10/2019 (relator: Vinício Ribeiro; já citado), onde é apreciada a substância da questão da violação do princípio ne bis in idem (ainda que com referência a dois processos autónomos e não a um processo reaberto, sendo um dos processos respeitante ao crime de violência doméstica), invocada pelo arguido, sinal de que tal questão poderia ser conhecida (como foi) na decisão final (Acórdão do Tribunal da Relação, que decidiu em 1ª Instância);
- Ac. RE, de 23/02/2016 (relatora: Maria Filomena Soares; in www.dgsi.pt), onde foi mantida a sentença da 1ª Instância, incluindo na parte em que “declaro[u] extinto o procedimento criminal, em obediência ao art. 29º, nº 5, CRP, por força do “caso decidido” formado com a homologação da desistência de queixa no Proc. (…).” (sendo certo que estava em causa um despacho de arquivamento proferido ao abrigo do disposto no art. 277º, nº 1, do CPP e estava igualmente em causa um crime de violência doméstica), sinal de que tal questão poderia ser conhecida (como foi) na decisão final (Sentença de 1ª Instância, onde é referido, além do mais, que “o “caso decidido” só pode ser alterado nos termos previstos nos arts. 279º e 449º, nº 1, (por via do nº 2), CPP, não se verificando nos presentes autos qualquer das circunstâncias, excepcionais, previstas naqueles preceitos”);
- Ac. RC, de 09/03/2016 (relatora: Isabel Valongo; in www.dgsi.pt), onde foi apreciada, em sede de recurso interposto pelo arguido, a questão da violação do princípio ne bis in idem, tendo sido julgada verificada a “excepção do caso julgado por violação do princípio ne bis in idem”, no que respeitava a certos factos da acusação, tendo sido determinada a eliminação de alguns dos factos provados fixados na Sentença da 1ª Instância (estava em causa uma decisão homologatória de desistência de queixa e arquivamento, proferida num inquérito de 2009, respeitante a factos que depois foram vertidos na acusação [e na Sentença de 1ª Instância] proferida num processo de 2015; estava em causa, em ambos os processos, um crime de violência doméstica, respeitante à mesma vítima), sinal de que tal questão poderia ser conhecida (como foi) pelo Tribunal da Relação;
- Ac. RP, de 10/01/2018 (relator: José Carreto; in www.dgsi.pt; já citado), onde foi mantida a sentença da 1ª Instância, incluindo a parte em que, a título de questão prévia inserida na sentença, o tribunal recorrido decidiu que o princípio ne bis in idem impedia o conhecimento de factos que constavam do despacho de arquivamento proferido num primeiro inquérito e que foram depois incluídos na acusação proferida num novo inquérito (estava em causa um despacho de arquivamento proferido em 2015 no âmbito de um inquérito pela prática de um crime de violência doméstica, tendo os factos ali denunciados e arquivados passado a constar de um novo inquérito, iniciado em 2016, depois do referido arquivamento, e posterior acusação, integrados também no crime de violência doméstica, tendo o Tribunal da Relação referido que “tais factos não deviam constar da acusação e constando não devia o tribunal deles conhecer, nos termos apontados, pelo que bem decidiu o tribunal recorrido ao não os apreciar”), sinal de que tal questão poderia ser conhecida (como foi) na decisão final (Sentença de 1ª Instância);
- Ac. RP, de 25/10/2020 (relator: José Carreto; in www.dgsi.pt; já citado), onde foi julgado parcialmente procedente o recurso apresentado pelo arguido, com consequente absolvição da prática de um crime de violência doméstica, concluindo-se que os factos que constavam de um inquérito anterior que foi arquivado por falta de indícios e por desistência de queixa, não podiam ser incluídos na acusação proferida num novo inquérito, por impedimento decorrente do princípio ne bis in idem, tanto mais que não existiam novos elementos de prova e não existiu despacho de reabertura do anterior inquérito; mais se concluiu que constando tais factos da acusação (proferida no novo inquérito), não devia o tribunal deles conhecer (tendo procedido à eliminação de vários dos factos dados como provados na sentença da 1ª Instância, estando em causa, em ambos os processos, um crime de violência doméstica, respeitante à mesma vítima), sinal de que tal questão poderia ser conhecida (como foi) pelo Tribunal da Relação;
- Ac. RL, de 19/01/2021 (relator: Jorge Gonçalves; in www.dgsi.pt; já citado), onde foi mantida a sentença da 1ª Instância, incluindo na parte em que absolveu o arguido da prática de um crime de violência doméstica, por ter concluído, a título de questão prévia inserida na sentença, que vários dos factos vertidos na acusação não podiam ser tidos em conta nos presentes autos por violação do princípio ne bis in idem (estava em causa um despacho de arquivamento proferido no âmbito de um inquérito pela prática de um crime de violência doméstica e o assistente, em lugar de reagir, pelas vias legalmente previstas, ao referido despacho de arquivamento, apresentou mais tarde nova denúncia, em comarca diferente, em parte sobre os mesmos factos, dando origem a um novo processo, onde foi proferida acusação, foi efectuado julgamento, foi proferida a sentença e foi proferido o acórdão Tribunal da Relação de Lisboa acima identificado), sinal de que tal questão poderia ser conhecida (como foi) na decisão final (Sentença de 1ª Instância);
- Ac. RG, de 12/09/2022 (relatora: Cândida Martinho; in www.dgsi.pt; já citado), onde foi mantida a sentença da 1ª Instância, incluindo na parte em que decidiu não poder considerar/apreciar vários dos factos que constavam da pronúncia, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, quando tais factos já haviam sido objecto de inquérito anterior que terminou com decisão de arquivamento, nos termos do art. 277º, nº 2, do CPP, por falta de indícios suficientes da prática do crime de violência doméstica por banda do arguido.
Neste Acórdão é expressamente referido que não configurando a questão levantada e decidia na sentença da 1ª Instância (i.e., a não consideração de factos que constavam da pronúncia, sob pena de violação do princípio ne bis in idem) “qualquer nulidade, mas antes uma excepção que pode e deve ser conhecida em qualquer momento, e não fazendo caso julgado o despacho judicial (tabelar) proferido ao abrigo do disposto no art. 311º do CPP, nenhum obstáculo existia à apreciação da questão em apreço por parte do tribunal recorrido”.
Em suma, todos os citados Acórdãos aceitam que a questão da violação do princípio ne bis in idem, nos termos atrás enunciados (i.e., introdução numa acusação / pronúncia de factos que anteriormente foram objecto de um despacho de arquivamento e sem que se verifiquem os requisitos legais de reabertura do inquérito), pode ser conhecida até à prolação da decisão final (o que inclui o conhecimento realizado na própria decisão final) e até em sede de recurso, configurando tal questão uma «excepção» ou «questão prévia» que pode ser conhecida a todo o tempo (até ao trânsito em julgado da decisão final) (numa perspectiva um pouco diferente, integrando as consequências da indevida reabertura do inquérito no âmbito da proibição de prova (art, 125º do CPP), i.e., as provas recolhidas no inquérito indevidamente reaberto, ou no caso em que não há sequer reabertura de inquérito, não podem ser incluídas no processo, nem utilizadas para lograr a condenação do arguido, cfr. João Conde Rodrigues, anotação ao art. 279º, do CPP, no «Comentário Judiciário do Código de Processo Penal», Vol. III, pag. 1066).
O caso dos autos.
O conjunto de factos que integra o objecto do processo arquivado (ou, dito doutra forma, o tema do arquivamento) inerente ao Inquérito nº 567/17.4PIVNG (que actualmente constitui o Apenso nº 417/21.7PIVNG-A dos presentes autos) já foi acima exposto (cfr. alínea B) do relatório desta decisão).
Em tal Inquérito estavam identificados como vítimas a ofendida BB e o ofendido CC.
A conduta do arguido AA objecto da denúncia efectuada pela ofendida BB no âmbito do Inquérito 567/17.4PIVNG era susceptível de integrar a prática de dois crimes de violência doméstica (tendo como vítimas a ofendida BB e o ofendido CC, então menor de idade), perpetrados até à data da referida denúncia (04/07/2017).
Tal conjunto de factos foi objecto de investigação como integrando o crime de violência doméstica, conforme é referido na decisão de arquivamento do referido Inquérito (cfr. alínea B) do relatório desta decisão).
Não temos dúvidas em afirmar que o objecto do processo inerente à prolação do mencionado despacho de arquivamento (que inclui, quer o thema decidendum [os factos do inquérito arquivado], quer o thema probandum [as provas do inquérito arquivado], como já foi referido), inclui a conduta do arguido face aos ofendidos BB e CC até 04/07/2017 (na denúncia é referido que a ofendida informou, além do mais, que “tem sido vítima constante de ameaças de morte e agressões físicas, desde o início da relação, há cerca de 07 anos a esta parte”).
O objecto do processo é formado por todos os factos perpretados pelo arguido até à decisão final que de forma directa se correlacionam com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido. Os factos que não foram apreciados e que deviam tê-lo sido, por fazerem parte integrante do mesmo “recorte de vida” não podem ser posteriormente apreciados, uma vez que essa apreciação constituiria flagrante violação do princípio ne bis in idem.
O que o art. 29º, nº 5, da CRP, proíbe é, no fundo, que um mesmo e concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal.
Deste modo, aquilo que, devendo tê-lo sido, não se decidiu directamente, tem de considerar-se indirectamente resolvido; aquilo que se não resolveu por via expressa deve tomar-se como decidido tacitamente (pretendendo evitar-se a renovação de processos relativamente a factos que já poderiam ter sido apreciados judicialmente).
Assim, os factos que, na acusação/pronúncia dos presentes autos (Processo nº 417/21.7PIVNG), se reportam ao terceiro período ou ciclo de violência doméstica, i.e., de Julho de 2006 a Julho de 2017 (3ª crime imputado ao arguido, relativamente à ofendida BB, e crime imputado ao arguido, relativamente ao ofendido CC), correspondem, sem qualquer dúvida, ao objecto do Inquérito nº 567/17.4PIVNG (que actualmente constitui o Apenso nº 417/21.7PIVNG-A dos presentes autos) e, portanto, foram objecto de apreciação e decisão de arquivamento (e de manifestação de não pretensão de procedimento criminal contra o denunciado).
Pressuposta a identidade de objectos processuais (nos termos atrás expostos), é tempo de analisar a questão da possibilidade de o objecto do Inquérito nº 567/17.4PIVNG poder integrar o objecto (acusação/pronúncia) dos presentes autos (Processo nº 417/21.7PIVNG.
De acordo com a análise acima realizada, tal possibilidade só existiria se houvesse lugar à reabertura do Inquérito nº 567/17.4PIVNG, nos termos legalmente previstos (i.e., a possibilidade de reabertura de um inquérito que foi arquivado nos termos do art. 277º, nº 2, do CPP tem como requisito essencial a existência de novos elementos de prova, verificados e analisados no despacho de reabertura), sob pena de violação do princípio ne bis in idem.
Ora, analisados os factos e incidências processuais sintetizados no relatório da presente decisão (alíneas A) a F)), resulta evidente a inexistência de fundamento legal para a reabertura do Inquérito nº 567/17.4PIVNG (e consequente consideração na acusação/pronúncia dos presentes autos dos factos que constituíam o objecto de tal Inquérito).
Em primeiro lugar, não foi proferido (nos presentes autos, após incorporação ou apensação do referido Inquérito) qualquer despacho que expressamente (e fundamentadamente) declarasse reaberto o Inquérito nº 567/17.4PIVNG.
De facto, o despacho proferido nos presentes autos em 22/07/2021 (referido na alínea E) do relatório da presente decisão: “Apense o inq. 567/17.4PIVNG e proceda à sua reabertura”) não cumpre minimamente o comando legal inerente à necessidade de prolação de um despacho de reabertura.
Em segundo lugar, não existem (e se existissem, deveriam ser ponderados no despacho de reabertura) novos elementos de prova susceptíveis de invalidar os fundamentos invocados no despacho de arquivamento do Inquérito nº 567/17.4PIVNG.
De facto, quer o depoimento da ofendida BB, quer o depoimento do ofendido CC (prova que sustenta a acusação/pronúncia dos presentes autos e que apresenta diferenças quanto à prova considerada no Inquérito nº 567/17.4PIVNG), constituem prova pré-existente, não podendo ser considerados como novos elementos ou meios de prova, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 279º, nº 1, do CPP (ainda que, no âmbito do Inquérito nº 567/17.4PIVNG, a ofendida BB tenha optado por recusar a prestação de depoimento e o Ministério Público tenha optado por não ouvir o ofendido CC [que estava identificado como vítima na denúncia que deu origem ao mencionado Inquérito], não se pode concluir pelo preenchimento do requisito da novidade exigido pelo art. 279º, nº 1, do CPP).
Em consequência, a inclusão na acusação/pronúncia proferida nos presentes autos dos factos que se reportam ao terceiro período ou ciclo de violência doméstica, i.e., de Julho de 2006 a Julho de 2017 (3º crime imputado ao arguido, relativamente à ofendida BB, e crime imputado ao arguido, relativamente ao ofendido CC), traduz uma ofensa ao princípio ne bis in idem, excepção que agora se conhece e se declara, e que conduz à impossibilidade de apreciação/consideração de tal factualidade no âmbito dos presentes autos.

Decisão:
Em face do atrás exposto, julga-se verificada a violação do princípio ne bis in idem, excepção que agora se conhece e se declara, relativamente aos factos que se reportam ao terceiro período ou ciclo de violência doméstica, i.e., de Julho de 2006 a Julho de 2017 (3º crime imputado ao arguido, relativamente à ofendida BB, e crime imputado ao arguido, relativamente ao ofendido”

Apreciação
É entendimento uniforme da jurisprudência que o âmbito do recurso se delimita pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.
Atentas as conclusões apresentadas, as questões trazidas à apreciação deste tribunal reconduzem-se a saber se o tribunal a quo podia apreciar em sede de acórdão a violação do princípio ne bis in idem e se a violação deste princípio ocorre quanto aos factos que se reportam ao período de Julho de 2006 a Julho de 2017.
1ªquestão: sustenta o recorrente que o juiz do julgamento ao proferir o despacho previsto no art.311.º do C.P.Penal não se pronunciou sobre a violação do princípio ne bis in idem, embora esse fosse o momento para o fazer, porquanto é nessa fase processual, dado tratar-se de um saneamento de processo, o local próprio para conhecer das questões prévias ou incidentais. Segundo ainda o recorrente, “Não o tendo feito, deveria, assim, ter obrigatoriamente de conhecer e julgar pela procedência, ou não, deles, conhecendo-os do seu mérito e não apenas por forma meramente formal, ter absolvido o arguido, na fase de julgamento, sem os ter apreciado. Ao fazê-lo, o Mº Juiz, aceitou esses factos como bons e passiveis de poderem ser imputados ao arguido”.
Salvo o devido respeito por opinião contrária, não assiste razão ao recorrente.
Dispõe o art.311.º, n.º1, do C.P.Penal «Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.»
É hoje entendimento pacífico que a decisão relativa a nulidades, exceções e questões prévias ou incidentais proferida no âmbito do despacho a que se reporta o art.311.º do C.P.Penal só faz caso julgado formal se o juiz apreciou em concreto tais questões e não quando há uma pronuncia genérica sobre a respetiva inexistência, na mesma linha de entendimento do decidido no AFJ 2/95, de 16/5/1995, a propósito da legitimidade do Ministério Público (v., a este propósito, António Latas, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV, 2ªedição, pág.45, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ªedição, pag.799/800, e, entre outros, Ac.R.Porto de 3/5/2023, Proc. n.º209/21.3T9MCN.P1).
No caso dos autos, quer na decisão instrutória quer no despacho proferido no âmbito do art.311.º, n.º1, do C.P.Penal, houve tão-só uma pronúncia genérica sobre a inexistência de nulidades, exceções ou questões prévias que obstassem ao mérito da causa.
Face a essa pronúncia genérica, não se formou caso julgado sobre tais matérias, pelo que o tribunal a quo não está impedido de, no acórdão, apreciar, como apreciou, as questões prévias que obstam à apreciação de mérito, entre elas, a prescrição do procedimento criminal e a violação do princípio ne bis in idem.
Improcede, assim, este fundamento do recurso.
2ªquestão: na tese recursiva não pode ser invocada a violação do princípio ne bis in idem na fase de inquérito, sendo que o facto de alguns dos episódios levados à acusação constarem do inquérito inicialmente arquivado nos termos do artº 277º, nº 2, do CPP, por falta de colaboração da vítima, “não é impeditivo de ser desenvolvida, posteriormente, investigação sobre esses mesmos factos, depois da ocorrência de novos episódios e existência na atualidade, de vontade de colaboração por parte da vítima, que antes não tinha existido”.
Vejamos.
O nosso processo penal tem estrutura acusatória, pelo que o objeto do processo fica fixado na acusação e no requerimento de abertura da instrução quando formulado pelo assistente, estando o tribunal a ele vinculado no seu poder de cognição.
Porém, a fixação do objeto do processo pode ainda ocorrer na fase do inquérito, quando este termina por arquivamento. Como salienta o Ac.R.Lisboa de 7/3/2018, proferido no processo n.º38/16.6PBFUN.L1-3, esse é o entendimento que resulta quando o art.279.º do C.P.Penal faz referência a novos elementos de prova que fundamentem a possibilidade de reabertura do inquérito, ou seja, «caso não se reconheça o objecto do processo (constituído por um conjunto de factos), então estar-se-ia a permitir que o MP pudesse arbitrariamente reabrir o processo, prosseguindo a acção penal quanto a factos que tendo sido investigados não tinham sido levados à acusação, pelos quais acusou o arguido noutro processo».
Estabelece o artigo 277.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.Penal:
«1 - O Ministério Público procede, por despacho, ao arquivamento do inquérito, logo que tiver recolhido prova bastante de se não ter verificado crime, de o arguido não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente inadmissível o procedimento.
2 - O inquérito é igualmente arquivado se não tiver sido possível ao Ministério Público obter indícios suficientes da verificação de crime ou de quem foram os agentes.»
Por sua vez, o art.278.º do C.P.Penal, dispõe, sob a epígrafe “intervenção hierárquica”:
«1 - No prazo de 20 dias a contar da data em que a abertura de instrução já não puder ser requerida, o imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público pode, por sua iniciativa ou a requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam, indicando, neste caso, as diligências a efectuar e o prazo para o seu cumprimento.
2 - O assistente e o denunciante com a faculdade de se constituir assistente podem, se optarem por não requerer a abertura da instrução, suscitar a intervenção hierárquica, ao abrigo do número anterior, no prazo previsto para aquele requerimento.»
E preceitua o art. 279.º, sob a epígrafe “reabertura do inquérito”:
«1 - Esgotado o prazo a que se refere o artigo anterior, o inquérito só pode ser reaberto se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento.
2 - Do despacho do Ministério Público que deferir ou recusar a reabertura do inquérito há reclamação para o superior hierárquico imediato.»
A questão do carácter definitivo ou não das decisões do Ministério Público tem sido debatida a propósito dos despachos de arquivamento.
Embora não se possa falar de caso julgado ou de decisão transitada em julgado a propósito de despachos do Ministério Público, dado que não se trata de uma decisão jurisdicional e por isso é que um inquérito arquivado pode ser “reaberto”, o certo é que tal reabertura apenas pode ocorrer se surgirem novos elementos de prova, conforme dispõe o art.279.º, n.º2, do C.P.Penal
A Professora Anabela Miranda Rodrigues, in Inquérito no novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, 1988, pág.76, pronunciou-se no sentido de que «o despacho de arquivamento (…) nunca terá a força de caso julgado que o torna definitivo. Isto quer dizer que aquela decisão apenas adquiriu uma força análoga à do caso julgado, que na doutrina se designa por caso julgado “rebus sic stantibus”. Efectivamente, em qualquer hipótese de não acusação (art.277.º, n.º1), mas sobretudo tendo em vista os casos em que o Ministério Público não chega a um juízo definitivo sobre a existência ou inexistência de crime e a determinação dos seus agentes (art.277.º, n.º2), esta realidade há-de limitar a eficácia processual definitiva a atribuir ao despacho do arquivamento, mantendo-se ela sob a reserva da cláusula rebus sic stantibus, ou seja, condicionada à susperveniência de novos elementos de prova que devam considerar-se “novos” em relação aos já apreciados.»
Segundo o Conselheiro Maia Costa, in Código de Processo Penal, Comentado, 2014, pág. 973, em anotação ao artigo 277.º «o despacho de arquivamento proferido nos termos do n.º1 do artigo 277.º que não seja impugnado pelas formas indicadas, ou que seja confirmado, “consolida-se” na ordem jurídica, não podendo em caso algum ser “reaberto”.
Trata-se não propriamente de “caso julgado” que se reporta exclusivamente a decisões de natureza jurisdicional (carácter de que carecem as decisões do Ministério Público), mas de um instituto paralelo, o “caso decidido”, que igualmente se manifesta no artigo 282.º,.n.º3 e que visa, afinal, salvaguardar o princípio constitucional non bis in idem (art.29.º,n.º5, da Constituição).
O inquérito arquivado ao abrigo do n.º2 pode ser reaberto, mas apenas quando surjam novos elementos de prova (art. 279.º). Forma-se, pois, também “caso decidido” sobre o despacho de arquivamento, mas “apenas relativamente à matéria probatória apreciada nesse despacho.»
Acrescenta ainda o Conselheiro Maia Costa, em comentário ao art. 279.º, que:
«1. O despacho de arquivamento que não seja objecto de intervenção hierárquica, ao abrigo do art. 278.º, nem dê lugar a requerimento de abertura de instrução, consolida-se na ordem jurídica. Não se trata propriamente de “caso julgado, que é restrito às decisões jurisdicionais, mas de paralelo instituto de “caso decidido”, ou “quase caso julgado”, das decisões do Ministério Público, a que subjazem os mesmos interesses de salvaguarda da paz jurídica e do princípio ne bis in idem (art. 29.º, n.º5, da Constituição). Daí que aquelas decisões não revistam natureza administrativa.
2. O inquérito só poderá ser reaberto se, tendo sido arquivado nos termos do nº2, do artigo 277º, ou seja, por insuficiência da prova quanto à verificação de crime ou da identidade dos seus autores, surgirem novos elementos de prova, como tal devendo ser entendidos todos os que não tiverem sido juntos aos autos, ainda que fossem já do conhecimento do requerente.»
A questão que se coloca é a de saber o que são novos elementos de prova para efeitos de reabertura do inquérito e se, in casu, se verificam.
Segundo Conde Correia, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 2ªedição, Tomo III, pág.1105/1106, «A expressão “novos elementos de prova” inclui quer os novos meios de prova, típicos (prova testemunhal, declarações do arguido, do assistente ou das partes civis, acareação, reconhecimento, reconstituição do facto, prova pericial, prova documental) ou atípicos (…) quer os novos meios de obtenção de prova (exames, revistas e buscas, apreensões e escutas telefónicas).
(…)
Os elementos probatórios também são novos e, por isso, em abstrato, aptos para invalidar os fundamentos do despacho de arquivamento sempre que representem uma alteração importante do depoimento anterior (…). Uma testemunha que se retrata [contra, ac.RL de 7.3.2018 (Vasco Freitas)], passando a assumir uma versão diferente dos factos será, assim, uma prova nova. O mesmo poderá acontecer com as declarações do arguido, do coarguido, do assistente, das partes civis ou, até, com a prova pericial. Mais do que a pessoa ou coisa, interessa o caráter inédito da declaração que agora se anuncia ou dela se consegue extrair. (…) Os novos elementos de prova devem ser novos, id est desconhecidos pelo magistrado do MP que determinou o arquivamento e, por isso, ali não considerados. Para efeitos de invalidação dos fundamentos do despacho de arquivamento, podem ser utilizados os elementos noviter reperta (aquilo que surge depois do despacho de arquivamento) e noviter producta (aquilo que, embora já existisse, ainda que de forma censurável, não tenha sido introduzido no inquérito). Ao invés, os elementos noviter cógnita (tudo aquilo que, ainda que disponível no processo, não tenha sido valorado) são aqui inadmissíveis.»
No mesmo sentido, o Ac.R.Porto de 19/10/2022, proc.n.º657/20.6PDVNG.P1, « São novos os elementos de prova em função do seu conteúdo e não do meio de prova que o corporiza. Assim, a alteração relevante das declarações do arguido, assistente, parte cível ou de uma testemunha, que apresenta uma versão diferente dos factos, será uma prova nova.
São novos os elementos de prova objetivamente supervenientes ao arquivamento (produzidos e/ou juntos posteriormente a esse despacho), mas não aqueles antes disponíveis que não tenham sido valorados, sendo relevante o conhecimento ou cognoscibilidade do Ministério Público em relação aos mesmos e não o conhecimento por parte daquele que os invoca (arguido, assistente, testemunha, etc)
A garantia da proibição da dupla perseguição penal estende-se não só ao que foi conhecido no primeiro processo, mas também a tudo o que aí poderia ter sido conhecido, o que decorre da estrutura acusatória do processo penal, com a delimitação do objeto do processo pela acusação.
Contudo, a novidade dos elementos de prova deve ser aferida e só em relação ao titular da ação penal e não ao assistente ou testemunha, sendo indiferente se algum deles vier a contradizer o seu depoimento anterior ou prestar declarações depois de as ter recusado inicialmente ao abrigo do art.134º, do Código Processo Penal.
As vicissitudes da prova, sobretudo quando condicionadas pelo exercício das faculdades legais, como é o caso da vítima de violência doméstica que se recusa a depor, nos termos do art.134º, nº1, do Código Processo Penal, não devem interferir no juízo de reabertura ou não do inquérito.
A decisão de rever o despacho de arquivamento não pode, à margem de estritos critérios objetivos de legalidade, servir para censurar a conduta processual dos intervenientes.
Fazê-lo, a pretexto de responsabilizar os interessados pela sua conduta processual (colaboração ou falta dela), é perder de vista o único propósito para que foi criada a possibilidade de reabertura do inquérito pelo Ministério Público, ou seja, a investigação da verdade material em torno da existência de um crime, seus agentes e responsabilidade (art.s 262º, nº1, e 267º, ambos do Código Processo Penal), com base em novos elementos de prova.
Convocar a tutela da confiança e paz jurídica do arguido, num caso que foi decidido “rebus sic stantibus”», ante o regime previsto no art.279º, do Código Processo Penal, é esquecer os condicionalismos específicos a que ficou sujeito o arquivamento do inquérito.»
Tendo presente os dispositivos legais acima mencionados e face ao que entendemos por elementos probatórios novos, afigura-se-nos que não andou bem o tribunal recorrido.
Há que atentar nas seguintes ocorrências processuais:
O Inquérito nº 567/17.4PIVNG foi instaurado no DIAP de Vila Nova de Gaia, em 06/07/2017 (que actualmente está apensado aos presentes autos, constituindo o Apenso nº 417/21.7PIVNG-A), na sequência de «Auto de Denúncia (Violência Doméstica)» elaborado pela PSP – Esquadra de ..., Vila Nova de Gaia, aí surgindo como «denunciante» e «vítima» BB e como «denunciado» AA e como «outras vítimas» CC, constando como data da ocorrência (que ditou a intervenção policial a pedido da vítima na residência sita na Praceta .... ...., Vila Nova de Gaia) o dia 04/07/2017.
Em 24/08/2017 (cfr. auto de inquirição de fl. 36 dos Apenso A), a ofendida declarou não pretender prestar declarações sobre os factos participados, invocando o disposto no art. 134º, nº 1, do C.P.Penal. Mais declarou a ofendida não pretender procedimento criminal contra o denunciado, seu companheiro.
Em 11/09/2017 (fls. 37 a 39 dos autos), o Ministério Público proferiu despacho em que concluiu: “Nestes termos, determino o arquivamento dos autos quanto ao crime em apreço, nos termos do art. 277.º nº 2 do Código de Processo Penal, sem prejuízo da sua reabertura caso surjam novos elementos que infirmem os fundamentos da presente decisão.”.
Este despacho foi notificado à ofendida, por via postal simples com prova de depósito..
O Inquérito n.º 417/21.7PIVNG (os presentes autos) foi instaurado em 14/6/2021 na sequência de auto de denúncia elaborado pela PSP, em que a data da ocorrência (que ditou a intervenção policial a pedido da vítima, na residência sita na Rua ..., Vila Nova de Gaia), é o dia 03/06/2021. Nesse auto de denúncia, a ofendida relatou ainda os factos que deram origem à instauração do inquérito n.º567/17.4PIVNG.
Por despacho de 23/06/2021, o Magistrado do Ministério Público titular dos presentes autos determinou que se solicitasse a remessa do Inquérito nº 567/17.4PIVNG para consulta, o que foi deferido.
Em 22/07/2021, foi aberta conclusão nos presentes autos, com a apresentação do Inquérito nº 567/17.4PIVNG, tendo o Magistrado do Ministério Público proferido, em 22/7/2021 o seguinte despacho: “Apense o inq. 567/17.4PIVNG e proceda à sua reabertura.”. Por ofício de 23/07/2021, o Processo (Inquérito) nº 417/21.7PIVNG (presentes autos) solicitou ao Processo nº 567/17.4PIVNG a remessa eletrónica dos autos, para apensação (uma vez que o suporte físico do processo já se encontrava nos Serviços do MºPº), tendo sido efetuada a referida remessa eletrónica (fls. 78, 80 e 81 dos autos).
Houve, assim, a apensação aos presentes autos do Inquérito n.º567/17.4PIVNG e a reabertura deste. É certo que o despacho a ordenar a reabertura do inquérito não está fundamentado, como se impunha. No entanto, a falta de fundamentação desse despacho constitui uma irregularidade (arts. 97.º, n.º5 e 123.º, n.º1, ambos do C.P.Penal) e, não tendo sido arguida atempadamente, mostra-se sanada.
Nos presentes autos, a ofendida BB relatou não só os factos que deram lugar à instauração deste processo, como ainda os factos que deram origem à instauração do Inquérito n.º567/17.4PIVNG.
Perante esta alteração da conduta processual da vítima, este novo elemento de prova, o Ministério Público reabriu o inquérito arquivado nos termos do art.277.º, n.º2, do C.P.Penal, no qual a vítima tinha recusado depor ao abrigo do art.134.º.
Como se salienta no Ac.R.Porto de 19/10/2022, já acima mencionado, e na linha de entendimento de João Conde Correia, «Mais do que a novidade do meio de prova interessa a novidade do seu conteúdo, bem podendo o conhecimento desse novo elemento probatório resultar da retratação da testemunha ou da confissão do arguido, esclarecimento adicional de qualquer deles ou repetição de uma perícia.
Após o despacho de arquivamento, bem podia o legislador ter invocado razões atinentes à paz jurídica do arguido para não aceitar a reabertura do inquérito, conformando a sua definitividade.
Assim o fez no caso previsto no art.282º, nº3, do Código Processo Penal, impedindo a reabertura do inquérito.
Contudo, na hipótese do arquivamento previsto no art.277º, nº1 e 2, do Código Processo Penal, não foi essa a opção do legislador.
O Ministério Público tem o poder-dever de promover e considerar as diligências pertinentes de investigação (art.53º, nº1, do Código Processo Penal), devendo reabrir oficiosamente o inquérito sempre que tenha conhecimento de elementos de prova que não considerou no despacho de arquivamento.»
No caso dos autos, o Ministério Público reabriu o inquérito que havia arquivado conforme competência que lhe é atribuída no art. 279.º do C.P.Penal.
A sindicância desse despacho apenas podia ter sido feita pelos interessados por via da reclamação hierárquica ou por via da abertura de instrução; não o tendo sido feito, não cabia na fase de julgamento apreciar o mérito do mesmo
Por isso, reaberto que foi o inquérito n.º567/17.4PIVNG por decisão da entidade competente, sem que a mesma tivesse sido impugnada pelos meios legais e sem que se verifique nulidade ou irregularidade que não se encontre sanada, não há impedimento ao conhecimento dos factos referentes ao período de julho de 2006 a julho de 2017, não se verificando a violação do princípio ne bis in idem ou a limitação imposta pela força do “caso decidido”.
De salientar que a jurisprudência invocada no acórdão recorrido, se refere a situações não coincidentes com a dos presentes autos, pois são casos em que não houve reabertura dos inquéritos, mas antes apreciados factos dos inquéritos arquivados em novos inquéritos.
Nessa conformidade, impõe-se a revogação do acórdão recorrido, devendo nessa parte os autos prosseguir, não sendo objeto deste recurso proceder à apreciação sobre a relevância jurídica ou sobre o carácter genérico ou conclusivo dos factos imputados na acusação quanto ao período de julho de 2006 a julho de 2017, o que oportunamente competirá ao tribunal recorrido.
Embora em sede de fundamentação, o tribunal tenha feito referência à falta de credibilidade da ofendida, relativamente aos factos que considerou abrangidos pela violação do princípio ne bis in dem não se pronunciou especificadamente sobre os mesmos.
Decorrências nos termos do art. 403.º n.º3 do C.P.Penal.
Caso o tribunal venha a considerar factos provados juridicamente relevantes, integradores do crime de violência doméstica deverá reapreciar a qualificação jurídica quanto aos factos já apurados, face à natureza de crime habitual, na eventualidade de se vir a concluir pela prática reiterada de um único crime de violência doméstica praticado contra a ofendida, com a consequente perda de autonomização das condutas ilícitas integrantes.

III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes da 1ªSecção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso do Ministério Público e em consequência revogam o acórdão recorrido na parte em que declarou a violação do princípio ne bis in idem, devendo, pelo mesmo tribunal, ser substituído por outro que conheça dos factos imputados na acusação nos termos suprarreferidos, se necessário com reabertura da audiência.

Sem custas.

(texto elaborado pela relatora e revisto por todos os signatários)


Porto, 8/11/2023
Maria Luísa Arantes
Pedro Afonso Lucas
José Quaresma