CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MAUS TRATOS
ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL
NOVA SENTENÇA
NULIDADE DA SENTENÇA
GRAVAÇÃO DE IMAGENS
Sumário

I - Tendo sido, numa primeira decisão do tribunal de recurso, decidido «declarar a nulidade da sentença recorrida» por indevida valoração de meios de prova proibidos, determinando–se que «em conformidade, se reconfigure a matéria de facto (fundamentação e motivação) e respectiva matéria de direito», o poder jurisdicional relativo aos termos da nova sentença a proferir mostra–se devolvido à primeira instância, que deve exatamente proceder a uma reapreciação do objeto da causa, podendo ou não, em resultado desse exercício, considerar devida qualquer alteração a nível de decisão sobre a matéria de facto e de qualificação jurídico penal.
II - Não resultando de parte alguma dos autos que as imagens captadas em vídeo da atuação da assistente (no caso) o hajam sido sem o seu consentimento e conhecimento – tendo até os documentos em causa sido juntos e admitidos nos autos pelo tribunal de julgamento sem reserva, e sem que a mesma assistente alguma vez haja manifestado qualquer reserva quanto a tal junção ou ao respetivo conteúdo –, não é de presumir, em sede de sentença, essa falta de conhecimento e de anuência naquela captação de imagens, pelo que se mostra excluída a ilicitude da sua captação, sendo assim prova válida e sujeita à livre apreciação do julgador.
III. - O mecanismo processual adequado a sindicar a omissão de consideração em sede de sentença de factos que o recorrente repute de essenciais à decisão da causa, será a consideração de tal circunstancialismo em sede de eventual nulidade da sentença, conforme previsão do artigo 379.º, n.º 1, a), do Código de Processo Penal, por preterição da completude das menções referidas no n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal.
IV - Na ponderação sobre a verificação dos pressupostos do crime de violência doméstica não pode perder–se de perspetiva aquilo que a matéria de facto concretamente apurada nos autos revele enquanto imagem global do facto, sendo para tal efeito relevante aferir se os factos traduzem episódios recíprocos que denotam uma progressiva deterioração do relacionamento entre os sujeitos, e não uma vilipendiação de um deles pelo outro, que haja afetado o modo de vida, as opções pessoais, auto–determinação e livre expressão da personalidade do primeiro – isto é, uma perturbação de tal forma acentuada da sua vida que se consubstancie no conceito de maus tratos exigida pelo nº1 do artigo 152º do Código Penal.

Texto Integral

Processo nº 471/20.9PIVNG.P2

Tribunal de origem: Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia, Juiz 4 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto



Acordam em conferência os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto :


I. RELATÓRIO

No âmbito do processo comum (tribunal singular) nº 471/20.9PIVNG que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia – Juiz 4, em 22/03/2023 foi proferida Sentença, cujo dispositivo é do seguinte teor :
«VIII - DECISÃO:
Nestes termos, julgo a acusação pública totalmente procedente, por provada, e
em consequência decido:
a) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 01 (um) mês de prisão;
b) Suspender a execução da pena de 2 (dois) anos e 01 (um) mês de prisão aplicada ao arguido AA por igual período de 2 (dois) anos e 01 (um) mês, sujeita a regime de prova, direcionada para a responsabilização pelos seus comportamentos, com vista a uma maior consciencialização sobre o desvalor das condutas de violência nas relações de intimidade e para os padrões relacionais disfuncionais, mediante plano de reinserção social a elaborar pela DGRSP, e com imposição das seguintes obrigações e regras de conduta:
- responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social;
- receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar-lhe à disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência;
- Informar o Técnico de Reinserção Social sobre alterações de residência;
- Frequentar o Programa para Agressores de Violência Doméstica dinamizado pela DGRSP;
c) Condenar o arguido AA no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal, nos termos do disposto no artigo 513º do Código de Processo Penal, e no artigo 8º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais. »


*
Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 26/04/2023, o arguido AA, extraindo da motivação as seguintes conclusões :
(…)
MMM. Na procedência do recurso, deveria a factualidade dada como provada ser alterada como preconizado pelo arguido, resultando na sua ulterior absolvição.
NNN. Ainda que assim não fosse, no mínimo, deveria a qualificação jurídica ser revista pelo Tribunal da Relação, alterando, quando muito, por hipótese de raciocínio que o arguido é forçado a colocar, para um crime de ofensa à integridade física; com toda a consequente alteração ao nível da escolha da pena e da sua concreta dosimetria – caso o Tribunal de recurso viesse a concluir estarem reunidos todos os pressupostos para a punibilidade com distinto enquadramento jurídico.

O recurso, por despacho de 03/05/2023, foi admitido.

A este recurso respondeu a assistente BB, em 26/05/2023, nos termos que da resposta em causa constam, pugnando dever o recurso ser julgado integralmente improcedente, mantendo-se a condenação do arguido nos termos da decisão recorrida.

A este recurso respondeu também o Ministério Público junto do tribunal a quo, em 08/06/2023, nos termos que da mesma resposta constam, propugnando igualmente pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida.

Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 27/06/2023, emitiu parecer através do qual propugna também pela improcedência do recurso.

Cumprido o disposto no artigo 417º/2 do Cód. de Processo Penal, veio o arguido AA responder, reiterando o essencial dos fundamentos do recurso interposto.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.

Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir.
*

II. APRECIAÇÃO DO RECURSO

O objecto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, devendo assim a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como é designadamente o caso das nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento (previstas expressamente no art. 119º do Cód. de Processo Penal e noutras disposições dispersas do mesmo código), ou dos vícios previstos no art. 379º ou no art. 410º/2, ambos do Cód. de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995), podendo o recurso igualmente ter como fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada, cfr. art. 410º/3 do Cód. de Processo Penal.
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – cfr. arts. 403º, 412º e 417º do Cód. de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 29/01/2015 (proc. nº 91/14.7YFLSB. S1)[1], e de 30/06/2016 (proc. nº 370/13.0PEVFX.L1.S1)[2]. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, ‘Curso de Processo Penal’, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

A esta luz, as questões a conhecer no âmbito do presente acórdão são as de apreciar e decidir sobre:

1. se a sentença recorrida é nula por desrespeito da anterior decisão deste Tribunal da Relação ou por se mostrar esgotado o poder jurisdicional por reporte à sentença inicialmente proferida e anteriormente anulada;
(…)
4. se há erro de julgamento, nos termos do art. 412º/3 do Cód. de Processo Penal;
Incluindo nesta sede a decisão sobre se a matéria de facto provada deve ser objecto de alteração por aditamento de novos factos resultantes da discussão e julgamento da causa;
(…)
7. se se verificam os pressupostos da prática pelo arguido do crime de violência doméstica pelo qual vem condenado.
*
Comecemos por fazer presente o teor da decisão recorrida, nos segmentos que relevam para a apreciação das questões suscitadas em sede do recurso interposto pelo arguido.

a. É a seguinte a matéria de facto considerada como provada pelo tribunal colectivo em 1ª Instância :
«Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos, com interesse para a decisão a proferir:
1º- O arguido AA e a assistente BB casaram entre si a 09-06-2012.
2º- Residiam, quando regressaram da Bélgica, onde casaram, na Travessa ... ..., Vila Nova de Gaia.
3º- A assistente BB era já mãe de uma criança, fruto de um anterior relacionamento, CC, nascido em .../.../2009, que vivia com o casal.
4º- Do casamento do arguido e da assistente nasceu DD, em .../.../2013.
5º- No ano de 2014, AA, à data militar da Guarda Nacional Republicana (GNR), abandonou, voluntariamente, o seu emprego.
6º- A partir do ano de 2016, o arguido passou a gerir a tempo inteiro um estabelecimento comercial/bar que o casal adquiriu, denominado “A...”, e situado na freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, o qual já havia laborado na época balnear de 2015.
7º- A partir desse momento, o arguido passou a trabalhar no período noturno, para efetuar o encerramento do bar.
8º- O arguido pedia avultadas quantias de dinheiro à assistente BB.
9º- Em consequência do referido em 7º e 8º, o casal passou a discutir com muita frequência.
10º- Na constância dessas discussões, por diversas vezes e em número de vezes não concretamente apurado, o arguido dirigia-se à assistente apelidando-a de “parva” e de “estúpida”, e dizendo-lhe que ela não valia nada e que não sabia nada.
11º- Também na constância das discussões, por diversas vezes e em número de vezes não concretamente apurado, o arguido disse à assistente que se ela morresse ele seria o herdeiro do seu património.
12º- Ainda na constância das discussões, pelo menos por cinco vezes, o arguido exibiu-lhe uma pistola que tinha consigo em casa e disse-lhe que a arma estava consigo e nunca o largava, enquanto lhe referia que se ela morresse ficava com todo o seu dinheiro.
13º- Em data não concretamente apurada dos meses de Junho ou Julho de 2014, quando o arguido e a assistente se encontravam no Brasil para assistir aos jogos de futebol do Campeonato Mundial de Futebol, a assistente sofreu um aborto espontâneo e necessitou de tratamento hospitalar, ao qual se deslocou sozinha por o arguido ter recusado acompanhá-la, o que muito a entristeceu.
14º- Por causa do deteriorar do relacionamento entre ambos, no ano de 2018, e embora continuassem a viver mesma casa, o arguido e a assistente passaram a dormir em quartos separados, por iniciativa desta.
15º- Durante o período do relacionamento conjugal, o arguido pretendeu controlar os movimentos da assistente quando esta se deslocava à casa que possuía na Bélgica, pagando a um funcionário desta para lhe dar informações sobre as suas rotinas naquele país.
16º- Em Junho de 2020, a assistente BB regressou de uma viagem de trabalho à Bélgica, para onde havia viajado no mês de Março daquele ano.
17º- Durante a ausência da assistente e sem o conhecimento e o consentimento desta, o arguido contratou uma funcionária de limpeza para a casa, e readmitiu um funcionário que a assistente tinha despedido e com quem estava de relações cortadas, para limpar a piscina.
18º- Entregou àquele último um comando para abrir o portão de entrada, e ordenou a ambos que obedecessem exclusivamente às suas ordens, e não a qualquer ordem que lhes fosse dirigida por BB, e que se mantivessem no interior da casa a trabalhar, ainda que contra a vontade expressa desta.
19º- Em data não apurada do mês de Junho do ano de 2020, quando a assistente se encontrava em casa, foi surpreendida pela presença da mencionada funcionária de limpeza, que ali adentrou e, uma vez convidada a retirar-se por BB, recusou-se, argumentando estar a obedecer às ordens do arguido AA.
20º- No dia 20 de Junho de 2020, BB tomava, vestida com um biquíni, banhos de sol junto à piscina, quando o funcionário referido em 18º, usando o comando que AA lhe entregara, entrou na casa, e perante a ordem que lhe deu para sair de casa, o mesmo recusou-se, alegando que só cumpria ordens do arguido.
21º- Durante o mês de Junho de 2020, o arguido passou a dar mote a discussões diárias com a assistente, nas quais lhe dizia, aos berros, “não veles nada”, “não sabes nada”, “se morreres… eu é que vou gerir isto tudo… o património que o teu filho vai herdar”, assim a menosprezando.
22º- Ainda durante o mês de Junho de 2020, em dia não apurado, quando se encontravam junto à piscina, o arguido disse à assistente, à frente dos menores, que se ela quisesse entrar na piscina teria que pagar 5,00€ porque a piscina era dele, e instruiu as crianças para que lhe atirassem água.
23º- No dia 28 de Junho de 2020, pelas 00h.30m, no interior da casa onde viviam e na presença das duas crianças, o arguido AA, porque BB se recusou a permitir que as crianças pernoitassem na sala com ele, iniciou uma discussão com esta.
24º- A assistente encaminhou as crianças para as suas camas, e quando estas já estavam nos seus respetivos quartos, o arguido AA, no corredor de acesso ao quarto, dirigiu-se a esta, dizendo-lhe “eu mato–te, e quando BB lhe virava costas para adentrar no seu quarto, desferiu-lhe um murro na cabeça e outro no lado direito da face, provocando-lhe fortes dores na cabeça e no nariz.
25º- Como resultado direto e necessário do referido em 24º, o arguido AA causou a BB dores e incómodos, concretamente dor à palpação de septo nasal, e dor à mobilização articular temporomandibular direito, com necessidade de recurso a analgesia, que lhe determinaram 1 (um) dia para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho.
26º- Com muito medo de AA, BB tentou sair de casa e levar consigo as duas crianças.
27º- Quando o arguido a impediu de sair com o filho de ambos, DD, BB acabou por sair somente com CC, e pernoitou, com a criança, num hotel em Vila Nova de Gaia.
28º- Regressou a casa no dia seguinte, com a intenção de conseguir sair em definitivo de casa levando consigo as duas crianças.
29º- Até ao dia 02 de Julho de 2020, dia em que conseguiu sair e levar consigo os dois filhos, BB, com muito medo do arguido, dormiu no seu quarto, na casa que até então partilharam, com a porta fechada e trancada com a chave.
30º- No dia 30 de Junho de 2020, durante a noite, o arguido AA bateu insistentemente à porta do quarto de BB e, quando esta não lhe respondeu, tentou abrir a porta, que estava trancada.
31º- No dia 02 de Julho de 2020, BB abandonou a casa, levando consigo os seus dois filhos, deixando todos os seus pertences e os das crianças, e acomodouse, até ao final daquele mês, num hotel.
32º- Tendo descoberto onde a assistente BB se havia estabelecido com as duas crianças, no dia 26 de Agosto de 2020, pelas 15h00m, o arguido deslocou-se ao local e aguardou a chegada daquela.
33º- Quando a assistente chegou acompanhada das duas crianças, um amigo do arguido, EE, de quem se fazia acompanhar, filmou BB e os meninos, até estes entrarem em casa.
34º- Com muito medo de AA, BB chamou a polícia.
35º- O arguido e a assistente estabeleceram acordo (provisório) de Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos autos com o n.º 4397/20.8T8VNG-A, a correr termos no Juiz 3 do Juízo de Família e Menores de Vila Nova de Gaia quanto ao menor DD, o que ocorreu na data de 08 de Setembro de 2020.
36º- Num dos fins de semana que passou com o pai, em data não apurada do ano de 2020 mas posteriormente ao acordo referido em 35º, o menor DD regressou aos cuidados da mãe muito perturbado, chorou muito, manteve-se sempre ao pé da mãe e agarrado a ela, urinou na cama, e puxou a cabeça de BB em direção aos seus órgão genitais, quando esta lhe calçava sapatos, dizendo “chupa, chupa”.
37º- Atuando como atuou, o arguido AA quis, como fez, atentar contra o brio, a consideração e a dignidade de BB e degradá-la e humilhá-la enquanto pessoa, mãe e mulher.
38º- E quis, como fez, causar-lhe temor e assustá-la, perturbar o seu quotidiano e colocá-la em permanente estado de intranquilidade, bem sabendo que a sua conduta era apta a consegui-lo.
39º- Quis, como fez, aproveitar o recato e a privacidade do interior da casa onde viviam para melhor lograr os seus intentos, não se coibiu, porque assim ditavam as suas vontades, de atuar como atuou.
40º- Atuando como concretamente se descreve em 24º e 25º, o arguido quis, como fez, molestar o corpo de BB e provocar-lhe dores e incómodos, bem sabendo que a sua conduta era apta a causá-los, e bem sabendo que o fazia contra a sua cônjuge e mãe do seu filho.
41º- E atuou sempre com especial desconsideração e total desprezo pela pessoa que consigo era casada, perpetuando tal atuação mesmo após o fim do relacionamento de ambos, procurando, por todas as formas, fragilizar BB, atemorizá-la, espezinhá-la e envergonhá-la, e coartá-la na sua liberdade de se orientar conforme a sua própria vontade.
42º- De tal modo que BB passou a organizar a sua vida de maneira a proteger-se do mal que temia que AA lhe fosse causar.
43º- Atuando, em todos os momentos, livre, deliberada e conscientemente, AA fê-lo sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.

Provou-se ainda que:
(da contestação)
44º- Desde o início do casamento e até Junho de 2020, a assistente ausentou-se para o estrangeiro por diversas vezes, e durante largos períodos de tempo, deixando os seus filhos ao cuidado do arguido.
45º- Em Abril de 2012, o casal tinha constituído a sociedade por quotas denominada “B..., LDA” e o arguido foi nomeado gerente da mesma na data de 25 de Março de 2014, e em Novembro de 2014 o casal, juntamente com um amigo comum, constituíram a sociedade “C..., LDA”, que adquiriu a concessão do bar de praia “A...”, reconstruiu-o e passou a explorá-lo.
46º- No horário de Inverno, o Bar “A...” encerrava à meia noite, e no horário de Verão, encerrada às 02h.00m de segunda a sábado, e ao Domingo encerrava à meia noite.
47º- Com as quantias em dinheiro que lhe eram transferidas pela assistente, o arguido efetuava o pagamento de despesas de alimentação, despesas domésticas, empregada doméstica, viagens, colégios e todas as despesas escolares, de alimentação e de vestuários das crianças, e o lugar da família na tribuna do Estádio ....
48º- A assistente é filha de FF e de GG, família detentora da empresa belga “D... ...), uma multinacional de bebidas e cerveja cotada na Euronext de Bruxelas.
49º- O arguido contratou uma empregada doméstica nos termos referidos em 17º por necessidade dele próprio, uma vez que a assistente tinha ordenado à empregada comum do casal que deixasse de fazer as tarefas domésticas ao arguido.
Mais se provou que:
50º- O arguido e a assistente encontram-se divorciados desde 01 de Junho de 2021.
51º- O arguido é considerado no meio familiar e no meio social em que se insere como uma pessoa calma, contida e serena, e é por todos muito estimado e respeitado.
52º- É um trabalhador dedicado e cumpridor dos compromissos, e um pai dedicado e extremoso, que sempre nutriu muito amor e carinho pelo filho do casal e pelo filho da assistente.
53º- O arguido é empresário, aufere um salário como gerente do bar “A...” de 1.500,00€ por mês, reside em habitação própria, despende mensalmente 250,00€ no pagamento da pensão de alimentos devida ao menor DD, iniciou uma nova relação afetiva e vive com a companheira, e tem como habilitações literárias o 12º ano de escolaridade.
54º- Não tem antecedentes criminais. »

b. São os seguintes os factos dados como não provados pelo tribunal de 1ª Instância :
« Factos não provados, com relevo para a decisão a proferir:
Com relevância para a decisão da causa, não se apuraram quaisquer outros factos, tendo resultado os seguintes factos não provados:
a) Que, após o referido em 6º, o arguido tenha passado a dormir de dia, a ingerir bebidas alcoólicas com frequência e em excesso, e a frequentar casinos, onde jogava e apostava;
b) Que as discussões referidas em 9º e 10º ocorressem diariamente;
c) Que as ameaças referidas em 11º e 12º tenham ocorrido quando a assistente questionava em particular o arguido sobre a razão de ter chegado tarde a casa ou sobre o destino dado às avultadas quantias de dinheiro que lhe transferia;
d) Que, após o referido em 14º, o arguido tenha passado a enviar mensagens ao longo do dia à assistente para controlar os seus movimentos, e que tenha questionado as duas crianças sobre aquilo que a mesma faz;
e) Que as discussões referidas em 21º tenham ocorrido na presença do filho do casal DD;
f) Que, nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 24º e 25º, a assistente tenha ficado com ferimentos;
g) Que, nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 28º e 29º, a assistente tenha também permanecido todo o tempo que pôde no interior do quarto, por receio do arguido;
h) Que, nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 32º e 33º, o arguido tenha adotado uma postura ameaçadora para com a assistente;
i) Que o arguido referisse à assistente que de nada lhe adiantaria apresentar queixa, porque conhecia todos os militares e agentes da polícia, que o protegeriam;
j) Que, no fim-de-semana de 14 e 15 de Novembro, no âmbito das visitas acordadas no processo referido em 35º, o arguido tenha dito ao menor DD que iria ficar sem a mãe, aos cuidados do pai e da avó paterna, e para se preparar para essa realidade, e insistiu com a criança para que chamasse à mãe e às pessoas que lhe são próximas nomes como “ordinária” e “macaco”, prometendo-lhe que lhe comprava cartões de jogo se o menino assim o fizesse;
k) Que, nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 36º, o menor DD tenha dito à assistente BB que não queria voltar a estar com o pai, e que que o menor tenha puxado a cabeça da mãe na direção dos seus genitais por ter sido instruído nesse sentido pelo arguido e por um arguido deste, por forma a ofender e perturbar a assistente, prevalecendo-se da imaturidade do menor;
l) Que o arguido tenha assustado de tal modo a assistente que esta, temendo ser surpreendida sozinha e sem capacidade de se defender, se faça acompanhar, sempre que pode, por alguém na rua;
(da contestação)
m) Que a assistente tenha estado ausente no estrangeiro entre 14 de Setembro e 19 de Novembro de 2019, entre 30 de Novembro de 2019 e 31 de Janeiro de 2020, entre 08 de Fevereiro e 15 de Fevereiro de 2020, e entre 21 de Fevereiro e 13 de Março de 2020;
n) Que tenha sido a assistente a solicitar ao arguido que abandonasse a G.N.R., por efetuar trabalho em períodos noturnos, pela perigosidade das funções e pela precariedade da remuneração;
o) Que o arguido tivesse passado a trabalhar na sociedade referida em 45º após a sua saída da G.N.R.;
p) Que a assistente tenha iniciado um relacionamento extraconjugal em finais do ano de 2019 e que o tenha declarado a familiares do arguido.
*
Não se provaram quaisquer outros factos, para além dos constantes da factualidade provada e não provada, ou que com os mesmos estejam em contradição, e que assumam relevo para a decisão a proferir, tendo em conta que nos presentes autos foi proferido despacho de arquivamento quanto aos factos denunciados no Inquérito 485/20.9GAVNG, que foi apensado a estes autos, verificando-se caso julgado quanto aos mesmos, e sem prejuízo dos factos que se encontrem em investigação noutros inquéritos pendentes. »
(…)

Apreciemos então as questões suscitadas, pela ordem de prevalência processual sucessiva que revestem – isto é, de forma a que, por via da sucessiva apreciação de cada uma, se vá alcançando, na medida do necessário, um progressivo saneamento processual que permita a clarificação do objecto das seguintes.
*
1. De saber se a sentença recorrida é nula por desrespeito da anterior decisão deste Tribunal da Relação ou por se mostrar esgotado o poder jurisdicional por reporte à sentença inicialmente proferida e anteriormente anulada.

Inicia o recorrente os termos do seu recurso por suscitar a questão da nulidade da sentença ora proferida pela primeira instância, alegação que assenta em duas vertentes.
Assim, e em primeiro lugar, alega o arguido que a sentença ora recorrida incorreu em violação do Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 09/11/2022, pois que «não procedeu a qualquer reconfiguração da matéria de facto e de direito, nem refez o seu juízo crítico sobre a “nova prova” [limitada nos termos decididos pelo TRP]», voltando a expô-lo para eventual nova sindicância, em eventual novo recurso (como o presente), nem referiu ou justificou, se procederia, ou não, e em que termos e com que fundamentos, a tal reconfiguração – o que, propugna, corresponde à comissão de nulidade insanável por violação das regras da competência hierárquica do tribunal, tipificada no art. 119°/e) do Cód. de Processo Penal e violação do dever de obediência a uma decisão de um tribunal superior.
Depois, alega ainda que a sentença ora impugnada não se limitou a excluir os meios de prova identificados como proibidos pelo tribunal de recurso, pois resulta do trabalho de comparação entre a originária sentença de 22/03/2023, e esta de 24/03/2022, que o Tribunal recorrido procedeu a outras alterações da sentença, sem que essas alterações tenham sido anunciadas ou se apresentem justificadas ou ressalvadas – o que consubstancia nulidade da sentença, nessa parte, por violação do princípio do caso julgado e do esgotamento do poder jurisdicional, consignado no art. 613º do Cód. de Processo Civil, aplicável ex vi art. 4º do Cód. de Processo Penal.

Apreciemos, desde já se adiantando que não assiste razão ao recorrente sob qualquer das perspectivas de invalidade processual propostas.

Assim, é verdade que, havendo sido oportunamente proferida, em 24/03/2022, uma primeira sentença pela primeira instância nos presentes autos, e sendo esta objecto de recurso para este Tribunal da Relação, veio aqui a ser proferido (em 09/11/2022) acórdão onde, além do mais, se decidiu «declarar a nulidade da sentença recorrida, por utilização na formação da convicção do julgador de prova de valoração proibida, impondo-se a prolação de nova sentença que exclua como meios de prova o conteúdo do auto de denúncia e aditamento (de fls. 42/46 e de fl. 27) e das fichas RVD/reavaliação de risco para situações de violência doméstica (de fls. 24 e 25, de fls. 70 e 71, de fls. 220 e 221, de fls. 356 a 358, e de fls. 459 a 460), tudo elaborado nos autos pela P.S.P., e, em conformidade, reconfigure a matéria de facto (fundamentação e motivação) e respectiva matéria de direito.».
É nesta sequência que vem a ser proferida a sentença ora objecto de recurso.
E este singelo relatório, só por si, já permite constatar desde logo que o poder jurisdicional do tribunal de primeira instância não se mostra esgotado por via do acórdão proferido por esta instância de recurso – muito pelo contrário, esse poder foi–lhe expressamente reatribuído no momento em que se decretou a nulidade da sentença anterior, declaração que teve como efeito liminar a eliminação da mesma sentença do processo de conformação jurídica do objecto dos presentes autos.
Foi, assim, em estrita obediência hierárquica à decisão proferida por esta segunda instância, que o tribunal recorrido veio a proferir nova sentença, que era aquilo que se lhe impunha – situação que está, pois, nos antípodas da violação das regras da competência do tribunal prevista como nulidade no invocado art. 119º/e) do Cód. de Processo Penal.
Não é, de todo, verdade que o tribunal a quo haja procedido do modo que o recorrente classifica como falta de «reconfiguração da matéria de facto e de direito» e de refazimento do «seu juízo crítico sobre a “nova prova”». A nova sentença proferida corresponde exactamente a uma reapreciação do objecto da causa – agora, note–se, e aí sim como expressamente determinado por esta instância, sem a consideração dos meios de prova declarados como não permitidos nesta sede. A questão é, como muito facilmente se constata pela leitura da nova decisão, que o tribunal de primeira instância, em resultado desse exercício, vem a considerar que não existe qualquer alteração a nível de decisão sobre a matéria de facto e de qualificação jurídico penal.
Se tal conclusão é do agrado do recorrente, ou até se se revela ou não acertada, essa é questão diferente, e que sempre pode ser objecto susceptível de sindicância nos termos processualmente permitidos.
Ou seja, o tribunal efectivamente reponderou os elementos probatórios válidos dos autos, e decidiu em conformidade ; sucede é que decidiu em termos iguais aos anteriores, o que não lhe estava vedado – sendo de realçar que de parte alguma da decisão proferida por esta instância de recurso resultava a imposição de qualquer alteração da decisão sobre a matéria de facto ou de direito, poder jurisdicional esse que precisamente foi devolvido à primeira instância.
Aliás, diga–se, e salvo o devido respeito, a alegação do recorrente não deixa de se apresentar como algo inusitada, em face dos termos do recurso agora apresentado nos autos desta nova decisão de primeira instância. Na verdade, mal se compreende como, considerando o recorrente estar esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido, vem então suscitar no âmbito deste novo recurso, questões jurídico-processuais que já suscitara no recurso anterior, e que foram apreciadas e decididas por esta instância previamente (atenta a sua prevalência processual) àquela declaração de nulidade. Se considera essas questões definitivamente julgadas, então não deveria suscitá–las de novo. Porém, fá–lo – e bem, diga–se.
Adiante.
Face a quanto fica exposto, já se antevê que soçobram os fundamentos da segunda vertente argumentativa invocada como nulidade nesta parte.
Estando o poder jurisdicional efectivamente devolvido à primeira instância, tais alterações inserem–se em absoluto no âmbito de exercício do mesmo por esse tribunal.
Notar–se–á, para que dúvidas não se suscitem, que não se constata que a nível de decisão da matéria de facto tenha havido lugar a qualquer alteração susceptível de impor a respectiva comunicação aos sujeitos processuais, maxime nos termos dos arts. 358º e 359º do Cód. de Processo Penal – não sendo, muito manifestamente, tal o caso das alterações de redacção assinaladas pelo recorrente por via do «trabalho de comparação» elencado no ponto A.4. das conclusões de recurso.
Assim, e no que tange à alteração da redacção reportado à alínea d) da matéria de facto não provada, a mesma revela–se absolutamente anódina para a sorte do objecto dos autos, sendo ademais que a mesma nem sequer é alvo de impugnação no âmbito do presente recurso interposto pelo arguido.
Quanto às elencadas alterações detectadas em sede de motivação da decisão sobre a matéria de facto, as mesmas mostram–se em absolto salvaguardadas pelo normal exercício do poder jurisdicional atribuído à primeira instância, nos termos que sobejamente vêm de se expor.

Em suma, e concluindo nesta parte, não se julga verificada qualquer nulidade nos termos e com os fundamentos neste segmento recursório, improcedendo assim o mesmo.

(…)

4. De saber se há erro de julgamento, nos termos do art. 412º/3 do Cód. de Processo Penal.

Vem entretanto o recorrente, e em parte substancial da sua petição recursória, impugnar o exercício de julgamento da matéria de facto por parte do tribunal a quo.
Como é consabido, a decisão da matéria de facto em sede de recurso pode ser sindicada por duas vias alternativas:
– no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º/2 do Cód. de Processo Penal,
– ou através da designada impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º/3/4/6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido art. 410.º, cuja indagação, como resulta imposto do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento ; no segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do Cód. de Processo Penal.
O erro de julgamento, consagrado no artigo 412º/3 do Cód. de Processo Penal, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado; ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Neste caso, e na sequência do já exposto, o recurso quer reapreciar concretos segmentos de prova produzida em primeira instância, havendo assim que a reproduzir tale quale em segunda instância, por forma a apreciar da verificação da específica deficiência suscitada.
Notar–se–á, não obstante, que nos casos de tal impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, mas antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, e sempre na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
E é exactamente por o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituir um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, os aludidos erros que o recorrente deverá expressamente indicar, que se impõe a este o ónus de proceder a uma especificação sob três vertentes, conforme estabelecido no art. 412º/3 do Cód. de Processo Penal, onde se impõe que, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar :
a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados,
b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida,
c) as provas que devem ser renovadas. A assim exigida tríplice especificação traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal exercício recursivo com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõem decisão diversa da recorrida, com a explicitação da razão pela qual assim se entende.
Sendo que, com relação às duas últimas especificações, recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência : havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser prima facie apreciadas pelo tribunal – é o que resulta do nº4 do art. 412º do Cód. de Processo Penal, que exactamente exige que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.
Cumpre assinalar que não deixará a instância de recurso de tomar em consideração, para além desses específicos trechos, também outros produzidos em audiência, nos termos previstos no nº 6 do mesmo art. 412º do Cód. de Processo Penal – onde precisamente se prevê que “No caso previsto no n.º 4 [onde, por sua vez, se determina que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”], o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.”.
Em suma, e retomando quanto se vinha dizendo, quando se pretenda efectivamente sindicar a decisão recorrida no âmbito desta apreciação mais alargada resultante da impugnação da matéria de facto, resulta imposto pelo texto do nº3 do art. 412º do Cód. de Processo Penal que não é uma qualquer divergência que pode levar o Tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto. Quando, no artigo 412º/3/b) do Cód. de Processo Penal se alude às «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida», deve distinguir-se essa situação daquelas em que as provas em causa, sem imporem decisão diversa, admitiriam decisão diversa da recorrida na base de um outro juízo sobre a sua fidedignidade.

Efectuadas estas considerações – como forma de enquadramento dos limites em que se move a invocação desta forma de impugnação ampliada do exercício de fundamentação de facto por parte do tribunal a quo –, vejamos quanto sucede no caso concreto dos autos.
No caso, o recorrente vem invocar o incorrecto julgamento da matéria de facto por parte do tribunal de primeira instância, alegando que tal deficiente exercício se prende, fundamentalmente, quer com a ausência de prova suficiente, quer com uma insuficiente avaliação efectuada da prova elencada no acórdão recorrido – mesclando a alegação, diga–se, com a invocação de deficiências na consignação de alguns pontos da mesma matéria de facto que inviabilizariam a possibilidade da sua consideração.

(…)

4.viii. Quanto aos pontos 23. a 25. da matéria de facto provada.
Nos pontos 23. a 25. da matéria de facto provada em sede de sentença, consignou o tribunal a quo o seguinte circunstancialismo:
23º- No dia 28 de Junho de 2020, pelas 00h.30m, no interior da casa onde viviam e na presença das duas crianças, o arguido AA, porque BB se recusou a permitir que as crianças pernoitassem na sala com ele, iniciou uma discussão com esta.
24º- A assistente encaminhou as crianças para as suas camas, e quando estas já estavam nos seus respetivos quartos, o arguido AA, no corredor de acesso ao quarto, dirigiu-se a esta, dizendo-lhe “eu mato-te”, e quando BB já lhe virava costas para adentrar no seu quarto, desferiu-lhe um murro na cabeça e outro no lado direito da face, provocando-lhe fortes dores na cabeça e no nariz.
25º- Como resultado direto e necessário do referido em 24º, o arguido AA causou a BB dores e incómodos, concretamente dor à palpação de septo nasal, e dor à mobilização articular temporomandibular direito, com necessidade de recurso a analgesia, que lhe determinaram 1 (um) dia para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho.

Entende o recorrente que tais factos foram incorrectamente dados como provados, pelos motivos consignados nas alegações e que se relacionam quer com a existência de prova testemunhal indiciária, e documental, directa, a impor, à luz das regras científicas, da experiência comum, e no contexto do caso concreto, decisão diversa.

Assim, e para sustento da sua alegação neste segmento, começa o recorrente por invocar não ser é verosímil que o arguido, ex-guarda da GNR «na flor da idade» desferisse os aludidos murros da assistente sem que nesta tenha hajam sido detectadas lesões, no imediato ou subsequentes, sendo certo que nem o relatório de alta hospitalar nem o relatório do INML referem lesão, limitando-se a consignar as queixas, subjectivas, verbalizadas então pela mesma assistente ; ademais, nem a testemunha que alegadamente esteve à conversa com a assistente imediatamente após «a suposta agressão», diz ter visto qualquer lesão.
Nesta parte, e além de remeter para o teor daquela documentação clínica, o recorrente recorta os seguintes trechos do depoimento da testemunha HH :
– testemunha HH
Ficheiro 20211207112052_16026670_2871629
Dia 07/12/2021 das 11:20:53 a 11:33:48 :
Juíza – O que é que o senhor faz? (00:55 a 00:56)
Testemunha - Diga? (00:57)
Juíza – A profissão (00:58)
Testemunha – Sou empregado da dona BB (00:59 a 01:00)
(…)
Mandatário – E fora da “B...”, fora das empresas, na vida pessoal da dona BB e do senhor AA, o senhor teve conhecimento concretamente alguma agressão física do senhor AA à dona BB? (03:24 a 03:42)
Testemunha – Eu não sei, ela ligou-me um dia à noite, a chorar, disse-me que foi agredida pelo senhor AA, eu nem consegui perceber o motivo, que ela não parou de chorar (03:43 a 03:50)
Mandatário – Que horas eram? (03:51)
Testemunha – Era de noite, era à noite (03:52 a 03:55)
Mandatário – Mas era de noite quê, depois do jantar? (03:55 a 03:57)
Testemunha – Sim, sim, sim, sim (03:57 a 03:58)
Mandatário – Depois do jantar, mas já perto de (03:58 a 04:01)
Testemunha - Já perto das dez e meia, onze horas, por aí, não sei ao exato a hora, e ela pediu-me se podia ficar com o filho, o CC (04:02 a 04:08)
Mandatário – Com o CC (04:08)
Testemunha – Ela, “eu tenho que ir ao hospital”, e ela chegou ao pé do meu prédio, eu saí cá fora, queria falar com ela, só que ela estava tão assustada, estava a chorar, e eu fiquei com o miúdo, a ver o miúdo lá em cima e a senhora já vem buscar depois o miúdo. O CC estava sempre a chorar, dizia veja bem como é que está a mãe, veja bem como é que está a mãe (04:09 a 04:26)
(…)
Mandatário – Mas, vindo um bocadinho atrás, ela disse-lhe que ia ao hospital fazer o quê e porquê? (04:49 a 04:55)
Testemunha – Porque foi agredida pelo senhor AA (04:56 a 04:57)
Mandatário – Ela disse-lhe que tinha sido agredida (04:58 a 04:58)
Testemunha – Sim, sim (04:59)
Mandatário – (…) mas, nessa noite? (04:59)
Testemunha - Sim, sim, sim (05:00)
Mandatário – E ela depois explicou-lhe como é que foi agredida? (05:01 a 05:03)
Testemunha - Sim, sim, disse que foi agredida com estalos, com murros em nariz, murro no nariz (05:04 a 05:08)
Mandatário – E, portanto, tinha acabado de acontecer isso, essa agressão? (05:11 a 05:14)
Testemunha - Sim, ela vinha a chorar dentro do carro, vinha a chorar dentro do carro (05:14 a 05:16)
Mandatário – Vinha a chorar, então, vinha nervosa? (05:16 a 05:17)
Testemunha – Sim, sim, sim (05:18 a 05:19)
Mandatário – E tinha alguma marca na cara? (05:20 a 05:22)
Testemunha – É assim, não vi que era escuro, era escuro, à noite, ela só “fica com o CC que eu tenho que ir para o hospital”, eu peguei logo no menino e disse tem calma (05:23 a 05:30)

A tudo acresce, alega ainda, prova em vídeo, traduzida nos ficheiros de vídeos captados pelo arguido no seu telemóvel no dia da suposta agressão (28/6/2020), e de onde resulta que a assistente arranca o filho à força da cama, que chora e diz “não, mãe, eu não quero”, enquanto a mãe lhe diz, “anda comigo! anda comigo! vais andar comigo!”, e logo após abre a porta e sai de casa, calmamente, já com outra roupa, sem falar, sem chorar, sem tremer, sem barafustar, sem fugir, sem se encolher, sem evidenciar qualquer tremura, hesitação ou medo.
Propugna o recorrente que tal prova tem de ser admitida e valorada, pois que os vídeos em causa foram recolhidos à vista plena da assistente, que assistiu, viu e sabia da gravação, estando excluída a eventual ilicitude da mesma gravação no caso concreto, por se considerar ter o arguido agido ao abrigo do direito de necessidade previsto no artigo 34º do Cód. Penal e com justificação de manifestas exigências de justiça, não colhendo a justificação inscrita na sentença para não haver considerado os elementos probatórios em causa.

Vejamos.
A primeira nota que cumpre assinalar é a de que corresponde à realidade objectivada nos elementos dos autos quanto o recorrente recorda nesta parte, isto é, o Relatório de alta clínica de fls. 105 dos autos, elaborado pelo Serviço de Urgência do Hospital ... no dia 28/06/2020, junto a fl. 105 dos autos (a que depois alude, reproduzindo–o, o Relatório do INML datado de 29/06/2021 – um ano depois do facto aqui em crise –, junto a fls. 34), não relata qualquer lesão visível que haja sido detectada na pessoa da assistente aquando da deslocação àquele serviço naquele dia ; também se mostram adequadamente reproduzidos os aludidos trechos do depoimento da testemunha HH ; e também se constata que os ficheiros de vídeo referenciados têm o conteúdo alegado, não tendo, porém, sido valorados em sede de sentença pelos exactos motivos que o recorrente também recorda, e a que já se aludirá.

Antecipa–se, porém, que nenhum destes elementos determina a imposição de qualquer alteração da matéria de facto nesta parte, mormente quanto ao aspecto primordial aqui impugnado e que é o de se dar por assente, no ponto 24., que o arguido na madrugada daquele dia 28/06/2020 desferiu na assistente «um murro na cabeça e outro no lado direito da face, provocando-lhe fortes dores na cabeça e no nariz».

Desde logo se dirá não aludir o ponto da matéria de facto em causa a qualquer grau de intensidade dos dois murros em causa. Pelo que o apelo a que o arguido é um «ex–GNR na flor da idade» e a assistente uma «frágil senhora», como sinónimo de um inevitável devir danoso visível por via de toda e qualquer agressão física que o primeiro desferisse sobre a segunda, é tese que – ainda que se compreenda no contexto da alegação recursória e até se possa aceitar ser relativamente coerente com regras genéricas de normalidade –, logo merece in concreto um acolhimento extremamente relativo.
Acresce, mais relevantemente, que não é, de todo, absolutamente rigoroso dizer–se que o Relatório hospitalar aludido não detecta qualquer lesão ou mazela em resultado das agressões descritas pela assistente em termos a que, mais uma vez, o tribunal a quo atribuiu credibilidade.
O que do aludido relatório consta é o seguinte :
« Sem alergias medicamentosas
Sem medicação habitual
-VG (violencia de genero) exercida por ex companheiro que cohabita com a vítima - Recorre sozinha ao serviço de Urgência por episódio de agressão física (murro), não presenciado, hoje, por volta da 01.30h, atingindo em dois tempos, o nariz e a ATM direita.
Refere ter abandonado a habitação com um menor (o qual terá deixado ao cuidado de um terceiro/a).
EF:
Indicador de comportamento: evita o contacto visual prolongado. Mostra-se ansiosa. Sem discurso autolítico.
Sem escoriações, hematomas ou golpes externos presentes.
Sem sinais de fratura de base de crâneo.
Com dor à palpação de septo nasal, sem desvio aparente.
Com dor à mobilização articular temporomandibular direito.
Sem aparente risco vital.
Peço rx ossos do nariz e de ATM para descrição de lesão traumática. Faz analgesia »
Ou seja, se é certo não se detectarem visivelmente quaisquer lesões (nomeadamente escoriações ou hematomas), não é menos verdade que ali se relata uma situação de «dor à palpação de septo nasal, sem desvio aparente. (…) dor à mobilização articular temporomandibular direito».
Naturalmente poderá o recorrente argumentar – como argumenta – estarmos perante queixas subjectivas da assistente. Trata–se, porém, de queixas que, não só não implicam necessariamente a existêncisa de lesões visíveis (como se julga decorrer de elementares e básicas regras de experiência comum), como também se constata não haverem suscitado reservas ao clínico médico que naquela ocasião a observou.
Donde, e que, seja como for, a valoração de tais queixas redunda, afinal, naquilo que é própria a valoração pelo tribunal recorrido das declarações da assistente, enquanto integrando estas também essas mesmas queixas.
Dito de outro modo, não é o teor do Relatório em causa (e muito menos daquele do INML elaborado um ano depois) que colocam em inevitável crise o facto aqui dado por assente.
Questão de credibilidade que igualmente o recorrente suscita no que tange ao depoimento da testemunha HH, desde logo referindo que o mesmo mentiu por não “acertar” nas horas a que a assistente se lhe terá dirigido.
Nesta específica parte, cumpre realçar decorrer dos trechos do depoimento em causa que a testemunha claramente não tinha já, à data do mesmo, qualquer percepção das horas exactas a que isso terá sucedido, sabendo apenas com segurança que foi à noite «depois do jantar», referência temporal genérica que lhe foi dada na inquirição.
Sempre se dirá que, ouvido o depoimento em causa, noutra parte do mesmo (que o arguido não transcreve), situado por volta do minuto 4’33”, a testemunha refere, no que toca à hora a que a assistente terá regressado do hospital a sua casa (para ir buscar o filho CC que ficara à guarda da testemunha) que ela «chegou duas [horas] ou não sei a que horas ela chegou».
Quanto à circunstância da «marca na cara» da assistente que a testemunha também diz não haver visto – tanto mais que «era escuro» –, verdadeiramente problemático em termos de valoração probatória de tal depoimento seria que a testemunha tivesse declarado haver visto lesões não detectadas em momento imediato e em ambiente hospitalar.

E temos finalmente a questão dos ficheiros de vídeo juntos aos autos pelo arguido no dia 07/02/2022, em sede de audiência de julgamento, e no âmbito da prova apresentada para sua defesa na sequência da comunicação da alteração não substancial de factos a que já se aludiu, nos termos do disposto no art. 358º/1 do Cód. de Processo Penal.
Trata–se de dois vídeos gravados pelo arguido com o seu telemóvel no dia aqui em causa, a cujo conteúdo mais concreto se aludirá adiante, mas em que, e em termos gerais, é visível a pessoa da assistente com o filho CC num quarto, e depois a sair da então residência do casal levando consigo o mesmo menor.

A liminar questão relacionada com estes ficheiros de vídeo prende–se com a sua admissibilidade enquanto meios de prova valorável nos autos.
Como acima se verificou, o tribunal a quo não valorou os vídeos em causa enquanto meios de prova válidos, considerando singelamente, em sede de sentença, que «Os ficheiros de vídeo, porque captados sem consentimento e conhecimento das pessoas neles visadas, concretamente a assistente, não foram tomados em consideração pelo tribunal na formação da sua convicção.».
Julga–se, porém, que assim não deverá considerar–se, e que os ficheiros em causa deverão ser efectivamente valorados enquanto meios de prova válidos.
Desde logo cumpre realçar que as incidências processuais conducentes à não valoração dos vídeos em causa se afiguram algo inusitadas.
Assim, e como já se disse, os documentos em causa foram juntos pelo arguido em sede de audiência de julgamento, e no âmbito da prova apresentada nos termos e para os efeitos do disposto no art. 358º/1 do Cód. de Processo Penal, sendo que, e na sequência de tal apresentação – efectuada em conjunto com outros meios probatórios nesse mesmo contexto processual –, pelo tribunal a quo foi proferido (a 08/02/2022) despacho que, no que tange à admissibilidade dos meios de prova apresentados, é do seguinte teor : «Admito a junção aos autos dos elementos de prova documental e defiro as diligências de inquirição de testemunhas e tomadas de declarações ao arguido e à assistente, nos termos requeridos, ao abrigo do disposto no artigo 358º, n.º 2 do Código de Processo Penal.».
Ou seja, admitiu inclusive os ficheiros de vídeo aqui em causa, sem qualquer reserva, muito em especial quanto á sua validade probatória.
Aliás, percorridos os autos, nem Ministério Público nem assistente jamais suscitaram qualquer questão, reserva ou sequer dúvida sobre, quer o conteúdo dos vídeos em causa, quer, muito especialmente, quanto à sua admissibilidade e validade enquanto meios de prova.
Sendo, portanto, que apenas em sede de sentença tal questão vem a ser suscitada e prosaicamente decidida nos termos acima referenciados – e que, assim, não podem deixar de se considerar, no mínimo, algo inopinados processualmente.
Pois bem.
É certo dispor o artigo 167º/1 do Cód. de Processo Penal, sob a epígrafe “Valor probatório das reproduções mecânicas”, que «As reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo electrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal», sendo que, de acordo com o art. 125º do mesmo diploma legal, são em processo penal admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.
Estatui por seu turno o artigo 199º do Cód. Penal (sob a epígrafe “Gravações e fotografias ilícitas”), na alínea a) do respectivo nº2, que é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias, designadamente quem «Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado».
O que significa que, efectivamente, a reprodução de qualquer gravação audiovisual efectuada sem o consentimento da pessoa visada, e, portanto, em violação do disposto no artigo 199º do Cód. Penal, consubstanciará, por regra, prova proibida e inutilizável em sede de procedimento penal.
Ora, a verdade é que, no presente caso, e confrontando directamente a argumentação do tribunal recorrido nesta parte exarada em sede de sentença, desde logo não pode deixar de se questionar com que fundamento consubstanciado nos autos ali se considera que as gravações vídeo em causa foram «captados sem consentimento e conhecimento das pessoas neles visadas, concretamente a assistente».
Absolutamente de parte alguma dos autos resulta uma tal indicação, realçando–se mais uma vez que os documentos em causa foram admitidos nos autos sem que nomeadamente a assistente alguma vez haja manifestado qualquer reserva quanto aos mesmos, desde logo, e no mínimo, sequer dizendo que tais filmagens contrariaram a sua vontade.
Acresce que, visionado o conteúdo dos vídeos em causa, e como nesta parte bem realça o arguido, é clarividente que a mesma percepciona estar a ser filmada, e em momento algum manifesta qualquer desacordo ou desagrado com tal situação, prosseguindo aquilo que ali está a fazer sem hesitação ou qualquer mínima reacção a essa filmagem.
Donde, outra conclusão não se afigura possível senão a de que o tribunal recorrido presumiu a falta de conhecimento e de anuência da assistente naquela captação de imagens.
Donde, julga–se que no caso se mostra excluída a ilicitude da captação das imagens videográficas em causa, sendo assim as mesmas prova válida e sujeita à livre apreciação do julgador.

Não obstante, e precisamente por tal motivo, pese embora a admissibilidade e susceptibilidade de valoração probatória de tais gravações vídeo, não se julga que das mesmas decorra a imposição de qualquer alteração da matéria de facto neste ponto.
Refere o recorrente que, nos vídeos em causa se vê, num deles (doc. 14 junto pelo arguido, ficheiro ..., com a duração de 8 segundos), a assistente a «arrancar o filho [CC] à força da cama», o qual chora e diz “não, mãe, eu não quero”, enquanto a assistente lhe diz, “anda comigo! anda comigo! vais andar comigo!” ; e, no outro (doc.15 junto pelo arguido, ficheiro ..., com a duração de 13 segundos), vê-se a assistente a sair de casa «calmamente», já com outra roupa, «sem falar, sem chorar, sem tremer, sem barafustar, sem fugir, sem se encolher, sem evidenciar qualquer tremura, hesitação ou medo, e mais impressivamente, num vídeo como no outro, sem qualquer evidência física de agressão; sem lágrimas; sem face direita ou nariz lesionados, sequer vermelhos. nada!».
Em termos puramente objectivos, a descrição do recorrente, naquilo em que a mesma consubstancia elementos meramente objectivos, corresponde àquele que é o conteúdo dos vídeos em causa – esclarecendo–se que no primeiro vídeo a assistente tem vestido o que aparenta ser um pijama (assim como o menor CC) e calça chinelos ; e no segundo, a assistente sai com o menor CC de casa, sem registo de qualquer palavra, e estão ambos vestidos com roupa e calçado de uso diário (a assistente com caças de ganga e casaco, e o menor com um fato de treino, calçando ambos sapatilhas).
Pois bem, desde logo se dirá que já não podem outrossim acolher–se as “descrições” efectuadas pelo recorrente em especial no que respeita ao estado de espírito da assistente nomeadamente no segundo dos vídeos (aquele em que sai de casa), não sendo das imagens aqui em causa, de todo, que se impõe a conclusão de que a mesma está calma e sem medo.
Depois, e nesta sequência, não é naturalmente a circunstância de se percepcionar nas imagens que a assistente, naqueles breves segundos das mesmas actua «sem falar, sem chorar, sem tremer, sem barafustar, sem fugir, sem se encolher, sem evidenciar qualquer tremura, hesitação», que pode impor–se a conclusão de que as agressões físicas em causa não ocorreram, como pretende o recorrente.
Assim como também tal não é imposto porque, de acordo com a alegação de recurso, não são perceptíveis marcas na cara da assistente.
Por um lado, sempre haveria a assinalar que, na maioria do tempo de duração dos dois vídeos (isto é, do total de 21 segundos de imagens), não é possível ver claramente a cara da assistente, pois que a perspectiva das imagens apanha–a a três–quartos posteriores ou completamente de costas ; por outro lado, e mais relevantemente, não pode deixar de se salientar a circunstância de já acima se haver concluído, pelos motivos expostos, não ser em qualquer caso a falta de marcas visíveis que inviabiliza a possibilidade de tais agressões haverem ocorrido.

Assim, improcede inteiramente esta parte da impugnação do recorrente.
(…)

4.xiv. Propugnada alteração da matéria de facto provada por aditamento de novos factos resultantes da discussão e julgamento da causa.

Considera ainda o recorrente, com relação ao elenco da matéria de facto a considerar para efeitos de decisão sobre o objecto dos autos, que deveriam ser objecto de aditamento à matéria de facto provada uma série de factos – que enumera e enuncia –, considerando que os mesmos se mostram relevantes, quer no contexto de alguns dos factos que se mostram assentes e para a formação da imagem global do facto, quer por serrem esclarecedores do contexto da vivência do casal e da personalidade da assistente.
Assim, e em diversas passagens do seu recurso, situadas sempre em sede de impugnação do julgamento da matéria de facto, propugna o recorrente o aditamento á matéria de facto provada das seguintes circunstância de facto, que considera demonstradas probatoriamente por via dos elementos documentais e/ou testemunhais dos autos, e que foi enunciando ao longo da mesma impugnação :

i) que em 20/02/2020 a assistente constituiu a sociedade comercial por quotas “E..., Lda.”, NIPC ...50 (da qual são sócios a assistente e a sociedade comercial por quotas unipessoal com a firma “F..., Unipessoal, Lda.”, constituída exclusivamente pela assistente, com o NIPC ...74), sociedade para a qual levou todos os funcionários da “B..., Lda.” (constituída em 2012 por ambos os membros do casal) à excepção de II ;
ii) que em 11/06/2016 assistente e arguido celebraram entre si casamento católico, com uma grande boda, para a qual o casal transportou dezenas de convidados portugueses de avião para a Bélgica, tendo os convidados sido trajados a rigor, acomodados, e trazidos de volta, a expensas do casal;
iii) que entre assistente e arguido foi celebrado e, 25/05/2016 pacto sucessório, nos termos do qual renunciavam reciprocamente a eventuais direitos sucessórios ;
iv) que em Junho de 2020, o casal não dormia junto e o arguido tinha ficado no quarto de casal, e a assistente, nos raros e curtos períodos de tempo em que “parava em casa”, dormia na sala ou no quarto de jogos das crianças;
v) que mal a empregada interna, a ama das crianças, que estava presente 24 sobre 24 horas excepto fins de semana, foi de férias em fins de Junho, e apenas 2 dias antes do dia da suposta agressão física, a assistente “lembrou-se” de “recuperar o quarto”, sem que de um ponto de vista de regras da experiência comum se vislumbre justificação plausível ;
vi) Sendo que nessa altura, já há quase 3 meses que a E..., Lda., NIPC ...50, da qual são sócios a assistente e a sociedade comercial por quotas unipessoal pertencente à mesma, com a firma F..., Unipessoal, Lda. (NIPC ...74) tinha sofrido alteração registada de sede social para a Rua ..., ..., ... Vila Nova de Gaia ;
vii) que já há 1 mês que a referida F..., Unipessoal, Lda., constituída exclusivamente pela assistente, também trocou a sua sede social para a referida Rua ..., conforme registo lavrado em 28/05/2020;
viii) que a compra e venda da “casa nova” da assistente, sita nessa Rua ..., ..., Vila Nova de Gaia, foi adquirida por contrato outorgado em 02/10/2019, com registo de aquisição lavrado no dia seguinte, 03/10/2019;
ix) que quando saíu de casa, a assistente já tinha um companheiro ou namorado novo e uma casa nova.

Pese embora situando, como se disse, a questão assim suscitada sempre por referência à questão da impugnação do julgamento da matéria de facto nos termos do disposto no art. 412º/3 do Cód. de Processo Penal, a verdade é que, em bom rigor, num caso em que o recorrente entende assumirem relevância para a decisão da causa determinados factos, que tem por demonstrados probatoriamente nos autos (nomeadamente em sede de julgamento), e não considerados pelo tribunal recorrido em sede de sentença, essa sua pretensão assim configurada é passível de reacção, sendo que, como de forma expressiva se referencia no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 312/12, de 20/06/2012 (proc. 268/12)[3], «o mecanismo processual que possibilite essa reação não passa necessariamente pela consagração do direito de solicitar a um tribunal de recurso que ajuíze, em primeira mão, se os factos omitidos, face à prova produzida, resultaram demonstrados, sendo suficiente que o arguido tenha a possibilidade de invocar a nulidade resultante da respetiva omissão de pronúncia, cabendo ao tribunal de recurso verificá-la e determinar o seu suprimento (…). Esse meio de reação encontra-se, aliás, previsto no artigo 379.º, do Código de Processo Penal, que no n.º 1, a), sanciona com a nulidade a sentença que não contenha as menções referidas no n.º 2, do artigo 374.º, onde consta a enumeração dos factos provados e não provados, o que inclui aqueles que resultaram da discussão da causa (artigo 368.º, n.º 2), devendo essa nulidade ser arguida ou conhecida em recurso, sem prejuízo do tribunal recorrido a poder suprir (n.º 2, do artigo 379.º)».
Ou seja, o mecanismo processual adequado a sindicar a omissão de consideração em sede de sentença de factos que o recorrente repute de essenciais à decisão da causa, será a consideração de tal circunstancialismo em sede de eventual nulidade da sentença, conforme previsão do art. 379º/1/a) do Cód. de Processo Penal, por preterição da completude das menções referidas no nº 2 do art. 374º do Cód. de Processo Penal.
E verificado mesmo, cumprirá à instância de recurso declará–la e determinar o seu suprimento – o que, reunidos que se mostrem no caso todos os elementos necessários para o efeito, poderá ser levado a cabo pela mesma 2ª instância, desde logo nos termos do disposto no art. 379º/2 do Cód. de Processo Penal, onde exactamente se prevê que «As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º».
Realça–se que, podendo embora a supressão da invalidade em causa pela instância de recurso passar pela adição à matéria de facto do facto em falta, ao abrigo do poder que nesse sentido é atribuído nos termos do art. 431º/1/a) do Cód. de Processo Penal, tal só poderá ser levado a efeito precisamente de acordo com a exigência nesta última disposição processual plasmada, pois que ali se prevê que, sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada – só o pode ser, salientamos nós – se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base.

Assim devidamente emoldurada em termos processuais a alegação do recorrente vejamos, pois, se lhe assiste razão.

Temos, pois, que de acordo com o disposto no nº 2 do art. 374º do Cód. de Processo Penal, a fundamentação da sentença consta, nomeadamente, da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal.
Por seu lado, em face do disposto no art. 368º/2 do Cód. de Processo Penal, a enumeração dos factos provados e dos factos não provados traduz-se na tomada de posição por parte do tribunal sobre todos os factos sujeitos à sua apreciação e sobre os quais a decisão terá de incidir, isto é, sobre os factos constantes da acusação ou da pronúncia, da contestação e do pedido de indemnização, e ainda sobre os factos com relevância para a decisão que, embora não constem de nenhuma daquelas peças processuais, tenham resultado da discussão da causa – resultando do nº 4 do art. 339º do Cód. de Processo Penal que a discussão da causa tem exactamente por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência.
Quanto ao critério de acordo com o qual deve aferir–se se determinado facto é ou não relevante para a decisão da causa, temos desde logo o vislumbre do mesmo no art. 124º/1 do Cód. de Processo Penal, onde se prevê que «Constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis» –complementando o nº2 que «Se tiver lugar pedido civil, constituem igualmente objecto da prova os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil».
É este critério da relevância de determinado facto que se encontra também presente, por exemplo, no art. 283º/1/3/b)c) ou no art. 308º/1 do Cód. de Processo Penal, quando se definem os pressupostos de que depende, respectivamente, a dedução de acusação pelo Ministério Público ou a prolação de decisão instrutória de pronúncia ; ou ainda no já aludido art. 368º/2 do Cód. de Processo Penal quando se define o âmbito necessário do exercício de deliberação probatória por parte do tribunal de julgamento.
Como se resumiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26/10/2011 (proc. 586/07.9GBAND.C1)[4], «Sendo o objecto do processo delimitado pela acusação/pronúncia, pela contestação e pelos factos que resultarem da prova produzida em audiência (cfr. art.º 339º, n.º 4, do C. Proc. Penal) e estando o Tribunal obrigado a enumerar os factos provados e não provados (cfr. art.º 374º, n.º 2, do mesmo Código), esta enumeração respeita aos factos alegados pela acusação e pela defesa que sejam essenciais para a caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes e os factos provados que resultem da prova produzida em audiência que sejam relevantes para a questão da culpabilidade e determinação da sanção a aplicar (cfr. art.ºs 368º e 369º, do mesmo Código).» ; podendo ainda citar–se, por todos, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24/01/2017 (proc. 218/12.3TAFAR.E1)[5], onde se consigna que «I - O cumprimento do disposto no artigo 374.º, n.º 2, do C. P. Penal, não impõe a enumeração dos factos não provados que sejam irrelevantes para a caracterização do crime e/ou para a medida da pena, sendo certo que essa irrelevância deve ser vista em função do factualismo inerente às posições da acusação e da defesa e, bem assim, aos contornos das diversas possibilidades de aplicação do direito ao caso concreto (seja quanto à imputabilidade, seja relativamente à qualificação jurídico-criminal dos factos, seja quanto às consequências jurídicas do crime, designadamente quanto à espécie e medida da pena). II - Esta mesma regra deve aplicar-se à contestação do arguido, só devendo ser incluídos, na factualidade constante da sentença (provada ou não provada), os factos relevantes da contestação».
De fora da apontada obrigação de enumeração dos factos provados e não provados ficam, pois, todos aqueles que são acessórios ou irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, e bem assim aqueles que se mostram prejudicados com a solução dadas a outros, por apenas os contrariarem, ou seja, representarem mera infirmação, negação, de outros já constantes do elenco dos factos provados ou não provados.

No presente caso, e percorrido o elenco da fundamentação de facto da sentença recorrida, facilmente se constata que o mesmo não alude nem elenca expressamente qualquer das circunstâncias de facto cujo aditamento o recorrente agora propugna.

Percorrido por sua vez o elenco destas últimas, crê–se também que, em grande parte, em nada relevam de acordo com o critério de substancialidade que aqui rege, nos termos vistos, ou já se mostra a respectiva relevância integrada no âmbito de outros factos tidos como assentes.
Assim, as circunstâncias acima acabadas de numerar sob os pontos iv), v) e ix), explanam um conjunto argumentativo que visa apresentar uma versão complementar dos factos provados na sentença, sustentada, contudo, em circunstâncias em grande parte sem ligação com estes últimos, e reportados a alegados comportamentos da própria ofendida que, no entender do recorrente, como que justificariam a sua (dele) actuação.
Trata–se, não obstante, de uma argumentação de circunstâncias fácticas – algumas, aliás, de carácter acentuadamente insuficiente e conclusivo – que não colide nem altera a configuração típica, ilícita e culposa de tudo quanto nesse sentido se imputava em sede de acusação, e cuja eventual demonstração não teria a virtualidade de afastar aquela mesma configuração.
Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/05/2020 (proc. 825/18.0PBMAI.P1)[6], «I - A jurisprudência do STJ firmou-se há muito no sentido de que a decisão deve conter a enumeração concreta dos factos provados e não provados, com interesse e relevância para a decisão da causa, sob pena de nulidade, mas apenas desde que os mesmos sejam essenciais à caracterização do crime em causa e suas circunstâncias ou relevantes juridicamente com influência na medida da pena, isto é, desde que tenham efectivo interesse para a decisão. II - Segundo tal jurisprudência, a decisão já não deverá conter factos inócuos, excrescentes ou irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação e/ou na contestação, ou ainda a matéria de facto já prejudicada pela solução dada a outra.».
No mesmo sentido, além dos arestos já acima citados, podem mencionar–se ainda os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20/10/2011 (proc. 36/06.8GAPSR.S1)[7], do Tribunal da Relação de Évora de 18/01/2013 (proc. 10/09.2GBODM.E1)[8], ou do Tribunal da Relação de Coimbra de 19/03/2014 (proc. 811/12.4JACBR.C1)[9].

Já no que tange às circunstâncias elencadas nos pontos i), vi) e vii) – na parte relativa às incidências respeitantes à constituição, pela assistente BB, da sociedade comercial “E..., Lda.”, e às vicissitudes atinentes à mesma –, ii) e iii) – na restrita parte relativa à celebração do casamento católico entre assistente e arguido e do pacto sucessório que o antecedeu –, e viii) – na parte que se reporta à aquisição pela mesma assistente de uma casa sita na Rua ... –, poderão na verdade contribuir, como alega o recorrente, para a para a formação da imagem global do facto na perspectiva daquele que é o percurso do relacionamento entre assistente e arguido, tendo ademais directo reporte à contextualização de alguns dos factos dados por provados.
Não assim no que tange às circunstâncias também ali elencadas e relativas à transmissão de funcionários, dimensão da boda então realizada e da logística inerente à deslocação dos convidados para a mesma, e a saber se a assistente tinha «um novo namorado», aspectos relativamente aos quais, ou valem as considerações atrás expendidas quanto aos demais factos cujo aditamento se pretendia, ou não se crê que encontrem suficiente sustento na prova produzida nos autos.

Em suma, reconhece–se parcialmente que a decisão recorrida se mostre afectada por preterição de pronúncia sobre factos relevantes resultantes da discussão da causa, estando assim formalmente preenchidos os requisitos de uma parcial nulidade processual prevenida na alínea a) do nº1 do art. 379º do Cód. de Processo Penal.

Como vimos, determina em tal situação o nº 2 do art. 379º do Cód. de Processo Penal – de acordo com a redacção introduzida pela Lei 20/2013, de 21 de Fevereiro –, que constitui um dever do tribunal de recurso o suprimento da invalidade em causa.
Na verdade, considera–se que dos autos resultam todos os elementos necessários à supressão da nulidade referenciada – e que passam designadamente pelo aditamento à matéria de facto provada de um facto integrando os aspectos acima assinalados.

Assim, e no que respeita à constituição, pela assistente BB, da sociedade comercial “E..., Lda.”, e às vicissitudes atinentes à mesma, a respectiva demonstração resulta documentada nos autos através da cópia (não objecto de impugnação) da certidão permanente do registo comercial da aludida sociedade, e bem de cópia da respectiva publicação online no portal da Ministério da Justiça. Mostra–se ainda junta idêntica cópia de publicação relativamente à sociedade “F... Unipessoal, Lda.”, da titularidade da assistente, e que é sócia, com esta última, naquela primeira sociedade.

Depois, quer a celebração do casamento católico em causa, quer do pacto sucessório aludido, mostram–se amplamente documentados nos autos pelos elementos de prova já acima assinalados, tendo, ademais, sido relatados e referenciados, de forma perfeitamente unânime e coincidente, pelo arguido e pela assistente nas respectivas declarações em audiência de julgamento.

Quanto à aquisição pela assistente BB de uma casa sita na Rua ..., resulta a mesma igualmente documentada por via da cópia da informação predial do imóvel em questão (da qual resulta designadamente a data do registo da sua aquisição a favor da assistente ainda no estado de casada com o arguido), e bem assim por via da cópia do contrato de compra e venda do mesmo imóvel, outorgado em 02/10/2019.

Mais se diga que, e em qualquer dos casos, a própria assistente BB, no decurso das suas declarações em audiência, admitiu e confirmou integralmente todas as referenciadas circunstâncias, conforme recortes de tais declarações que o recorrente também transcreve.

Assim, a matéria de facto pode ser alterada também nesta parte, e por estes motivos, nos termos do disposto no citado art. 431º/a)b) do Cód. de Processo Penal.

Em suma, considera–se verificada a parcial nulidade apontada, procedendo–se à sua devida supressão nos termos das disposições conjugadas dos arts. 379º/2 e 431º do Cód. de Processo Penal – o que se faz determinando–se o aditamento à matéria de facto provada, considerada em sede de sentença, do seguinte ponto :
55. Em 11/06/2016 assistente e arguido celebraram entre si casamento católico na Bélgica, tendo antes disso, em 25/05/2016, celebrado também um pacto sucessório nos termos do qual renunciavam reciprocamente a eventuais direitos sucessórios.
56. Em 20/02/2020 a assistente constituiu a sociedade comercial por quotas “E..., Lda.”, NIPC ...50 (da qual são sócios a assistente BB, e a sociedade comercial por quotas unipessoal com a firma “F..., Unipessoal, Lda.”, constituída exclusivamente pela mesma assistente, com o NIPC ...74) ;
57. A sociedade “E..., Lda.” alterou a sua sede social para a Rua ..., ..., ... Vila Nova de Gaia, conforme registo lavrado em 06/04/2020 ;
58. Também a referida sociedade “F..., Unipessoal, Lda.”, alterou a sua sede social para a referida Rua ..., conforme registo lavrado em 28/05/2020 ;
59. A assistente BB adquiriu o imóvel sito nessa Rua ..., ..., Vila Nova de Gaia, por contrato outorgado em 02/10/2019, com registo de aquisição lavrado no dia seguinte, 03/10/2019.

Improcede o mais alegado e propugnado no recurso nesta parte.

(…)

7. De saber se se verificam os pressupostos da prática pelo arguido do crime de violência doméstica pelo qual vem condenado.

Vem, enfim, o arguido/recorrente pugnar por não se deverem ter por preenchidos os pressupostos do crime de violência doméstica pelo qual vem condenado.
Alega e conclui que na concreta ponderação das personalidades e condições de vida e da inserção familiar, social, económico-financeira, quer do arguido, quer da assistente, o arguido nunca sequer esteve em condições abstractas, quanto mais concretas, de exercer relação ou posição de domínio ou subjugação da assistente, pois a assistente era e é “dona e senhora do seu nariz”, “punha e dispunha” livremente da sua vida e nunca o arguido constituiu, por hipótese, obstáculo à livre autodeterminação e movimentação dela – antes pelo contrário, é impossível e absurdo identificar nos autos qualquer “subjugação”, “dependência”, “subordinação” (…) da assistente relativamente ao arguido.
Donde, adita, o acervo factual provado, mesmo que não sofresse qualquer alteração em sede de recurso – o que de qualquer forma não concebe –, não atinge aquele patamar ou nível do desvalor da acção e do resultado, capaz de fazer concluir por se estar perante um caso de maus tratos físicos e/ou psíquicos reveladores de uma conduta maltratante, onde pontificam sentimentos de crueldade, desprezo, especial desejo de humilhar e fazer sofrer a vítima.
Assim, mal andou o tribunal a quo subsumir os factos no tipo legal de crime de violência doméstica – o que, aliás, «fez sem aquela convicção irresolúvel que habitualmente resulta das sentenças nesta particular criminalidade…».
Pelo que, alterando–se ademais a factualidade dada como provada tal como preconizado pelo arguido, deverá decidir–se pela sua absolvição ; ou, ainda que assim não seja, no mínimo deverá a qualificação jurídica ser revista pelo Tribunal da Relação, alterando–a quando muito – por hipótese de raciocínio que o arguido é forçado a colocar – para um crime de ofensa à integridade física, com toda a consequente alteração ao nível da escolha da pena e da sua concreta dosimetria.

Vejamos desta questão, começando, porém, por fazer aqui presente o elenco da matéria de facto que, neste derradeiro momento, e após tudo quanto se decidiu supra, se tem por definitivamente assente, porque provada:
1º- O arguido AA e a assistente BB casaram entre si a 09-06-2012.
2º- Residiam, quando regressaram da Bélgica, onde casaram, na Travessa ... ..., Vila Nova de Gaia.
3º- A assistente BB era já mãe de uma criança, fruto de um anterior relacionamento, CC, nascido em .../.../2009, que vivia com o casal.
4º- Do casamento do arguido e da assistente nasceu DD, em .../.../2013.
5º- No ano de 2014, AA, à data militar da Guarda Nacional Republicana (GNR), abandonou, voluntariamente, o seu emprego.
6º- A partir do início da época balnear do ano de 2015, o arguido passou a gerir a tempo inteiro o funcionamento do estabelecimento comercial/bar “A...”, mencionado no ponto 45. da matéria de facto provada, e situado na freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia.
7º- A partir desse momento, o arguido passou a trabalhar no período noturno, para efetuar o encerramento do bar.
8º- O arguido pedia avultadas quantias de dinheiro à assistente BB.
9º- Em consequência do referido em 7º e 8º, o casal passou a discutir com muita frequência.
10º- Na constância dessas discussões, por diversas vezes e em número de vezes não concretamente apurado, o arguido dirigia-se à assistente apelidando-a de “parva” e de “estúpida”, e dizendo-lhe que ela não valia nada e que não sabia nada.
11º- Também na constância das discussões, por diversas vezes e em número de vezes não concretamente apurado, o arguido disse à assistente que se ela morresse ele seria o herdeiro do seu património.
12º- Ainda na constância das discussões, pelo menos por cinco vezes, o arguido exibiu-lhe uma pistola que tinha consigo em casa e disse-lhe que a arma estava consigo e nunca o largava, enquanto lhe referia que se ela morresse ficava com todo o seu dinheiro.
13º- Em data não concretamente apurada dos meses de Junho ou Julho de 2014, quando o arguido e a assistente se encontravam no Brasil para assistir aos jogos de futebol do Campeonato Mundial de Futebol, a assistente sofreu um aborto espontâneo e necessitou de tratamento hospitalar, ao qual se deslocou na companhia de terceiros, por o arguido ter recusado acompanhá-la, o que muito a entristeceu.
14º- Por causa do deteriorar do relacionamento entre ambos, no ano de 2018, e embora continuassem a viver mesma casa, o arguido e a assistente passaram a dormir em quartos separados, por iniciativa desta.
15º- Durante o período do relacionamento conjugal, o arguido pretendeu controlar os movimentos da assistente quando esta se deslocava à casa que possuía na Bélgica, pagando a um funcionário desta para lhe dar informações sobre as suas rotinas naquele país.
16º- Em Junho de 2020, a assistente BB regressou de uma viagem de trabalho à Bélgica, para onde havia viajado no mês de Março daquele ano.
17º- Durante a ausência da assistente e sem o conhecimento e o consentimento desta, o arguido contratou uma funcionária de limpeza para a casa, e readmitiu um funcionário que a assistente tinha despedido e com quem estava de relações cortadas, para limpar a piscina.
18º- Entregou àquele último um comando para abrir o portão de entrada, e ordenou a ambos que obedecessem exclusivamente às suas ordens, e não a qualquer ordem que lhes fosse dirigida por BB, e que se mantivessem no interior da casa a trabalhar, ainda que contra a vontade expressa desta.
19º- Em data não apurada do mês de Junho do ano de 2020, quando a assistente se encontrava em casa, foi surpreendida pela presença da mencionada funcionária de limpeza, que ali adentrou e, uma vez convidada a retirar-se por BB, recusou-se, argumentando estar a obedecer às ordens do arguido AA.
20º- No dia 20 de Junho de 2020, BB tomava, vestida com um biquíni, banhos de sol junto à piscina, quando o funcionário referido em 18º, usando o comando que AA lhe entregara, entrou na casa, e perante a ordem que lhe deu para sair de casa, o mesmo recusou-se, alegando que só cumpria ordens do arguido.
21º- Durante o mês de Junho de 2020, o arguido passou a dar mote a discussões diárias com a assistente, nas quais lhe dizia, aos berros, “não veles nada”, “não sabes nada”, “se morreres… eu é que vou gerir isto tudo… o património que o teu filho vai herdar”..
22º- Ainda durante o mês de Junho de 2020, em dia não apurado, quando se encontravam junto à piscina, o arguido disse à assistente, à frente dos menores, que se ela quisesse entrar na piscina teria que pagar 5,00€ porque a piscina era dele, e instruiu as crianças para que lhe atirassem água.
23º- No dia 28 de Junho de 2020, pelas 00h.30m, no interior da casa onde viviam e na presença das duas crianças, o arguido AA, porque BB se recusou a permitir que as crianças pernoitassem na sala com ele, iniciou uma discussão com esta.
24º- A assistente encaminhou as crianças para as suas camas, e quando estas já estavam nos seus respetivos quartos, o arguido AA, no corredor de acesso ao quarto, dirigiu-se a esta, dizendo-lhe “eu mato–te, e quando BB lhe virava costas para adentrar no seu quarto, desferiu-lhe um murro na cabeça e outro no lado direito da face, provocando-lhe fortes dores na cabeça e no nariz.
25º- Como resultado direto e necessário do referido em 24º, o arguido AA causou a BB dores e incómodos, concretamente dor à palpação de septo nasal, e dor à mobilização articular temporomandibular direito, com necessidade de recurso a analgesia, que lhe determinaram 1 (um) dia para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho.
26º- Com muito medo de AA, BB tentou sair de casa e levar consigo as duas crianças.
27º- Quando o arguido a impediu de sair com o filho de ambos, DD, BB acabou por sair somente com CC, e pernoitou, com a criança, num hotel em Vila Nova de Gaia.
28º- Regressou a casa no mesmo dia da parte da tarde, com a intenção de conseguir sair em definitivo de casa levando consigo as duas crianças.
29º- Até ao dia 02 de Julho de 2020, dia em que conseguiu sair e levar consigo os dois filhos, BB, com muito medo do arguido, dormiu no seu quarto, na casa que até então partilharam, com a porta fechada e trancada com a chave.
30º- No dia 30 de Junho de 2020, durante a noite, o arguido AA bateu insistentemente à porta do quarto de BB e, quando esta não lhe respondeu, tentou abrir a porta, que estava trancada.
31º- No dia 02 de Julho de 2020, BB abandonou a casa, levando consigo os seus dois filhos, deixando todos os seus pertences e os das crianças, e acomodouse, até ao final daquele mês, num hotel.
32º- Tendo descoberto onde a assistente BB se havia estabelecido com as duas crianças, no dia 26 de Agosto de 2020, pelas 15h00m, o arguido deslocou-se ao local e aguardou a chegada daquela.
33º- Quando a assistente chegou acompanhada das duas crianças, um amigo do arguido, EE, de quem se fazia acompanhar, filmou BB e os meninos, até estes entrarem em casa.
34º- (eliminado).
35º- O arguido e a assistente estabeleceram acordo (provisório) de Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos autos com o n.º 4397/20.8T8VNG-A, a correr termos no Juiz 3 do Juízo de Família e Menores de Vila Nova de Gaia quanto ao menor DD, o que ocorreu na data de 08 de Setembro de 2020.
36º- Num dos fins de semana que passou com o pai, em data não apurada do ano de 2020 mas posteriormente ao acordo referido em 35º, o menor DD regressou aos cuidados da mãe muito perturbado, chorou muito, manteve-se sempre ao pé da mãe e agarrado a ela, urinou na cama, e puxou a cabeça de BB em direção aos seus órgão genitais, quando esta lhe calçava sapatos, dizendo “chupa, chupa”.
37º- Atuando como atuou, o arguido AA quis, como fez, atentar contra o brio, a consideração e a dignidade de BB.
38º- E quis, como fez, causar-lhe temor e assustá-la, bem sabendo que a sua conduta era apta a consegui-lo.
39º- Quis, como fez, aproveitar o recato e a privacidade do interior da casa onde viviam para melhor lograr os seus intentos, não se coibiu, porque assim ditavam as suas vontades, de atuar como atuou.
40º- Atuando como concretamente se descreve em 24º e 25º, o arguido quis, como fez, molestar o corpo de BB e provocar-lhe dores e incómodos, bem sabendo que a sua conduta era apta a causá-los, e bem sabendo que o fazia contra a sua cônjuge e mãe do seu filho.
41º- E atuou sempre com especial desconsideração e total desprezo pela pessoa que consigo era casada.
42º- (eliminado)
43º- Atuando, em todos os momentos, livre, deliberada e conscientemente, AA fê-lo sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.
44º- Desde o início do casamento e até Junho de 2020, a assistente ausentou-se para o estrangeiro por diversas vezes, e durante largos períodos de tempo, deixando os seus filhos ao cuidado do arguido.
45º- Em Abril de 2012, o casal tinha constituído a sociedade por quotas denominada “B..., LDA” e o arguido foi nomeado gerente da mesma na data de 25 de Março de 2014, e em Novembro de 2014 o casal, juntamente com um amigo comum, constituíram a sociedade “C..., LDA”, que adquiriu a concessão do bar de praia “A...”, reconstruiu-o e passou a explorá-lo.
46º- No horário de Inverno, o Bar “A...” encerrava à meia noite, e no horário de Verão, encerrada às 02h.00m de segunda a sábado, e ao Domingo encerrava à meia noite.
47º- Com as quantias em dinheiro que lhe eram transferidas pela assistente, o arguido efetuava o pagamento de despesas de alimentação, despesas domésticas, empregada doméstica, viagens, colégios e todas as despesas escolares, de alimentação e de vestuários das crianças, e o lugar da família na tribuna do Estádio ....
48º- A assistente é filha de FF e de GG, família detentora da empresa belga “D... ...), uma multinacional de bebidas e cerveja cotada na Euronext de Bruxelas.
49º- O arguido contratou uma empregada doméstica nos termos referidos em 17º por necessidade dele próprio, uma vez que a assistente tinha ordenado à empregada comum do casal que deixasse de fazer as tarefas domésticas ao arguido.
Mais se provou que:
50º- O arguido e a assistente encontram-se divorciados desde 01 de Junho de 2021.
51º- O arguido é considerado no meio familiar e no meio social em que se insere como uma pessoa calma, contida e serena, e é por todos muito estimado e respeitado.
52º- É um trabalhador dedicado e cumpridor dos compromissos, e um pai dedicado e extremoso, que sempre nutriu muito amor e carinho pelo filho do casal e pelo filho da assistente.
53º- O arguido é empresário, aufere um salário como gerente do bar “A...” de 1.500,00€ por mês, reside em habitação própria, despende mensalmente 250,00€ no pagamento da pensão de alimentos devida ao menor DD, iniciou uma nova relação afetiva e vive com a companheira, e tem como habilitações literárias o 12º ano de escolaridade.
54º- Não tem antecedentes criminais.
55º- Em 11/06/2016 assistente e arguido celebraram entre si casamento católico na Bélgica, tendo antes disso, em 25/05/2016, celebrado também um pacto sucessório nos termos do qual renunciavam reciprocamente a eventuais direitos sucessórios.
56.º- Em 20/02/2020 a assistente constituiu a sociedade comercial por quotas “E..., Lda.”, NIPC ...50 (da qual são sócios a assistente BB, e a sociedade comercial por quotas unipessoal com a firma “F..., Unipessoal, Lda.”, constituída exclusivamente pela mesma assistente, com o NIPC ...74).
57. A sociedade “E..., Lda.” alterou a sua sede social para a Rua ..., ..., ... Vila Nova de Gaia, conforme registo lavrado em 06/04/2020.
58. Também a referida sociedade “F..., Unipessoal, Lda.”, alterou a sua sede social para a referida Rua ..., conforme registo lavrado em 28/05/2020.
59. A assistente BB adquiriu o imóvel sito nessa Rua ..., ..., Vila Nova de Gaia, por contrato outorgado em 02/10/2019, com registo de aquisição lavrado no dia seguinte, 03/10/2019.


Cumpre ainda recordar igualmente a matéria de facto que, aqui chegados – e após as alterações acima determinadas –, se tem por (apesar de imputada) não provada :
a) Que, após o referido em 6º, o arguido tenha passado a dormir de dia, a ingerir bebidas alcoólicas com frequência e em excesso, e a frequentar casinos, onde jogava e apostava;
b) Que as discussões referidas em 9º e 10º ocorressem diariamente;
c) Que as ameaças referidas em 11º e 12º tenham ocorrido quando a assistente questionava em particular o arguido sobre a razão de ter chegado tarde a casa ou sobre o destino dado às avultadas quantias de dinheiro que lhe transferia;
d) Que, após o referido em 14º, o arguido tenha passado a enviar mensagens ao longo do dia à assistente para controlar os seus movimentos, e que tenha questionado as duas crianças sobre aquilo que a mesma faz;
e) Que as discussões referidas em 21º tenham ocorrido na presença do filho do casal DD;
f) Que, nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 24º e 25º, a assistente tenha ficado com ferimentos;
g) Que, nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 28º e 29º, a assistente tenha também permanecido todo o tempo que pôde no interior do quarto, por receio do arguido;
h) Que, nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 32º e 33º, o arguido tenha adotado uma postura ameaçadora para com a assistente;
i) Que o arguido referisse à assistente que de nada lhe adiantaria apresentar queixa, porque conhecia todos os militares e agentes da polícia, que o protegeriam;
j) Que, no fim-de-semana de 14 e 15 de Novembro, no âmbito das visitas acordadas no processo referido em 35º, o arguido tenha dito ao menor DD que iria ficar sem a mãe, aos cuidados do pai e da avó paterna, e para se preparar para essa realidade, e insistiu com a criança para que chamasse à mãe e às pessoas que lhe são próximas nomes como “ordinária” e “macaco”, prometendo-lhe que lhe comprava cartões de jogo se o menino assim o fizesse;
k) Que, nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 36º, o menor DD tenha dito à assistente BB que não queria voltar a estar com o pai, e que que o menor tenha puxado a cabeça da mãe na direção dos seus genitais por ter sido instruído nesse sentido pelo arguido e por um arguido deste, por forma a ofender e perturbar a assistente, prevalecendo-se da imaturidade do menor;
l) Que o arguido tenha assustado de tal modo a assistente que esta, temendo ser surpreendida sozinha e sem capacidade de se defender, se faça acompanhar, sempre que pode, por alguém na rua;
(da contestação)
m) Que a assistente tenha estado ausente no estrangeiro entre 14 de Setembro e 19 de Novembro de 2019, entre 30 de Novembro de 2019 e 31 de Janeiro de 2020, entre 08 de Fevereiro e 15 de Fevereiro de 2020, e entre 21 de Fevereiro e 13 de Março de 2020;
n) Que tenha sido a assistente a solicitar ao arguido que abandonasse a G.N.R., por efetuar trabalho em períodos noturnos, pela perigosidade das funções e pela precariedade da remuneração;
o) Que o arguido tivesse passado a trabalhar na sociedade referida em 45º após a sua saída da G.N.R.;
p) Que a assistente tenha iniciado um relacionamento extraconjugal em finais do ano de 2019 e que o tenha declarado a familiares do arguido.
q) que na ocasião em causa no ponto 13º da matéria de facto provada, a assistente se deslocou sozinha ao hospital.
r) que, na ocasião em causa nos pontos 32º e 33º da matéria de facto provada, a assistente BB, com muito medo de AA, chamou a polícia.
s) que atuando como atuou, o arguido AA degradar e humilhar a assistente BB enquanto pessoa, mãe e mulher.
t) que o arguido quis perturbar o seu quotidiano e colocá-la em permanente estado de intranquilidade.
u) que o arguido perpetuou a sua atuação de especial desconsideração e desprezo pela pessoa que consigo era casada, mesmo após o fim do relacionamento de ambos, procurando, por todas as formas, fragilizar BB, atemorizá-la, espezinhá-la e envergonhá-la, e coartá-la na sua liberdade de se orientar conforme a sua própria vontade.
v) que o arguido tenha determinado que BB passasse a organizar a sua vida de maneira a proteger-se do mal que temia que AA lhe fosse causar.

Decorre do disposto no art. 152º do Cód. Penal, nos respectivos nº1, alínea a) e nº2, alínea b) – segmentos que aqui importa considerar –, que comete o crime de violência doméstica, na sua forma agravada, nomeadamente, «Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais … Ao cônjuge ou ex–cônjuge … [e] Praticar o facto na presença de menor [ou] no domicílio comum» – sendo punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
A especialidade que distingue este tipo de crime, e no que aos elementos típicos do mesmo respeita, passa essencialmente pelos seguintes elementos:
- a existência de um especial relacionamento entre as pessoas do agente e do ofendido, no caso de natureza familiar, conjugal ou análoga (sendo que o legislador penal de 2007 alargou o âmbito de aplicação do crime de violência doméstica aos maus tratos sobre ex-cônjuges ou ex-companheiros, por via da alteração da redacção do citado art, 152º do Cód. Penal introduzido então pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro),
- e a verificação de um comportamento que, de forma reiterada ou não, viola aquele valor jurídico aqui protegido de uma forma de tal modo séria (pela sua gravidade intrínseca ou pela sua reiteração) que configure a prática de maus tratos físicos ou psíquicos.
A função da previsão típica de violência doméstica é, pois, prevenir as frequentes formas de violência no âmbito designadamente da família, designadamente na relação conjugal ou em realidades análogas (como o é o caso das uniões de facto, traduzidas em situações de idêntica comunhão de habitação, cama e mesa), que, por normalmente assumirem uma forma subtil e envolverem uma actuação praticada no âmbito privado, fora da possibilidade de ser presenciada por terceiros, e aproveitando-se disso mesmo, particularmente colocam em crise o desenvolvimento harmonioso da personalidade e o bem-estar das pessoas.
Não estamos, contudo, em face de uma mera forma de punição agravada de um ‘normal’ crime de ofensas à integridade física, injúrias, ameaças, ou de outro qualquer tipo criminal que proteja valores relacionados com a integridade física ou psíquica das pessoas.
Pelo que – aspecto que assume, aliás, particular acuidade em face dos termos do recurso interposto –, para que se possa considerar estarmos perante uma actuação típica de crime de violência doméstica, haverá que na mesma identificar um traço distintivo relativa a actos típicos nomeadamente (na normalidade dos casos) de ofensas à integridade física, injúrias, ameaças ou outros, praticados contra as potenciais vítimas desse crime. Ou seja, tudo está em saber se, no caso em apreço, estamos perante uma situação de maus tratos.
Esses traços distintivos só poderão encontrar–se na ponderação daqueles que são os bens jurídicos em causa na criminalização da violência doméstica, e que justificam uma superlatividade da ilicitude da conduta adoptada relativamente à gravidade daqueles que se mostram atingidos, sempre, nos actos típicos também daqueloutros crimes.
De acordo com Plácido Conde Fernandes (in «Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal», Revista do CEJ, nº 8 (especial), 1º semestre de 2008, págs. 304/308), esse bem jurídico é «a saúde enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral». Para que uma conduta integre o crime em questão, exige-se «uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, que seja apta e bastante a molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana».
Para André Lamas Leite (in «A violência relacional íntima», Revista Julgar, nº 12, Novembro de 2010, pág. 49), «o fundamento último das acções abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo».
A propósito desta caracterização, podem citar–se, sem preocupações de exaustão, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/04/2012 (proc. 632/10.9PBAVR.C1)[10], onde se escreveu que «o bem jurídico protegido no crime de violência doméstica, agora autonomizado do crime de maus tratos a que alude o art.152-A, do Código Penal, continua a ser plural, complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e, atualmente, mesmo após cessar essa relação», ou o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08/09/2020 (proc. 672/19.2GBAMT.P1)[11], no qual se escreve que «Característica indelével do crime de violência doméstica é o seu bem jurídico, que lhe confere não apenas autonomia mas legitimidade constitucional (artº 18º CRP) de interferência/regulação/limitação, nas relações humanas e sociais, num âmbito específico destas (relações familiares ou análogas). Assim fundamental na apreciação de tal ilícito é que os factos em que se desdobra (ou o facto em que se traduz - pois que tanto pode ser um como vários - de modo reiterado ou não, infligir maus tratos – artº 152º 1 CP) signifiquem a afectação da dignidade pessoal da vítima através do seu desrespeito como pessoa» ; no mesmo sentido os Acórdãos, também do Tribunal da Relação do Porto, de 13/01/2021 (proc. 799/18.8GBPNF.P1)[12] e de 28/04/2021 (proc. 668/19.4GAFLG.P1)[13].
Por isso, é desde logo na remissão deste tipo legal para a noção de maus tratos físicos e psíquicos, que se indicia aquele algo mais relativamente aos ‘meros’ crimes que visam punir isoladas ofensas corporais ou morais das vítimas.
Procurando densificar esta noção de maus tratos físicos e psíquicos – e não olvidando que o próprio corpo do nº1 do art. 152º do Cód. Penal, logo fornece, como acima se transcreveu, um elenco de condutas passíveis de o integrar objectivamente –, poderá dizer–se, como se refere no já citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08/09/2020 (proc. 672/19.2GBAMT.P1), que «cremos dever entender–se que infligir maus tratos físicos e/ou psíquicos, significa na economia do artº 152º CP, pôr em causa a saúde do ofendido nas suas diversas vertentes: física (ofensa á integridade física), psíquica (humilhações, provocações, ameaças, coacção ou moléstias), desenvolvimento e expressão da personalidade e dignidade pessoal (castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais, etc.) - que constituem o complexo bem jurídico protegido pela norma incriminadora. (…) Assim à luz do bem jurídico protegido os factos devem apresentar-se perante a vítima como dotados de um especial desvalor (pondo em causa a dignidade da pessoa enquanto tal, nomeadamente pelo desejo de domínio da relação familiar existente), sob pena de não se verificar o ilícito de violência doméstica. O que fundamenta tal ilícito são pois os actos que (…) evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima».
Adita–se uma nota quanto aos elementos configurativos que se julga relevante para a existência e delimitação do crime de violência doméstica.
Assim, e na decorrência de quanto vimos dizendo, é, portanto, necessário que os factos praticados afectem a saúde física, psíquica ou emocional da vítima, e que essa afectação comprometa de igual modo gravemente o desenvolvimento (ou a revelação / manifestação), da sua personalidade (e da sua maneira de ser), e com isso ponha em causa (ou seja susceptível de pôr em causa), a dignidade da pessoa humana (ser livre e responsável).
É nesta perspectiva que se poderá ainda falar na existência, como subjacente a uma situação configurável como de violência doméstica, de uma situação de pretensão de domínio do agressor por sobre o agredido – isto é, não no sentido de se exigir que em concreto exista e se verifique uma tal situação de dependência ou domínio da pessoa ofendida no contexto da actuação em análise no caso, mas sim no sentido de prever e prevenir (e concomitantemente punir) condutas levadas a cabo por quem actue, dos mais diversos modos, de forma a procurar exercer uma subjugação sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida, sobre a sua honra ou sobre a sua liberdade, reconduzindo o relacionamento entre ambos a uma vivência de perturbação e tensão.
Nesta perspectiva, e porque cada caso é um caso e deve ser, sempre, ponderado nessa sua individualidade irrepetível e irreproduzível, não poderá de, na avaliação sobre a verificação dos pressupostos de qualificação como crime de violência doméstica, relevar em especial a ponderação daquilo que o conjunto dos factos típicos objectivos apurados revele enquanto imagem global do facto (conceito a que o recorrente reiteradamente apela), pois que, como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06/12/2016 (proc. 59/15.6GAVVC.E1)[14], «No crime de violência doméstica devem estar em causa atos que (…) sejam, por si só ou quando conjugados com outros, idóneos a refletir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima, sendo ainda necessária a avaliação da “situação ambiente” e da “imagem global do facto” para se decidir pelo preenchimento, ou não, do tipo legal de crime em questão».
Como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30/06/2015 (proc. 1340/14.7TAPTM.E1)[15], «a imagem global do facto e a apreensão/perceção de todo o episódio de vida em apreciação relevam na delimitação da fronteira entre condutas que têm dignidade punitiva à luz do tipo de crime de violência doméstica e aquelas que não devem relevar para o direito penal, aqui. Condição necessária para a intervenção penal é sempre a ofensa efetiva de um bem jurídico (digno de proteção penal)».

Revertendo ao caso dos autos, temos que, vindo o arguido condenado pela prática de um crime de violência doméstica, propugna o mesmo desde logo não se deverem ter por verificados os pressupostos do cometimento desse concreto crime.
E julga–se, atenta a configuração do presente caso concreto, que nesta parte assiste razão ao recorrente.

Como liminar aspecto que há a realçar, e na imediata sequência de quanto vem de se dizer, desde logo se assinala que a matéria de facto que resulta provada nos autos é apenas parte daquela que vinha imputada ao arguido em sede de acusação, como poderá constatar–se pelo elenco daquela e da matéria de facto não provada – não deixando também de se assinalar, já agora, que mesmo essa matéria de facto agora tida como assente foi, em grande parte, imputada ao arguido, não na acusação, mas já em fase de julgamento, mediante decisão de alteração não substancial de factos ali proferida (nos termos já inicialmente referenciados).
Isto para dizer que não pode – numa primeira abordagem ao exercício de configuração daquela que é a aludida imagem global do facto em apreciação – perder–se de perspectiva que a imagem global de um comportamento (consubstanciado em actos e factos) que eram imputados ao arguido, e que caracterizavam a imputação ao mesmo do crime de violência doméstica, não resultou integralmente demonstrada – sem prejuízo, muito evidentemente, de a parte demonstrada poder ser suficiente para preencher os pressupostos de tal criminalização, como vem considerado pela primeira instância.
Mais se constata, nesta mesma perspectiva, que por via das alterações introduzidas por esta instância de recurso em sede de matéria de facto provada, no âmbito da análise que fica efectuada da impugnação do julgamento da mesma pelo tribunal a quo, a matéria de facto provada em sede de sentença foi acrescidamente obliterada de alguns aspectos que, em sede de sentença recorrida, foram tidos como relevantes no sustento da tipicidade própria do crime de violência doméstica.
Ora, a verdade é que não deixa de assinalar que a matéria de facto que ora se mostra não provada, não respeita propriamente a meras questões fácticas de pormenor ou de precisão circunstancial da actuação do arguido, mas antes dizem respeito a aspectos que, a provarem–se, assumiriam muito acentuada relevância para aferir da verificação no caso da imputada atitude íntima especialmente censurável por parte do arguido e do grau de lesão para o bem–estar da ofendida que das actuações daquele teria resultado.
Assim, temos ali elencadas, como não demonstradas, circunstâncias de facto que, há que dizê–lo, assumiriam, por parte do arguido, um grau de censurabilidade, no contexto da tipologia criminal em análise, que em grande medida exacerbava mesmo a de vários aqueles que agora se têm por demonstrados.

Seja como for, para lá disto e de forma verdadeiramente determinante para a presente decisão, a verdade é que, e agora considerando unicamente a matéria de facto dada como assente – na qual já será de incluir e ponderar, naturalmente, os factos entretanto aditados à mesma por via da presente decisão –, se deve na verdade concluir pela inexistência de materialidade suficiente para alicerçar o crime de violência doméstica.
Com efeito, os factos agora tidos por definitivamente assentes, não evidenciam uma forma de actuar do agente que se subsuma ao tipo legal de violência doméstica.
Aliás, e em bom rigor, alguns desses factos não revestem sequer a susceptibilidade de integrar tipicamente o sustento do ilícito em causa, quer porque anódinos para tal efeito em si mesmos (casos daqueles elencados nos pontos 5., 6., 7., 14., 30., 32., 33. e 36.), ou quando avaliados conjugadamente com outros, também assentes (e originários, designadamente, da contestação do arguido), o que lhes retira a carga danosa imputada (assim, os factos do ponto 8. e do ponto 47. – as quantias que o arguido solicitava à assistente eram por aquele utilizadas em despesas de interesse familiar –, ou os dos pontos 17. a 19. com o do ponto 49. – o arguido contratou os ali aludidos funcionários por necessidade dele próprio derivada da do circunstância de a assistente haver ordenado à empregada comum do casal que deixasse de fazer as tarefas domésticas ao arguido e haver despedido o funcionário que tratava da piscina porque com o mesmo «estava de relações cortadas» – não resultando, aliás, da matéria de facto provada que o haja feito com o acordo do arguido).

Quanto às demais actuações do arguido, sendo certo demonstrarem, como também se tem por assente, acentuada desconsideração e mesmo, em certa medida e a partir de certa altura, desprezo pela pessoa da assistente, a verdade é que, muito embora se possa considerar que se situam perto da fronteira da punibilidade, não são suficientes para preencher a especial especificidade dos elementos típicos do crime de violência doméstica.
Na verdade, essas condutas do arguido – os insultos, o desdém e amedrontamento verbalizados e/ou sugeridos (factos dos pontos 10. a 13., 15. e 22.), a agressão física (factos dos pontos 24. e 25.), consideradas na sua globalidade complexiva, não configuram uma efectiva e relevante situação de expressão de um abuso na relação afectiva com a assistente, sendo, antes, reveladores de um quadro de relacionamento absolutamente deteriorado, que se foi degradando ao longo do tempo.
Aliás, é a própria matéria de facto provada que dá nota disso mesmo, contextualizando o início das atitudes insultuosas e ofensivas do arguido para com a assistente «na constância» de discussões que o casal «passou» a ter na sequência de o arguido haver alterado a sua ocupação profissional e dos pedidos de dinheiro deste à assistente (cfr. pontos 9. e 10. da matéria de facto provada) – pedidos estes, note–se bem, que também se tem por provado na sentença haverem ocorrido com a finalidade já acima exposta (cfr. ponto 47. da matéria de facto provada).
Depois, também é o ponto 18. da matéria de facto provada que nos dá conta de que o relacionamento entre ambos estava em clara fase de deterioração, com vários episódios, a seguir descritos, que amplamente o comprovam.
É sempre nesta sequência, e mais uma vez no contexto de uma discussão entre o casal motivada agora por divergências quanto à pernoita dos filhos, que ocorrer a (exclusiva) agressão física registada ao longo de todo este período, atitude indiscutivelmente (também ela) censurável, mas que não pode deixar de ser contextualizada na aludida degradação do relacionamento conjugal – sendo, mesmo, na prática como que o epílogo da mesma.
Não deixará de se notar que, apesar dessa acentuada degradação, das discussões, e de todas as actuações objectivas ocorridas ao longo de vários anos (a matéria de facto provada dá nota de um primeiro episódio em Junho de 2014), o casal se foi mantendo na relação conjugal – vindo mesmo, em Junho de 2016, a celebrar entre si casamento católico na Bélgica –, de comum acordo, e não sendo visível que qualquer das atitudes do arguido haja determinado uma vilipendiação tal da pessoa da assistente que haja afectado o seu modo de vida e as suas opções pessoais e auto–determinação, ou seja, não se julga, ao contrário de quanto se considera na sentença recorrida, que se possa aqui «concluir pela subjugação de um membro da relação a outro, pelo exercício de um domínio emocional de facto de um».
Como, aliás, não se julga demonstrado que o haja sido.
Notar–se–á, neste contexto, que a subsequente e progressiva degradação da relação conjugal encontra evidências notórias nas circunstâncias de os mesmos se encontrarem materialmente separados de facto, ainda que coabitando, desde pelo menos 2018 ; também na de a assistente, em Outubro de 2019, haver adquirido, sem o arguido, uma casa, habitação essa para onde, após a separação definitiva do casal meses depois (em Junho de 2020), foi habitar com os filhos do casal ; e igualmente temos a circunstância de, no início do ano de 2020 (poucos meses antes da separação do casal, portanto) haver constituído uma sociedade comercial de que era exclusiva titular, tendo, ademais, estabelecido a respectiva sede social (assim como a de outra sociedade unipessoal de que era também titular) na morada correspondente àquela mesma sua nova casa – tudo antes da separação do casal, repete–se.
Nada disto, naturalmente, estava vedado à assistente no âmbito da absolutamente livre disponibilidade de vontade da mesma.
Porém, e por isso mesmo – além de não deixar de reforçar a asserção de que o relacionamento conjugal entre assistente e arguido estava já, desde há muito antes do epílogo da sua coabitação, desmoronado –, revela concomitantemente não ser possível constatar no caso uma perturbação de tal forma acentuada da vida da assistente que se consubstanciasse no conceito de maus tratos e lhe tolhesse a livre expressão da sua personalidade.
É absolutamente verdade quanto se refere na sentença, ao aludir a que «A circunstância de a assistente gozar de uma situação financeira desafogada, de provir de um elevado estrato social, porquanto é descendente de uma família belga com títulos nobiliárquicos e detentora de uma grande fortuna, de ter uma vivência cosmopolita, por se deslocar frequentemente ao estrangeiro em viagens de negócios e pessoais, não a torna menos suscetível de ser atingida na sua dignidade humana».
Porém, também a não torna mais susceptível (para utilizar a expressão da sentença) de tais ofensas, devendo, pois, os actos que as integram ser objecto uma avaliação à luz de critérios de normalidade social, e sem deixar, naturalmente, de ter em consideração o especial contexto vivencial e relacional das concretas pessoas que estão em causa.
Ora, considerando a situação ambiente, e analisando a aludida imagem global do facto, e vistos os concretos actos cometidos pelo arguido, entendemos, pois, que tais condutas não permitem afirmar que, com elas, o bem-estar físico e emocional e a dignidade pessoal da assistente foram intoleravelmente lesados, não se revelando suficientes para configurarem um ataque à dignidade pessoal, um insensibilidade ou crueldade, que preencha o conceito de maus tratos, nem se revelando especialmente aptos a ofender a saúde da ofendida, tudo elementos exigidos pelo tipo legal nos termos supra expostos.
Assim, afigura–se, contrariamente ao decidido pelo tribunal recorrido, que a conduta do arguido fica ainda aquém do necessário grau de aviltamento da dignidade humana da ofendida, que é própria do crime de violência doméstica.

Em suma, segundo os critérios que acima ficaram expostos, não estaremos na verdade perante um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º/1/b) do Cód. Penal, nesta medida merecendo provimento a pretensão do arguido/recorrente.
*
*

A conduta do arguido, não integrando embora a tipologia do crime de violência doméstica pelo qual vem condenado – e pelo qual deve, assim, ser absolvido, não é, todavia, isenta de censura criminal.

Na verdade, à luz da matéria de facto provada considera–se que o arguido terá preenchido, em concurso efectivo, os pressupostos típicos de um crime de ofensas à integridade física, previsto no art. 143º/1 do Cód. Penal, de um crime de ameaça agravada previsto nos termos das disposições conjugadas dos arts. 153º/1 e 155º/1/a) do Cód. Penal, e de um crime de injúria previsto nos termos do art. 181º/1 do Cód. Penal.

Começando pelo crime de ofensa à integridade física.
(…)

Vejamos agora quanto ao crime de ameaça agravada.
(…)

Quanto ao crime de injúria,
(…)
*

Aqui chegados, cumpre, enfim, decidir das consequências penais aplicáveis ao arguido em função dos crimes que acabamos de verificar haver o mesmo praticado, e pelos quais deverá ser condenado.
(…)
*

III. DECISÃO

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, e, em consequência decide–se :

1º, modificar (por alteração e aditamento) a matéria de facto provada no que respeita aos pontos 6º, 13º, 21º, 28º, 34º, 37º, 38º, 41º, 42º, 55º, 56º, 57º, 58º e 59º da mesma, nos termos que ficam decididos nos pontos 4. da presente decisão;

2º, absolver o arguido do crime de violência doméstica, previsto no art. 152º/1/a)/2/a) do Cód. Penal, pelo qual vinha condenado ;

3º, condenar, outrossim, o arguido nos seguintes termos:
i. como autor material de um crime de ofensa à integridade física previsto no art. 143º/1 do Cód. Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão;
ii. como autor material de um crime de ameaça agravada, previsto nos termos das disposições conjugadas dos arts. 153º/1 e 155º/1/a) do Cód. Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão ;
iii. como autor material de um crime de injúria, previsto nos termos do art. 181º/1 do Cód. Penal, na pena de 45 (quarenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de €8,00 (oito euros) ;
iv. operando o devido cúmulo jurídico das duas penas de prisão ora aplicadas, condena-se o arguido AA na pena única de 1 (um) ano de prisão ;
v. nos termos do disposto no art. 50º do Cód. Penal, suspender a execução da pena única de prisão aplicada pelo período de 2 (dois) anos.

Custas pela assistente, fixando–se a taxa de justiça em 3 (três) UCs (cfr. arts. 513º/1 e 515º/1/b) do Cód. de Processo Penal).
*

Porto, 8 de Novembro de 2023
Pedro Afonso Lucas
Maria do Rosário Martins
Lígia Trovão

(Texto elaborado pelo primeiro signatário como relator, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo da primeira página)
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[1] Relatado por Nuno Gomes da Silva, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[2] Relatado por Arménio Sottomayor, acedido em https://www.stj.pt
[3] Relatado por Cura Mariano, acedido em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20120312.html e em que se decidiu «Não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 410.º, n.º 1, 412.º, n.º 3, e 428.º, conjugados com os artigos 339.º, n.º 4, 368.º, n.º 2, e 374.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal, na interpretação de que não pode ser objeto da impugnação da matéria de facto, num recurso para a Relação, a factualidade objeto da prova produzida na 1ª instância, que o Recorrente-arguido sustente como relevante para a decisão da causa, quando tal matéria não conste do elenco dos factos provados e não provados da decisão recorrida»
[4] Relatado por José Eduardo Martins, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[5] Relatado por João Amaro, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf
[6] Relatado por Maria Joana Grácio, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[7] Relatado por Raúl Borges, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[8] Relatado por Carlos Berguete Coelho, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf
[9] Relatado por Belmiro Andrade, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[10] Relatado por Orlando Gonçalves, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[11] Relatado por José Carreto, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf [12] Relatado por Pedro Vaz Pato, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[13] Relatado por Paulo Costa, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[14] Relatado por João Amaro, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf [15] Relatado por Ana Maria Barata de Brito, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf