RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
MELHORIA DA APLICAÇÃO DO DIREITO
FUNDAMENTAÇÃO
Sumário

1 - O recurso em processo de natureza contraordenacional com fundamento no Artº 49º/2 da Lei 107/2009 de 14/09 pressupõe a fundamentação, em requerimento prévio, do mecanismo de exceção ali consignado, nomeadamente mediante alegação das razões que tornam evidente a manifesta necessidade à melhoria da aplicação do direitito ou à promoção da uniformização da jurisprudência.

2 - Tal recurso não se basta com a invocação genérica das condições excecionais de admissibilidade.

3 - Nestas situações não há lugar à formulação de convite ao aperfeiçoamento do requerimento.

Texto Integral

Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Lisboa:



A - TRANSPORTES Lda, Recorrente nos autos à margem identificados, em que é Recorrido o Ministério Público, em representação da ACT – Autoridade para as Condições do Trabalho, não se conformando com o Acórdão proferido nos presentes autos, dele vem, nos termos da Lei, interpor Recurso para fixação de jurisprudência.
Pede a revogação da decisão que julgou improcedente a impugnação judicial da ora Recorrente e substituída por outra em que seja apreciada a prova oferecida aplicando o direito em conformidade com a corrente dominante.
  
O MINISTÉRIO PÚBLICO pronunciou-se invocando a inadmissibilidade do recurso.

Foi proferido despacho pela Relatora não admitindo o recurso e ordenando a convolação do requerimento para reclamação para a conferência.
Tal despacho teve na sua base a circunstância de a rejeição do recurso ter sido decidida ao abrigo do disposto no Artº 50º/3 da Lei 107/2009 de 14/09, traduzindo um despacho fundamentado sobre o requerimento de interposição do recurso que teve na sua base o disposto no Artº 49º/2.

A presente decisão cingir-se-á à reapreciação deste despacho singular.

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É o seguinte o respetivo conteúdo:
“A - TRANSPORTES Lda., Recorrente nos autos à margem identificados, em que é Recorrido o Ministério Público, em representação da ACT – Autoridade para as Condições do Trabalho, não se conformando com a sentença proferida, dela vem interpor recurso nos termos do número 2 do artigo 49º e artigo 50º da Lei n.º 107/2009 de 14 de Setembro.

O MINISTÉRIO PÚBLICO opõe-se à admissão do recurso por falta de cumprimento das exigências de forma.

Nesta Relação o Ministério Público emitiu parecer afirmando que o Recrte. não expõe qualquer razão para lançar mão do presente recurso, sendo que o mesmo tem natureza excecional.

Cumpre decidir da admissibilidade do recurso!

À Arguida foram aplicadas duas coimas no valor de 918,00€ cada uma, redundando na coima única de 1.326,00€.
Considerando o disposto no Artº 49º/1-a) da Lei 107/2009 de 14/09 é de singela clareza que a decisão não admite recurso.

Dispõe, contudo, o Artº 49º/2 da mesma lei que, para além dos casos enunciados no número 1, pode o Tribunal da Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da decisão quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
Com a referência que efetua a este dispositivo parece ser por tal via que a Recrte. se propõe recorrer.
Dispõe o Artº 50º/2 da Lei 107/2009 que, nestes casos, o requerimento segue junto ao recurso, antecedendo-o, vindo a decisão sobre o mesmo a constituir questão prévia.
Nenhum requerimento antecede a interposição do recurso. Situação que impõe a respetiva rejeição.

Na peça que contém o próprio recurso verificamos, todavia, que sob a epígrafe “Do Fundamento do Recurso” se invoca:
3. O presente Recurso fundamenta-se no nº 2 do artigo 49º da Lei nº 107/2009 porque se revela necessário melhorar a aplicação do direito em matéria de contraordenações laborais, nomeadamente no que diz respeito à aplicação do normativo que consta do nº 2 do artigo 13º da Lei nº 27/2010 e ainda no que diz respeito à aplicação do regime da prescrição das contraordenações laborais.
4. Relativamente à jurisprudência é necessário que as decisões judiciais proferidas em 1ª Instância, e esta em particular, respeitem uma uniformização na matéria que diz respeito à aplicação do nº 2 do artigo 13º da Lei nº 27/2010, conforme os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 18.12.2018 e 23.01.2023, bem como os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 23.04.2021 e 08.06.2022 e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 31.03.2022.
5. Bem como relativamente ao regime dos artigos 52ºa 54º da Lei nº 107/2009 o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora no Processo nº 116/11.8TEVR.E.1 de 06.12.2011.
Parece, assim, que a Recrte. visará fundamentar o recurso ao mecanismo previsto no Artº 49º/2 optando pelo uso de forma distinta da legalmente prevista.
Porém, de forma inadequada, porquanto conforme emerge de quanto ali se dispõe é necessário que se fundamente cabalmente o mecanismo de exceção, alegando razões que tornem evidente a manifesta necessidade à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
Conforme defende António Beça Pereira a propósito da correspondente norma constante do Artº 72º/2 do DL 433/82 de 27/10 (RGCO), nestes casos, “para além do recurso propriamente dito, há um requerimento prévio no qual se terão que alegar factos demonstrativos da manifesta necessidade de melhorar a apreciação do direito ou de promover a uniformidade da jurisprudência” (Regime Geral das Contraordenações e Coimas, 10ª edº, 213).
E, neste mesmo sentido, temos vindo a decidir, ou seja, que o recurso excecional previsto no artº 49º, nº 2, da Lei nº 107/2009, de 14.09, pressupõe que, independentemente da indicação desta norma no respetivo requerimento de interposição, o arguido ou o Ministério Público aleguem em concreto as razões da necessidade de melhoria da aplicação do direito e da promoção da uniformidade da jurisprudência[1].
Assim, nesta fase prévia não se trata de aquilatar do bem ou mal fundado da decisão recorrida, mas sim da manifesta necessidade de melhorar a aplicação do direito ou de promover a uniformização jurisprudencial.
No caso vertente pretende-se que o recurso é necessário à melhoria da aplicação do direito e à promoção da uniformidade jurisprudencial, embora neste caso a alegação acima transcrita não seja muito evidente.
Da literalidade da norma que exceciona o direito ao recurso decorre a necessidade de alegação e convencimento de que o mesmo é, não só necessário, mas manifestamente necessário quer à melhoria da aplicação do direito, quer à promoção da uniformidade da jurisprudência.
O conceito de manifesta melhoria da aplicação do direito destina-se “a tutelar interesses de ordem pública, da estabilidade da aplicação da lei ou da igualdade dos cidadãos que poderiam ser afetados nos casos em que a decisão não satisfizesse alguma das condições previstas no nº 1” (Abrantes Geraldes, Recursos no Processo de Trabalho, Novo Regime, 2010, 169 e 170).
À semelhança do que ali se estipula, também o CPC, contém norma semelhante, desta feita para permitir a revista excecional, defendendo-se que “relativamente às situações em que esteja em causa questão jurídica cuja apreciação, pelo seu relevo, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, naturalmente não basta atentar no interesse subjetivo da parte que, tendo ficado vencida, pretenda a intervenção do STJ. O recurso deve ser reservado para questões que, no critério do próprio STJ, justifiquem o terceiro grau de jurisdição, atento o seu efeito preventivo ou reparador de polémicas jurisprudenciais ou doutrinais.
A sua concretização no foro laboral pode verificar-se em face de questões submetidas a soluções diversas causadoras de forte perturbação ou insegurança ou quando surja legislação nova geradora de dúvidas interpretativas que, afetando negativamente os destinatários diretos da decisão recorrida, sejam suscetíveis de se repercutir na resolução de casos semelhantes” (ob. cit., 108).
A Relação de Coimbra, em acórdão proferido em 09/12/2010 decidiu que “deve entender-se que só se observa a referida manifesta necessidade quando da decisão impugnada se observe um erro jurídico grosseiro, incomum, uma errónea aplicação do direito bem visível, assim não sucedendo perante uma mera discordância quanto à aplicação do direito” (Proc.º 51/10.7 TTMR.C1, disponível no sítio www.trc.pt e em www.dgsi.pt/jtrc). Por sua vez, a Relação do Porto decidiu já que “a admissibilidade de recurso para melhoria da aplicação do direito, nos termos do Artº 49º/2 da Lei 107/2009 de 14/09, depende da existência da manifesta necessidade de prevenir solução jurídica evidentemente grosseira, errada, indigna ou que comporte efeitos particularmente graves” (Ac. de 24/09/2012, www.dgsi.pt). Por seu turno, a Relação de Guimarães decidiu que “…podemos concluir que é de aceitar o recurso quando na decisão recorrida o erro avultar de forma categórica e, pela dignidade da questão, pelos importantes reflexos materiais que a solução desta comporte para os por ela visados e generalidade que importe na aplicação do direito, seja inexoravelmente preciso corrigir aquele” (Ac. RG 8/11/2004, Proc.º 1073/04.1).
No caso concreto está em perspetiva a condenação por duas contraordenações previstas pelos Artº19º/1-b) da Lei 27/2010 de 30/08 por violação do Artº 7º do Regulamento (CE) 561/2006 do Parlamento e do Conselho de 15/03/2006 e 20º/2-b) da mesma Lei por violação do Artº 8º do mesmo Regulamento.
O conhecimento do recurso tendo por pressuposto a promoção da uniformidade da jurisprudência requer, não só que a decisão proferida se revele diversa de outras relativamente à mesma questão de direito, mas também que seja manifesta a necessidade de promover a uniformização.
Não se basta, pois, a lei com a invocação genérica das condições excecionais de admissibilidade.
Assim, no caso concreto, competia à Recrte. alegar a melhoria almejada na aplicação do Artº 13º/2 da Lei 27/2010 e ao regime da prescrição, quanto mais não fosse aduzindo as razões pelas quais a sentença não se coaduna com os apontados acórdãos (aliás não devidamente identificados –os do ponto 4- pois não há qualquer referência ao número do processo).
Sobre a manifesta necessidade de promover a uniformização o requerimento de interposição do recurso nada diz, limitando-se a invocar um conjunto de acórdãos que, como já deixámos antever nem se percebe para que efeito.
Em presença do exposto, não demonstrados os pressupostos de que depende o recurso, o mesmo não pode admitir-se o que, considerando o disposto no Artº 50º/3 da Lei 107/2009 se decide.

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Em conformidade com o exposto, rejeito o recurso.
Custas pela Recrte. (taxa de justiça mínima).
Notifique.”

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No requerimento de interposição do recurso da decisão singular proferida pela Relatora – impropriamente denominada de acórdão – alega a Recrte. que lhe deveria ter sido dada oportunidade de aperfeiçoar o requerimento de recurso e só após ter sido proferida decisão sobre a sua rejeição ou não. A Recrte. não se insurge contra os fundamentos determinantes da rejeição.
Não sendo tecidos argumentos contra tais fundamentos, nada mais se nos oferece acrescentar.
Quanto ao dever de formular convite ao aperfeiçoamento, em sede de recurso tal dever apenas existe no concernente ao aperfeiçoamento das conclusões (Artº 639º/3 do CPC).
Em situações como a presente, em que se configurava um recurso de natureza excecional, tal dever não está previsto (Artº 49º/2 da Lei 107/2009 de 14/09), o mesmo ocorrendo nas situações similares consignadas no Artº 672º do CPC. Funciona, pois, em toda a plenitude, o princípio da autorresponsabilidade das partes de acordo com o qual incumbe às mesmas deduzir e fazer valer os meios de ataque e de defesa que lhes correspondam, suportando uma decisão adversa, caso omitam algum. Nestas situações as partes são responsáveis pelo impulso processual “quer quando por negligência o deixem de fazer, quer quando o façam através de procedimento anómalo, provocando incidentes inúteis ou desnecessários ao normal desenvolvimento da lide” (Fernando Pereira Rodrigues, O Novo Processo Civil, Os Princípios Estruturantes, Almedina, 232).
Termos em que se mantém a decisão prolatada.

As custas constituem responsabilidade da Recrte./Reclmte. (Artº 527º do CPC).

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Em conformidade com o exposto, acorda-se em manter a decisão reclamada.
Custas pela Recrte. (taxa de justiça – 2UC).
Notifique.


Lisboa, 22/11/2023



MANUELA FIALHO
MARIA JOSÉ COSTA PINTO
MARIA LUZIA CARVALHO



[1]São exemplos o Proc.º 562/17.3T8LSB, Proc.º 1694/16.0T8LSB, Proc.º 131/16.5T8VCT