MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
FALTA DE CONCLUSÕES
CONTRADIÇÃO
RECUSA OBRIGATÓRIA DE EXECUÇÃO
RECUSA FACULTATIVA DE EXECUÇÃO
PENA DE PRISÃO PERPÉTUA
RESIDÊNCIA
DETENÇÃO
MEDIDAS DE COAÇÃO
Sumário


I- Embora possa ser recusada a execução do MDE quando a pessoa procurada seja residente em Portugal, tal recusa apenas é admitida desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa.

II- Tratando-se de MDE emitido para procedimento criminal, a residência em Portugal não integra causa de recusa facultativa da execução do mandado de detenção europeu.

Texto Integral



Processo 3011/23.4YRLSB - Tribunal da Relação de Lisboa/...ª Secção Criminal


*


Acordam em conferência na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO


1. Por acórdão de 2 de novembro de 2023 (Ref.ª Citius ......42) do Tribunal da Relação de Lisboa (doravante, TRL), proferido no processo supra epigrafado, para execução de Mandado de Detenção Europeu (doravante, MDE) emitido pelas autoridades processuais competentes do Reino da ..., foi decidido:

«a) Julgar improcedente a oposição deduzida e, em consequência, determinar a execução do mandado de detenção europeu em causa nos autos, emitido contra AA, ordenando-se a sua oportuna entrega às Autoridades ..., para procedimento criminal (processo ........................22), tendo-se em consideração que vigora o princípio da especialidade, pois que a ele o detido não renunciou;

b) Determinar que AA continue a aguardar os ulteriores termos do processo na situação de detenção em que se encontra.»

2. De tal acórdão interpôs recurso o arguido AA, expondo na sua motivação, que não contempla conclusões, os seguintes fundamentos:


«1. O extraditando é réu primário, de bons antecedentes, nunca respondeu sequer uma investigação policial.


2. O extraditando possui residência fixa em ..., no endereço Rua...., ..., bem como possui trabalho fixo em ... na área de construção civil, conforme comprovado na Declaração e a sua autenticação, ambos docs. já anexados no processo (doc. – declaração de residencia e trabalho fixo; doc. – autenticação da declaração), firmada pelo seu “patrão”, o português BB, cujo inclusive cedeu sua residencia para o extraditando morar, o que demonstra ter o arguido personalidade calma e tranquila.


3. O ora extraditando necessita responder o processo ... em território nacional português, pois, conforme comprovado documentalmente no processo em epígrafe, o extraditando sofre ameaças de morte com a foto do seu rosto divulgado nas redes sociais pelo fato envolvendo o homicídio de um cidadão marroquino na ..., conforme relatado oralmente em audiência de 1 interrogatório.


4. Exmos. Juízes conselheiros, não se pode olvidar o fato de que os marroquinos são o maior grupo de imigrantes na ..., com 264.974 pessoas, conforme se comprova no link..., e inclusive % considerável dentro do sistema prisional ..., o que demonstra a iminente e alto risco á vida do extraditando caso seja entregue á ....


5. Inexiste periculum libertatis in casu, AA tem residência fixa, o locador, seu patrão, que convive com AA na residencia de sua propriedade e que acolheu o ..., atesta sua boa conduta e comportamento conforme comprovado documentalmente nos autos, fazendo jus assim aguardar, o extraditando, a aplicação de medidas de coacção menos gravosas que a prisão, que hoje prospera de forma ilegal e abusiva, que causa evidente constrangimento ilegal.


6. Não se pode olvidar, que inexiste perigo de fuga, o extraditando AA somente veio a Portugal por risco iminente de vida, pois está sendo confundido com autor de crime - que não está associado em nenhuma esfera - sendo certo que se quisesse fugir teria ido ao ..., já que sabe que sua pátria não o extraditada para outro país.


7. A extradição de AA é compactuar com uma prisão para o resto da vida do extraditando em caso de condenação, pois conforme consta no artigo 393 do Código Penal Belga, a prisão pelo suposto crime pode ultrapassar os 30 anos de reclusão e chegar até a ser decretada a prisão perpétua, dependendo da análise dos magistrados locais.


8. De acordo com diversos diplomas de Direitos Fundamentais e Direitos Humanos, tanto em sua ordem interna quanto externa, repudiam a aplicação de Lei mais gravosa ao extraditando.


9. Tendo isso em vista, caso o extraditando venha a ser extraditado e responda perante a justiça ..., ele faz jus à Lei mais Benéfica, conforme dispõe, tanto o ordenamento fundamental constitucional, como infraconstitucional, sendo este o próprio Código Penal, tal como os Diplomas de Internacionais de Direitos Humanos, sendo assim, devendo responder, bem como caso futuramente venha a ser condenado, nos moldes do Código Penal Português, que prevê em seu Artigo 131 a pena de 8 a 16 anos e não a legislação Belga, claramente com a pena muito superior e desproporcional para o mesmo crime em Portugal, em garantia ao princípio da proporcionalidade, da dignidade da pessoa humana e da ressocialização do preso, estando, assim, garantindo-se os direitos fundamentais internos e externos de Direitos Humanos, evitando o retrocesso.


10. O extraditando é presumido inocente até sentença condenatória transitada em julgado, sendo que responde uma investigação embrionáriana na ... com mandado de detenção europeu emitido em seu desfavor, cujo tem interesse em comprovar que não é autor de nenhum crime, e manifesta nesse ato interesse e se compromete na busca da verdade real dos fatos, já que nunca praticou nenhum crime em solo belga, nem em nenhum outro país da Europa (e nem mesmo no seu país de origem, o ...), sendo que desconhecia qualquer mandado de detenção europeu ou até mesmo qualquer investigação em seu desfavor. E diga-se e repita-se, foi para Portugal em virtude de risco iminente de vida.


11. Não se pode olvidar que consta gravíssima contradição no mandado de detenção europeu, pois em uma parte consta expressamente que o Sr. CC teria sacado a faca do seu próprio corpo e desferido o golpe que culminou na morte do marroquino, entretanto, em outra parte consta que AA quem teria passado a faca, o que compromete a paridade de armas e a dignidade da justiça, que cerceia a defesa de AA e lhe coloca em prisão em processo de extradição de forma ilegal e abusiva, que lhe causa evidente constrangimento ilegal.


12. É cediço que não se discute mérito dos fatos no processo de extradição, porém o que referido, a tal contradição, compromete a essência do mandado de detenção europeu e prejudica em efeito cascata o processo de extradição em epígrafe, em face exclusivamente de CC e sua conduta individualizada.


13. Não foi AA quem desferiu a facada e nem passou nenhuma faca para CC (e a presunção de inocência é um direito garantido constitucionalmente), embora existam 2 versões e contradições no MDE que comprometem os fortes indícios da prática de crime por parte do extraditando AA. Se existe dúvida e contradição na forma de execução do crime, quem garante que também não existe erro quanto ao “partícipe” do delito e o que consta no MDE?


14. De acordo com o Artigo 6 da Lei de Cooperação Jurídica internacional em matéria penal (Lei n. 144/99 de 31 de Agosto), no caso em concreto, a cooperação deve ser negada eis que:

i) De acordo com a alínea “c)” do referido artigo, existe risco de agravamento da situação processual do extraditando em virtude de ser nacional ...;

ii) De acordo com a alínea “e)”, o facto a que respeita for punível com pena de morte ou outra de que possa resultar lesão irreversível da integridade da pessoa;

iii) De acordo com a alínea “f)”,respeitar a infração aque corresponda pena de prisão ou medida de segurança com carácter perpétuo ou de duração indefinida.

15. Acerca do princípio da especialidade, importante frisar que o extraditando em 1 interrogatório afirmou expressamente que só aceita ser julgado pelos fatos objeto do mandado de detenção europeu que deu origem o processo de extradição em epígrafe o suposto crime de homicídio culposo, sem intenção de matar).


16. Importante frisar, outrossim, a necessidade de aplicação do Artigo 18, n. 2, da Lei de Cooperação Jurídica Internacional, tendo em vista caso deferido o pedido, resultará em consequências graves para o extraditando, em virtude da sua idade (de possuir apenas 21 anos de idade e diante da pena elevada ser afastado o princípio da ressocialização do preso, seuestadomental(jáqueafastadaaressocializaçãodopresoeapenadeprisãoperpétuaoumuitomaioremanosparaomesmocrimedeacordocomlegislaçãoportuguesa)esobretudooriscodevida,conformecomprovadodocumentalmente na presente oposição já que sofre ameaças de morte somente pelo fato de ser brasileiro, dentro e fora do sistema prisional belga.


17. Exmos.Juízes conselheiros, no caso não estão preenchidos os requisitos para a detenção provisória do extraditando conforme a legislação portuguesa.


18. Estão preenchidos todos os requisitos para a aplicação de medida de coacção menos gravosa que a prisão, não pode ser aplicada a detenção somente pelo perigo abstrato do crime. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 38, n. 6, ou seja, na pendencia do processo e até o transito em julgado da decisão final, é aplicável medidas de cocção não detentivas.


19. Como é embrionária ainda a fase de investigação, nada se garante que o crime de homicídio in casu não tenha a pena de prisão perpétua, já que em fase de sentença judicial pode ser fixada pena para crime premeditado, sendo certo que se diferente for, o crime possui pena de 20 a 30 anos, muito superior a pena para o mesmo tipo de crime em Portugal (homicídio culposo).


20. No presente caso, não estão preenchidos os requisitos dos artigos 2 e 3 da Lei n. 65/2002 de 23 de Agosto.


21. Além disso, consta expressamente no artigo 11 da referida Lei, os motivos de não execução obrigatória do mandado de detenção europeu, e devem ser aplicados os efeitos das letras “d)”, já que preenchido no caso em concreto.


22. No que tange ao artigo 12 da referida lei, consta expressamente no artigo da referida Lei, as causas de recusa facultativa de execução do mandado de detença europeu, e devem ser aplicados os efeitos da letra “g)”, já que o extraditando reside em Portugal, e diante do risco iminente de vida, o Estado português pode se comprometer a aplicar a pena que possa a vir existir e ser imputado ao extraditando.


23. Deve prosperar a recusa ou condicionamento da execução do MDE em função da residencia do visado, que reside a meses em Portugal, nunca empreendeu fuga da ... para se esquivar da justiça, e sim veio a Portugal recomeçar a vida depois das ameaças de morte por parte de marroquinos, sendo certo que se quisesse fugir teria ido ao ..., sua pátria, que não o extradita para outro país, sendo certo que o extraditando tem um centro de via em Portugal (amigos, emprego e residencia fixa).


24. Prospera afronta ao princípio da proporcionalidade, não deve ser aplicada a prisão até o transito em julgado do processo em epígrafe, é possível a aplicação de medidas de coacção menos gravosa, como por exemplo, apreensão de passaporte, vigilância eletrónica, comparecimento na PSP semanal e outras, sendo que no caso em concreto diga-se e repita-se o extraditando não fugiu para Portugal e a sua ida a Portugal não foi para se eximir da justiça ....


25. É cediço o sumário do AC do STJ de 09.08.2023 (processo n. 750/13.1YRLSB.L1), que a prisão in casu não é a prisão preventiva, porém é crível que o extraditando responda o MDE em liberdade em Portugal.


Inexiste perigo de fuga.


26. Isto tudo posto, uma vez inclusive já prestado TIR, e todo o exposto e comprovado acima, é a presente para requerer digne-se Vossa Excelência de determinar o seguinte:

a)Julgar procedente o presente Recurso, a fim de afastar o Mandado de Detenção Europeu e a entrega do extraditando á justiça Belga;

b)Que seja revogada a prisão do extraditando, até o transito em julgado do MDE, e que seja aplicado todas as medidas de cocção menos gravosa que a prisão (proibição de deixar o território nacional português, permanência em habitação, vigilância eletrónica, comparecimento semanal na PSP mais próxima da residência e outras aplicáveis ao caso em concreto, entrega de passaporte...) que garantem a impossibilidade de fuga do extraditando de forma incontestável;»

3. Respondeu ao recurso a Senhora procuradora-geral-adjunta junto do TRL, apresentando as seguintes conclusões:

«1. Por AA foi interposto recurso do acórdão proferido a 2 de novembro de 2023.

2. A motivação de recurso apresentada carece de conclusões; o recurso foi admitido sem que tenha sido feito o convite ao recorrente para as formular, ao abrigo doart.414º, nº2, do C.P.P., convite esse que pode ainda ser efetuado pelo Exmº Sr. Conselheiro relator do STJ, sob pena de rejeição do recurso – art. 417º, nº 3, in fine, do C.P.P., ex. vi. art. 34º, da Lei nº 65/2003.

3. Do texto da motivação infere-se que o objeto do recurso versa sobre as causas de recusa da execução do MDE e manutenção da detenção;

4. O mandado de detenção europeu em questão foi emitido para procedimento criminal, pelos factos ilícitos aí descritos e crime no mesmo indicado, concretamente o crime de homicídio, previsto e punido nos arts. 292º e 293º, do C. Penal Belga,

5. com uma pena de 20 a 30 anos, e não com a pena de mais de 30 anos ou mesmo a prisão perpétua, como estranhamente afirma o recorrente.

6. O processo do mandado de detenção europeu é um processo simplificado, que é executado com base nos princípios do reconhecimento e da confiança mútua, de acordo com a Decisão-Quadro nº 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de junho e art. 1º, nº 2, da Lei 65/2003.

7. O implica que a autoridade de execução não possa conhecer de mérito,nãoseenvolva naavaliaçãodasubstânciados factos ilícitos e crime indiciados, mas sim nos aspetos relativos à validade do MDE e que possam integrar um motivo de recusa de execução, obrigatória ou facultativa.

8. Está vedado ao tribunal português, no Estado de execução, a sindicância judicial sobre os factos investigados e imputados ao recorrente, a existência de indícios, a prova aí recolhida, a verificação de qualquer contradição fáctica entre si, matérias estas que são da competência exclusiva do tribunal de emissão.

9. In caso é manifesto que o recorrente fugiu para Portugal após a prática dos factos para se eximir da responsabilidade penal, aqui mora desde novembro de 2022, não tendo apresentado o título de residência CPLP temporário ou permanente, que permita concluir que tem residência no nosso país.

10.Não se verifica qualquer causa de escusa obrigatória ou facultativa, impeditivas da execução do MDE.

11. A causa de recusa facultativa prevista no art. 12º, nº 1, g), da Lei nº 65/2003, decorrente da residência em Portugal só constituiria a causa de recusa se o MDE tivesse sido emitido para cumprimento de pena, o que não é o caso.

12.As invocadas ameaças de morte e risco de vida do recorrente, bem como a possibilidade de na ... lhe poder vir a ser aplicadauma pena de prisão com uma duração superior à que lhe seria aplicada em Portugal não constituem fundamento legal para poder ser recusada a sua entrega às Autoridades Judiciárias da ....

13. É manifesto que a manutenção da detenção tem respaldo legal, não é ilegal, nem abusiva, antes se revela necessária e adequada aos objetivos do MDE,que são a detenção e a entrega do recorrente às Autoridades Judiciárias de emissão.

14.Por todo o exposto, nenhuma censura merece o acórdão recorrido.

O presente recurso não merece, em nosso entender, provimento, devendo ser confirmado o acórdão recorrido.»

Colhidos os vistos, e mantendo-se a regularidade da instância recursiva, cumpre decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO


II.1 Fundamentação de Facto


4. Estão assentes os seguintes factos:

- AA é alvo de procedimento criminal na ..., pela alegada prática dos seguintes factos, conforme descrição no ponto 044 do Formulário A:

- AA é fortemente suspeito pela morte de DD.

-A... de novembro de 2022, pelas 18:24, a polícia foi informada da morte por esfaqueamento na praça..., em ....

- Os factos ocorreram às 18:15.

- A vítima foi identificada como DD, nascida a ....02.2002, e que tinha chegado à ... há alguns anos como menor não acompanhado.

- Uma testemunha, EE, declarou ter visto o seu amigo, DD, a falar com um grupo de 4-5 pessoas, aparentemente a pedir-lhes para não lançarem fogo de artifício pois iria afetar pessoas que por ali passavam.

- Seguiu-se uma discussão.

-Atestemunha disse ter visto “O Brasileiro” sacar de uma faca de talhante e esfaquear DD directamente no peito.

-A morte do indivíduo foi declarada no local.

- Pelas 22:35, várias pessoas que por ali passavam aperceberam-se de uma pessoa próxima do perímetro de segurança, que explicou tratar-se de um amigo próximo do suspeito.

- Foi identificado como FF, quando questionado declarou que o suspeito era um tal de “CC”, de nacionalidade brasileira.

- Ele facultou o nome e o número de telefone do parceiro do último, que foi identificado como E.J.

- As investigações levaram à identificação de CC como CC, nascido a ...deAgosto de 1999.

- F. identificou formalmente CC a partir do quadro de fotografias como o autor.

- Outras pessoas entrevistadas identificaram também CC como a pessoa que esfaqueou a vítima.

- A investigação revelou também que um homem chamado “AA” teria sido quem forneceu a faca a CC.

-A investigação revelou que esta pessoa foi AA (05/12/2001).

- Estes factos configuram a prática, pelo requerido, como autor, de um crime de assassinato, ferimento corporal grave, previsto e punível pelos artigos 392 e 393 do Código Penal belga.

- A autoridade de emissão inclui o referido crime na alínea o) do n.º 2 do art. 2.º da Lei n.º 65/2003 – homicídio voluntário e ofensas corporais graves - do formulário MDE e, como tal, não sujeito à verificação e controlo da dupla incriminação.

5. Factos não provados

- Inexistem.

II.2. Fundamentação de Direito


6. A Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho da União Europeia, relativa ao Mandado de Detenção Europeu (doravante, MDE) e aos processos de entrega entre os Estados-Membros (publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias L 190, de 18.07.2002), foi um dos atos adotados em aplicação do título VI do Tratado da União, nomeadamente, das alíneas a) e b) do seu art. 31.º e da alínea b) do n.º 2 do seu art. 34.º.


Considerou então o Conselho, tendo em conta a proposta da Comissão e o parecer do Parlamento Europeu, além do mais:


- deveria ser abolido o processo formal de extradição no que diz respeito às pessoas julgadas embora ausentes cuja sentença já tenha transitado em julgado, bem como acelerados os processos de extradição relativos às pessoas suspeitas de terem praticado uma infração;


- o objetivo de dar execução ao princípio do reconhecimento mútuo das decisões penais;


- o objetivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça;


- a instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal permitindo suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos procedimentos de extradição;


- a substituição das relações de cooperação clássicas que até ao momento haviam prevalecido entre Estados-Membros por um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré-sentencial como transitadas em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.


O MDE previsto nessa Decisão-Quadro constituiu, pois, a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de «pedra angular» da cooperação judiciária.


Mais se atentou em que o mecanismo do mandado de detenção europeu é baseado num elevado grau de confiança entre os Estados-Membros.


Foi, pois, em cumprimento dessa mesma Decisão-Quadro que a Lei n.º 65/2003 (publicada no D.R. I Série-A n.º 194, de 23.08), alterada, depois, pelas Leis n.os 35/2015, de 04-05, 115/2019, de 12-09 e 53/2023, de 28-08, veio aprovar o regime jurídico do MDE, que entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2004, aplicando-se aos “pedidos recebidos depois desta data com origem em Estados membros que tenham optado pela aplicação imediata” daquela (seu art. 40.º).


Na definição legal dada pelo art. 1.º, n.º 1, “O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado-Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado-Membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade”, sendo executado, à luz do n.º 2 do mesmo preceito, com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na mesma Lei e na mencionada Decisão-Quadro.


Esta última não define o princípio do reconhecimento mútuo, tal como aquela Lei não o faz, mas não sofre dúvida que ele assenta na confiança mútua que pressupõe compreensão, impondo às autoridades de um Estado que aceitem reconhecer os mesmos efeitos às decisões estrangeiras que às decisões nacionais, apesar das diferenças que oponham as ordens jurídicas em causa (assim, Manuel Guedes Valente, Do Mandado de Detenção Europeu, Coimbra: Almedina, 2006, p. 83, citando Inês Fernandes Godinho, em Trabalho de Mestrado em Direito apresentado em 2003/2004, na FDUC, na cadeira de Processo Penal, sob a regência de Anabela Miranda Rodrigues, «O Mandado de Detenção Europeu e a “Nova Criminalidade”: A Definição da Definição ou o Pleonasmo do Sentido», p. 14; cfr., também, Anabela Miranda Rodrigues, «O mandado de detenção europeu – Na via da construção de um sistema penal europeu: um passo ou um salto?», RPCC, Ano 13.º, N.º 1, jan.-mar., 2003, pp. 27 ss.; Ricardo Jorge Bragança de Matos, «O princípio do reconhecimento mútuo e o mandado de detenção europeu», RPCC, Ano 14.º, N.º 3, jul.-set., 2004, pp. 325 ss.).


Anabela Miranda Rodrigues, citando Daniel Flore, explicitou, por seu turno, que desde que uma decisão é tomada por uma autoridade judiciária competente, em virtude do direito do Estado-Membro de onde ela procede, em conformidade com o direito desse Estado, essa decisão deve ter um efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União, significando que as autoridades competentes do Estado-Membro do território no qual a decisão pode ser executada devem prestar a sua colaboração à execução dessa decisão como se se tratasse de uma decisão tomada por uma autoridade competente desse Estado («O Mandado de detenção europeu…», RPCC, Ano 13.º, N.º 1, jan.-mar., 2003, p. 33).


Tal princípio de confiança subjacente ao reconhecimento mútuo, ligado ainda a escopos de simplicidade e de celeridade, só através da ausência de exigência absoluta da dupla incriminação (no Estado-Membro de emissão e no Estado- Membro de execução) poderia ser concretizado, motivo por que se elencou, no art. 2.º, n.º 2, identicamente ao que consta da Decisão-Quadro, um catálogo de infrações relativamente às quais se aboliu o controlo da dupla incriminação desde que puníveis com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a três anos.


No respeitante a infrações aí não previstas, o legislador português parece ter, todavia, optado por sujeitá-las ao princípio da dupla incriminação (n.º 3 do mesmo art. 2.º).


Na esteira, ainda, da Decisão-Quadro, e das alterações que mereceu através da Decisão-Quadro 2009/299/JAI, do Conselho, de 26.02 (publicada no Jornal Oficial da União Europeia L 81/24, de 27-03-2009), enveredou-se por uma solução de compromisso entre a abolição geral da dupla incriminação e a reserva da soberania dos Estados, mediante a previsão de causas facultativas de recusa de execução do MDE, bem como de determinadas garantias que, em casos especiais, devem ser fornecidas pelo Estado-Membro de emissão, como decorre do disposto nos artigos 12.º, 12.º-A e 13.º.


Optou-se, pois, por uma abolição relativa da dupla incriminação, que não afetasse essa reserva de soberania e que correspondesse aos desideratos de preocupação comum da União.


Por outro lado, a pessoa entregue em cumprimento de um MDE não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração praticada em momento anterior à sua entrega e diferente daquela que motivou a emissão do MDE, nos termos do art. 7.º, o que consubstancia o denominado princípio da especialidade, embora com as exceções previstas no seu n.º 2, em que se inclui a renúncia da pessoa a essa regra, nos moldes definidos no seu n.º 3.


7. No caso em apreço, está em causa detenção e entrega – e não «extradição», como o Senhor Advogado do requerido refere – de pessoa procurada, com vista à sujeição a procedimento criminal por suspeita da prática de um crime de homicídio.

De acordo com o MDE oportunamente emitido, no dia 11-10-2023, pelas 15h30, o cidadão AA, de nacionalidade ..., foi localizado e detido pela PJ, por se ter apurado constar do SIS II um pedido de detenção, por ter sido emitido contra si um MDE (N.º Schengen: .............................01) pelas autoridades judiciárias da ..., mais concretamente o Juiz de Instrução do Tribunal Francófono de 1.ª instância de ..., para efeitos de procedimento criminal, no âmbito do processo ..........10 - ................22, da referida comarca, por haver fortes suspeitas de ter participado nos eventos que conduziram à morte de DD, ocorrida em...-11-2022, na Praça ..., em ..., como autor de um crime de assassinato /ferimento grave, previsto e punível pelos artigos 392 e 393 do Código Penal da ..., com pena de 20 a 30 anos de prisão.

Procedeu-se à audição do detido, no dia 13-10-2023, no Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos do artigo 18.º da Lei n.º 65/2003, de 23-08, tendo o mesmo declarado opor-se à entrega e não renunciar ao princípio da especialidade.

O MDE deve ser executado com base no princípio do reconhecimento mútuo. Significa isto que o respetivo processo de execução assume, comparativamente, com outros instrumentos de cooperação judiciária internacional, designadamente com a Lei n.º 144/99, de 31-08, especial simplificação e acrescido grau de executoriedade.


Conforme se refere no Acórdão do STJ de 15-04-2021, processo n.º 792/20.0YRLSB.S2 (in www.dgsi.pt):

«O MDE, enquanto mecanismo privilegiado de cooperação internacional em matéria penal entre os membros da União Europeia, deve ser “executado com base no princípio do reconhecimento mútuo” (art. 1.º, n.º 2, da LMDE) e constitui a primeira concretização deste princípio. Ora, “o núcleo essencial do reconhecimento mútuo reside em que «desde que uma decisão é tomada por uma autoridade judiciária competente, em virtude do direito do Estado-Membro de onde ela procede, em conformidade com o direito desse Estado, essa decisão deve ter um efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União. Isto significa que as autoridades competentes do Estado-Membro no território do qual a decisão pode ser executada devem prestar a sua colaboração à execução dessa decisão como se se tratasse de uma decisão tomada por uma autoridade competente desse Estado [...]”. O que significa que cada Estado membro confia nos outros Estados-membros, respeitando as decisões de cada Estado.

O Conselho Europeu, na sua Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, de 13.06, procurando compatibilizar o princípio do reconhecimento mútuo e a confiança mútua entre os Estados-membros com a consciência das divergências existentes entre os diversos ordenamentos jurídicos dos Estados, consagrou uma solução de consenso e compromisso, definindo uma lista de infrações para os quais a dupla incriminação (dos factos) não constitui pressuposto da execução do MDE.

Na LMDE, no seu art. 2.º, n.º 2, vigora a ausência de controlo do requisito da dupla incriminação quando estão em causa determinados tipos de criminalidade. Conforme salienta Lopes Costa, tendo por base art. 2.º, n.º 2 da Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13-06, transposto para o art. 2.º, n.º 2, da LMDE, é enumerado «um elenco taxativo de 32 domínios de criminalidade grave (a chamada lista positiva) que “caso sejam puníveis no Estado-Membro de emissão com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a 3 anos e tal como definidas pela legislação do Estado-Membro de emissão determinam a entrega com base no mandado de detenção europeu (…) sem controlo da dupla incriminação do facto”; e apenas nos restantes casos de criminalidade fora do elenco apresentado no art. 2.º pode “a entrega (...) ficar sujeita à condição de os factos para os quais o mandado de detenção europeu foi emitido constituírem uma infração nos termos do direito do Estado-Membro de execução”.

(…)

O art. 2.º, n.º 2, da própria decisão-quadro estabelece a lista positiva das trinta e duas infrações penais que obrigam à entrega da pessoa sobre que recai um MDE, ainda que a legislação do Estado-Membro de execução as não qualifique como tal. (...) Em todo o caso, (...) constitui uma excepção (decerto importante) à regra geral segundo a qual a obrigação de execução de um MDE pressupõe que o facto determinante da sua emissão seja considerado crime não só no Estado de emissão mas também no Estado de execução”.

Desta forma, impõe-se ao Estado de execução do mandado, no caso Portugal, verificar se as infrações indicadas pelo Estado-Membro de emissão do MDE integram ou não o elenco do art. 2.º, n.º 2, da LMDE, com penas privativas da liberdade superiores a 3 anos porque, caso assim suceda, inexiste controlo da dupla incriminação dos factos. Ou seja, não se impõe verificar se aqueles factos, indicados no MDE do Estado de emissão, constituem infração à luz do direito interno Português».

Também sensivelmente no mesmo sentido se pronunciou o Acórdão do STJ de 04-01-2007, processo n.º 4707/06, in www.dgsi.pt.

Importa aplicar este esquemático enquadramento normativo ao caso em apreço.

8. Da motivação de recurso do requerido, cumprirá apreciar as seguintes questões:


i) - Se há contradição no conteúdo do mandado de detenção europeu;


ii) - Se ocorre fundamento de recusa de execução obrigatória do presente mandado de detenção europeu por ser aplicável à infração imputável ao arguido pena de prisão perpétua (art. 11.º al. d), da Lei n.º 65/2003);


iii) - Se se verifica motivo de recusa facultativa de execução do mandado de detenção europeu, em virtude de o arguido residir em Portugal (art. 12.º, al. g), da Lei n.º 65/2003); e


iv) - Se estão reunidos os princípios de aplicação de medida de coação menos gravosa do que a detenção.


9. Considerando existir, porém, uma questão prévia, suscitada pelo Ministério Público na sua resposta ao recurso do requerido, que merece apreciação com precedência sobre as demais, impõe-se dela conhecer. Reporta-se a mesma à necessidade de suprir, ou não, a deficiência formal da falta de conclusões da motivação de recurso do requerido.


Em contravenção à regra do art. 412.º, n.º 1, do CPP, o recurso do requerido apenas contempla a motivação, não formulando conclusões. Essa situação, de acordo com o disposto no art. 417.º, n.º 3 do CPP, poderia dar lugar à prolação de despacho que convidasse o recorrente a apresentar conclusões no prazo de 10 dias. Considerando, porém, o carácter urgente deste processo e a circunstância de o prazo para a interposição do recurso pelo arguido ser de 5 dias (art. 24.º, n.º 2 da Lei n.º 65/2003), tal implicaria que se convidasse o recorrente a apresentar conclusões também em 5 dias, pois não faria sentido conceder prazo mais longo para aperfeiçoar o recurso do que o prazo legalmente previsto para a sua interposição, o que acarretaria demora injustificada da tramitação e decisão do recurso.


Todavia, lendo a motivação de recurso (que se desenvolve em 26 pontos, relativamente concisos), constata-se que dela é possível extrair as questões que o requerido pretende sejam apreciadas por este Supremo Tribunal de Justiça. Deste modo, atendendo ao facto de se tratar de processo urgente e com vista a evitar o retardamento dos autos, entende-se não ser de formular qualquer convite ao requerido para apresentação das conclusões de recurso.


10. Cumpre, então, apreciar as questões colocadas:


i) - Se há contradição no conteúdo do mandado de detenção europeu.


Importa, desde já, assinalar, ao contrário do sufragado pelo requerido, que o presente mandado de detenção europeu respeita as disposições legais supra transcritas, visto estarem em causa crime e penas cujos limites observam o disposto no art. 2.º da Lei n.º 65/2003, e se mostrar aquele mandado elaborado de acordo com o previsto no art. 3.º (conteúdo e formulário).


Pretende, assim, o requerido, nos pontos 11. e 13. da sua motivação de recurso, que o mandado de detenção europeu enferma de contradição, quando refere:

«Não se pode olvidar que consta gravíssima contradição no mandado de detenção europeu, pois em uma parte consta expressamente que o Sr. CC teria sacado a faca do seu próprio corpo e desferido o golpe que culminou na morte do marroquino, entretanto, em outra parte consta que AA quem teria passado a faca, o que compromete a paridade de armas e a dignidade da justiça, que cerceia a defesa de AA e lhe coloca em prisão em processo de extradição de forma ilegal e abusiva, que lhe causa evidente constrangimento ilegal.

(…)

13. Não foi AA quem desferiu a facada e nem passou nenhuma faca para CC (e a presunção de inocência é um direito garantido constitucionalmente), embora existam 2 versões e contradições no MDE que comprometem os fortes indícios da prática de crime por parte do extraditando AA. Se existe dúvida e contradição na forma de execução do crime, quem garante que também não existe erro quanto ao “partícipe” do delito e o que consta no MDE?»

Porém, não lhe assiste razão.


Para além de a alegada contradição não se encontrar bem caracterizada ou fundamentada, pela leitura do mandado de detenção europeu não se descortina qualquer contradição, porquanto todos os seus elementos apontam no sentido de o requerido ter tido algum tipo de intervenção nos factos de que resultou a morte do cidadão marroquino DD. O facto de o mesmo negar qualquer responsabilidade pela produção da morte da vítima faz parte da sua estratégia de defesa, não afastando decisivamente a possibilidade de ter havido algum tipo de comparticipação em tais factos, desiderato que o procedimento criminal visa precisamente esclarecer. Tais circunstâncias estão, contudo, fora do âmbito cognitivo deste Supremo Tribunal.


Não é lógica e factualmente incompatível que o ora recorrente possa ter fornecido uma arma branca a um comparticipante nos factos (CC) e que este, depois, a tenha «retirado do corpo» para desferir um ou mais golpes na vítima.


Pelo exposto, não se lobrigando decisiva incoerência ou contradição, no sentido de gerar fundadas dúvidas sobre os factos imputados ao recorrente no processo de investigação instaurado na ..., não procede tal fundamento.


ii) - Se ocorre fundamento de recusa de execução obrigatória do presente mandado de detenção europeu por ser aplicável à infração imputável ao arguido pena de prisão perpétua (art. 11.º, al. d), da Lei n.º 65/2003).


Entende o arguido que o mandado de detenção europeu deve ser recusado, pois de acordo com a sua alegação, «a prisão pelo suposto crime [p.p. no art. 393 do Código Penal Belga] pode ultrapassar os 30 anos de reclusão e chegar até a ser decretada a prisão perpétua, dependendo da análise dos magistrados locais».


O recorrente labora em equívoco: ao não ter renunciado ao benefício da regra da especialidade (artigos 7.º e 18.º, n.º 5, da Lei n.º 65/2003), nunca poderia ser, na sequência da sua entrega ao Estado requerente, sujeito a procedimento criminal que não fosse pela infração pela qual o MDE foi emitido, «meurtre» p.p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 392 e 393 do Código Penal belga, punível com pena de vinte anos a trinta anos de prisão, e não com pena de carácter perpétuo.


A questão da pena de carácter perpétuo não pode, portanto, ser aqui legitimamente convocada.


Por outro lado, também não procede a invocação do art. 11.º, al. d), da Lei n.º 65/2003. Na verdade, a referida disposição legal da alínea d), foi revogada pelo art. 5.º da Lei n.º 35/2015, de 04-05, visto as legislações penais dos Estados da UE não preverem a pena de morte ou outra pena de que resulte lesão irreversível da integridade física.


É por isso, por não interceder qualquer causa de recusa obrigatória do MDE emitido contra o requerente, que não procede a respetiva pretensão de obstar à sua execução.


iii) - Se se verifica motivo de recusa facultativa de execução do mandado de detenção europeu, em virtude de o arguido residir em Portugal (art. 12.º, al. g), da Lei n.º 65/2003).


O recorrente alega que deve recusar-se ou condicionar-se a execução do MDE em função da residência do visado, que «reside a meses em Portugal», não tendo empreendido fuga da ... para «se esquivar da justiça, e sim veio a Portugal recomeçar a vida depois das ameaças de morte por parte de marroquinos, sendo certo que se quisesse fugir teria ido ao ..., sua pátria, que não o extradita para outro país, sendo certo que o extraditando tem um centro de via em Portugal (amigos, emprego e residencia fixa).»


O recorrente invoca, ainda, ter apenas 21 anos de idade, bem como poderem resultar graves consequências para si, caso fosse efetivamente entregue às autoridades do Estado requerente, face à moldura penal aplicável ao crime pelo qual é suspeito, bem como pela situação de ameaças que receberia através de redes sociais de indivíduos de nacionalidade marroquina, nomeadamente detidos no sistema prisional ....


Desde logo, este último facto não ficou, porém, demonstrado.


Por outro lado, o art. 12.º, alínea g) da Lei n.º 65/2003, prescreve o seguinte:

«1 - A execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada que:

(…)

g) A pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa;

(…)»

O referido preceito é claro no sentido de poder ser recusada a execução do MDE quando a pessoa procurada seja residente em Portugal. Sucede, porém, que essa recusa apenas é admitida desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa. Ora, conforme se assinalou, o mandado em questão não foi emitido para cumprimento de pena, mas sim para procedimento criminal, pelo que a alegada residência em Portugal, não integra causa de recusa facultativa da execução do mandado de detenção europeu.


A este respeito importa assinalar que, consubstanciando o mandado de detenção europeu um modelo de substituição integral da extradição, simplificado e inteiramente jurisdicionalizado, a matéria anteriormente regulada pelo regime da extradição – no que aos Estados Membros que subscreveram o sistema do MDE diz respeito –, deve ser integrada no regime do mandado de detenção europeu, no que respeita ao respetivo âmbito objetivo e subjetivo de aplicação (Acórdão do STJ de 10-09-2009, proc. 134/09.6YREVR.S1), sendo, como tal, inaplicáveis à presente situação as referências feitas pelo recorrente à Lei n.º 144/99, de 31-08 (Lei de Cooperação Jurídica Internacional em Matéria Penal), para justificar a negação de cooperação.


É por tais motivos que igualmente se julgam improcedentes os apreciados fundamentos de recusa facultativa para obstar à execução do MDE.


iv) - Se estão reunidos os princípios de aplicação de medida de coação menos gravosa do que a detenção.


O arguido pretende demonstrar ter condições pessoais que permitiriam a aplicação de outra medida coativa, bem como não se justificar a sua permanência sujeito a detenção. E pede que «(…) sejarevogada aprisãodoextraditando,atéo transitoem julgado do MDE, e que seja aplicado todas as medidas de cocção menos gravosa que a prisão (proibição de deixar o território nacional português, permanência em habitação, vigilância eletrónica, comparecimento semanalna PSPmaispróxima da residênciae outras aplicáveis a caso em concreto, entrega de passaporte...) que garantem a impossibilidade de fuga do extraditando de forma incontestável».


Em rigor – e para além do decidido no Acórdão desta 5.ª Secção Criminal, de 19-10-2023 (Ref.ª Citius ......54) que, em sede de providência de habeas corpus, denegou a pretensão do ora recorrente no sentido de ser libertado, por invocar uma situação de detenção ilegal –, toda argumentação no sentido de cessar a situação de detenção do requerido foi já devidamente ponderada e escalpelizada na fundamentação do acórdão de 08-11-2023 (Ref.ª Citius ......45) da 3.ª Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça, no qual se decidiu confirmar o que havia sido inicialmente decidido pela Senhora Desembargadora relatora no TRL, quanto a tal matéria, tendo sido mantida a sua situação de detenção.


Nem as apontadas alegações no sentido de o requerente (“extraditando”) possuir “residência fixa” na Rua ...º em ..., e de ter trabalho fixo na área da construção civil, se nos afiguram caução suficiente para prevenir os perigos de fuga e de subtração à ação da justiça, considerando a circunstância – admitida pelo recorrente – de o seu País de origem, a República ..., não admitir a extradição de nacionais.


Acresce ainda o facto de o crime de homicídio em questão (artigos 392 e 393 do Código Penal belga) ser punível com pena entre 20 e 30 anos de prisão, fazendo o Reino da ... parte da União Europeia, estando, como se viu, subordinado ao dever de respeito pelos direitos fundamentais consagrados na Convenção Europeia dos Direitos Humanos e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, nada permitindo concluir que os direitos humanos não sejam aí adequadamente observados e feitos respeitar, e que, no tocante ao sistema prisional, não sejam tomadas as medidas aptas a proteger a vida e integridade física das pessoas privadas de liberdade.


Por fim, importa salientar que o recorrente só se transferiu para Portugal após o homicídio de E. G. DD, investigado na ..., parecendo incontroverso ter havido uma relação causal entre tais ocorrências, no sentido de que o não teria feito, se não fosse tal ocorrência.


Também nesta parte de entende julgar improcedente a pretensão do recorrente.


Enfim, tendo em conta o que se expôs, concluímos pela inexistência de motivos que invalidassem o acórdão recorrido, pelo que se confirma o mesmo.


III. DECISÃO


Em face do exposto, decide-se julgar improcedente o recurso do arguido e manter a decisão recorrida.


Sem custas.


*


Notifique-se.


*

Supremo Tribunal de Justiça, Lisboa, data certificada supra

Texto elaborado e informaticamente editado, integralmente revisto pelo Relator, sendo eletronicamente assinado pelo próprio e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos (art. 94.º, n.º 2 do CPP).

Os juízes Conselheiros

Jorge dos Reis Bravo (relator)

Vasques Osório (1.º adjunto)

Albertina Pereira (2.ª adjunta)