RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
FUNDAMENTOS
PODERES DE COGNIÇÃO
VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
FUNDAMENTAÇÃO
HOMICÍDIO
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
MEDIDA DA PENA
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
Sumário


I- A nova redação do artigo 434º, para além de contrariar expressamente na al. c) do nº1 a jurisprudência pacífica do Supremo que entendia não ser o STJ competente para apreciar (per saltum) recurso de acórdão final do tribunal coletivo com fundamento em algum dos vícios previstos no artigo 410º nº2, sendo competente para o efeito os tribunais da Relação, veio alterar o sentido do artigo 434º relativamente ao recurso para o STJ de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações em recurso, nos termos do artigo 400º.

II- Com efeito, ao deixar de ressalvar genericamente no seu texto os poderes de cognição do STJ para conhecer dos vícios previstos no artigo 410º nº 2, passando a ressalvar agora do conhecimento exclusivo de matéria de direito apenas as hipóteses previstas nas alíneas a) e c) do nº1 do artigo 432º, que preveem casos de recurso de primeiro grau, para o Supremo, o artigo 434º deixa de fora dessa ressalva os recursos para o STJ a que se reporta b) do nº1 do mesmo artigo 432º.

III- Assim, relativamente aos recursos “não ressalvados” pela atual redação do artigo 434º, ou seja, os recursos de decisão da relação para o STJ a que se reportam os artigos 432º nº1 b) e 400º nº 1 f), aqui incluído o recurso interposto de acórdão da relação que aplicou pena parcelar superior a 8 anos de prisão, não é admissível a interposição de recurso para o STJ exclusivamente com fundamento em algum dos vícios da “sentença” previstos no artigo 410º nº2.

IV- Face à nova redação do artigo 434º CPP são de rejeitar os recursos de decisão do Tribunal da Relação abrangida pela previsão da al. b) do nº 1 do artigo 432 que se fundem apenas na verificação de algum dos vícios ou nulidades previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º (sem prejuízo de reclamação para o próprio tribunal da Relação com esses fundamentos).

V- Porém, nos recursos de decisão da relação para o STJ (incluindo os abrangidos pela al. b) do nº 1 do artigo 432º) cujo objeto integre (outras) questões de que o STJ deva conhecer - como se verifica no caso presente, em que o MP recorre da medida pena única por entender que a pena concreta de 11 anos de prisão deve ser aumentada - , o STJ tem o poder/dever de conhecer oficiosamente dos vícios previstos no artigo 410º nº 2 quando se veja confrontado com hipótese que possa enquadrar-se em algum deles (como se verifica no caso presente), conforme entendimento que o STJ tem mantido pelo menos desde o Acórdão (de fixação de jurisprudência) nº 7/95.

VI- Reconhecida a incompatibilidade, a contradição, entre factos provados e não provados, e resultando ainda do texto do acórdão ora recorrido que aquela factualidade é relevante para a decisão da causa, não há dúvida, em face do disposto nos artigos 374º nº 2 e 410º nº2 b), que estamos perante contradição relevante da fundamentação da sentença.

VII- No entanto, a apontada contradição da fundamentação de facto (ou outra das formas que assuma a contradição a que se refere a al. b) do nº2 do art. 410º) apenas redundará efetivamente no vício da sentença a que se reporta esta al. b), quando a contradição se revele insanável conforme claramente decorre da letra do preceito, da sua razão de ser e respetivo regime, pois apenas se verifica o vício de contradição insanável da fundamentação previsto no art. 410º nº2 b), quando existir incoerência, oposição, incompatibilidade manifesta entre diferentes passos da motivação da sentença, afetando a sua estrutura lógica, de forma inultrapassável para o tribunal de recurso.

VII- Assim, só no caso de a contradição que afeta a fundamentação da sentença não poder ser sanada, deverá ser ordenado o reenvio do processo ao tribunal recorrido nos termos do artigo 426º nºs 1 e 2 .

Texto Integral



Recurso Penal


NUIPC 419/21.3PCLSB.L1.S1


Acorda-se em conferência nas secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça


Relatório


1.No Juízo Central Criminal de ... (J.) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, o arguido, AA, fora condenado por acórdão de 22.11.2022 pela prática em autoria singular e em concurso efetivo de:


- Um crime de homicídio qualificado, previsto e punido no artigo 131.º, 132.º, n.º 2, al. j), do Código Penal, na pena de 18 (dezoito) anos de prisão;


- Um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido no artigo 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 2 (dois) anos de prisão.


Em cúmulo jurídico, fora o arguido condenado na pena única de 19 (dezanove) anos de prisão.

2. Inconformado, o arguido interpôs recurso daquela decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa que, alterando pontualmente a matéria de facto provada, revogou parcialmente o acórdão proferido em 1ª instância e decidiu:


“- Condenar o arguido AA pela prática em autoria singular de um crime


de homicídio, previsto e punido no artigo 131.º do Código Penal, na pena de 11 (onze) anos de prisão;


- “Confirmar a condenação do arguido AA pela prática em autoria singular e em concurso real de um crime de detenção de arma proibida previsto e punido no artigo 86.º, n.º 1, al. c) da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 2 (dois) anos de prisão;


- Operando o cúmulo jurídico entre as penas aplicadas, condenar o arguido AA na pena única de 12 (doze) anos de prisão.”


3. Inconformados com a decisão do TRL, o arguido e o MP vieram interpor recurso para o STJ.


3.1. O arguido extrai da sua motivação as seguintes conclusões que se transcrevem ipsis verbis:


«CONCLUSÕES


1-[O arguido] É uma pessoa socialmente inserida, quer familiarmente quer no mercado de trabalho, como motorista, na empresa Uber Eats e exercia funções havia um ano como empresário de motas na ... ........ .. Lda, antes de detido.


2- O ora Recorrente foi pai acerca de 4 meses, recebendo vistas regulares da companheira, filho e cunhado no Estabelecimento Prisional;


3- No Estabelecimento Prisional não regista qualquer sanção disciplinar adoptando um comportamento adequado às regras impostas.


4- Prima pela Ausência de Antecedentes Criminais;


5- Sendo que a aplicação da pena de prisão de dois anos ao crime de detenção de arma proibida não poderá deixar de ser considerada excessiva, devendo ser aplicado uma pena de multa.


6- Deste modo, por errada interpretação o acórdão recorrido violou as normas legais contidas no nº 1 do artº 71º e 72º do Código Penal, e do artº 86º da Lei das Armas.».


3.2. Por sua vez o MP extrai da sua motivação de recurso as seguintes conclusões:


« II. Em conclusão:


1. Pelo acórdão de 11 de maio de 2023 proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa foi dado parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA do acórdão


2. Que em 1ª instância o tinha condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nº 2, al. j), do C.Penal, na pena de 18 anos de prisão e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nº 1, al. c), da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 2 anos de prisão, e em cúmulo jurídico na pena única de 19 anos de prisão;


3. O acórdão ora recorrido introduziu alterações na matéria de facto provada e o ponto 5. passou a ter a redação O arguido AA adquiriu a um indivíduo não identificado a arma de fogo com que viria a disparar contra a vítima”;


4. Introduziu também alterações à matéria de facto não provada, onde foi dado como não provado que “o arguido AA tivesse ponderado tirar a vida ao BB, adquirindo a arma de fogo propositadamente para esse efeito.”


5. Por decorrência foi o recorrido condenado pela prática em autoria singular de um crime de homicídio, previsto e punido no art. 131.º, do C.Penal, na pena de 11 (onze) anos de prisão; confirmada a sua condenação pela prática em autoria singular e em concurso real de um crime de detenção de arma proibida previsto e punido no art. 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 2 (dois) anos de prisão; e operado o cúmulo jurídico entre as penas parcelares aplicadas, condenado na pena única de 12 (doze) anos de prisão.


6. Acontece que, o acórdão recorrido padece do vício de contradição insanável da fundamentação, previsto no art. 410º, nº 2, b), do C.P.P., por ter sido mantido o facto provado sob o ponto 27., da matéria de facto provada, que continua a ter a seguinte redação “Ao adquirir a arma para esse efeito refletiu sobre os meios que iria empregar na morte de BB adquirindo propositadamente para esse fim.”


7. O que necessariamente se repercute na própria fundamentação, na qualificação jurídica, na intensidade do dolo e na culpa e na decisão.


8. Deve, pois, ser conhecido e corrigido o referido vício, nos termos do art. 426º, do C.P.P.;


9. Admitindo-se ser de afastar a premeditação, dada a circunstância de ter sido a vítima que entrou em casa do recorrido, após ter arrombado a porta depois de ter dado várias pancadas com uma faca e pontapés e se dirigiu ao mesmo, o certo é que a pena aplicada é demasiado branda;


10.Naverdade,não foi dado como provado que o recorrido tenha agido por medo, nem que a vítima estava com a faca na sua posse, quando se dirigiu ao recorrido; na sua confissão este apenas admitiu a prática dos factos, mas não revelou arrependimento, afirmando “que não percebe porque os praticou”;


11.Desferiu dois tiros, a curta distância, um na região craniana e outro na zona torácica, com intenção de provocar a morte da vítima;


12.O recorrido não agiu por medo ou para defesa da própria vida e dos seus bens, agiu assim atenta a divergência, a quezília que existia entre si e a vítima, por causa de uma rapariga chamada CC;


13.O seu dolo é de elevada intensidade e elevado o grau de culpa;


14. Militam contra o recorrido, o grau de ilicitude, a gravidade do crime de homicídio e as suas consequências, a morte da vítima provocada pelo disparo de dois tiros a curta distância, o dolo direto de elevada intensidade, as circunstâncias de não ter prestado auxílio à vitima, seu compatriota, a fuga do local e só no dia seguinte se ter apresentado às autoridades, de ter comprado a arma com a intenção de a usar contra a vítima, sendo fúteis as razões das divergências entre ambos, os seus antecedentes criminais, a não demonstração da interiorização da gravidade da sua conduta;


15. Militam a seu favor a integração pessoal e social e a circunstância de se ter entregue às autoridades policiais, colaborando com estas na indicação do local onde tinha escondido a arma e as munições;


16. As exigências de prevenção geral são muito elevadas face ao bem jurídico violado: a vida humana e dados os contornos do caso; a gravidade jurídica do crime praticado pelo recorrido e a necessidade de defesa da sociedade perante este tipo de crime, que regista um aumento significativo, sendo enorme o alarme social que provoca;


17.As exigências de prevenção especial também são muito elevadas considerando os factos praticados e que o recorrido regista antecedentes criminais;


18. Numa visão de conjunto e ponderadas as circunstâncias pessoais do recorrido, a intensidade do dolo, o grau da ilicitude, a gravidade da culpa, as circunstâncias preventivas e retributivas e a moldura penal abstrata do crime de homicídio, 8 a 16 anos de prisão, entendemos ser demasiado branda a pena de 11 anos de prisão, devendo ser fixada perto do limite máximo;


19.Naturalmente que o defendido aumento da pena parcelar pela prática do crime de homicídio terá necessariamente de determinar em cúmulo jurídico, com a pena de 2 anos de prisão em que o recorrente foi condenado pela prática do crime de detenção de arma proibida, um aumento da pena única a aplicar.


Pugna-se, pois, que seja conhecido e corrigido o vício de contradição insanável na fundamentação, previsto no art. 410º, nº 1, b), do C.P.P., bem como a pena parcelar aplicada pela prática do crime de homicídio aumentada para um quantum perto do limite máximo, e em consequência, ser também aumentado o quantum da pena única aplicada em cúmulo jurídico.


No entanto, Vossa Excelência decidirão como for de Justiça. »


4. O MP apresentou ainda resposta ao recurso interposto pelo arguido, nos seguintes termos:


« II. Em conclusão:


1. AA recorre do acórdão proferido, a 11 de maio de 2023, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, na parte respeitante à condenação na pena de 2 anos de prisão, pela prática do crime de detenção de arma proibida, previsto e punido no art. 86º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro;


2. Acontece que, quanto a este segmento o recorrente não recorreu do acórdão da 1ª instância;


3. Limitou, então, as questões a decidir à matéria de facto e de direito respeitante ao crime de homicídio, respetiva pena parcelar e repercussão na pena unitária; E foi neste horizonte que foram fixadas e conhecidas as questões sobre que incidiu o acórdão ora recorrido – arts. 402º, nº 1, 403º, nº 2, c) e f), do C.P.P.;


4. Não pode, pois, agora o arguido vir recorrer para o STJ, questionando a pena de 2 anos de prisão em que foi condenado pela prática do crime de detenção de arma proibida, por atualmente pretender ver substituída por multa;


5. Nesta parte, quanto a este segmento, o acórdão da 1ª instância transitou em julgado;


6. Verifica-se a existência de caso julgado parcial;


7. Deve, pois, o presente recurso ser rejeitado, por manifestamente improcedente, nos termos do art. 420º, nº 1, a), do C.P.P..»


4. Cumprido o disposto no artigo 416º CPP, o senhor Procurador-geral Adjunto no STJ emitiu parecer que conclui do seguinte modo:


« (…) IV. Em sintonia do que vem de expor-se, e examinados os fundamentos dos recursos interpostos pelo Ministério Público e arguido, respetivamente, e da decisão colocada em crise, consideramos que a Digna Magistrada do Ministério Público junto da 2ª Instância identificou corretamente o objeto dos recursos em causa, fundamentando e rebatendo, especificadamente, todos os aspetos neles suscitados e argumentando criteriosamente, com clareza, rigor e correção jurídica; o que merece o nosso total acolhimento, dispensando-nos, assim, porque de todo desnecessário e redundante, de aduzir outros considerandos no que ao objeto dos recursos em análise diz respeito.


Pelo exposto, e secundando a posição da Exmª Colega junto da 2ª instância, quer na motivação do recurso apresentado pelo Ministério Público, quer na resposta apresentada ao recurso interposto pelo arguido, emite-se parecer no sentido da procedência do recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, pronunciamo-nos pela improcedência do recurso interposto pelo arguido.»


5. Cumprido o disposto no art. 417º nº2 o arguido recorrente nada acrescentou, mas os assistentes pronunciaram-se no sentido da procedência do recurso interposto pelo MP.


II


Fundamentação


6. Questão prévia – a (in)admissibilidade do recurso interposto pelo arguido.


Como se vê das respetivas conclusões, o arguido apenas vem interpor o presente recurso relativamente à pena parcelar de dois anos de prisão que lhe fora aplicada em 1ª instância pelo juízo central criminal de Lisboa (J7).


Ora, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal (pertencem a este código as disposições legais citadas sem outra especificação) recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400º .


Por sua vez, o artigo 400º, que contém o elenco, não taxativo, das decisões irrecorríveis, prevê na alínea e) do nº1, que os acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão inferior a 5 anos, exceto no caso de o tribunal da relação ter revertido, condenando, anterior decisão absolutória aplicada em 1ª instância, são irrecorríveis.


Assim, uma vez que o TRL confirmou a pena de 2 anos de prisão que fora aplicada em 1ª instância pela prática do crime de detenção de arma proibida, previsto e punido no artigo 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, constata-se que o arguido pretende recorrer relativamente a pena de prisão inferior a 5 anos, que confirma condenação anterior (não se seguindo, pois, a eventual absolvição), pelo que o acórdão do TRL é irrecorrível nessa parte, nos termos do referido artigo 400º nº1 al. e). Independentemente, pois, da questão de saber (suscitada pelo MP na sua resposta no TRL) se o recurso do acórdão do TRL sempre seria inadmissível nessa parte por não ter o arguido recorrente interposto recurso da decisão de 1ª instância para o TRL relativamente ao “crime de detenção de arma proibida.”


Nesta conformidade e tendo ainda presente que a admissão do recurso pelo TRL não vincula este tribunal (art. 414º nº 3 ), decide-se rejeitar o recurso interposto pelo arguido para o STJ por ser o mesmo inadmissível, nos termos do artigo 420º nº1 b).


7. O objeto do recurso interposto pelo MP.


7.1. O recurso interposto pelo MP da decisão proferida pelo TRL é admissível nos termos das disposições conjugadas do art. 432º nº 1 b) e 400º nº 1 f), a contrario, por se tratar de recurso interposto de acórdão condenatório proferido, em recurso, pela relação que aplicou pena de prisão (parcelar e única) superior a 8 anos.


O MP suscita as seguintes questões na sua motivação de recurso:


- O acórdão recorrido padece do vício de contradição insanável da fundamentação, previsto no art. 410º, nº 2, b), que deve ser conhecido e corrigido nos termos do art. 426º;


- Sem pôr em causa a qualificação jurídica dos factos operada pelo tribunal recorrido, o MP recorrente pretende ver aumentada a pena parcelar de 11 anos de prisão aplicada pelo TRL por entender que aquela pena deve antes aproximar-se do limite máximo de 16 anos correspondente ao crime de homicídio simples p. e p. pelo artigo 131º C. Penal, com o consequente aumento da pena única, que foi fixada pelo TRL em 12 anos de prisão.


Não se suscitam dúvidas sobre o conhecimento, pelo STJ, do recurso do MP relativo à medida da pena aplicada ao arguido pela prática de um crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal, na pena de 11 (onze) anos de prisão que pretende ver aumentada, com o consequente aumento da pena única.


7.2. Põe-se em causa, porém, que o STJ possa/deva conhecer do vício de contradição insanável da fundamentação previsto no artigo 410º nº 2 al. b) invocado pelo MP recorrente como um dos fundamentos do seu recurso, na sequência das alterações introduzidas no artigo 434º pela L. 94/2021 de 21 de dezembro, relativamente às quais pode ver-se para outros desenvolvimentos (nomeadamente no que concerne aos antecedentes da referida alteração ao artigo 434º), o Ac STJ de 15.02.23, rel. Ana Barata de Brito e outros acórdãos recentes do STJ aí citados, acessíveis em www.dgsi.pt.


Vejamos.


7.2.1. A versão do artigo 434º (Poderes de cognição) que fora introduzida pela L. 59/98 de 25 de agosto era do seguinte teor: “ Sem prejuízo do disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 410º, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito”.


Após a alteração introduzida pela L. 94/21 de 21 dezembro o artigo 434º, com a mesma epígrafe, passou a estabelecer que “O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do nº1 do artigo 432º ” , que, por sua vez, são do seguinte teor:


«Artigo 432º Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça


1. Recorre-se para o Supremo tribunal de Justiça:

a. De decisões das relações proferidas em 1ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º;

b. De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações em recurso, nos termos do artigo 400º;

c. De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º;

d. (…)


2. (…) »


a)A nova redação do artigo 434º, para além de contrariar expressamente na al. c) do nº1 a jurisprudência pacífica do Supremo que entendia não ser o STJ competente para apreciar (per saltum) recurso de acórdão final do tribunal coletivo com fundamento em algum dos vícios previstos no artigo 410º nº2, sendo competente para o efeito os tribunais da Relação (vd.,por todos, Acs STJ de 26.02.2004, rel. Pereira Madeira, de 10.02.2005, rel. Simas Santos e de 8.2.2006, rel. Henriques Gaspar), veio alterar o sentido do artigo 434º relativamente ao recurso para o STJ de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações em recurso, nos termos do artigo 400º, ao deixar de ressalvar genericamente no seu texto os poderes de cognição do STJ para conhecer dos vícios previstos no artigo 410º nºs 2 e 3, passando a fazer tal ressalva apenas nas hipóteses previstas nas alíneas a) e c) do nº1 do artigo 432º.


Com efeito, parece não poder deixar de entender-se que ao ressalvar agora do conhecimento exclusivo de matéria de direito apenas as hipóteses previstas nas alíneas a) e c) do nº1 do artigo 432º, que preveem casos de recurso de primeiro grau, para o Supremo, o que justificará a diferente solução legislativa (assim ac STJ de 15.02.23 rel. Ana Brito), o artigo 434º deixa de fora dessa ressalva os recursos para o STJ a que se reporta b) do nº1 do mesmo artigo 432º, relativamente aos quais o STJ apenas conhecerá de direito, com o sentido operativo que esta locução assume em face dos termos dos artigos 434º e 410º. Ou seja, com o sentido de não poderem tais recursos ter por fundamento – no que aqui importa – os vícios e nulidades previstos no artigo 410º nº2 e 3 – assim, ac STJ de 01.03.22 (rel. Ernesto Vaz Pereira), 23.03.22 (Lopes da Mota), Despacho do Vice-presidente de 15.01.23, processo nº 5711/20 de T9CBR.C1-A. S1, ac STJ de 15.02.23 (Ana Brito) e ac STJ de 11.10.23 (rel. Agostinho Torres).


Do que resulta, pois, que relativamente aos recursos “não ressalvados” pela atual redação do artigo 434º, ou seja, os recursos de decisão da relação para o STJ a que se reportam os artigos 432º nº1 b) e 400º nº 1 f), aqui incluído o recurso interposto de acórdão da relação que aplicou pena parcelar superior a 8 anos de prisão em causa no presente recurso, não é admissível a interposição de recurso para o STJ exclusivamente com fundamento em algum dos vícios da “sentença” ou nulidade previstos no artigo 410º nºs 2 e 3, sem prejuízo do poder/dever de o STJ conhecer oficiosamente dos vícios previstos no artigo 410º nº2, poder dever que sempre impende sobre o tribunal de recurso em qualquer caso - vd. por todos Ac STJ de 20.12.2014, rel. Raúl Borges (não publicado), apud ac STJ de 15.02.23 supracitado.


No sentido, contrário, de poder recorrer-se para o STJ de acórdão da relação abrangido pela al. b) do nº 1 do art. 432º, articulado com o artigo 434º, pode ver-se Helena Morão, “A Revista Penal em Revista” in “a REVISTA”, Supremo Tribunal de Justiça, nº2 de jul-dez. 22 e, com Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, vol. II, 5ª ed. pp725 e 728, sem que convençam, porém, ter sido esse o propósito legislativo presente na citada Lei 94721.


7.2.2. Conhecimento oficioso daqueles vícios, conforme entendimento que o STJ tem mantido pelo menos desde o Acórdão (de fixação de jurisprudência) nº 7/95 que, lembremo-lo, é do seguinte teor, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º nº2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.».


Na verdade, ainda que possa questionar-se a atualidade daquele AFJ dadas as alterações verificadas na letra do artigo 410º, a doutrina que se extrai da sua fundamentação mantém-se atual, pois assenta sobretudo em razões de índole constitucional. Como se diz na fundamentação daquele AFJ 7/95 não pode aceitar-se que “…os tribunais criminais se contentem com uma verdade formal, dissociada da realidade, e tenham de, como imperativo legal e de consciência, procurar, na medida do possível, averiguar a verdade material, por forma que só possa ser aplicada punição a quem, efetivamente, tenha cometido um ato ilícito criminalmente punível. (…) E porque se encontram em jogo a segurança, o bom nome e a liberdade dos cidadãos, o julgamento de direito a que os tribunais criminais têm de proceder não permite que a decisão se baseie em factos falseados, incorretos ou incompreensíveis, desde que os respetivos vícios se enquadrem nas previsões do nº2 do artigo 410, já que a estas últimas o legislador atribuiu gravidade suficiente para originarem um declaração de nulidade do julgamento e uma repetição, total ou parcial deste último.(…) . Assim, a delimitação do objeto do recurso à matéria de direito não pode ter efeito como efeito a impossibilidade de o tribunal apreciar a existência dos vícios indicados naquele nº2 do artigo 410º, sob pena de, se assim não for, se se violarem os princípios constitucionais do direito à segurança dos cidadãos e do direito a um julgamento criminal justo».- cf. DR I Série-A de 28.12.95, pp. 8212-3 FIM DE CITAÇÃO, de cuja extensão nos penitenciamos, mas que julgamos justificar-se pela sua pertinência e autoridade.


Assim, embora se nos afigure ser de rejeitar os recursos de decisão do Tribunal da Relação abrangida pela previsão da al. b) do nº 1 do artigo 432 que se funde apenas na verificação de algum dos vícios ou nulidades previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º (sem prejuízo de reclamação para o próprio tribunal da Relação com esses fundamentos), nos casos de recurso de decisão da relação para o STJ a que se reportam os artigos 432º nº1 b) e 400º nº 1 f), cujo objeto integre (outras) questões de que o STJ deva conhecer - como se verifica no caso presente visto que o MP recorre da medida pena única por entender que a pena concreta de 11 anos de prisão deve ser aumentada - , o STJ tem o poder/dever de conhecer oficiosamente dos vícios previstos no art. 410º nº 2 no caso de se ver confrontado com hipótese que possa enquadrar-se em algum deles, como veremos ser o que sucede no caso presente.


7.3. Assim, em síntese, resulta da articulação do artigo 410º com os artigos 399º, 434º e 432º, que os recursos de decisão da Relação para o STJ a que se reportam os artigos 432º nº1 b) e 400º nº 1 f), isto é, os recursos de acórdãos condenatórios proferidos pelas relações em recurso que apliquem pena de prisão superior a 8 anos de prisão (independentemente de se verificar ou não dupla conforme) não podem ter por fundamento algum dos vícios previstos no artigo 410º nº2 (no que agora releva), o que implica que o STJ não tenha que pronunciar-se sobre algum desses vícios enquanto questão que, por ser suscitada pelo recorrente, integrasse o objeto do processo, sem prejuízo do seu conhecimento oficioso, como referimos.


7.4. Sendo assim, concluímos que o presente recurso tem por objeto a apreciação da elevação da medida concreta da pena de 11 anos pretendida pelo MP recorrente e a reformulação do pena única daí decorrente, para além do conhecimento oficioso do vício de contradição insanável da fundamentação de facto, que nos é suscitado pela leitura dos pontos nº 5 e nºs 27 e 25 (parte) da factualidade julgada provada, conjugados com factualidade julgada não provada, pelo acórdão do TRL ora recorrido, como melhor veremos agora.


8. Apreciação oficiosa de eventual contradição insanável da fundamentação, em matéria de facto.


A propósito da finalidade processual e caraterização sumária do regime dos vícios da sentença previsto no artigo 410º nº2, por demais conhecido, limitamo-nos, pela sua pertinência ao caso presente, a transcrever o seguinte passo de Maria João Antunes, Conhecimento dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal - Anotação ao Ac STJ de 6.05.1992, in RPCC 4(1994) p. 121:


- “O art. 410º nº 2 concede ao tribunal «ad quem» os poderes de cognição em matéria de facto permitidos pelo texto da decisão recorrida, com o objetivo de assim ser controlado o conteúdo da própria fundamentação. O artigo 410º nº 2 não serve, pois, para verificar a existência ou não da fundamentação da sentença, nos termos previstos no art. 374º nº2 – isso é feito através do mecanismo da arguição de nulidade -, mas para controlar se a matéria de facto provada é suficiente para a decisão de direito tomada, se não há contradição insanável da fundamentação e se não há erro notório na apreciação da prova, podendo assim dizer-se que estes são requisitos da fundamentação e consequentemente da própria decisão.”.


Por seu lado, relativamente ao vício de contradição insanável previsto na al. b) do nº2 do art. 410º, pode ler-se, por todos, no sumário do ac STJ de 03.07.2002, rel. Armando Leandro, que transcrevemos de Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, 2ª ed. p. 1246, o seguinte: « (…) II. O vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, previsto na al. b) do nº2 do artigo 410º CPP, verifica-se quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre factos provados ou não provados, entre uns e outros e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do tribunal. (…)».


Ou seja, em formulação próxima, entendemos verificar-se o vício de contradição insanável da fundamentação previsto no art. 410º nº2 b), quando existir incoerência, oposição, incompatibilidade manifesta entre diferentes passos da motivação da sentença, afetando a sua estrutura lógica, de forma inultrapassável para o tribunal de recurso.


Vejamos então o texto do acórdão do TRL ora recorrido.


8.1. a) O acórdão proferido pelo tribunal de 1ª instância julgou provados, no que aqui releva, os seguintes factos:


“5. O arguido AA já tinha ponderado tirar a vida, como viria a acontecer, ao ofendido BB, motivo pelo qual em data não concretamente apurada, mas anterior aos factos adquiriu a um individuo a arma de fogo com que viria a disparar contra a vítima, propositadamente para esse efeito.


25. O arguido não tem qualquer licença que lhe permitisse deter aquela arma e munições, tendo adquirido tais objetos apenas para provocar a morte à vitima BB como viria a acontecer, não se inibindo, ainda assim de a adquirir e ter na sua posse.


“26. O arguido atuou do modo descrito com o propósito de causar a morte ao ofendido, porquanto o instrumento usado, uma arma de fogo, os locais atingidos e as lesões provocadas revelavam-se idóneas para produzir a morte, como viria a acontecer.”;


“27. Ao adquirir a arma para esse efeito o arguido refletiu sobre os meios que iria empregar na morte de BB adquirindo a mesma propositadamente para esse fim.


b) Por sua vez, o acórdão do TRL ora recorrido, alterando parcialmente aquela factualidade, julgou provados e não provados, respetivamente, os seguintes pontos de facto, que aqui relevam:


- “5.O arguido AA adquiriu a um indivíduo não identificado a arma de fogo com que viria a disparar contra a vítima”;


- “Dá-se como não provado que o arguido AA já tivesse ponderado tirar a vida ao BB, adquirindo a arma de fogo propositadamente para esse efeito.”


O acórdão do TRL não procedeu a qualquer outra alteração relativamente à factualidade provada e não provada, pelo que se mantem a redação dos nºs 25, 26 e 27 da factualidade provada fixada em 1ª instância pelo Juízo Central Criminal de ..., agora transcrita.


8.2. Assim sendo, é manifesta a contradição entre a factualidade julgada não provada pelo TRL correspondente a parte do teor originário do nº5 da factualidade provada em 1ª instância, (“Dá-se como não provado que o arguido AA já tivesse ponderado tirar a vida ao BB, adquirindo a arma de fogo propositadamente para esse efeito.”) e a factualidade descrita no ponto 27 da factualidade provada, bem como em parte do ponto nº 25, ou seja, que o arguido adquiri[u] tais objetos [arma e munições]apenas para provocar a morte à vitima BB como viria a acontecer, que o TRL, ora recorrido, manteve sem alterações como aludido.


Com efeito, ao julgar-se provado naquele nº 27 que “Ao adquirir a arma para esse efeito o arguido refletiu sobre os meios que iria empregar na morte de BB adquirindo a mesma propositadamente para esse fim e no ponto 25 que o arguido tenha adquirido tais objetos [arma e munições] apenas para provocar a morte à vitima BB como viria a acontecer”, contradiz-se necessariamente a anterior afirmação de que não foi julgado provado que o arguido AA já havia ponderado tirar a vida à vítima, BB (extraído de parte do anterior ponto nº 5 dos factos provados em 1º instância) , pois não podem coexistir ambas as afirmações na fundamentação da sentença enquanto resultado unitário da decisão judicial sobre a matéria de facto, dado que se excluem mutuamente. Pela mesma razão, a afirmação contida no ponto 27 da factualidade provada de que o arguido adquiriu a arma de fogo utilizada propositadamente para esse efeito [tirar a vida à vítima] e no ponto 25 que o arguido tenha adquirido a arma e munições apenas para provocar a morte à vitima BB, contradizem a afirmação do TRL de que julgou não provado que o arguido AA tivesse adquiri[do] a arma de fogo propositadamente para … tirar a vida ao BB, pois expressam, no plano da linguagem, realidades factuais e, sobretudo, convicções sobre a prova que se excluem mutuamente.


Reconhecida a incompatibilidade, a contradição, entre os apontados factos provados e não provados, e resultando ainda do texto do acórdão do TRL ora recorrido que aquela factualidade é relevante para a decisão da causa (v. p. 29, 43 e 44, do acórdão do TRL ora recorrido), não há dúvida, em face do disposto nos artigos 374º nº 2 e 410º nº2 b), que estamos perante contradição relevante da fundamentação da sentença.


8.3. Sucede, porém, que não obstante constituir seu pressuposto, a apontada contradição da fundamentação de facto (ou outra das formas que assuma a contradição a que se refere a al. b) do nº2 do art. 410º) apenas redundará efetivamente no vício da sentença a que se reporta esta al. b), quando a contradição se revele insanável conforme claramente decorre da letra do preceito, da sua razão de ser e respetivo regime.


Ou seja, o vício da sentença previsto naquela al. b) que, em princípio, implicará o reenvio do processo ao tribunal recorrido -v. art. 426º nºs 1 e 2 -, apenas se verifica efetivamente quando a contradição que afeta a fundamentação da sentença, nomeadamente entre factos incompatíveis, como sucede in casu, não possa ser sanada, pois como pode ler-se no sumário do ac. STJ de 09.07.1998, Proc. nº 262/98, «Para que exista contradição insanável da fundamentação, não basta que haja contradição entre factos provados ou entre factos provados e não provados ou entre factos provados e a fundamentação da convicção formada pelo tribunal. É necessário ainda que tal contradição seja de todo em todo irreparável e insuscetível de saneamento». De modo semelhante lê-se no sumário do ac STJ de 15.01.98, Proc. 1212/97: «A contradição insanável da fundamentação verifica-se quando, analisando a matéria de facto provada e não provada - em certos casos com ligação à respetiva fundamentação – se chega a conclusões contraditórias, insanáveis, irredutíveis, que não podem ser ultrapassadas, recorrendo-se ao contexto da decisão no seu todo e com o recurso às regras da experiência comum».. Os sumários destes dois acórdãos, cuja versão integral não encontrámos publicada, transcrevem-se de Simas Santos, Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed. 2007 p. 73.


Pode ver-se ainda, porém, versão integral do ac. STJ de 18.03.2004, rel. Simas Santos, onde pode ler-se«6.A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões irredutíveis entre si e que não possam ser ultrapassadas ainda que com recurso ao contexto da decisão no seu todo ou com recurso às regras da experiência comum. - » - acessível em www.dgsi.pt.


Com efeito, a contradição verificada pode ser resolvida, eliminada, sanada, pelo tribunal de recurso com base no texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência (tal como é pressuposto para a verificação do vício), quando for possível identificar os termos da contradição que correspondem à realidade factual efetivamente considerada pelo tribunal recorrido ao proferir a sentença, reconstituindo assim a decisão efetivamente tomada, sem necessidade de reenviar o processo ao tribunal recorrido para esse efeito.


Como veremos, é o que se verifica no caso presente.


8.4.Na verdade, do conjunto da factualidade provada e dos termos da fundamentação do TRL em matéria de facto, resulta que a convicção do tribunal recorrido se encontra efetivamente expressa na conjugação da sua motivação com o teor do ponto nº 5 da factualidade ora provada - “5. O arguido AA adquiriu a um indivíduo não identificado a arma de fogo com que viria a disparar contra a vítima” -, e a factualidade que julgou expressamente não provada, ou seja, “…que o arguido AA já tivesse ponderado tirar a vida ao BB, adquirindo a arma de fogo propositadamente para esse efeito.”.


Desta conjugação resulta, pois, que apenas por lapso ou inconsideração o TRL não considerou igualmente não provada a matéria de facto descrita no referido ponto 27, ou seja, que “ Ao adquirir a arma para esse efeito [tirar a vida à vítima] o arguido refletiu sobre os meios que iria empregar na morte de BB adquirindo a mesma propositadamente para esse fim.», e em parte do ponto nº 25, o que implicará correção daquele acórdão nos termos do art. 380º (“Correção de sentença”) nºs 1 b) e 3, em termos idênticos ao que sempre resultaria, aliás, do disposto no art. 431º, corpo, interpretando de forma ampla a referência aí feita ao artigo 410º.


8.4.1. Com efeito, como pode ver-se da parte em que decidiu alterar a redação do ponto nº 5 da factualidade antes provada, o acórdão do TRL ora recorrido começa por explicar (pp. 24 a 26) que o arguido recorrente pretendia impugnar, nos termos do art. 412º, a factualidade provada sob os nºs 9 (parcialmente), 26 e 27) mas o tribunal não conheceria daquela impugnação por falta de cumprimento do ónus de especificação imposto pelo seu nº 3, dizendo expressamente que “… não pode haver reapreciação alargada da matéria de facto por não estarem preenchidos os requisitos para a sua apreciação, mas só aquela que resulte eventualmente dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, als. a), b) e c),do CPP”, acabando por reapreciar oficiosamente a decisão em matéria de facto, em face do texto do acórdão de 1º instância, nos termos do art. 410º nº2. Foi pois com este fundamento que o TRL concluiu oficiosamente (pp 28 a 31) que o princípio in dubio pro reo impunha a modificação do ponto nº5 da factualidade provada nos termos transcritos supra em 8.4., sem fazer qualquer menção aos pontos nº 27 e 25 da factualidade provada em 1ª instância, que se mantiveram inalterados, apesar de estes serem de teor praticamente igual à parte do ponto nº 5 julgada não provado pelo TRL.


8.4.2. Por um lado, tanto o ponto nº25 como o ponto nº 27 da factualidade provada nada acrescentam relativamente ao que dispunha a versão originária do ponto nº5 dos FP (antes repete a factualidade que ali se afirmava (v. transcrição supra 8.1. a) do presente acórdão). Por outro, o acórdão do TRL ora recorrido considerou que o tribunal de 1ª instância julgara o ponto de facto nº5 com base em declarações do arguido e em ilações lógicas que, porém, o TRL julgou insuficientes para tal prova (pp 29 a 31), conclusão que é necessariamente válida relativamente aos pontos nºs 25 (parte) e 27, pelo que é segura a conclusão lógica, a que chegamos, de que só por inconsideração, por lapso manifesto, o TRL deixou de se pronunciar sobre os pontos 25 e 27 em termos idênticos à apreciação que fez relativamente à parte do ponto 5 julgada não provada, no sentido da violação do princípio in dubio pro reo, pois era idêntico o conteúdo de ambos os pontos de facto na versão da 1ª instância (nº 5 e nºs 25, parte, e 27) e não havia provas diferentes a considerar relativamente a estes últimos pontos de facto( nºs 25 e nº 27.


Ou seja, em coerência com os considerandos desenvolvidos de pp. 26 a 31 do acórdão do TRL ora recorrido, não fica margem para diferente conclusão que não seja a de que parte do ponto 25 e o ponto nº 27 sempre seriam julgados não provados caso o TRL tivesse considerado o teor deste dois últimos pontos, no acórdão recorrido. Ou seja, eventual confrontação do TRL com a contradição verificada, na sequência de reenvio, não poderia levar in casu a outra decisão que não fosse a de julgar não provado o referido ponto 27 e parte do ponto 25.


8.4.3 Concluímos, assim, como aludido antes, em face do texto do acórdão do TRL ora recorrido, que só por inconsideração ou lapso manifesto este deixou de consignar que o ponto nº 27 e parte do ponto 25 (da factualidade originariamente provada) resultava não provado por imposição do princípio in dubio pro reo, tal como expressamente decidira relativamente à parte do ponto nº5 julgada não provada pelo TRL.


Nestes termos, procede-se oficiosamente à correção do acórdão do TRL ora recorrido (art. 380º nºs 1 b) e 2 ex vi do art. 425ºnº4), ao mesmo tempo que se julga sanada a contradição da fundamentação, para efeitos do disposto no artigo 410º nº2 b), considerando-se não provado o ponto nº 27 da factualidade provada e a parte contraditória do ponto 25 (ou seja, que “O arguido adquiri[u] tais objetos [arma e munições] apenas para provocar a morte à vitima BB como viria a acontecer”), tal como se encontravam descritos no acórdão de 1ª instância e no acórdão do TRL ora recorrido.


9. Conhecendo da medida da pena aplicada pelo crime de homicídio e da pena única.


Uma vez que, como referido, o MP recorrente não põe em causa a qualificação jurídica dos factos, impõe-se decidir agora se é de elevar a medida da pena parcelar de 11 anos de prisão aplicada ao arguido AA pela prática em autoria singular de um crime de homicídio p. e p. no artigo 131.º do Código Penal e, consequentemente, da pena única de 12 anos de prisão, como pretendido pelo MP recorrente.


9.1. Encontra-se provada (e não provada) a seguinte matéria de facto:


2.1. Factos provados


1. A vítima BB e o arguido AA tinham uma quezília com cerca de um ano, a propósito de uma rapariga chamada CC.


2. No dia 06 de julho de 2021, pelas 20h00, o arguido AA e a testemunha DD contactaram telefonicamente a testemunha EE a pedirem ambos que a testemunha conversasse com a vìtima BB no sentido de este deixar de arranjar problemas com o AA.


3. Na sequência desse contacto, acedendo a tal pedido, a testemunha EE contactou telefonicamente com a vitima BB, tendo o mesmo referido ao seu amigo que o “...” andava a “pegar” com a sua namorada, tendo a testemunha pedido à vitima para ter calma e combinando falar com ele mais tarde.


4. Cerca das 00h00 a testemunha EE, que já se encontrava em sua casa, perto da residência ouviu um disparo, o que o fez correr para a janela, deparando-se com o arguido AA, na rua, com uma arma pequena, a apontar para o ar e efetuar outro disparo, ao mesmo tempo que dizia “cadê o valentão”, pretendendo-se referir a BB, e continuando na direção da sua residência acompanhado da testemunha FF.


5. (redação do TRL): - “O arguido AA adquiriu a um indivíduo não identificado a arma de fogo com que viria a disparar contra a vítima”;


6. Pouco tempo depois, cerca das 00h30, a vitima BB deslocou-se à Rua ..., em ..., ..., local de residência do arguido AA.


7. A testemunha EE, ao aperceber-se por um lado que o arguido se encontrava com uma arma a disparar tiros, e que avitima se deslocava em direção da casa do mesmo, saiu da sua residência e deslocou-se de imediato para junto da residência do arguido AA.


8. No interior da residência encontravam-se o arguido AA e a sua namorada GG, e a testemunha FF.


9. Depois de dar várias pancadas e pontapés, e desferir pancadas com uma faca que trazia até separar a lâmina do cabo, vindo a ficar caída naquele local, a vítima BB conseguiu entrar dentro de casa a discutir com o arguido e dirigiu-se ao mesmo, o qual empunhava a arma de fogo.


10. Em ato continuo a vítima dirigiu-se à zona da cozinha, local onde o arguido se encontrava ao mesmo tempo que empunhava uma arma.


11. Perante a aproximação da vítima, o arguido AA disparou dois tiros na direção da vítima, atingindo-o na zona torácica com um dos tiros e na cabeça com outro.


12. Em ato continuo a testemunha EE entrou dentro da habitação e, concretamente entre a cozinha e a sala, e deparou-se com a vítima encostado à parede e a sangrar do peito, tendo-o socorrido de imediato.


13. Nessa altura deparou-se com o arguido e a sua namorada GG, já no exterior da residência, juntamente com FF.


14. A testemunha EE pediu auxílio, tendo a vítima sido transportada para o Hospital numa ambulância.


15. O ofendido deu entrada no Hospital ... pelas 01h12, tendo sofrido uma paragem cardíaca prolongada, pelo que teve de ser sujeito a reanimação até ser estabilizado, permanecendo com prognóstico muito reservado.


16. A vítima apresentava orifício de entrada de projétil de arma de fogo na zona torácica, com perfuração da membrana cardíaca, alojando-se no abdómen e ainda orifício de entrada de projétil de arma de fogo na zona craniana, lado direito, após ter sido vítima de trauma com arma de fogo, ‘de calibre 6,35’.


17. Foi submetido a intervenção neurocirúrgica com craniectomia, drenagem de hematoma frontal direito e esquirolectomia, bem como a intervenção cardiotorácica, no decurso da qual foi verificado: tamponamento cardíaco por hemopericárdio, porta de entrada do projétil na face anterior do ventrículo direito e saída na face inferior, com continuidade para a cavidade abdominal através de perfuração do diafragma.


18. O estado clínico de BB evoluiu desfavoravelmente, com hipertensão intracraniana e encefalopatia anóxica, sendo verificado o óbito às 00h... de .../07/2021.


19. A morte da vítima surgiu como resultado direto e adequado das lesões provocadas pelos dois disparos efetuados contra si pelo arguido AA, com recurso a uma pistola de calibre 6,35 mm.


20. Os disparos efetuados pelo arguido AA atingiram a vítima em zonas que alojam órgãos vitais (um na zona torácica e outro na região craniana).


21. Considerando os locais que o arguido escolheu para atingir a vitima, o arguido sabia que eram zonas que alojam órgãos vitais, e que por isso, em consequência lhe causaria a morte, não se inibindo ainda assim de atuar, com o objetivo, concretizado de tirar a vida à vitima BB.


22. O arguido após a prática dos factos ausentou-se de imediato do local, juntamente com a namorada GG, apanharam um táxi e dirigiram-se a ..., em concreto nas Traseiras do prédio ..., sito na Rua ..., e escondeu nesse local a arma utilizada, tendo de seguida iniciado deslocação para ... para se eximir da responsabilidade criminal, mas, após se arrepender, regressou e apresentou-se na Policia Judiciária.


23. No dia 7 de julho de 2021, o arguido conduziu a PJ ao local onde tinha escondido a arma utilizada, em concreto uma pistola, calibre 6.35, com carregador e uma caixa de munições contendo 30 munições daquele calibre.


24. A arma indicada pelo arguido à Polícia Judiciária foi a responsável pelos disparos realizados na rua e contra a vitima BB.


25 (modificado pelo STJ) O arguido não tem qualquer licença que lhe permitisse deter aquela arma e munições, não se inibindo, ainda assim de a adquirir e ter na sua posse.


26. O arguido atuou do modo descrito com o propósito de causar a morte ao ofendido, porquanto o instrumento usado, uma arma de fogo, os locais atingidos e as lesões provocadas revelavam-se idóneas para produzir a morte, como viria a acontecer.


27. (Não provado - STJ)


28. Em todas as condutas acima descritas, o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.


Das condições pessoais do arguido


29. AA é natural de ..., onde decorreu o seu processo de socialização e onde ainda reside a família de origem, a mãe e a irmã mais nova sendo que o falecimento do progenitor ocorreu quando o arguido tinha 11 anos de idade. Existia estabilidade do ponto de vista socioeconómico e relacional entre os vários elementos do agregado.


30. Completou o 12º ano de escolaridade iniciando aos 19 anos de idade o seu percurso laboral, como motorista na empresa Uber, realizando entregas para um restaurante, propriedade da sua mãe.


31. Iniciou um processo emigratório cerca dos 20 anos, idade em que veio para Portugal à procura de melhores condições de trabalho. Executava igualmente funções como motorista, na empresa Uber Eats e exercia funções havia um ano como empresário de motas (entregas, via internet, com plataformas Uber e Bolt) na W.. ........ .. Lda., empresa que estabeleceu em sociedade com dois amigos.


32. Realizam trabalhos de manutenção, recolha e entrega de motas mantendo-se a empresa ativa na atualidade.


33. No âmbito das duas atividades, auferia cerca de € 1800,00.


34. Em termos afetivos, iniciou um relacionamento ainda no Brasil, do qual nasceu uma filha, cuja rotura veio a ocorrer já durante a permanência do arguido em Portugal.


35. Em fevereiro de 2021, iniciou relacionamento com a atual companheira, com vivência marital na morada constante nos presentes autos.


36. Esta relação é descrita como positiva e gratificante, assente em laços de afetividade e suporte.


37. A companheira se encontra atualmente grávida de cinco meses.


38. Sem qualquer familiar a residir em Portugal, recebe visitas regulares da companheira e do cunhado beneficiando, também, do apoio da mãe da companheira.


39. O arguido regista os seguintes antecedentes criminais:


No processo n.º 875/20.7..., por sentença, de 26.12.2020, transitada em 17.01.2021, foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal na pena de 70 dias de multa à taxa diária de € 5,00.


No processo n.º 1381/20.5..., por sentença, de 23.06.2022, transitada em 07.07.2022, foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal na pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 5,00.


Dos pedidos de indemnização civil


40. HH é pai da vitima e teve um desgosto enorme com o falecimento do seu filho.


41. Tinha uma relação próxima do seu filho.


42. O demandante Centro Hospitalar ... é uma pessoa coletiva de direito público integrada no Serviço Nacional de Saúde;


43. Na sequência das lesões a que se alude nos pontos n.º 15, 16 e 17 foi prestada assistência hospitalar a BB no montante global de € 36 213,45. 2.2.


Factos não provados


Não se provou que:


a) A vítima remetesse e fizesse chegar ao arguido mensagens de teor ameaçador, designadamente que atentaria contra a sua vida e integridade física.


b) Nos dias antecedentes a 7 de julho de 2021, a vítima BB intensificou as suas ameaças ao arguido AA, umas vezes diretamente, outras por interposta pessoa.


c) II, JJ e KK, que chegaram quase de imediato ao local após ouvirem os disparos da arma de fogo, encaminharam a vítima para a sua viatura, de marca Honda, matrícula ..-ED-.. afim de o transportar ao Hospital.


Do PIC de HH


d) O valor de 50 mil reais em despesas de deslocação e funeral.


e) (Parte do nº5 anterior aditado pelo TRL: - “Dá-se como não provado que o arguido AA já tivesse ponderado tirar a vida ao BB, adquirindo a arma de fogo propositadamente para esse efeito.”


f) Aditado pelo STJ (parte do anterior ponto 25) que o arguido tenha adquirido tais objetos [arma e munições ] apenas para provocar a morte à vitima BB como viria a acontecer;


g) Aditado pelo STJ (anterior ponto 27 dos FP) que “Ao adquirir a arma para o efeito referido no ponto 26, o arguido refletiu sobre os meios que iria empregar na morte de BB adquirindo a mesma propositadamente para esse fim”.


9.2. O acórdão recorrido fundamenta a determinação concreta da pena em 11 anos de prisão, entre o mínimo de 8 e o máximo de 16 anos de prisão previstos no artigo 131º C. Penal, essencialmente na ponderação dos seguintes fatores, entre os referidos no art. 71º C.Penal que, não fazendo parte do tipo, depõem contra e a favor do arguido, respetivamente:


- Elevadas exigências de prevenção geral atendendo à repulsa e enorme censura que este tipo de crime causa na sociedade; os tiros foram disparados a cerca de 4 metros de distância do ofendido e a arma apontada a partes vitais do corpo, pelo que quer a ilicitude quer o dolo são elevados. Abandonou o local do crime sem prestar auxílio à vítima e só no dia seguinte se apresentou às autoridades policiais.


A favor do arguido: embora tenha fugido do local do crime, apresentou-se voluntariamente às autoridades e indicou o local onde havia escondido a arma e as munições, colaborando, assim, com a investigação e a sujeição do arguido a julgamento. Confessou a prática dos factos, embora a sua confissão face à evidência dos factos e da prova produzida apenas tenha um peso relativo. A “quase” ausência de antecedentes criminais e a integração pessoal e social do arguido, que o acórdão refere mencionando aspetos da vida pessoal, familiar, afetiva e profissional do arguido.


O acórdão recorrido alude à circunstância de os factos terem sido praticados de madrugada, o que não terá considerado circunstância desfavorável ao arguido na medida em que tal ocorreu por força da intervenção do ofendido que forçou a sua entrada na casa daquele.


9.3. Por sua vez, o MP recorrente invoca as seguintes circunstâncias relevantes para fundamentar a pretendida elevação da pena de 11 anos de prisão, que considera demasiado branda, entendendo que deve ser fixada mais próxima do limite máximo:


- Contra o recorrido, invoca o MP recorrente o grau de ilicitude e a gravidade do crime de homicídio e as suas consequências, ter sido a morte provocada pelo disparo de dois tiros a curta distância, o dolo direto, de elevada intensidade, não ter prestado auxílio à vitima, seu compatriota, a fuga do local e só no dia seguinte se ter apresentado às autoridades, a não demonstração da interiorização da gravidade da sua conduta.


- A favor do arguido, a circunstância de ter sido a vítima que entrou em casa do recorrido, após ter arrombado a porta depois de ter dado várias pancadas com uma faca e pontapés e se ter dirigido ao mesmo.


9.4. Vejamos.


9.4.1. Breves considerações de ordem geral.


Como é comumente considerado entre nós, de acordo com o chamado modelo de prevenção desenvolvido entre nós por F. Dias e Anabela Rodrigues, que se encontra acolhido, no essencial, no art. 40º do C. Penal após a revisão de 1995, “ Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção).Depois, no âmbito desta moldura, a medida da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e seguranças individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas”.- cfr Anabela Rodrigues, O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena privativa de liberdade in AAVV, Problemas fundamentais de Direito Penal-Homenagem a Claus Roxin, Universidade Lusíada-2002 p. 207.


De acordo com este modelo, a culpa, que opera como limite das necessidades de prevenção, sejam elas gerais ou especiais (“Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” - art. 40º nº2 do C.Penal), é a culpa do arguido pelo facto, pelo que a pena concreta não pode ultrapassar a medida correspondente e proporcional ao concreto ilícito típico praticado, sendo a medida da pena fornecida, em primeiro lugar, pelas exigências de prevenção geral positiva e, depois, pelas necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e seguranças individuais como referido.


A medida da pena concreta é, assim, decisivamente determinada pelos fatores relativos ao facto a que se reportam as diversas alíneas do art. 71º do C.Penal, segundo o qual deve o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra ele.


9.4.2. No caso concreto, mostra-se especialmente desfavorável ao arguido o grau de ilicitude do facto, derivado, sobretudo, da circunstância de aquele ter atirado sobre a vítima a curta distância, visando a cabeça e o tórax, o que, para além de revelar claramente que o arguido agiu com dolo direto, ou seja, com intenção deliberada de tirar a vida ao seu antagonista, fez aumentar, no plano objetivo, o potencial letal da sua conduta e diminuir, em todo o caso, as hipóteses de defesa da vítima.


A favor do arguido releva o seu comportamento posterior ao facto ilícito, ou seja, que o arguido se tenha entregue às autoridades policias no dia seguinte à prática do crime de homicídio e a sua colaboração com a investigação ao indicar onde escondera a arma; releva ainda a seu favor a forma como a vítima entrou em sua casa e se dirigiu a ele, pois apesar de não ter resultado provado que o arguido tenho agido movido por medo, a verdade é que o comportamento desta não pode ter deixado de contribuir para o despoletar do ato criminoso, dada a proximidade física entre ambos e a tensão que a factualidade provada reflete. No entanto, a este propósito importa considerar contra o arguido a conduta que este assumira pouco antes da prática dos factos, ao permanecer na rua, com uma arma pequena, a apontar para o ar e efetuar outro disparo, ao mesmo tempo que dizia “cadê o valentão”, pretendendo-se referir a BB, e continuando na direção da sua residência acompanhado da testemunha FF (ponto 4 dos FP). Com efeito, esta atitude do arguido, consciente da quezília que mantinha com a vítima há cerca de um ano (ponto 1 dos FP) e da eventual reação daquela, não pode dissociar-se da atitude da vítima imediatamente anterior à penetração em casa do arguido e dos disparos mortais subsequentes, agravando o desvalor da conduta criminosa do arguido, tanto do ponto de vista da ilicitude, como da culpa, aumentando, pois, as necessidades de prevenção geral positiva e, consequentemente, de resposta penal capaz de lhes dar satisfação.


Deste modo, tudo ponderado à luz do disposto no art. 71º C.Penal, decide-se elevar para 13 anos a pena de 11 anos de prisão aplicada pelo tribunal a quo pela prática do crime de homicídio simples p. e p. pelo artigo 131º do C. Penal, julgando-se, assim, procedente o recurso do MP nessa parte.


9.4.3. Reformulação da pena única.


Em face da medida da pena correspondente ao crime de homicídio simples p. e p. pelo art. 131º C.Penal, ora decidida, impõe-se reformular a pena única correspondente ao cúmulo jurídico a efetuar entre aquela pena e a pena de 2 anos de prisão aplicada ao arguido pela autoria de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, sendo de 15 anos o limite máximo da pena única aplicável e de 13 anos o seu limite mínimo, de acordo com o disposto no artigo 77º nº2 C. Penal.


Na medida da pena única são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido (art. 77º nº1 C. Penal), relevando particularmente no caso presente a relação que se estabelece entre o crime de detenção de arma proibida e o crime de homicídio, pois este último crime foi perpetrado com a arma de fogo ilicitamente detida, conforme resulta da factualidade provada. Releva ainda a personalidade do arguido tal como revelada pela factualidade provada, consideradas no seu conjunto, pois no quadro de uma quezília que mantinha com a vítima há cerca de um ano o arguido dispôs-se a adquirir e deter ilicitamente a arma de fogo e a manifestar-se agressivamente perante a vítima, acabando por tirar-lhe a vida num contexto próximo para o qual, objetivamente, contribuiu.


Posto isto, entende-se fixar a pena única em 14 anos de prisão.


10. Assim, em síntese:


- Rejeita-se o recurso interposto pelo arguido, AA;


- Procede-se oficiosamente à correção do acórdão do TRL relativamente à matéria de facto julgada prova e não provada, nos termos do artigo 380º CPP, conforme descrito nos pontos 8.4 e 9.1 do presente acórdão;


- Julga-se procedente o recurso interposto pelo MP, revogando-se o acórdão do TRL ora recorrido na parte em que aplicou ao arguido a pena de 11 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio p. e p. pelo art. 131º C. Penal, decidindo-se elevar a medida daquela pena para 13 anos de prisão e, consequentemente, reformular o cúmulo jurídico formado por aquela pena e a pena de 2 anos de prisão aplicada pelo crime de detenção de arma proibida, elevando a pena única de 12 para 14 anos de prisão.


III


dispositivo


11- Por todo o exposto, acorda-se na secção criminal do STJ em:


- Rejeitar o recurso interposto pelo arguido por ser o mesmo inadmissível, nos termos do artigo 420º nº1 b), condenando-se o arguido na importância de 3 UC nos termos do nº3 do citado art. 420º;


- Julgar procedente o recurso interposto pelo MP, decidindo-se condenar o arguido, AA, na pena 13 anos de prisão como autor de um crime de homicídio p. e p. pelo artigo 131º do C. Penal perpetrado na pessoa de BB e, em cúmulo jurídico com a pena de 2 anos de prisão aplicada ao arguido pela autoria de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido no artigo 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena única de 14 anos de prisão.


Sem custas


Supremo Tribunal de Justiça, 23 de novembro de 2023


Os Juízes Conselheiros


António Latas (Relator)


José Eduardo Sapateiro (Adjunto)


Agostinho Torres (Adjunto)


Acorda-se em conferência nas secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça


Relatório


1.No Juízo Central Criminal de... (J.) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, o arguido, AA, fora condenado por acórdão de 22.11.2022 pela prática em autoria singular e em concurso efetivo de:


- Um crime de homicídio qualificado, previsto e punido no artigo 131.º, 132.º, n.º 2, al. j), do Código Penal, na pena de 18 (dezoito) anos de prisão;


- Um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido no artigo 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 2 (dois) anos de prisão.


Em cúmulo jurídico, fora o arguido condenado na pena única de 19 (dezanove) anos de prisão.

3. Inconformado, o arguido interpôs recurso daquela decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa que, alterando pontualmente a matéria de facto provada, revogou parcialmente o acórdão proferido em 1ª instância e decidiu:


“- Condenar o arguido AA pela prática em autoria singular de um crime


de homicídio, previsto e punido no artigo 131.º do Código Penal, na pena de 11 (onze) anos de prisão;


- “Confirmar a condenação do arguido AA pela prática em autoria singular e em concurso real de um crime de detenção de arma proibida previsto e punido no artigo 86.º, n.º 1, al. c) da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 2 (dois) anos de prisão;


- Operando o cúmulo jurídico entre as penas aplicadas, condenar o arguido AA na pena única de 12 (doze) anos de prisão.”


3. Inconformados com a decisão do TRL, o arguido e o MP vieram interpor recurso para o STJ.


3.1. O arguido extrai da sua motivação as seguintes conclusões que se transcrevem ipsis verbis:


«CONCLUSÕES


1-[O arguido] É uma pessoa socialmente inserida, quer familiarmente quer no mercado de trabalho, como motorista, na empresa Uber Eats e exercia funções havia um ano como empresário de motas na W.. ........ .. Lda, antes de detido.


2- O ora Recorrente foi pai acerca de 4 meses, recebendo vistas regulares da companheira, filho e cunhado no Estabelecimento Prisional;


3- No Estabelecimento Prisional não regista qualquer sanção disciplinar adoptando um comportamento adequado às regras impostas.


4- Prima pela Ausência de Antecedentes Criminais;


5- Sendo que a aplicação da pena de prisão de dois anos ao crime de detenção de arma proibida não poderá deixar de ser considerada excessiva, devendo ser aplicado uma pena de multa.


6- Deste modo, por errada interpretação o acórdão recorrido violou as normas legais contidas no nº 1 do artº 71º e 72º do Código Penal, e do artº 86º da Lei das Armas.».


3.2. Por sua vez o MP extrai da sua motivação de recurso as seguintes conclusões:

« II. Em conclusão:

1. Pelo acórdão de 11 de maio de 2023 proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa foi dado parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA do acórdão

2. Que em 1ª instância o tinha condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nº 2, al. j), do C.Penal, na pena de 18 anos de prisão e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nº 1, al. c), da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 2 anos de prisão, e em cúmulo jurídico na pena única de 19 anos de prisão;

3. O acórdão ora recorrido introduziu alterações na matéria de facto provada e o ponto 5. passou a ter a redação O arguido AA adquiriu a um indivíduo não identificado a arma de fogo com que viria a disparar contra a vítima”;

4. Introduziu também alterações à matéria de facto não provada, onde foi dado como não provado que “o arguido AA tivesse ponderado tirar a vida ao BB, adquirindo a arma de fogo propositadamente para esse efeito.”

5. Por decorrência foi o recorrido condenado pela prática em autoria singular de um crime de homicídio, previsto e punido no art. 131.º, do C.Penal, na pena de 11 (onze) anos de prisão; confirmada a sua condenação pela prática em autoria singular e em concurso real de um crime de detenção de arma proibida previsto e punido no art. 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 2 (dois) anos de prisão; e operado o cúmulo jurídico entre as penas parcelares aplicadas, condenado na pena única de 12 (doze) anos de prisão.

6. Acontece que, o acórdão recorrido padece do vício de contradição insanável da fundamentação, previsto no art. 410º, nº 2, b), do C.P.P., por ter sido mantido o facto provado sob o ponto 27., da matéria de facto provada, que continua a ter a seguinte redação “Ao adquirir a arma para esse efeito refletiu sobre os meios que iria empregar na morte de BB adquirindo propositadamente para esse fim.”

7. O que necessariamente se repercute na própria fundamentação, na qualificação jurídica, na intensidade do dolo e na culpa e na decisão.

8. Deve, pois, ser conhecido e corrigido o referido vício, nos termos do art. 426º, do C.P.P.;

9. Admitindo-se ser de afastar a premeditação, dada a circunstância de ter sido a vítima que entrou em casa do recorrido, após ter arrombado a porta depois de ter dado várias pancadas com uma faca e pontapés e se dirigiu ao mesmo, o certo é que a pena aplicada é demasiado branda;

10.Naverdade,não foi dado como provado que o recorrido tenha agido por medo, nem que a vítima estava com a faca na sua posse, quando se dirigiu ao recorrido; na sua confissão este apenas admitiu a prática dos factos, mas não revelou arrependimento, afirmando “que não percebe porque os praticou”;

11.Desferiu dois tiros, a curta distância, um na região craniana e outro na zona torácica, com intenção de provocar a morte da vítima;

12.O recorrido não agiu por medo ou para defesa da própria vida e dos seus bens, agiu assim atenta a divergência, a quezília que existia entre si e a vítima, por causa de uma rapariga chamada CC;

13.O seu dolo é de elevada intensidade e elevado o grau de culpa;

14. Militam contra o recorrido, o grau de ilicitude, a gravidade do crime de homicídio e as suas consequências, a morte da vítima provocada pelo disparo de dois tiros a curta distância, o dolo direto de elevada intensidade, as circunstâncias de não ter prestado auxílio à vitima, seu compatriota, a fuga do local e só no dia seguinte se ter apresentado às autoridades, de ter comprado a arma com a intenção de a usar contra a vítima, sendo fúteis as razões das divergências entre ambos, os seus antecedentes criminais, a não demonstração da interiorização da gravidade da sua conduta;

15. Militam a seu favor a integração pessoal e social e a circunstância de se ter entregue às autoridades policiais, colaborando com estas na indicação do local onde tinha escondido a arma e as munições;

16. As exigências de prevenção geral são muito elevadas face ao bem jurídico violado: a vida humana e dados os contornos do caso; a gravidade jurídica do crime praticado pelo recorrido e a necessidade de defesa da sociedade perante este tipo de crime, que regista um aumento significativo, sendo enorme o alarme social que provoca;

17.As exigências de prevenção especial também são muito elevadas considerando os factos praticados e que o recorrido regista antecedentes criminais;

18. Numa visão de conjunto e ponderadas as circunstâncias pessoais do recorrido, a intensidade do dolo, o grau da ilicitude, a gravidade da culpa, as circunstâncias preventivas e retributivas e a moldura penal abstrata do crime de homicídio, 8 a 16 anos de prisão, entendemos ser demasiado branda a pena de 11 anos de prisão, devendo ser fixada perto do limite máximo;

19.Naturalmente que o defendido aumento da pena parcelar pela prática do crime de homicídio terá necessariamente de determinar em cúmulo jurídico, com a pena de 2 anos de prisão em que o recorrente foi condenado pela prática do crime de detenção de arma proibida, um aumento da pena única a aplicar.

Pugna-se, pois, que seja conhecido e corrigido o vício de contradição insanável na fundamentação, previsto no art. 410º, nº 1, b), do C.P.P., bem como a pena parcelar aplicada pela prática do crime de homicídio aumentada para um quantum perto do limite máximo, e em consequência, ser também aumentado o quantum da pena única aplicada em cúmulo jurídico.

No entanto, Vossa Excelência decidirão como for de Justiça. »

4. O MP apresentou ainda resposta ao recurso interposto pelo arguido, nos seguintes termos:


« II. Em conclusão:


1. AA recorre do acórdão proferido, a 11 de maio de 2023, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, na parte respeitante à condenação na pena de 2 anos de prisão, pela prática do crime de detenção de arma proibida, previsto e punido no art. 86º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro;


2. Acontece que, quanto a este segmento o recorrente não recorreu do acórdão da 1ª instância;


3. Limitou, então, as questões a decidir à matéria de facto e de direito respeitante ao crime de homicídio, respetiva pena parcelar e repercussão na pena unitária; E foi neste horizonte que foram fixadas e conhecidas as questões sobre que incidiu o acórdão ora recorrido – arts. 402º, nº 1, 403º, nº 2, c) e f), do C.P.P.;


4. Não pode, pois, agora o arguido vir recorrer para o STJ, questionando a pena de 2 anos de prisão em que foi condenado pela prática do crime de detenção de arma proibida, por atualmente pretender ver substituída por multa;


5. Nesta parte, quanto a este segmento, o acórdão da 1ª instância transitou em julgado;


6. Verifica-se a existência de caso julgado parcial;


7. Deve, pois, o presente recurso ser rejeitado, por manifestamente improcedente, nos termos do art. 420º, nº 1, a), do C.P.P..»


4. Cumprido o disposto no artigo 416º CPP, o senhor Procurador-geral Adjunto no STJ emitiu parecer que conclui do seguinte modo:

« (…) IV. Em sintonia do que vem de expor-se, e examinados os fundamentos dos recursos interpostos pelo Ministério Público e arguido, respetivamente, e da decisão colocada em crise, consideramos que a Digna Magistrada do Ministério Público junto da 2ª Instância identificou corretamente o objeto dos recursos em causa, fundamentando e rebatendo, especificadamente, todos os aspetos neles suscitados e argumentando criteriosamente, com clareza, rigor e correção jurídica; o que merece o nosso total acolhimento, dispensando-nos, assim, porque de todo desnecessário e redundante, de aduzir outros considerandos no que ao objeto dos recursos em análise diz respeito.

Pelo exposto, e secundando a posição da Exmª Colega junto da 2ª instância, quer na motivação do recurso apresentado pelo Ministério Público, quer na resposta apresentada ao recurso interposto pelo arguido, emite-se parecer no sentido da procedência do recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, pronunciamo-nos pela improcedência do recurso interposto pelo arguido.»

5. Cumprido o disposto no art. 417º nº2 o arguido recorrente nada acrescentou, mas os assistentes pronunciaram-se no sentido da procedência do recurso interposto pelo MP.


II


Fundamentação


6. Questão prévia – a (in)admissibilidade do recurso interposto pelo arguido.


Como se vê das respetivas conclusões, o arguido apenas vem interpor o presente recurso relativamente à pena parcelar de dois anos de prisão que lhe fora aplicada em 1ª instância pelo juízo central criminal de Lisboa (J7).


Ora, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal (pertencem a este código as disposições legais citadas sem outra especificação) recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400º .


Por sua vez, o artigo 400º, que contém o elenco, não taxativo, das decisões irrecorríveis, prevê na alínea e) do nº1, que os acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão inferior a 5 anos, exceto no caso de o tribunal da relação ter revertido, condenando, anterior decisão absolutória aplicada em 1ª instância, são irrecorríveis.


Assim, uma vez que o TRL confirmou a pena de 2 anos de prisão que fora aplicada em 1ª instância pela prática do crime de detenção de arma proibida, previsto e punido no artigo 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, constata-se que o arguido pretende recorrer relativamente a pena de prisão inferior a 5 anos, que confirma condenação anterior (não se seguindo, pois, a eventual absolvição), pelo que o acórdão do TRL é irrecorrível nessa parte, nos termos do referido artigo 400º nº1 al. e). Independentemente, pois, da questão de saber (suscitada pelo MP na sua resposta no TRL) se o recurso do acórdão do TRL sempre seria inadmissível nessa parte por não ter o arguido recorrente interposto recurso da decisão de 1ª instância para o TRL relativamente ao “crime de detenção de arma proibida.”


Nesta conformidade e tendo ainda presente que a admissão do recurso pelo TRL não vincula este tribunal (art. 414º nº 3 ), decide-se rejeitar o recurso interposto pelo arguido para o STJ por ser o mesmo inadmissível, nos termos do artigo 420º nº1 b).


7. O objeto do recurso interposto pelo MP.


7.1. O recurso interposto pelo MP da decisão proferida pelo TRL é admissível nos termos das disposições conjugadas do art. 432º nº 1 b) e 400º nº 1 f), a contrario, por se tratar de recurso interposto de acórdão condenatório proferido, em recurso, pela relação que aplicou pena de prisão (parcelar e única) superior a 8 anos.


O MP suscita as seguintes questões na sua motivação de recurso:


- O acórdão recorrido padece do vício de contradição insanável da fundamentação, previsto no art. 410º, nº 2, b), que deve ser conhecido e corrigido nos termos do art. 426º;


- Sem pôr em causa a qualificação jurídica dos factos operada pelo tribunal recorrido, o MP recorrente pretende ver aumentada a pena parcelar de 11 anos de prisão aplicada pelo TRL por entender que aquela pena deve antes aproximar-se do limite máximo de 16 anos correspondente ao crime de homicídio simples p. e p. pelo artigo 131º C. Penal, com o consequente aumento da pena única, que foi fixada pelo TRL em 12 anos de prisão.


Não se suscitam dúvidas sobre o conhecimento, pelo STJ, do recurso do MP relativo à medida da pena aplicada ao arguido pela prática de um crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal, na pena de 11 (onze) anos de prisão que pretende ver aumentada, com o consequente aumento da pena única.


7.2. Põe-se em causa, porém, que o STJ possa/deva conhecer do vício de contradição insanável da fundamentação previsto no artigo 410º nº 2 al. b) invocado pelo MP recorrente como um dos fundamentos do seu recurso, na sequência das alterações introduzidas no artigo 434º pela L. 94/2021 de 21 de dezembro, relativamente às quais pode ver-se para outros desenvolvimentos (nomeadamente no que concerne aos antecedentes da referida alteração ao artigo 434º), o Ac STJ de 15.02.23, rel. Ana Barata de Brito e outros acórdãos recentes do STJ aí citados, acessíveis em www.dgsi.pt.


Vejamos.


7.2.1. A versão do artigo 434º (Poderes de cognição) que fora introduzida pela L. 59/98 de 25 de agosto era do seguinte teor: “ Sem prejuízo do disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 410º, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito”.


Após a alteração introduzida pela L. 94/21 de 21 dezembro o artigo 434º, com a mesma epígrafe, passou a estabelecer que “O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do nº1 do artigo 432º ” , que, por sua vez, são do seguinte teor:


«Artigo 432º Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça


1. Recorre-se para o Supremo tribunal de Justiça:

e. De decisões das relações proferidas em 1ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º;

f. De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações em recurso, nos termos do artigo 400º;

g. De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º;

h. (…)

2. (…) »

a)A nova redação do artigo 434º, para além de contrariar expressamente na al. c) do nº1 a jurisprudência pacífica do Supremo que entendia não ser o STJ competente para apreciar (per saltum) recurso de acórdão final do tribunal coletivo com fundamento em algum dos vícios previstos no artigo 410º nº2, sendo competente para o efeito os tribunais da Relação (vd.,por todos, Acs STJ de 26.02.2004, rel. Pereira Madeira, de 10.02.2005, rel. Simas Santos e de 8.2.2006, rel. Henriques Gaspar), veio alterar o sentido do artigo 434º relativamente ao recurso para o STJ de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações em recurso, nos termos do artigo 400º, ao deixar de ressalvar genericamente no seu texto os poderes de cognição do STJ para conhecer dos vícios previstos no artigo 410º nº 2, passando a fazer tal ressalva apenas nas hipóteses previstas nas as a) e c) do nº1 do artigo 432º


Com efeito, parece não poder deixar de entender-se que ao ressalvar agora do conhecimento exclusivo de matéria de direito apenas as hipóteses previstas nas alíneas a) e c) do nº1 do artigo 432º, que preveem casos de recurso de primeiro grau, para o Supremo, o que justificará a diferente solução legislativa (assim ac STJ de 15.02.23 rel. Ana Brito), o artigo 434º deixa de fora dessa ressalva os recursos para o STJ a que se reporta b) do nº1 do mesmo artigo 432º, relativamente aos quais o STJ apenas conhecerá de direito, com o sentido operativo que esta locução assume em face dos termos dos artigos 434º e 410º. Ou seja, com o sentido de não poderem tais recursos ter por fundamento – no que aqui importa – os vícios e nulidades previstos no artigo 410º nº2 e 3 – assim, ac STJ de 01.03.22 (rel. Ernesto Vaz Pereira), 23.03.22 (Lopes da Mota), Despacho do Vice-presidente de 15.01.23, processo nº 5711/20 de T9CBR.C1-A. S1, ac STJ de 15.02.23 (Ana Brito) e ac STJ de 11.10.23 (rel. Agostinho Torres).


Do que resulta, pois, que relativamente aos recursos “não ressalvados” pela atual redação do artigo 434º, ou seja, os recursos de decisão da relação para o STJ a que se reportam os artigos 432º nº1 b) e 400º nº 1 f), aqui incluído o recurso interposto de acórdão da relação que aplicou pena parcelar superior a 8 anos de prisão em causa no presente recurso, não é admissível a interposição de recurso para o STJ exclusivamente com fundamento em algum dos vícios da “sentença” previstos no artigo 410º nº2, sem prejuízo do poder/dever de o STJ conhecer oficiosamente desses mesmos vícios, poder dever que sempre impende sobre o tribunal de recurso em qualquer caso - vd. por todos Ac STJ de 20.12.2014, rel. Raúl Borges (não publicado), apud ac STJ de 15.02.23 supracitado.


No sentido, contrário, de poder recorrer-se para o STJ de acórdão da relação abrangido pela al. b) do nº 1 do art. 432º, articulado com o artigo 434º, pode ver-se Helena Morão, “A Revista Penal em Revista” in “a REVISTA”, Supremo Tribunal de Justiça, nº2 de jul-dez. 22 e, com Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, vol. II, 5ª ed. pp725 e 728, sem que convençam, porém, ter sido esse o propósito legislativo presente na citada Lei 94721.


7.2.2. Conhecimento oficioso daqueles vícios, conforme entendimento que o STJ tem mantido pelo menos desde o Acórdão (de fixação de jurisprudência) nº 7/95 que, lembremo-lo, é do seguinte teor, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º nº2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.».


Na verdade, ainda que possa questionar-se a atualidade daquele AFJ dadas as alterações verificadas na letra do artigo 410º, a doutrina que se extrai da sua fundamentação mantém-se atual, pois assenta sobretudo em razões de índole constitucional. Como se diz na fundamentação daquele AFJ 7/95 não pode aceitar-se que “…os tribunais criminais se contentem com uma verdade formal, dissociada da realidade, e tenham de, como imperativo legal e de consciência, procurar, na medida do possível, averiguar a verdade material, por forma que só possa ser aplicada punição a quem, efetivamente, tenha cometido um ato ilícito criminalmente punível. (…) E porque se encontram em jogo a segurança, o bom nome e a liberdade dos cidadãos, o julgamento de direito a que os tribunais criminais têm de proceder não permite que a decisão se baseie em factos falseados, incorretos ou incompreensíveis, desde que os respetivos vícios se enquadrem nas previsões do nº2 do artigo 410, já que a estas últimas o legislador atribuiu gravidade suficiente para originarem um declaração de nulidade do julgamento e uma repetição, total ou parcial deste último.(…) . Assim, a delimitação do objeto do recurso à matéria de direito não pode ter efeito como efeito a impossibilidade de o tribunal apreciar a existência dos vícios indicados naquele nº2 do artigo 410º, sob pena de, se assim não for, se se violarem os princípios constitucionais do direito à segurança dos cidadãos e do direito a um julgamento criminal justo».- cf. DR I Série-A de 28.12.95, pp. 8212-3 FIM DE CITAÇÃO, de cuja extensão nos penitenciamos, mas que julgamos justificar-se pela sua pertinência e autoridade.


Assim, embora se nos afigure ser de rejeitar os recursos de decisão do Tribunal da Relação abrangida pela previsão da al. b) do nº 1 do artigo 432 que se funde apenas na verificação de algum dos vícios ou nulidades previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º (sem prejuízo de reclamação para o próprio tribunal da Relação com esses fundamentos), nos casos de recurso de decisão da relação para o STJ a que se reportam os artigos 432º nº1 b) e 400º nº 1 f), cujo objeto integre (outras) questões de que o STJ deva conhecer - como se verifica no caso presente visto que o MP recorre da medida pena única por entender que a pena concreta de 11 anos de prisão deve ser aumentada - , o STJ tem o poder/dever de conhecer oficiosamente dos vícios e nulidades previstos no art. 410º nºs 2 e 3 no caso de se ver confrontado com hipótese que possa enquadrar-se em algum deles.


7.3. Assim, em síntese, resulta da articulação do artigo 410º com os artigos 399º, 434º e 432º, que os recursos de decisão da Relação para o STJ a que se reportam os artigos 432º nº1 b) e 400º nº 1 f), isto é, os recursos de acórdãos condenatórios proferidos pelas relações em recurso que apliquem pena de prisão superior a 8 anos de prisão (independentemente de se verificar ou não dupla conforme) não podem ter por fundamento algum dos vícios previstos no artigo 410º nº2 (no que agora releva), o que implica que o STJ não tenha que pronunciar-se sobre algum desses vícios enquanto questão que, por ser suscitada pelo recorrente, integrasse o objeto do processo, sem prejuízo do seu conhecimento oficioso, como referimos.


7.4. Sendo assim, concluímos que o presente recurso tem por objeto a apreciação da elevação da medida concreta da pena de 11 anos pretendida pelo MP recorrente e a reformulação do pena única daí decorrente, para além do conhecimento oficioso do vício de contradição insanável da fundamentação de facto, que nos é suscitado pela leitura dos pontos nº 5 e nºs 27 e 25 (parte) da factualidade julgada provada, conjugados com factualidade julgada não provada, pelo acórdão do TRL ora recorrido, como melhor veremos agora


8. Apreciação oficiosa de eventual contradição insanável da fundamentação, em matéria de facto.


A propósito da finalidade processual e caraterização sumária do regime dos vícios da sentença previsto no artigo 410º nº2, por demais conhecido, limitamo-nos, pela sua pertinência ao caso presente, a transcrever o seguinte passo de Maria João Antunes, Conhecimento dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal - Anotação ao Ac STJ de 6.05.1992, in RPCC 4(1994) p. 121:


- “O art. 410º nº 2 concede ao tribunal «ad quem» os poderes de cognição em matéria de facto permitidos pelo texto da decisão recorrida, com o objetivo de assim ser controlado o conteúdo da própria fundamentação. O artigo 410º nº 2 não serve, pois, para verificar a existência ou não da fundamentação da sentença, nos termos previstos no art. 374º nº2 – isso é feito através do mecanismo da arguição de nulidade -, mas para controlar se a matéria de facto provada é suficiente para a decisão de direito tomada, se não há contradição insanável da fundamentação e se não há erro notório na apreciação da prova, podendo assim dizer-se que estes são requisitos da fundamentação e consequentemente da própria decisão.”.


Por seu lado, relativamente ao vício de contradição insanável previsto na al. b) do nº2 do art. 410º, pode ler-se, por todos, no sumário do ac STJ de 03.07.2002, rel. Armando Leandro, que transcrevemos de Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, 2ª ed. p. 1246, o seguinte: « (…) II. O vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, previsto na al. b) do nº2 do artigo 410º CPP, verifica-se quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre factos provados ou não provados, entre uns e outros e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do tribunal. (…)».


Ou seja, em formulação próxima, entendemos verificar-se o vício de contradição insanável da fundamentação previsto no art. 410º nº2 b), quando existir incoerência, oposição, incompatibilidade manifesta entre diferentes passos da motivação da sentença, afetando a sua estrutura lógica, de forma inultrapassável para o tribunal de recurso.


Vejamos então o texto do acórdão do TRL ora recorrido.


8.1. a) O acórdão proferido pelo tribunal de 1ª instância julgou provados, no que aqui releva, os seguintes factos:


“5. O arguido AA já tinha ponderado tirar a vida, como viria a acontecer, ao ofendido BB, motivo pelo qual em data não concretamente apurada, mas anterior aos factos adquiriu a um individuo a arma de fogo com que viria a disparar contra a vítima, propositadamente para esse efeito.


25. O arguido não tem qualquer licença que lhe permitisse deter aquela arma e munições, tendo adquirido tais objetos apenas para provocar a morte à vitima BB como viria a acontecer, não se inibindo, ainda assim de a adquirir e ter na sua posse.


“26. O arguido atuou do modo descrito com o propósito de causar a morte ao ofendido, porquanto o instrumento usado, uma arma de fogo, os locais atingidos e as lesões provocadas revelavam-se idóneas para produzir a morte, como viria a acontecer.”;


“27. Ao adquirir a arma para esse efeito o arguido refletiu sobre os meios que iria empregar na morte de BB adquirindo a mesma propositadamente para esse fim.


b) Por sua vez, o acórdão do TRL ora recorrido, alterando parcialmente aquela factualidade, julgou provados e não provados, respetivamente, os seguintes pontos de facto, que aqui relevam:

- “5.O arguido AA adquiriu a um indivíduo não identificado a arma de fogo com que viria a disparar contra a vítima”;

- “Dá-se como não provado que o arguido AA já tivesse ponderado tirar a vida ao BB, adquirindo a arma de fogo propositadamente para esse efeito.”

O acórdão do TRL não procedeu a qualquer outra alteração relativamente à factualidade provada e não provada, pelo que se mantem a redação dos nºs 25, 26 e 27 da factualidade provada fixada em 1ª instância pelo Juízo Central Criminal de..., agora transcrita.

8.2. Assim sendo, é manifesta a contradição entre a factualidade julgada não provada pelo TRL correspondente a parte do teor originário do nº5 da factualidade provada em 1ª instância, (“Dá-se como não provado que o arguido AA já tivesse ponderado tirar a vida ao BB, adquirindo a arma de fogo propositadamente para esse efeito.”) e a factualidade descrita no ponto 27 da factualidade provada, bem como em parte do ponto nº 25, ou seja, que o arguido adquiri[u] tais objetos [arma e munições]apenas para provocar a morte à vitima BB como viria a acontecer, que o TRL, ora recorrido, manteve sem alterações como aludidio.


Com efeito, ao julgar-se provado naquele nº 27 que “Ao adquirir a arma para esse efeito o arguido refletiu sobre os meios que iria empregar na morte de BB adquirindo a mesma propositadamente para esse fim e no ponto 25 que o arguido tenha adquirido tais objetos [arma e munições] apenas para provocar a morte à vitima BB como viria a acontecer”, contradiz-se necessariamente a anterior afirmação de que não foi julgado provado que o arguido AA já havia ponderado tirar a vida à vítima, BB (extraído de parte do anterior ponto nº 5 dos factos provados em 1º instância) , pois não podem coexistir ambas as afirmações na fundamentação da sentença enquanto resultado unitário da decisão judicial sobre a matéria de facto, dado que se excluem mutuamente. Pela mesma razão, a afirmação contida no ponto 27 da factualidade provada de que o arguido adquiriu a arma de fogo utilizada propositadamente para esse efeito [tirar a vida à vítima] e no ponto 25 que o arguido tenha adquirido a arma e munições apenas para provocar a morte à vitima BB, contradizem a afirmação do TRL de que julgou não provado que o arguido AA tivesse adquiri[do] a arma de fogo propositadamente para … tirar a vida ao BB, pois expressam, no plano da linguagem, realidades factuais e, sobretudo, convicções sobre a prova que se excluem mutuamente.


Reconhecida a incompatibilidade, a contradição, entre os apontados factos provados e não provados, e resultando ainda do texto do acórdão do TRL ora recorrido que aquela factualidade é relevante para a decisão da causa (v. p. 29, 43 e 44, do acórdão do TRL ora recorrido), não há dúvida, em face do disposto nos artigos 374º nº 2 e 410º nº2 b), que estamos perante contradição relevante da fundamentação da sentença.


8.3. Sucede, porém, que não obstante constituir seu pressuposto, a apontada contradição da fundamentação de facto (ou outra das formas que assuma a contradição a que se refere a al. b) do nº2 do art. 410º) apenas redundará efetivamente no vício da sentença a que se reporta esta al. b), quando a contradição se revele insanável conforme claramente decorre da letra do preceito, da sua razão de ser e respetivo regime.


Ou seja, o vício da sentença previsto naquela al. b) que, em princípio, implicará o reenvio do processo ao tribunal recorrido -v. art. 426º nºs 1 e 2 -, apenas se verifica efetivamente quando a contradição que afeta a fundamentação da sentença, nomeadamente entre factos incompatíveis, como sucede in casu, não possa ser sanada, pois como pode ler-se no sumário do ac. STJ de 09.07.1998, Proc. nº 262/98, «Para que exista contradição insanável da fundamentação, não basta que haja contradição entre factos provados ou entre factos provados e não provados ou entre factos provados e a fundamentação da convicção formada pelo tribunal. É necessário ainda que tal contradição seja de todo em todo irreparável e insuscetível de saneamento». De modo semelhante lê-se no sumário do ac STJ de 15.01.98, Proc. 1212/97: «A contradição insanável da fundamentação verifica-se quando, analisando a matéria de facto provada e não provada - em certos casos com ligação à respetiva fundamentação – se chega a conclusões contraditórias, insanáveis, irredutíveis, que não podem ser ultrapassadas, recorrendo-se ao contexto da decisão no seu todo e com o recurso às regras da experiência comum».. Os sumários destes dois acórdãos, cuja versão integral não encontrámos publicada, transcrevem-se de Simas Santos, Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed. 2007 p. 73.


Pode ver-se ainda, porém, versão integral do ac. STJ de 18.03.2004, rel. Simas Santos, onde pode ler-se«6.A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões irredutíveis entre si e que não possam ser ultrapassadas ainda que com recurso ao contexto da decisão no seu todo ou com recurso às regras da experiência comum. - » - acessível em www.dgsi.pt.


Com efeito, a contradição verificada pode ser resolvida, eliminada, sanada, pelo tribunal de recurso com base no texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência (tal como é pressuposto para a verificação do vício), quando for possível identificar os termos da contradição que correspondem à realidade factual efetivamente considerada pelo tribunal recorrido ao proferir a sentença, reconstituindo assim a decisão efetivamente tomada, sem necessidade de reenviar o processo ao tribunal recorrido para esse efeito.


Como veremos, é o que se verifica no caso presente.


8.4.Na verdade, do conjunto da factualidade provada e dos termos da fundamentação do TRL em matéria de facto, resulta que a convicção do tribunal recorrido se encontra efetivamente expressa na conjugação da sua motivação com o teor do ponto nº5 da factualidade ora provada - “5. O arguido AA adquiriu a um indivíduo não identificado a arma de fogo com que viria a disparar contra a vítima” -, e a factualidade que julgou expressamente não provada, ou seja, “…que o arguido AA já tivesse ponderado tirar a vida ao BB, adquirindo a arma de fogo propositadamente para esse efeito.”.


Desta conjugação resulta, pois, que apenas por lapso ou inconsideração o TRL não mencionou que dos fundamentos da sua decisão resultava igualmente não provada a matéria de facto descrita no referido ponto 27, ou seja, que “ Ao adquirir a arma para esse efeito [tirar a vida à vítima] o arguido refletiu sobre os meios que iria empregar na morte de BB adquirindo a mesma propositadamente para esse fim.», e em parte do ponto nº 25, o que implicará correção daquele acórdão nos termos do art. 380º (“Correção de sentença”) nºs 1 b) e 3, em termos idênticos ao que sempre resultaria, aliás, do disposto no art. 431º, corpo, interpretando de forma ampla a referência aí feita ao artigo 410º.


8.4.1. Com efeito, como pode ver-se da parte em que decidiu alterar a redação do ponto nº 5 da factualidade antes provada, o acórdão do TRL ora recorrido começa por explicar (pp. 24 a 26) que o arguido recorrente pretendia impugnar, nos termos do art. 412º, a factualidade provada sob os nºs 9 (parcialmente), 26 e 27) mas o tribunal não conheceria daquela impugnação por falta de cumprimento do ónus de especificação imposto pelo seu nº 3, dizendo expressamente que “… não pode haver reapreciação alargada da matéria de facto por não estarem preenchidos os requisitos para a sua apreciação, mas só aquela que resulte eventualmente dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, als. a), b) e c),do CPP”, acabando por reapreciar oficiosamente a decisão em matéria de facto, em face do texto do acórdão de 1º instância, nos termos do art. 410º nº2. Foi pois com este fundamento que o TRL concluiu oficiosamente (pp 28 a 31) que o princípio in dubio pro reo impunha a modificação do ponto nº5 da factualidade provada nos termos transcritos supra em 8.4., sem fazer qualquer menção aos pontos nº 27 e 25 da factualidade provada em 1ª instância, que se mantiveram inalterados, apesar de estes serem de teor praticamente igual à parte do ponto nº 5 julgada não provado pelo TRL.


8.4.2. Por um lado, tanto o ponto nº25 como o ponto nº 27 da factualidade provada nada acrescentam relativamente ao que dispunha a versão originária do ponto nº5 dos FP (antes repete a factualidade que ali se afirmava (v. transcrição supra 8.1. a) do presente acórdão). Por outro, o acórdão do TRL ora recorrido considerou que o tribunal de 1ª instância julgara o ponto de facto nº5 com base em declarações do arguido e em ilações lógicas que, porém, o TRL julgou insuficientes para tal prova (pp 29 a 31), conclusão que é necessariamente válida relativamente aos pontos nºs 25 (parte) e 27, pelo que é segura a conclusão lógica, a que chegamos, de que só por inconsideração, por lapso manifesto, o TRL deixou de se pronunciar sobre os pontos 25 e 27 em termos idênticos à apreciação que fez relativamente à parte do ponto 5 julgada não provada, no sentido da violação do princípio in dubio pro reo, pois era idêntico o conteúdo de ambos os pontos de facto na versão da 1ª instância (nº 5 e nºs 25, parte, e 27) e não havia provas diferentes a considerar relativamente a estes últimos pontos de facto( nºs 25 e nº 27.


Ou seja, em coerência com os considerandos desenvolvidos de pp. 26 a 31 do acórdão do TRL ora recorrido, não fica margem para diferente conclusão que não seja a de que parte do ponto 25 e o ponto nº 27 sempre seriam julgados não provados caso o TRL tivesse considerado o teor deste dois últimos pontos, no acórdão recorrido. Ou seja, eventual confrontação do TRL com a contradição verificada, na sequência de reenvio, não poderia levar in casu a outra decisão que não fosse a de julgar não provado o referido ponto 27 e parte do ponto 25.


8.4.3 Concluímos, assim, como aludido antes, em face do texto do acórdão do TRL ora recorrido, que só por inconsideração ou lapso manifesto este deixou de consignar que o ponto nº 27 e parte do ponto 25 (da factualidade originariamente provada) resultava não provado por imposição do princípio in dubio pro reo, tal como expressamente decidira relativamente à parte do ponto nº5 julgada não provada pelo TRL.


Nestes termos, procede-se oficiosamente à correção do acórdão do TRL ora recorrido (art. 380º nºs 1 b) e 2 ex vi do art. 425ºnº4), ao mesmo tempo que se julga sanada a contradição da fundamentação, para efeitos do disposto no artigo 410º nº2 b), considerando-se não provado o ponto nº 27 da factualidade provada e a parte contraditória do ponto 25 (ou seja, que “O arguido adquiri[u] tais objetos [arma e munições] apenas para provocar a morte à vitima BB como viria a acontecer”), tal como se encontravam descritos no acórdão de 1ª instância e no acórdão do TRL ora recorrido.


9. Conhecendo da medida da pena aplicada pelo crime de homicídio e da pena única.


Uma vez que, como referido, o MP recorrente não põe em causa a qualificação jurídica dos factos, impõe-se decidir agora se é de elevar a medida da pena parcelar de 11 anos de prisão aplicada ao arguido AA pela prática em autoria singular de um crime de homicídio p. e p. no artigo 131.º do Código Penal e, consequentemente, da pena única de 12 anos de prisão, como pretendido pelo MP recorrente.


9.1. Encontra-se provada (e não provada) a seguinte matéria de facto:

2.1. Factos provados

1. A vítima BB e o arguido AA tinham uma quezília com cerca de um ano, a propósito de uma rapariga chamada CC.


2. No dia 06 de julho de 2021, pelas 20h00, o arguido AA e a testemunha DD contactaram telefonicamente a testemunha EE a pedirem ambos que a testemunha conversasse com a vìtima BB no sentido de este deixar de arranjar problemas com o AA.


3. Na sequência desse contacto, acedendo a tal pedido, a testemunha EE contactou telefonicamente com a vitima BB, tendo o mesmo referido ao seu amigo que o “...” andava a “pegar” com a sua namorada, tendo a testemunha pedido à vitima para ter calma e combinando falar com ele mais tarde.


4. Cerca das 00h00 a testemunha EE, que já se encontrava em sua casa, perto da residência ouviu um disparo, o que o fez correr para a janela, deparando-se com o arguido AA, na rua, com uma arma pequena, a apontar para o ar e efetuar outro disparo, ao mesmo tempo que dizia “cadê o valentão”, pretendendo-se referir a BB, e continuando na direção da sua residência acompanhado da testemunha FF.


5. (redação do TRL): - “O arguido AA adquiriu a um indivíduo não identificado a arma de fogo com que viria a disparar contra a vítima”;


6. Pouco tempo depois, cerca das 00h30, a vitima BB deslocou-se à Rua ..., em ..., ..., local de residência do arguido AA.


7. A testemunha EE, ao aperceber-se por um lado que o arguido se encontrava com uma arma a disparar tiros, e que avitima se deslocava em direção da casa do mesmo, saiu da sua residência e deslocou-se de imediato para junto da residência do arguido AA.


8. No interior da residência encontravam-se o arguido AA e a sua namorada GG, e a testemunha FF.


9. Depois de dar várias pancadas e pontapés, e desferir pancadas com uma faca que trazia até separar a lâmina do cabo, vindo a ficar caída naquele local, a vítima BB conseguiu entrar dentro de casa a discutir com o arguido e dirigiu-se ao mesmo, o qual empunhava a arma de fogo.


10. Em ato continuo a vítima dirigiu-se à zona da cozinha, local onde o arguido se encontrava ao mesmo tempo que empunhava uma arma.


11. Perante a aproximação da vítima, o arguido AA disparou dois tiros na direção da vítima, atingindo-o na zona torácica com um dos tiros e na cabeça com outro.


12. Em ato continuo a testemunha EE entrou dentro da habitação e, concretamente entre a cozinha e a sala, e deparou-se com a vítima encostado à parede e a sangrar do peito, tendo-o socorrido de imediato.


13. Nessa altura deparou-se com o arguido e a sua namorada GG, já no exterior da residência, juntamente com FF.


14. A testemunha EE pediu auxílio, tendo a vítima sido transportada para o Hospital numa ambulância.


15. O ofendido deu entrada no Hospital ... pelas 01h12, tendo sofrido uma paragem cardíaca prolongada, pelo que teve de ser sujeito a reanimação até ser estabilizado, permanecendo com prognóstico muito reservado.


16. A vítima apresentava orifício de entrada de projétil de arma de fogo na zona torácica, com perfuração da membrana cardíaca, alojando-se no abdómen e ainda orifício de entrada de projétil de arma de fogo na zona craniana, lado direito, após ter sido vítima de trauma com arma de fogo, ‘de calibre 6,35’.


17. Foi submetido a intervenção neurocirúrgica com craniectomia, drenagem de hematoma frontal direito e esquirolectomia, bem como a intervenção cardiotorácica, no decurso da qual foi verificado: tamponamento cardíaco por hemopericárdio, porta de entrada do projétil na face anterior do ventrículo direito e saída na face inferior, com continuidade para a cavidade abdominal através de perfuração do diafragma.


18. O estado clínico de BB evoluiu desfavoravelmente, com hipertensão intracraniana e encefalopatia anóxica, sendo verificado o óbito às 00h... de .../07/2021.


19. A morte da vítima surgiu como resultado direto e adequado das lesões provocadas pelos dois disparos efetuados contra si pelo arguido AA, com recurso a uma pistola de calibre 6,35 mm.


20. Os disparos efetuados pelo arguido AA atingiram a vítima em zonas que alojam órgãos vitais (um na zona torácica e outro na região craniana).


21. Considerando os locais que o arguido escolheu para atingir a vitima, o arguido sabia que eram zonas que alojam órgãos vitais, e que por isso, em consequência lhe causaria a morte, não se inibindo ainda assim de atuar, com o objetivo, concretizado de tirar a vida à vitima BB.


22. O arguido após a prática dos factos ausentou-se de imediato do local, juntamente com a namorada GG, apanharam um táxi e dirigiram-se a ..., em concreto nas Traseiras do prédio..., sito na Rua ..., e escondeu nesse local a arma utilizada, tendo de seguida iniciado deslocação para ... para se eximir da responsabilidade criminal, mas, após se arrepender, regressou e apresentou-se na Policia Judiciária.


23. No dia 7 de julho de 2021, o arguido conduziu a PJ ao local onde tinha escondido a arma utilizada, em concreto uma pistola, calibre 6.35, com carregador e uma caixa de munições contendo 30 munições daquele calibre.


24. A arma indicada pelo arguido à Polícia Judiciária foi a responsável pelos disparos realizados na rua e contra a vitima BB.


25 (modificado pelo STJ) O arguido não tem qualquer licença que lhe permitisse deter aquela arma e munições, não se inibindo, ainda assim de a adquirir e ter na sua posse.


26. O arguido atuou do modo descrito com o propósito de causar a morte ao ofendido, porquanto o instrumento usado, uma arma de fogo, os locais atingidos e as lesões provocadas revelavam-se idóneas para produzir a morte, como viria a acontecer.


27. (Não provado - STJ)


28. Em todas as condutas acima descritas, o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.


Das condições pessoais do arguido


29. AA é natural de ..., onde decorreu o seu processo de socialização e onde ainda reside a família de origem, a mãe e a irmã mais nova sendo que o falecimento do progenitor ocorreu quando o arguido tinha 11 anos de idade. Existia estabilidade do ponto de vista socioeconómico e relacional entre os vários elementos do agregado.


30. Completou o 12º ano de escolaridade iniciando aos 19 anos de idade o seu percurso laboral, como motorista na empresa Uber, realizando entregas para um restaurante, propriedade da sua mãe.


31. Iniciou um processo emigratório cerca dos 20 anos, idade em que veio para Portugal à procura de melhores condições de trabalho. Executava igualmente funções como motorista, na empresa Uber Eats e exercia funções havia um ano como empresário de motas (entregas, via internet, com plataformas Uber e Bolt) na W.. ........ .. Lda., empresa que estabeleceu em sociedade com dois amigos.


32. Realizam trabalhos de manutenção, recolha e entrega de motas mantendo-se a empresa ativa na atualidade.


33. No âmbito das duas atividades, auferia cerca de € 1800,00.


34. Em termos afetivos, iniciou um relacionamento ainda no Brasil, do qual nasceu uma filha, cuja rotura veio a ocorrer já durante a permanência do arguido em Portugal.


35. Em fevereiro de 2021, iniciou relacionamento com a atual companheira, com vivência marital na morada constante nos presentes autos.


36. Esta relação é descrita como positiva e gratificante, assente em laços de afetividade e suporte.


37. A companheira se encontra atualmente grávida de cinco meses.


38. Sem qualquer familiar a residir em Portugal, recebe visitas regulares da companheira e do cunhado beneficiando, também, do apoio da mãe da companheira.


39. O arguido regista os seguintes antecedentes criminais:


No processo n.º 875/20.7..., por sentença, de 26.12.2020, transitada em 17.01.2021, foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal na pena de 70 dias de multa à taxa diária de € 5,00.


No processo n.º 1381/20.5..., por sentença, de 23.06.2022, transitada em 07.07.2022, foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal na pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 5,00.


Dos pedidos de indemnização civil


40. HH é pai da vitima e teve um desgosto enorme com o falecimento do seu filho.


41. Tinha uma relação próxima do seu filho.


42. O demandante Centro Hospitalar ... é uma pessoa coletiva de direito público integrada no Serviço Nacional de Saúde;


43. Na sequência das lesões a que se alude nos pontos n.º 15, 16 e 17 foi prestada assistência hospitalar a BB no montante global de € 36 213,45. 2.2.


Factos não provados


Não se provou que:


a) A vítima remetesse e fizesse chegar ao arguido mensagens de teor ameaçador, designadamente que atentaria contra a sua vida e integridade física.


b) Nos dias antecedentes a 7 de julho de 2021, a vítima BB intensificou as suas ameaças ao arguido AA, umas vezes diretamente, outras por interposta pessoa.


c) II, JJ e KK, que chegaram quase de imediato ao local após ouvirem os disparos da arma de fogo, encaminharam a vítima para a sua viatura, de marca Honda, matrícula ..-ED-.. afim de o transportar ao Hospital.


Do PIC de HH


d) O valor de 50 mil reais em despesas de deslocação e funeral.


e) (Parte do nº5 anterior aditado pelo TRL: - “Dá-se como não provado que o arguido AA já tivesse ponderado tirar a vida ao BB, adquirindo a arma de fogo propositadamente para esse efeito.”


f) Aditado pelo STJ (parte do anterior ponto 25) que o arguido tenha adquirido tais objetos [arma e munições ] apenas para provocar a morte à vitima BB como viria a acontecer;


g) Aditado pelo STJ (anterior ponto 27 dos FP) que “Ao adquirir a arma para o efeito referido no ponto 26, o arguido refletiu sobre os meios que iria empregar na morte de BB adquirindo a mesma propositadamente para esse fim”.


9.2. O acórdão recorrido fundamenta a determinação concreta da pena em 11 anos de prisão, entre o mínimo de 8 e o máximo de 16 anos de prisão previstos no artigo 131º C. Penal, essencialmente na ponderação dos seguintes fatores, entre os referidos no art. 71º C.Penal que, não fazendo parte do tipo, depõem contra e a favor do arguido, respetivamente:


- Elevadas exigências de prevenção geral atendendo à repulsa e enorme censura que este tipo de crime causa na sociedade; os tiros foram disparados a cerca de 4 metros de distância do ofendido e a arma apontada a partes vitais do corpo, pelo que quer a ilicitude quer o dolo são elevados. Abandonou o local do crime sem prestar auxílio à vítima e só no dia seguinte se apresentou às autoridades policiais.


A favor do arguido: embora tenha fugido do local do crime, apresentou-se voluntariamente às autoridades e indicou o local onde havia escondido a arma e as munições, colaborando, assim, com a investigação e a sujeição do arguido a julgamento. Confessou a prática dos factos, embora a sua confissão face à evidência dos factos e da prova produzida apenas tenha um peso relativo. A “quase” ausência de antecedentes criminais e a integração pessoal e social do arguido, que o acórdão refere mencionando aspetos da vida pessoal, familiar, afetiva e profissional do arguido.


O acórdão recorrido alude à circunstância de os factos terem sido praticados de madrugada, o que não terá considerado circunstância desfavorável ao arguido na medida em que tal ocorreu por força da intervenção do ofendido que forçou a sua entrada na casa daquele.


9.3. Por sua vez, o MP recorrente invoca as seguintes circunstâncias relevantes para fundamentar a pretendida elevação da pena de 11 anos de prisão, que considera demasiado branda, entendendo que deve ser fixada mais próxima do limite máximo:


- Contra o recorrido, invoca o MP recorrente o grau de ilicitude e a gravidade do crime de homicídio e as suas consequências, ter sido a morte provocada pelo disparo de dois tiros a curta distância, o dolo direto, de elevada intensidade, não ter prestado auxílio à vitima, seu compatriota, a fuga do local e só no dia seguinte se ter apresentado às autoridades, a não demonstração da interiorização da gravidade da sua conduta.


- A favor do arguido, a circunstância de ter sido a vítima que entrou em casa do recorrido, após ter arrombado a porta depois de ter dado várias pancadas com uma faca e pontapés e se ter dirigido ao mesmo.


9.4. Vejamos.


9.4.1. Breves considerações de ordem geral.


Como é comumente considerado entre nós, de acordo com o chamado modelo de prevenção desenvolvido entre nós por F. Dias e Anabela Rodrigues, que se encontra acolhido, no essencial, no art. 40º do C. Penal após a revisão de 1995, “ Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção).Depois, no âmbito desta moldura, a medida da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e seguranças individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas”.- cfr Anabela Rodrigues, O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena privativa de liberdade in AAVV, Problemas fundamentais de Direito Penal-Homenagem a Claus Roxin, Universidade Lusíada-2002 p. 207.


De acordo com este modelo, a culpa, que opera como limite das necessidades de prevenção, sejam elas gerais ou especiais (“Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” - art. 40º nº2 do C.Penal), é a culpa do arguido pelo facto, pelo que a pena concreta não pode ultrapassar a medida correspondente e proporcional ao concreto ilícito típico praticado, sendo a medida da pena fornecida, em primeiro lugar, pelas exigências de prevenção geral positiva e, depois, pelas necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e seguranças individuais como referido.


A medida da pena concreta é, assim, decisivamente determinada pelos fatores relativos ao facto a que se reportam as diversas alíneas do art. 71º do C.Penal, segundo o qual deve o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra ele.

9.4.2. No caso concreto, mostra-se especialmente desfavorável ao arguido o grau de ilicitude do facto, derivado, sobretudo, da circunstância de aquele ter atirado sobre a vítima a curta distância, visando a cabeça e o tórax, o que, para além de revelar claramente que o arguido agiu com dolo direto, ou seja, com intenção deliberada de tirar a vida ao seu antagonista, fez aumentar, no plano objetivo, o potencial letal da sua conduta e diminuir, em todo o caso, as hipóteses de defesa da vítima.

A favor do arguido releva o seu comportamento posterior ao facto ilícito, ou seja, que o arguido se tenha entregue às autoridades policias no dia seguinte à prática do crime de homicídio e a sua colaboração com a investigação ao indicar onde escondera a arma; releva ainda a seu favor a forma como a vítima entrou em sua casa e se dirigiu a ele, pois apesar de não ter resultado provado que o arguido tenho agido movido por medo, a verdade é que o comportamento desta não pode ter deixado de contribuir para o despoletar do ato criminoso, dada a proximidade física entre ambos e a tensão que a factualidade provada reflete. No entanto, a este propósito importa considerar contra o arguido a conduta que este assumira pouco antes da prática dos factos, ao permanecer na rua, com uma arma pequena, a apontar para o ar e efetuar outro disparo, ao mesmo tempo que dizia “cadê o valentão”, pretendendo-se referir a BB, e continuando na direção da sua residência acompanhado da testemunha FF (ponto 4 dos FP). Com efeito, esta atitude do arguido, consciente da quezília que mantinha com a vítima há cerca de um ano (ponto 1 dos FP) e da eventual reação daquela, não pode dissociar-se da atitude da vítima imediatamente anterior à penetração em casa do arguido e dos disparos mortais subsequentes, agravando o desvalor da conduta criminosa do arguido, tanto do ponto de vista da ilicitude, como da culpa, aumentando, pois, as necessidades de prevenção geral positiva e, consequentemente, de resposta penal capaz de lhes dar satisfação.

Deste modo, tudo ponderado à luz do disposto no art. 71º C.Penal, decide-se elevar para 13 anos a pena de 11 anos de prisão aplicada pelo tribunal a quo pela prática do crime de homicídio simples p. e p. pelo artigo 131º do C. Penal, julgando-se, assim, procedente o recurso do MP nessa parte.

9.4.3. Reformulação da pena única.


Em face da medida da pena correspondente ao crime de homicídio simples p. e p. pelo art. 131º C.Penal, ora decidida, impõe-se reformular a pena única correspondente ao cúmulo jurídico a efetuar entre aquela pena e a pena de 2 anos de prisão aplicada ao arguido pela autoria de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, sendo de 15 anos o limite máximo da pena única aplicável e de 13 anos o seu limite mínimo, de acordo com o disposto no artigo 77º nº2 C. Penal.


Na medida da pena única são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido (art. 77º nº1 C. Penal), relevando particularmente no caso presente a relação que se estabelece entre o crime de detenção de arma proibida e o crime de homicídio, pois este último crime foi perpetrado com a arma de fogo ilicitamente detida, conforme resulta da factualidade provada. Releva ainda a personalidade do arguido tal como revelada pela factualidade provada, consideradas no seu conjunto, pois no quadro de uma quezília que mantinha com a vítima há cerca de um ano o arguido dispôs-se a adquirir e deter ilicitamente a arma de fogo e a manifestar-se agressivamente perante a vítima, acabando por tirar-lhe a vida num contexto próximo para o qual, objetivamente, contribuiu.


Posto isto, entende-se fixar a pena única em 14 anos de prisão.


10. Assim, em síntese:


- Rejeita-se o recurso interposto pelo arguido, AA;


- Procede-se oficiosamente à correção do acórdão do TRL relativamente à matéria de facto julgada prova e não provada, nos termos do artigo 380º CPP, conforme descrito nos pontos 8.4 e 9.1 do presente acórdão;


- Julga-se procedente o recurso interposto pelo MP, revogando-se o acórdão do TRL ora recorrido na parte em que aplicou ao arguido a pena de 11 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio p. e p. pelo art. 131º C. Penal, decidindo-se elevar a medida daquela pena para 13 anos de prisão e, consequentemente, reformular o cúmulo jurídico formado por aquela pena e a pena de 2 anos de prisão aplicada pelo crime de detenção de arma proibida, elevando a pena única de 12 para 14 anos de prisão.


III


dispositivo


11- Por todo o exposto, acorda-se na secção criminal do STJ em:


- Rejeitar o recurso interposto pelo arguido por ser o mesmo inadmissível, nos termos do artigo 420º nº1 b), condenando-se o arguido na importância de 3 UC nos termos do nº3 do citado art. 420º;


- Julgar procedente o recurso interposto pelo MP, decidindo-se condenar o arguido, AA, na pena 13 anos de prisão como autor de um crime de homicídio p. e p. pelo artigo 131º do C. Penal perpetrado na pessoa de BB e, em cúmulo jurídico com a pena de 2 anos de prisão aplicada ao arguido pela autoria de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido no artigo 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena única de 14 anos de prisão.


Sem custas


Supremo Tribunal de Justiça, 23 de novembro de 2023


Os Juízes Conselheiros


António Latas (Relator)


José Eduardo Sapateiro (Adjunto)


Agostinho Torres (Adjunto)