ALTERAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR
AMPLIAÇÃO DO PEDIDO
FACTOS COMPLEMENTARES
Sumário


I – Em face do que estatui o artigo 265.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, na ausência de acordo das partes, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceite pelo autor, e o pedido pode ser ampliado “até ao encerramento da discussão em 1.ª instância” mas apenas “se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo.”
II – A ampliação do pedido primitivo pode consistir na formulação de um pedido diverso, desde que tal pedido e o pedido primitivo tenham essencialmente causas de pedir integradas no mesmo complexo de factos.
III – A alegação de factos complementares não configura alteração da causa de pedir.
IV – Não havendo disposição legal que diretamente preveja sobre os critérios de interpretação das peças processuais, estas deverão ser interpretadas à luz dos comandos ínsitos nos artigos 236.º e 238.º do Código Civil.
V – Pretendendo os AA. o reconhecimento a seu favor do direito de propriedade sobre a totalidade de um prédio que identificaram, o qual foi cindido pela R. em dois novos prédios, deixando de existir com aquela identificação, o facto de terem formulado inicialmente o pedido por referência a um único desses novos artigos da matriz e registo, não obsta a que seja legalmente admissível a ampliação desse pedido ao outro prédio destacado daquele prédio inicial, porque estamos sempre perante a reivindicação do mesmo prédio, e consequentemente, perante caso de desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, consentido pelo artigo 265.º, n.º 2, do CPC.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral


Processo n.º 1755/22.7T8STB-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal[1]

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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I – Relatório
1. AA e BB, Autores nos autos em epígrafe identificados, em que é Ré CC, notificados do despacho proferido na Audiência Prévia, que rejeitou a admissão da ampliação do pedido que haviam apresentado por requerimento de 31.01.2023, e não se conformando com a referida decisão, apresentaram o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
«1) O presente recurso vem interposto do douto despacho a quo, de 18/05/2023, que indeferiu o requerimento de ampliação do pedido deduzido pelos AA. Ora,
2) O nº 2 do artigo 265º do CPC prescreve que “o autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo”.
3) A ampliação do pedido constitui o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo ”quando esse (novo) pedido esteja virtualmente contido no âmbito do pedido primeiramente deduzido, por forma a que pudesse tê-lo sido também aquando da petição inicial, sem a dedução de novos factos. Dito de outro modo, a ampliação do pedido constitui o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo, quando o pedido formulado esteja virtualmente contido no pedido inicial e na causa de pedir da ação, isto é, que dentro da mesma causa de pedir o pedido primitivo se modifique para mais.”. No caso sub judice,
4) A causa de pedir “radica essencialmente na propriedade sobre o imóvel descrito sob o nº ...7 e inscrito sob o artigo matricial ...7º...” (in pág. 7 do despacho, a quo, proferido em sede de audiência prévia) e, acrescentaríamos nós, na lesão desse direito. Ora,
5) Conforme alegado (cf. artigo 85º e ss da P.i. e doc. nº 49 junto com a P.i. e artigo 65º da Contestação e Doc. 13 da mesma peça) o prédio reivindicado pelos AA. (prédio descrito sob o nº ...7 da freguesia de São Lourenço, concelho de Setúbal e inscrito na matriz artigo matricial ...7º... da freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal), corresponde, hoje, a duas descrições prediais e inscrições matriciais, ou seja, deu origem a dois prédios distintos (prédio descrito sob o nº ...16, da freguesia de São Lourenço, concelho de Setúbal e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...09..., da freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal e prédio descrito sob o nº ...83, da freguesia de São Lourenço, concelho de Setúbal e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...10..., da freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal).
6) Sendo que, no pedido original, apenas foi feita menção a um dos prédios, no caso, o prédio descrito sob o nº ...16, da freguesia de São Lourenço, concelho de Setúbal e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...09..., da freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal.
7) Quando, de facto, a realidade material correspondente ao prédio reivindicado, está hoje cindida em 2 prédios.
8) Razão porque a demonstração probatória que os AA. farão dos factos alegados – que constituem a causa de pedir original – levará a que as consequências dessa procedência, reflectir-se-ão necessariamente na realidade do segundo prédio (descrito sob o nº ...83, da freguesia de São Lourenço, concelho de Setúbal e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...10..., da freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal), fruto da desanexação promovida pela R.
9) E, assim, sempre os pedidos, ora, formulados (na ampliação), relativos aos dois prédios, cabem virtual (e dir-se-ia, necessariamente) no pedido inicial, sem a necessidade de aduzir quaisquer factos adicionais. Ou seja,
10) Estamos perante uma situação em que os AA., com o mesmo quadro fáctico, poderiam ter formulado a sua pretensão ampliada, logo na petição inicial.
11) Sendo então, pois, consequência e desenvolvimento da pretensão original.
12) O que faz com que a ampliação, ora, requerida, seja enquadrada na previsão do nº 2 do artigo 265º do CPC e, consequentemente, admissível.
13) Razões porque o despacho, a quo, violou, assim, o disposto nos artigos 260º e nº 2 do 265º, ambos do Código de Processo Civil.
14) Razões porque deverá ser admitida a ampliação do pedido formulado pelos AA., revogando-se, consequentemente, o mesmo despacho, em conformidade.».

2. Não foram oferecidas contra-alegações.

3. Observados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. O objeto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[3], é pacífico que o objeto do recurso se limita pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, a única questão que importa decidir é a de saber se a deduzida ampliação do pedido deveria ter sido admitida.
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III – Fundamentos
III.1. – A tramitação processual relevante para apreciação do recurso é a seguinte:
1. Na petição inicial, os autores, invocando em síntese que «o acervo patrimonial de tais heranças, faz parte o prédio rústico, situado em “...”, sito na freguesia de S. Lourenço, do concelho de Setúbal, descrito na 1ª Conservatória sob o nº ...7 e inscrito na respectiva matriz predial rústica artigo matricial ...7º...», com a área de 24.500m2[4], que descreveram, alegando que desde 1957 sempre usaram e fruíram o referido prédio, de forma ininterrupta; e que a Ré, «de forma consciente e dolosa, iniciou um processo junto da Câmara Municipal de Setúbal, em 8 de Outubro de 2021, (…) visando a desanexação de uma parte urbana e onde cede, simultaneamente, para domínio público, uma parte do imóvel, o que concretizou, através da alteração vertida no Registo Predial, no início de 2022», formularam a seguinte pretensão:
«a) A R. condenada no reconhecimento de que o prédio, ora, identificado com o artigo 11709º-P, da freguesia de S. Lourenço, Setúbal, actualmente, correspondente à descrição nº ...16 da freguesia de São Lourenço, Setúbal, da 1ª Conservatória do Registo Predial, faz parte do acervo patrimonial das heranças indivisas abertas por óbito de DD e EE;
b) Restituir tal prédio totalmente livre e devoluto aos acervos hereditários referenciados, de molde a que o mesmo seja partilhado;
c) A R. condenada na abstenção da prática de qualquer acto próprio de um proprietário e, nomeadamente, que impeça ou diminua a disponibilidade de tal prédio;
d) Ordenada a actualização registral do prédio descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o nº ...7, da freguesia de São Lourenço, concelho de Setúbal, com a inclusão da inscrição matricial nº ...09..., em face da efectiva correspondência;
e) Ordenado o cancelamento da inscrição a favor da R. do prédio correspondente ao artigo matricial nº ...09..., e, concomitantemente, ordenada a devida correcção do artigo matricial do prédio propriedade da R., descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o nº ...16, da freguesia de São Lourenço, concelho de Setúbal, anteriormente, correspondente ao artigo ...00º (rústico)».
2. Por seu turno, nos artigos 42.º, 56.º e 65.º da contestação a Ré invocou que «no final da década de ’70 do século passado, com a introdução do cadastro geométrico dos prédios rústicos, o antigo artigo 200.º foi substituído pelo artigo 77.º da secção “B”; a R. procedeu ao destaque de duas parcelas destinadas a construção urbana – Cf. Doc. 11 (informação técnica da Câmara Municipal de Setúbal); após mais de 2 anos de esforços intensivos junto dos serviços camarários e tributários, a R. conseguiu o destaque do artigo matricial ...7º... em duas parcelas – Cf. Doc. 13 (notificações da A.T.)».
3. Estas notificações da Autoridade Tributária respeitam à avaliação efetuada aos terrenos para construção, inscritos na matriz predial urbana sob o artigo ..., com “área total do terreno” de 13002,0000m2, e ..., com “área total do terreno” de ...,000m2, encontrando-se nas mesmas a referência a 19.11.2021, comos sendo a “data de passagem a urbano”.
4. Em fundamento da deduzida ampliação do pedido, os Autores invocaram que:
«A pretensão dos AA. assenta, na sua origem, na invocação (e reconhecimento) do Direito de propriedade do prédio inscrito na matriz predial, artigo matricial ...7º..., freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal, que a partir de Dezembro de 2010, sem qualquer razão justificativa, passou a corresponder à descrição ...16º, propriedade da R. (cf. artigo 55º e ss da P.i.).
Quando, na realidade, corresponde à descrição ...77º da freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal, titularidade dos AA..
Sucede que, tal como alegado (cf. artigo 85º e ss), a R., entretanto, iniciou (e concluiu) um processo junto da Câmara Municipal de Setúbal, visando a desanexação de uma parte urbana, criando outro(s) artigo(s).
Desse modo, a R. criou uma realidade fictícia, onde surge, agora, como proprietária do prédio descrito sob o nº ...16, freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal, agora, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...09....
E também, do prédio descrito sob o nº ...83, freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...10..., conforme consta da desanexação referenciada na descrição nº ...16. (cf. Doc. nº 1)
Ou seja, o prédio inscrito, anteriormente, artigo matricial ...7º..., de que o A., na qualidade invocada, invoca ser propriedade das identificadas heranças, deu origem a dois prédios, com artigos distintos.
Como se evidencia, por ex., somando as áreas constantes dos 2 registos e comparando com a área do prédio original, propriedade das duas heranças (13.002,00 m2 + 10.582,00 m2 + 916,00 m2 para domínio público = 24.500,00 m2).
Tendo o artigo 77º-B, com a configuração anterior, deixado de existir».
5. Foi realizada audiência prévia no dia 18.05.2023 e, no seu decurso, após a súmula das pretensões deduzidas e o devido enquadramento legal, a Sr.ª Juíza proferiu o despacho recorrido, com o seguinte teor:
(…) «No caso em apreço, a alteração pretendida pelo A. AA consiste em ser:
a) A R. condenada no reconhecimento de que o prédio, ora, identificado com o artigo 11709-P, da freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal, correspondente à descrição nº ...16 da freguesia de São Lourenço, concelho de Setúbal, da 1ª Conservatória do Registo Predial, faz parte do acervo patrimonial das heranças indivisas abertas por óbito de DD e EE;
b) A R. condenada no reconhecimento de que o prédio, ora, identificado com o artigo ...10-P, da freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal, correspondente à descrição nº ...83 da freguesia de São Lourenço, concelho de Setúbal, da 1ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal, faz parte do acervo patrimonial das heranças indivisas abertas por óbito de DD e EE;
c) A R. condenada a restituir tais prédios totalmente livres e devolutos aos acervos hereditários referenciados, de molde a que os mesmos sejam partilhados;
d) A R. condenada na abstenção da prática de qualquer acto próprio de um proprietário e, nomeadamente, que impeça ou diminua a disponibilidade de tais prédios;
e) Ordenado o cancelamento da inscrição de propriedade a favor da R. do prédio descrito sob o nº ...16, da freguesia de São Lourenço, concelho de Setúbal, da 1ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal, e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...09..., da freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal;
f) Ordenado o cancelamento da inscrição de propriedade a favor da R. do prédio descrito sob o nº ...83, da freguesia de São Lourenço, concelho de Setúbal, da 1ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal, e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...10..., da freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal; e a consequente inscrição registral nos prédios descritos sob os nºs ...16 e ...83 da freguesia de São Lourenço, da 1ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal, da propriedade a favor das heranças indivisas abertas por óbito de DD e EE, efectivas proprietárias de tais prédios.
g) Ordenada a(o) eliminação / cancelamento da descrição ...77º, da freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal (1ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal), actualmente, titularidade dos AA.;
h) Ordenada a abertura de nova descrição, do prédio, propriedade da R., anteriormente, correspondente ao artigo ...00º (rústico);
E ainda,
SUBSIDIARIAMENTE e caso não sejam considerados procedentes os pedidos supra elencados, ser:
a) Anulada a actualização e a desanexação das descrições nºs ...16 e ...83, da freguesia de São Lourenço, concelho de Setúbal, da 1ª Conservatória do Registo Predial, ora, correspondentes aos artigos 11709-P e ...10-P, da freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal, com as devidas consequências registrais;
b) Confirmado / declarado que o artigo matricial ...7... da freguesia de São Lourenço, concelho de Setúbal, corresponde à descrição nº ...77 da mesma freguesia e concelho, com consequente exclusão de quaisquer outras descrições;
c) Ordenada a concomitante correcção na correspondência matricial com a descrição nº ...16, da freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal, repondo-se o averbamento do artigo ...00º rústico;
d) A R. condenada no reconhecimento de que o prédio descrito sob o nº ...7 da freguesia de São Lourenço, concelho de Setúbal, da 1ª Conservatória do Registo Predial, correspondente ao artigo matricial ...7... da freguesia de São Lourenço, concelho de Setúbal, faz parte do acervo patrimonial das heranças indivisas abertas por óbito de DD e EE;
e) A R. condenada a restituir tal prédio totalmente livre e devoluto aos acervos hereditários referenciados, de molde a que o mesmo seja partilhado;
f) A R. condenada na abstenção da prática de qualquer acto próprio de um proprietário e, nomeadamente, que impeça ou diminua a disponibilidade de tal prédio.
A tal ampliação do pedido opôs-se a Ré, dizendo que por via da ampliação do pedido, pretendem os AA., em suma, reclamar mais um artigo matricial, o ...10-P, o que é processualmente inadmissível, só o podendo ser admitida a ampliação do pedido se e na medida em que tal ampliação já esteja, de alguma forma, virtualmente contida no pedido originalmente formulado, sendo que os factos a que os AA. fazem alusão no requerimento apresentado para ampliação do pedido, reportam-se a um facto que os AA. já conheciam à data em que apresentaram a petição inicial e que poderiam ter invocado atempadamente, pois nessa data já os AA. tinham conhecimento da desanexação do prédio ...83, onde se insere o artigo ...10-P, mas deixaram-no de fora do seu pedido primitivo, pelo que não constitui o desenvolvimento do pedido inicialmente formulado.
De facto, analisando o pedido que o A. ora pretende que seja aditado, por confronto com o inicialmente apresentado na petição inicial, não se pode considerar que se trata do desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo, antes se trata de um novo pedido, desta vez, relativo ao artigo ...10-P, da freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal, correspondente à descrição nº ...83 (para além de uma espécie de correção do pedido inicial, no que se refere ao artigo matricial nº ...09...), pedido este que já podia e devia ter formulado na Petição Inicial
Assim, não constituindo o pedido apresentado pelo A. em 31/01/2023, o desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, tal ampliação do pedido é inadmissível, nos termos do n.º 2 do art.º 265.º do CPC, pelo que não se admite a mesma».
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III.2. – O mérito do recurso
Insurgem-se os Apelantes defendendo que «com o mesmo quadro fáctico, poderiam ter formulado a sua pretensão ampliada, logo na petição inicial», em síntese, porque «a causa de pedir “radica essencialmente na propriedade sobre o imóvel descrito sob o nº ...7 e inscrito sob o artigo matricial ...7º...” (in pág. 7 do despacho, a quo, proferido em sede de audiência prévia) e, acrescentaríamos nós, na lesão desse direito. Ora, conforme alegado (cf. artigo 85º e ss da P.i. e doc. nº 49 junto com a P.i. e artigo 65º da Contestação e Doc. 13 da mesma peça) o prédio reivindicado pelos AA. (prédio descrito sob o nº ...7 da freguesia de São Lourenço, concelho de Setúbal e inscrito na matriz artigo matricial ...7º... da freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal), corresponde, hoje, a duas descrições prediais e inscrições matriciais, ou seja, deu origem a dois prédios distintos (prédio descrito sob o nº ...16, da freguesia de São Lourenço, concelho de Setúbal e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...09..., da freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal e prédio descrito sob o nº ...83, da freguesia de São Lourenço, concelho de Setúbal e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...10..., da freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal). Sendo que, no pedido original, apenas foi feita menção a um dos prédios, no caso, o prédio descrito sob o nº ...16, da freguesia de São Lourenço, concelho de Setúbal e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...09..., da freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal, quando, de facto, a realidade material correspondente ao prédio reivindicado, está hoje cindida em 2 prédios».
Consideram, por isso, os Recorrentes que a requerida ampliação do pedido, é consequência e desenvolvimento da pretensão original.
Apreciando.
A pretensão deduzida pelos autores, configura uma exceção ao princípio da estabilidade da instância consagrado no artigo 260.º do CPC, de acordo com cuja formulação “citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas ao pedido e à causa de pedir, salvo as possibilidades de modificação consignadas na lei”. Tratando-se de uma exceção, colocam-se «dois limites à ampliação: um limite de tempo e um limite de qualidade ou de nexo»[5], sendo este último o único que ao caso em presença importa.
Não estando em causa situação reconduzível a modificação subjetiva, as “possibilidades de modificação consignadas na lei” que o aludido artigo 260.º do CPC ressalva, encontram-se previstas nos artigos 264.º e 265.º da mesma codificação, quanto às alterações do pedido e da causa de pedir.
In casu, não havendo acordo entre as partes quanto à pretendida alteração[6], rege o artigo 265.º do CPC, o qual, na parte que releva considerar dispõe:
“1 - Na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceite pelo autor, devendo a alteração ou ampliação ser feita no prazo de 10 dias a contar da aceitação.
2 - O autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo. (...)”.
Assim, em face do que estatui o mencionado artigo 265.º, n.ºs 1 e 2, do CPC vigente, na ausência de acordo das partes, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceite pelo autor, e o pedido pode ser ampliado “até ao encerramento da discussão em 1.ª instância” mas apenas “se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo.”
Com efeito, diversamente do que acontecia no regime pretérito, no qual era admissível a possibilidade da livre alteração ou ampliação do pedido e da causa de pedir quando havia lugar à apresentação de réplica, o regime decorrente do Código de Processo Civil de 2013 é mais restritivo quando as partes não concordam com a modificação da instância, como acontece na situação em presença.
Na espécie, a possibilidade de alteração da causa de pedir e de ampliação do pedido, prevenida no n.º 1 do preceito, fica desde logo afastada porquanto, ainda que se considerasse “confissão” a alegação apresentada pela Ré de que efetuou «o destaque do artigo matricial ...7º... em duas parcelas», os autores não se manifestaram no sentido de a aceitar como confissão.
Vejamos, pois, se a pretensão formulada encontra acolhimento no n.º 2 do preceito, por ser “o desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo”.
Como vimos, a julgadora, sufragando o entendimento expresso pela Ré, concluiu que «não se pode considerar que se trata do desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo, antes se trata de um novo pedido, desta vez, relativo ao artigo ...10-P, da freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal, correspondente à descrição nº ...83 (para além de uma espécie de correção do pedido inicial, no que se refere ao artigo matricial nº ...09...), pedido este que já podia e devia ter formulado na Petição Inicial».
Cotejando o pedido inicialmente deduzido – de reconhecimento do direito de propriedade, de restituição do prédio e de abstenção da prática de qualquer ato próprio de proprietário, relativamente ao prédio identificado com o artigo 11709-P –, com o pedido formulado no requerimento apresentado não só concernente àquele prédio como ao identificado sob o artigo ...10..., com as inerentes consequências no registo predial e na matriz cadastral, vemos que os Autores adicionaram ao pedido inicialmente formulado novas alíneas para acomodarem essas pretensões, e deduziram o pedido subsidiário transcrito no despacho recorrido, este com o fundamento que «atento os factos alegados, consubstanciadores da causa de pedir, susceptíveis de conduzirem a entendimento diverso sobre as suas consequências jurídicas, importa, de igual modo, formular, cautelarmente, um pedido subsidiário, nos termos e para os efeitos do artigo 554º do CPC».
Será que, por os AA. se reportarem ao pedido de reconhecimento do direito de propriedade e consequente restituição, por referência a dois artigos matriciais diferentes, estamos mesmo perante a formulação de um novo pedido?
Sustentam os Apelantes que a ampliação do pedido, incluindo do pedido subsidiário que pretendem deduzir, é legalmente admissível, nos termos do artigo 265.º, n.º 2, do CPC, porque estamos perante caso de desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo.
Cremos que no caso em presença têm razão.
Vejamos.
A doutrina tem densificado o que deve entender-se por «desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo».
ALBERTO DOS REIS[7] sublinha que «a ampliação há-de estar contida virtualmente no pedido inicial», e ilustra com exemplos do que sejam casos de «consequência» e de «desenvolvimento» do pedido inicialmente formulado. Assim, são exemplos característicos de casos que constituem uma consequência do pedido primitivo aqueles em que «pediu-se, em acção de reivindicação, a entrega do prédio; pode mais tarde fazer-se a ampliação, pedindo-se também a entrega dos rendimentos produzidos pelo prédio durante a ocupação ilegal… Pediu-se a restituição da posse de um prédio; pode, depois, em ampliação, pedir-se a indemnização das perdas e dos danos causados pelo esbulho». Prossegue o Ilustre Autor afirmando que «em vez de ser uma consequência, pode ser um desenvolvimento. Pediu-se o pagamento de uma dívida; pode depois alegar-se que a dívida vencia juros e pedir-se o pagamento destes». Outros casos, porém, não são tão evidentes. Veja-se a possibilidade referida em nota de rodapé, quando menciona que «Sob a fórmula aludida parece caberem ainda os casos de adjunção de pedidos que resultem da substituição dum pedido singular por pedidos alternativos ou subsidiários, pois que também estas ampliações representam o desenvolvimento do pedido primitivamente enunciado, Andrade, Lições, pág. 414».
J. DE CASTRO MENDES e M. TEIXEIRA DE SOUSA[8], depois de advertirem que esta previsão exige um exame mais atento, pois comporta os casos: i) de desenvolvimento do pedido inicial onde se integram «as situações em que o pedido primitivo se altera em termos quantitativos», e ii) os que são uma consequência do pedido primitivo, onde se enquadram “as situações em que o novo pedido é qualitativamente distinto do pedido inicial”, dando exemplos, enfatizam que «[o] que é necessário é que o pedido cumulado ou a ampliação sejam desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo e que, por conseguinte, tenham essencialmente origem comum, ou seja, causas de pedir, senão totalmente idênticas, pelo menos integradas no mesmo complexo de factos».
Pode, portanto, a ampliação do pedido primitivo consistir na formulação de um pedido diverso. «Ponto é que tal pedido e o pedido primitivo tenham essencialmente causas de pedir, senão totalmente idênticas, pelo menos integradas no mesmo complexo de factos»[9].
Com relevância para a compreensão do que seja a integração no mesmo complexo de factos, ALBERTO DOS REIS[10] esclarece que: «para se distinguir nitidamente a espécie “cumulação” da espécie “ampliação” há que relacionar o pedido com a causa de pedir. A ampliação pressupõe que, dentro da mesma causa de pedir, a pretensão primitiva se modifica para mais; a cumulação dá-se quando a um pedido, fundado em determinado ato ou facto, se junta outro, fundado em ato ou facto diverso.».
A respeito da identidade da causa de pedir, sintetizou-se no Acórdão da Relação do Porto de 20.09.2021[11], com respaldo na doutrina citada, que «este elemento objectivo da instância é composta pelo acervo de factos constitutivos da situação jurídica que a parte, através do pedido, quer fazer valer em juízo, isto é, pelos factos essenciais à procedência do pedido, sendo essenciais aqueles factos sem cuja verificação o pedido não pode ser julgado procedente.
No entanto, como sublinha MARIANA FRANÇA GOUVEIA – que afasta um conceito unitário de causa de pedir, defendendo serem quatro as noções de causa de pedir operativas no processo civil português –, na definição de causa de pedir para efeito de alteração desse elemento objetivo “deve atender-se a um conceito amplo”[5[12]], nos termos do qual somente haverá alteração da causa petendi se os novos factos alegados não coincidirem com os factos (essenciais ou principais) constitutivos da pretensão material originariamente alegada. Registando-se essa coincidência não poderá, com propriedade, falar-se em alteração da causa de pedir, na medida em que os factos inicialmente constitutivos se mantêm como elemento de fundamentação do pedido.
Portanto, desde que se mantenha esse núcleo essencial não pode deixar de se entender que a causa de pedir não é alterada por uma alegação de factos que apenas complementem ou constituam desenvolvimento dos factos (essenciais) já anteriormente articulados».
Revertendo este enquadramento ao caso concreto em presença – e não olvidando ainda que não havendo disposição legal que diretamente preveja sobre os critérios de interpretação das peças processuais, estas deverão ser interpretadas à luz dos comandos ínsitos nos artigos 236.º e 238.º do Código Civil[13] –, cremos que, de harmonia com tais cânones interpretativos, dúvidas não existem de que, tal como afiançam no requerimento apresentado, «a pretensão dos AA. assenta, na sua origem, na invocação (e reconhecimento) do Direito de propriedade do prédio inscrito na matriz predial, artigo matricial ...7º..., freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal».
E que prédio era este?
O que descreveram nos artigos 4.º a 7.º da petição inicial quando alegaram que «Do acervo patrimonial de tais heranças, faz parte o prédio rústico, situado em “...”, sito na freguesia de S. Lourenço, do concelho de Setúbal, descrito na 1ª Conservatória sob o nº ...7 e inscrito na respectiva matriz predial rústica artigo matricial ...7º... (…), composto de pinhal, tem como confrontação a Norte, FF, a Sul, GG, a Nascente, caminho público e a Poente, HH e II, com uma forma característica em “L”, como consta, v.g., da caderneta predial de 1981 (cf. Doc. nº 7), e de uma planta topográfica, obtida na actualidade, no site da Direcção Geral do Território. (cf. Doc. nº 8).
Como é entendimento de há muito sedimentado, a alegação factual inserta no petitório pode ser complementada com os documentos apresentados, relevando aqui considerar a indicada caderneta predial junta pelos AA. como documento n.º 7, onde o prédio ...7 da secção B consta identificado com uma área total de 24.500m2, e com a planta desenhada em forma de “L”.
Foi este concreto prédio rústico (mais descrito quanto aos seus antecedentes nos artigos 45.º a 50.º da p.i.) que os AA. alegaram nos artigos 8.º a 26.º da petição inicial ter sido adquirido pelos seus antecessores, não só pela forma derivada – partilha após dissolução e liquidação da sociedade em 1957 – mas também através da aquisição originária, por usucapião, posição a que sucederam juntamente com os restantes herdeiros (entretanto habilitados).
Mais invocaram que, em 2014, vieram a tomar conhecimento que esse prédio estava desbastado, e que na sequência de diligências que efetuaram, a ré apresentou certidão permanente referente a um prédio que consta como estando inscrito na matriz nº ...7..., da freguesia de S. Lourenço, e que, ainda que com a mesma área, se encontra(va) descrito sob o n.º ...16 e tinha no registo, como composição e confrontações, “parcela de terreno composta de vinha e oliveiras, Norte, estrada; Sul, JJ; Nascente, estrada pública; Poente, KK”. (cf. Docs. n.º 31 e 38). Porém, prosseguem, o imóvel propriedade da R., sempre correspondeu ao artigo ...00º, conforme consta da aquisição do terreno, em 29 de novembro de 1973, por LL, à data descrito sob o n.º ...68, mas já com aquela correspondência matricial, conforme consta da escritura de doação efetuada à Ré em 10 de dezembro de 2010, quando o imóvel já se encontrava descrito sob o n.º ...16 (cf. Doc. n.º 39). Contudo – acrescentam –, mercê de uma incompreensível e arbitrária alteração do artigo matricial efetuada no Serviço de Finanças – Lisboa 1, em 13/12/2010 (3 dias após a escritura em que o prédio correspondia ao artigo ...00º), aquando da liquidação do imposto de selo, referente a tal doação (cf. Doc. n.º 40), viria a ser atualizada, erroneamente, no mesmo Serviço de Finanças, uma Caderneta Predial com o referido artigo 77º-B, correspondente à descrição ...16º, cuja titular era a R.. (cf. Doc. n.º 41). Pormenorizando outros alegados acontecimentos, os AA. concluem que «tal alteração matricial, ou consubstanciou um mero lapso, posteriormente aproveitado pela R., que, como tal, deveria ter sido rectificado, ou consubstanciou, desde logo, um procedimento fraudulento que, no que tange à inscrição, também levará, necessariamente, à propugnada rectificação» (cfr. artigos 51.º a 68.º e, quanto a mais razões para a retificação da matriz, até ao artigo ...4.º).
Mais adiante (artigos 85.º a 92.º), os Autores aduzem ainda que a Ré «De forma consciente e dolosa, iniciou um processo junto da Câmara Municipal de Setúbal, em 8 de Outubro de 2021, depois de ter conhecimento das diligências dos AA. e restantes herdeiros, visando a desanexação de uma parte urbana e onde cede, simultaneamente, para domínio público, uma parte do imóvel. O que concretizou, através da alteração vertida no Registo Predial, no início de 2022.
Desse modo, conseguiu que a anterior descrição nº ...16 da freguesia de S. Lourenço (propriedade das referidas heranças indivisas), que, originalmente, tinha a composição e confrontações referidas em 34º, fosse actualizada, passando a “parcela de terreno destinado a construção urbana - Norte: Rua ... e Art.º 76 da seccão B - Sul: JJ - Nascente: Estrada Pública - Poente: Rua ..., ..., da freguesia de S. Lourenço, com 10.582,00m2 e cedida a área de 916,00m2 para Domínio Público (Rua ...)”. (cf. Doc. nº 49). A que corresponde o artigo 11709º-P da matriz predial urbana, da freguesia de São Lourenço. Furtando, assim, ao crivo das diligências em curso, a reposição da descrição do (seu) prédio descrito sob o nº ...16, com o artigo matricial correcto. E, pelo contrário, fazendo, assim, corresponder, de facto, o prédio pertencente às heranças indivisas identificadas, à descrição da R. (artigo 5316º)».
Com efeito, aquando da alegação efetuada na petição inicial, os Autores fizeram já menção à desanexação do prédio ...83, mas não extraíram daí a dedução da pretensão que vieram a formular no requerimento atravessado para ampliação do pedido, com a justificação de que, «tal como alegado (cf. artigo 85º e ss), a R., entretanto, iniciou (e concluiu) um processo junto da Câmara Municipal de Setúbal, visando a desanexação de uma parte urbana, criando outro(s) artigo(s)», alegação que já vimos ter suporte nos indicados artigos da contestação.
Na verdade, a pretensão deduzida pelos AA. na presente ação ancora-se no alegado direito de propriedade sobre o identificado prédio rústico inscrito na matriz sob o nº ...7 da secção B, e descrito na CRP sob o nº ...7, com a referida localização, configuração e área. É certo que na petição inicial os AA. disseram que, mercê da atuação da Ré, tal prédio correspondia agora ao prédio descrito sob o nº ...16, freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal, agora, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...09..., afirmando agora que corresponde também, ao prédio descrito sob o nº ...83, freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...10..., conforme consta da desanexação referenciada na descrição nº ...16. (cf. Doc. nº 1) Ou seja, o prédio inscrito, anteriormente, artigo matricial ...7º..., de que o A., na qualidade invocada, invoca ser propriedade das identificadas heranças, deu origem a dois prédios, com artigos distintos. Como se evidencia, por ex., somando as áreas constantes dos 2 registos e comparando com a área do prédio original, propriedade das duas heranças (13.002,00 m2 + 10.582,00 m2 + 916,00 m2 para domínio público = 24.500,00 m2).
Tendo o artigo 77º-B, com a configuração anterior, deixado de existir»
Como é bom de ver, tanto o pedido atinente ao reconhecimento do direito de propriedade, com todas as demais consequências, pedidas também sobre o prédio ...10..., e a dedução do pedido subsidiário, decorrente da extinção registral e matricial do prédio com o artigo ...7.º-B, mais não são do que o desenvolvimento dos pedidos inicialmente formulados, visando que a reivindicação corresponda à totalidade do prédio que, desde a petição inicial, os AA. identificaram como sendo o pertencente à herança e cuja restituição pretendem.
Efetivamente, basta a alegação dos factos indicados, que não são novos factos essenciais, com a virtualidade de por si mesmos fundarem a ação (esses são os relativos à aquisição derivada e por usucapião), mas antes factos meramente complementares ou concretizadores daqueles primitivamente alegados[14], não devendo olvidar-se que nas decisões dos tribunais deve «ser tida em conta, não só a alegação factual explícita, como também a implícita»[15].
Ora, esta alegação de factos complementares não configura alteração da causa de pedir, que se mantém a mesma, tal como, aliás, foi afirmado no despacho recorrido. A causa de pedir “radica essencialmente na propriedade sobre o imóvel descrito sob o nº ...7 e inscrito sob o artigo matricial ...7º...”. Mas, assim sendo, e atenta a alegação efetuada por ambas as partes, então estamos ainda perante factos concretizadores dos essenciais alegados, que não extravasam o objeto da causa, já que «são complementares ou concretizadores os factos essenciais não alegados pertencentes à relação jurídica material», mas que importam à justa composição do litígio.
Trata-se, pois, de caso em que o pedido ampliado se encontrava já contido dentro da mesma causa de pedir, ou seja, de situação em que podia ter sido formulado aquando da petição inicial, sendo o desenvolvimento do pedido primitivo, na medida em que este tem implícito o reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio de onde vieram a derivar dois outros.
Com efeito, «por desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo deve considerar-se um pedido que esteja contido no âmbito do pedido primeiramente deduzido, de molde a que pudesse tê-lo sido também aquando da petição inicial, sem a dedução de novos factos, quer dizer a ampliação há de estar contida virtualmente no pedido inicial, consubstanciando um acrescento/desenvolvimento do pedido inicial, mantendo com este total conexão»[16].
In casu, existe uma expansão da pretensão primitivamente deduzida.
Aliás, conforme bem notaram os Apelantes, «dificilmente se conceberia como é que o reconhecimento da propriedade original do prédio correspondente ao artigo 77º-B, deixaria de se reflectir, obrigatoriamente, na propriedade da actual descrição nº 83 e inscrição matricial nº ...10..., que resultam, exclusivamente, daquele prédio».
Deste modo, constatando-se que no pedido original apenas foi feita menção ao prédio descrito sob o n.º ...16, da freguesia de São Lourenço, concelho de Setúbal e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...09..., da freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal, quando, de harmonia com a alegação efetuada pelos AA. e admitida nessa parte pela R. (ainda que afirmando ser sua a propriedade sobre esse mesmo prédio ...7...), a realidade material correspondente ao prédio reivindicado, está hoje cindida em 2 prédios, aquele já primitivamente identificado, e o segundo prédio (descrito sob o n.º ...83, da freguesia de São Lourenço, concelho de Setúbal e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...10..., da freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal), fruto da desanexação promovida pela R., temos de concluir que estamos perante um mesmo complexo de factos essenciais que fundamentam o pedido inicial, e que os pedidos ampliado e subsidiário, têm uma mesma causa de pedir, uma origem comum, sendo a consequência desta, e o desenvolvimento daquele pedido primitivo.
Assim, pretendendo os AA. o reconhecimento a seu favor do direito de propriedade sobre a totalidade de um prédio que identificaram, o qual foi cindido pela R. em dois novos prédios, deixando de existir com aquela identificação, o facto de terem formulado inicialmente o pedido por referência a um único desses novos artigos da matriz e registo, não obsta a que seja legalmente admissível a ampliação desse pedido ao outro prédio destacado daquele prédio inicial, porque estamos sempre perante a reivindicação do mesmo prédio, e consequentemente, perante caso de desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, consentido pelo artigo 265.º, n.º 2, do CPC.
Impõe-se, portanto, a procedência do presente recurso, revogando-se o despacho recorrido, e admitindo-se a ampliação do pedido formulado pelos AA. no requerimento apresentado em 31.01.2023.
Vencida, a Apelada suporta as custas recursivas, na vertente de custas de parte, atento o princípio da causalidade, e o vertido nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do CPC.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação, na procedência da apelação, em revogar o despacho recorrido, admitindo a ampliação do pedido formulado pelos AA. no requerimento apresentado em 31.01.2023.
Custas pela Apelada.
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Évora, 12 de outubro de 2023
Albertina Pedroso [17]
José António Moita
José António Penetra Lúcio

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[1] Juízo Central Cível de Setúbal – Juiz 2.
[2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.º Adjunto: José António Moita; 2.º Adjunto: José António Penetra Lúcio.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC.
[4] Cuja retificação pediram para passar a constar a área de 28.470m2.
[5] Cfr. ALBERTO DOS REIS, in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3.º, COIMBRA EDITORA, LIM., COIMBRA 1946, pág. 92.
[6] Inversamente, havendo acordo das partes o autor pode proceder à modificação simultânea do pedido e da causa de pedir mesmo que tal modificação conjunta implique convolação para relação jurídica diversa da inicialmente controvertida. “O legislador entende, pois, que o acordo das partes legitima a instauração de uma ação diferente da inicial, na pendência da primitiva, e admite-o na medida em que, pese embora a diversidade de objetos de uma e outra ação, haverá sempre nessas situações elementos factuais e processuais comuns a aconselharem o aproveitamento do até aí praticado em homenagem ao princípio da economia processual” – cfr. Ac. TRC de 26.01.2021, proferido no processo n.º 5362/18.0T8CBR-B.C1, disponível em www.dgsi.pt, sítio onde se encontram acessíveis a demais jurisprudência doravante referida sem menção de outra fonte.
[7] Obra citada, pág. 93.
[8] In MANUAL DE PROCESSO CIVIL, VOLUME I, AAFDL EDITORA, Lisboa 2022, págs. 462 e 463.
[9] Cfr. Ac. TRE de 10.10.2019, processo n.º 38/18.1T8VRL-A.E1.
[10] In Obra citada, pág. 94.
[11] Proferido no processo n.º 14456/18.1T8PRT.P2.
[12] In A causa de pedir na ação declarativa, Almedina, 2004, págs. 308-311, escrevendo, mais adiante (pág. 508), “haverá alteração da causa de pedir apenas quando nenhum dos novos factos principais já tiver sido alegado. E, ao contrário, não haverá alteração quando pelo menos um desses factos principais seja comum aos alegados originariamente e aos alegados em sua alteração”.
[13] Doravante abreviadamente designado CC.
[14] A respeito do que sejam factos complementares, pode ver-se a doutrina indicada na nota de rodapé 6 do citado Acórdão do TRP de 20.09.2021, ali sintetizados nos seguintes termos: “são factos complementares os completadores de uma causa de pedir complexa, ou seja, uma causa de pedir aglutinadora de diversos elementos, uns constitutivos do seu núcleo primordial, outros complementando aquele. Por seu turno, os factos concretizadores têm por função pormenorizar ou explicitar o quadro fáctico exposto, sendo essa pormenorização dos factos anteriormente alegados que se torna fundamental para a procedência da ação”.
[15] Cfr. Ac. STJ de 04-06-2015, Revista n.º 177/04.6TBRMZ.E1.S1 - 2.ª Secção.
[16] Cfr. citado acórdão do TRP de 20.09.2021.
[17] Texto elaborado e revisto pela Relatora, e assinado eletronicamente pelos juízes desembargadores que compõem esta conferência.