CONTRATO PARA PESSOA A NOMEAR
ARRENDAMENTO RURAL
COMODATO
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
Sumário


I – O julgamento de mérito ou de fundo no despacho saneador só pode ocorrer quando o processo fornece já os elementos suficientes para que o litígio em causa possa ser decidido com segurança, ou seja, quando não existe prova a produzir quanto a factos essenciais para a decisão da causa.
II – In casu, a questão de direito condiciona determinantemente a questão de facto, sendo inútil produzir qualquer prova quanto aos factos invocados na petição inicial que foram indicados pela Apelante nas alegações de recurso, porquanto, tal como a autora conformou a relação material controvertida, os autos contêm todos os elementos que importam à decisão da causa, sem necessidade da produção de prova adicional.
III – Com efeito, independentemente da qualificação jurídica que a conformação dada pelos outorgantes aos acordos subscritos pudesse acolher (contrato de arrendamento rural vs contrato de compra e venda de pastagens e comodato), não é a Autora a titular dos direitos que do seu incumprimento pudessem advir, mas sim, o seu sócio.
IV – Na realidade, pese embora o acordo em questão se enquadre na noção do contrato para pessoa a nomear, a que alude o artigo 452.º, n.º 1, do CC, porquanto o primeiro outorgante aceitou que o segundo fosse o próprio ou uma das sociedades de que o mesmo fosse sócio, conferindo-lhe assim a faculdade de designar uma outra pessoa jurídica que assumisse a sua posição na relação contratual, tudo se passando então como se o contrato tivesse sido celebrado com esta última, não efetuou a sua nomeação, nos moldes estabelecidos pelo artigo 453.º do CC.
V – Assim, «este contrato produz todos os seus efeitos entre os contraentes e, apenas entre eles, porque enquanto não houver designação de outra pessoa, os contraentes são os outorgantes no contrato». É isso que decorre do artigo 455.º, n.º 2, do CC.
VI – Consequentemente, as pretensões deduzidas pela sociedade Autora nunca poderiam proceder, por não terem sido consigo celebrados os contratos ajuizados e não ter sido neles encabeçada pelo seu titular, donde lhe falha a necessária legitimidade substantiva.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral


Processo n.º 1214/13.9TBEVR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Évora[1]

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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I - RELATÓRIO
1. SOCIEDADE AGRÍCOLA DA BALA, LDA. instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AA e BB, pedindo:
«a) que sejam os réus condenados a reconhecerem a autora como legítima arrendatária do imóvel objeto do contrato aludido no artigo 27.º da petição inicial, denominado por Herdade da Raposeira;
b) que caso o réu AA não demonstre legitimidade ou ser detentor de poderes para a outorga do contrato referido no mesmo artigo, o qual termina no dia 31 de dezembro de 2017, que seja reconhecido o direito de retenção da autora sobre o mesmo imóvel até aquele restituir-lhe todas as importâncias liquidadas e referentes ao período temporal que permanecer por gozar, contabilizado a partir do trânsito em julgado, acrescidas de juros de mora até efetivo pagamento;
c) que seja a autora mantida na posse do aludido imóvel, instando-se os réus a cumprirem tudo quanto estabelecido no referido contrato e para se absterem de qualquer ato turbador, nomeadamente, o de aí entrarem e/ou permanecerem, no propósito de levarem a cabo quaisquer atos que obstem ou coloquem em causa a atividade agropecuária desenvolvida, sob pena de terem de liquidar, cada um, uma sanção pecuniária compulsória não inferior a 750,00 euros;
d) que seja determinado o averbamento em nome da autora dos contratos de fornecimento de energia elétrica e de água junto da EDP e da EDIA até ao final do contrato celebrado com término a 31 de dezembro de 2017;
e) que sejam os réus condenados a pagar-lhe solidariamente um montante não inferior a € 70.125,00 a título de indemnização pelos danos e prejuízos causados na sua atividade agropecuária, acrescida de juros de mora;
f) “por seu turno, os danos e prejuízos advenientes da impossibilidade de contabilizar despesas com o consumo, designadamente, de água fornecida pela EDIA, em termos fiscais, por não serem possíveis de apurar, desde já, deverão ser relegados para liquidação em sede de execução de sentença”.
Em fundamento da sua pretensão, alegou, em síntese, que CC assinou com o réu AA um contrato de "Venda de Pastagem e Comodato" relativo ao prédio rústico designado por Herdade da Raposeira, contrato com início a 1 de janeiro de 2010 e fim a 21 de dezembro de 2016, através do qual AA vendeu a CC ou a empresa de que este fosse sócio as pastagens de 250h de tal herdade, mais tendo cedido a exploração de sistema de rega cujo custo da energia elétrica seria suportado por CC ou por empresa de que este fosse sócio o qual se destinava a permitir uma cultura de milho de 44h que seria explorada pela autora, sociedade da qual CC é sócio/gerente.
Mais alegou que tem sido a sociedade autora a explorar a herdade objeto do referido contrato, com o conhecimento e autorização do réu AA, tendo ficado igualmente autorizada por este a pastorear com o seu gado os restolhos da restante área que não estava incluída nos referidos 250h, com cerca de 50h, tendo-se obrigado a liquidar a AA, em contrapartida, a quantia de € 105.000,00 correspondente a uma renda anual de € 17.500,00, o que fez.
Em tal contexto, invoca que, no dia 28 de abril de 2011, a sociedade autora e o réu AA concordaram em prorrogar o mencionado contrato por um ano, até 31 de dezembro de 2017, com a contrapartida do pagamento da quantia de € 17.510,00, que veio a ser paga, sendo que, apesar de o contrato celebrado ter a denominação de “comodato”, o mesmo tem a natureza de um contrato de arrendamento rural atenta a contrapartida financeira a que se obrigou a autora e em razão de aí desenvolver a sua atividade agropecuária com exploração de cultura de milho.
Mais alega que tal herdade se encontra integrada no Aproveitamento Hidroagrícola do Monte Novo, pelo que que a sociedade autora, através do seu legal representante, emitiu uma declaração a favor da EDIA, S.A. de molde a possibilitar o fornecimento de água e atenta a sua qualidade de beneficiária, sucedendo que as faturas emitidas por tal entidade têm sido dirigidas ao réu AA a sua solicitação o qual posteriormente interpela CC para o pagamento.
Acontece que, tal interpelação nunca é feita com o envio concomitante das respetivas faturas por liquidar, limitando-se o réu a indicar o valor pedido, sem mais, pelo que estas foram pagas até meados do ano de 2011 diretamente à EDIA, S.A. situação repudiada pelo réu, acabando a autora por aceder ao pagamento por intermédio do réu AA, sob condição de lhe serem exibidas, previamente, as faturas em dívida, para que esta pudesse confirmar os valores peticionados e, bem assim, de ser emitida uma nota de débito onde seja discriminado o valor do consumo de água e do IVA para fins contabilísticos, o que foi aceite pelo réu.
Em tal seguimento, alega a autora que, não obstante tais condições fixadas, o réu AA nunca exibiu quaisquer faturas nem emitiu quaisquer notas de débito, contrariamente ao acordado, pelo que tem vindo a ser penalizada.
Aduz ainda que, pese embora os pagamentos dos custos de eletricidade a que procedeu, a 4 de agosto de 2011 o réu AA comunicou a funcionários e colaboradores da autora que não mais podia utilizar o pivot e que transmitissem à sociedade autora que teria de abandonar de imediato a Herdade, tendo os réus AA e BB vindo a obstar que continue a explorar a Herdade objeto do contrato celebrado invadindo-a e provocando danos e prejuízos à sua atividade no que constituem atos que têm vindo a ser perpetrados de forma sistemática e reiterada pelos réus.
Mais invoca que no dia 9 de julho de 2012 os réus vedaram o acesso à área do depósito do adubo colocado na Herdade, instando o legal representante da autora a retirá-lo do seu local, no que constituiria um ato injustificado e perturbador da atividade agropecuária da sociedade autora, causando-lhe danos e prejuízos por se tratar de depósito fundamental para a sua atividade e com uma localização estratégica, depósito o qual veio a ser deslocalizado pelos réus de forma unilateral no final de agosto de 2012, impossibilitando a autora de o utilizar e causando-lhe uma quebra de 25% na produção de milho, num prejuízo que computa em € 39.375,00.
No mesmo quadro, igualmente alega que no final do mês de agosto de 2012 os réus cortaram a alimentação elétrica do pivot levando a que a cultura de milho ficasse sem ser regada durante dois dias o que causou uma quebra de produção de cerca de 10%, num prejuízo que computa em € 15.750, mais se reportando a diversos atos levados a cabo por parte dos réus de invasão da herdade e afetação da atividade agropecuária desenvolvida entre 14 de março de 2013 e 27 de abril de 2013 com o intuito de forçarem a sociedade autora a abandonar a propriedade dada de arrendamento, perturbando e boicotando a atividade agropecuária aí desenvolvida.
Mais alega que os réus têm vindo a cortar o fornecimento de água à herdade, pelo que já propôs ao réu AA que os contratos de eletricidade e água fossem averbados em seu nome e que o réu AA não tinha poderes ou legitimidade para celebrar validamente o contrato em discussão nos autos.
Por tudo o alegado, reclama os danos a que se reporta e discrimina no seu articulado e peticiona conforme reproduzido supra.

2. Os réus foram regularmente citados, tendo apresentado contestação, pugnando pela improcedência total do peticionado pela autora, impugnando a factualidade por esta alegada, e arguindo as exceções dilatórias de ilegitimidade ativa, caso julgado, e litispendência, tendo ainda invocado existir uma causa prejudicial e pedindo a suspensão da instância.

3. A autora veio apresentar articulado em que ofereceu resposta para a matéria de exceção e pedido de suspensão dos autos.

4. Em 20.11.2014, foi proferido despacho saneador onde se julgou improcedente a exceção de ilegitimidade ativa, e procedente a exceção de caso julgado no que respeita ao pedido formulado em c) da petição inicial, absolvendo-se os réus da instância no que ao mesmo respeita, julgando-se ainda improcedente a exceção de litispendência, e verificada a existência de uma questão prejudicial, tendo sido determinada a suspensão da instância até à prolação de decisão de mérito no processo n.º 647/13.5TBEVR.

5. Proferida sentença que julgou deserta a instância nos referidos autos, foi ordenado o prosseguimento dos presentes em dezembro de 2021, tendo tido lugar tentativa de conciliação das partes, que não foi possível.

6. Seguidamente, foi proferido despacho de aperfeiçoamento da petição inicial, onde se consignou designadamente que “[a]nalisada a petição inicial, constata-se que a Autora começa por invocar a celebração de um contrato designado de compra de pastagens e comodato, contrato esse cuja partes envolvidas são o aqui Réu AA, na qualidade de primeiro outorgante, e CC, na qualidade de segundo outorgante. Porém, no seu artigo 38[3], a Autora invoca que passou a explorar o prédio rústico designado de Herdade da Raposeira, propriedade do autor AA, com autorização e consentimento deste. Ao que se vislumbram, duas realidades distintas, radicando a causa de pedir nessa alegada autorização de exploração. Assim, ao abrigo do disposto no artigo 590.º, n.º 2, alínea b) e n.º 3, do Código de Processo Civil, convida-se a Autora a esclarecer a data e forma desse consentimento, designadamente se foi por escrito, posto que, no seu artigo 80, invoca que do contrato firmado entre A. e o R. AA, estava vedado a este e a terceiras pessoas entrar e permanecer na Herdade da Raposeira.”.

7. A autora respondeu a tal convite, esclarecendo que “[a] autorização e consentimento do R. para a exploração da "Herdade da Raposeira", foi prestado mediante a celebração de um denominado contrato de "Venda de Pastagem e Comodato", no dia 8 de Dezembro de 2010, com início no dia 1 de Janeiro de 2011 e términus no dia 31 de Dezembro de 2016 (…) No dia 28 de Abril de 2011, tal contrato foi objecto de prorrogação, até ao dia 31 de Dezembro de 2011 (…)”.

8. Os réus vieram aos autos revogar os mandatos nos mesmos conferidos ao Ilustre Advogado que os representava, não tendo vindo a constituir novo mandatário, prosseguindo a instância sem que se encontrem representados por mandatário judicial.

9. Dispensada a realização de audiência prévia, e tendo o Tribunal entendido estar em condições de proferir decisão de mérito sobre o objeto do litígio, concedeu a oportunidade à autora de apresentar as suas alegações finais, o que a mesma fez.

10. Foram suscitados esclarecimentos adicionais à autora, que respondeu ao novo convite endereçado pelo Tribunal, tendo desistido do pedido formulado em f) do seu petitório, desistência que foi homologada pelo tribunal a quo.

11. Seguidamente foi proferida a decisão recorrida, tendo a ação sido julgada totalmente improcedente e os Réus sido absolvidos do pedido.

12. Inconformada, a Autora apelou, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
«A) Ao invés do considerado pelo Tribunal, o estado do processo não permitia o conhecimento imediato do mérito da causa, nos termos do disposto no n.° 1 do artigo 595.° do CPC, visto depender de prova a produzir;
B) Foi negada à sociedade A., aqui apelante, o direito à Justiça, tendo sido violado o princípio da igualdade das partes;
C) A douta decisão é desconforme com o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva e ao direito a um processo equitativo;
D) Deverá ser revogada a douta decisão, e em sua substituição, deverá determinar-se a prolação de despacho de identificação do objeto do litígio e de enunciação dos temas da prova, nos termos do artigo 596.°, n.° 1, do CPC, seguindo-se os ulteriores termos do processo.
E) A Meritíssima Juiz violou o correcto entendimento dos preceitos e princípios legais, supra invocados».

13. Não foram apresentadas contra-alegações.

14. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objeto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[4], é pacífico que o objeto do recurso se limita pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha.
Assim, a única questão colocada para apreciação por este Tribunal da Relação, é a de saber se a sentença recorrida foi proferida sem que o estado do processo permitisse o imediato conhecimento do mérito da causa.
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III.1. Fundamentação de facto
Com base no acordo das partes e/ou por resultarem da prova documental produzida, a primeira instância considerou provados os seguintes factos:
«1. De documento intitulado “venda de pastagem e comodato”, datado de 8 de dezembro de 2010, figura como “primeiro outorgante” o réu AA e como “segundo outorgante” CC, sócio da sociedade autora, encontrando-se tal documento subscrito por estes.
2. De tal documento consta, designadamente, que “é celebrado o presente contracto de venda de pastagens que se rege pelas cláusulas seguintes:
O Primeiro Outorgante é dono e legítimo proprietário do prédio rústico denominado Herdade da Raposeira, sito na Freguesia de Nossa Senhora de Machede, Concelho de Évora, inscrito na Conservatória do Registo Predial de Évora com o Matriz n°..., Secção B, com a área de 288,75 ha.
Pelo presente contracto, o Primeiro Outorgante vende ao Segundo Outorgante, ou empresa da qual este seja sócio, as pastagens de 250 ha da Herdade da Raposeira. A Primeira Outorgante cede também a exploração de um sistema de rega tipo center Pivot, pronto a funcionar e com capacidade de rega para 44 ha. O custo da energia eléctrica do funcionamento deste "Pivot" será suportado pelo segundo outorgante.
O segundo outorgante fica autorizado a pastorear com o seu gado os restolhos da restante área da Herdade da Raposeira que não está incluída nos 250 ha referidos na cláusula deste contracto. Esta área tem aproximadamente 50 ha.
Este contracto tem início a 1 de Janeiro de 2011, e termina em 31 de Dezembro de 2016, sendo renovável por iguais períodos de seis anos caso não seja denunciado por nenhuma das partes até seis meses antes do seu termo por carta registada.
A Segunda Outorgante tem obrigação de pagar à Primeira Outorgante a quantia de 105.000 (cento e cinco mil euros), pelos 6 anos deste contracto.
A Segunda Outorgante pode efectuar as culturas que entender, desde que não prejudique a propriedade”.
3. De documentos intitulados “factura n.º 0279” e “recibo n.º 0279” emitidos pelo réu AA em nome da sociedade autora, datados de 1 de janeiro de 2011, consta descrita a “venda de pastagens referente aos anos de 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, com IVA incluído à taxa legal em vigor” no valor total faturado de € 105.000,00.
4. De documento intitulado “declaração”, datado de 9 de dezembro de 2010 e assinado pelo réu AA, consta o seguinte: “Eu, AA, declaro que recebi de CC, a quantia de 50.000 (Cinquenta mil euros) como pagamento relativo ao contracto de "Venda de Pastagem e comodato" da Herdade da Raposeira, com início em 1 de Janeiro de 2011.”.
5. De documento intitulado “declaração”, datado de 17 de dezembro de 2010 e assinado pelo réu AA, consta o seguinte: “Eu, AA, declaro que recebi de CC, a quantia de 25.000 (vinte e cinco mil euros) como pagamento relativo ao contracto de "Venda de Pastagem e comodato" da Herdade da Raposeira, com início em 1 de Janeiro de 2011.”.
6. De documento intitulado “declaração”, datado de 20 de dezembro de 2010 e assinado pelo réu AA, consta o seguinte: “Eu, AA, declaro que recebi de CC, a quantia de 30.000 (trinta mil euros) como e último pagamento relativo ao contracto de "Venda de Pastagem e comodato" da Herdade da Raposeira, com início em 1 de Janeiro de 2011.”.
7. De documento intitulado “declaração”, datado de 28 de abril de 2011 e assinado pelo réu AA, consta o seguinte: “Eu, AA, declaro que aceito que CC, pague a quantia de 14.760 (catorze mil setecentos e sessenta euros) relativos a minha parte no orçamento da Sulregas (anexo), respeitante a reestruturação na conduta de alimentação do pivot da Herdade da Raposeira. Este valor é abatido e portanto considerado como primeiro pagamento do valor a pagar pelo contrato de "Venda de Pastagem e comodato" da Herdade da Raposeira, com início em 1 de Janeiro de 2017.”.
8. De documento intitulado “declaração”, datado de 28 de abril de 2011 e assinado pelo réu AA, consta o seguinte:
Eu, AA, declaro que recebi de CC, a quantia de 2.750 (dois mil setecentos e cinquenta euros) como e último pagamento relativo ao contrato de "Venda de Pastagem e comodato" da Herdade da Raposeira, com início em 1 de Janeiro de 2017.”.
9. De documento bancário “cheque ...10” emitido pela sociedade G..., Unipessoal, Lda. à ordem do réu AA, datado de 09-12-2010 consta aposta a quantia a pagamento de € 10.000,00.
10. De documento bancário “cheque ...21” emitido pela sociedade G..., Unipessoal, Lda. à ordem do réu AA, datado de 09-12-2010, consta aposta a quantia a pagamento de € 10.000,00.
11. De documento bancário “cheque ...32” emitido pela sociedade G..., Unipessoal, Lda. à ordem do réu BB, datado de 09-12-2010, consta aposta a quantia a pagamento de € 10.000,00.
12. De documento bancário “cheque ...02” emitido pela Sociedade Agrícola dos Alpendres, Lda. à ordem do réu AA, datado de 09-12-2010, consta aposta a quantia a pagamento de € 10.000,00.
13. De documento bancário “cheque ...13” emitido pela Sociedade Agrícola dos Alpendres, Lda. à ordem do réu BB, datado de 09-12-2010, consta aposta a quantia a pagamento de € 10.000,00.
14. De documento bancário “cheque ...35” emitido pela Sociedade Agrícola dos Alpendres, Lda. à ordem do réu AA, datado de 17-12-2010, consta aposta a quantia a pagamento de € 10.000,00.
15. De documento bancário “cheque ...46” emitido pela Sociedade Agrícola dos Alpendres, Lda. à ordem do réu BB, datado de 17-12-2010, consta aposta a quantia a pagamento de € 10.000,00.
16. De documento bancário “cheque ...50” emitido pela Sociedade Agrícola dos Alpendres, Lda. à ordem do réu AA, datado de 17-12-2010, consta aposta a quantia a pagamento de € 50.000,00.
17. De documento bancário “cheque ...83” emitido pela Sociedade Agrícola dos Alpendres, Lda. à ordem do réu AA, datado de 20-12-2011, consta aposta a quantia a pagamento de € 10.000,00.
18. De documento bancário “cheque ...94” emitido pela Sociedade Agrícola dos Alpendres, Lda. à ordem do réu AA, datado de 20-12-2010, consta aposta a quantia a pagamento de € 10.000,00.
19. De documento bancário “cheque ...05” emitido pela Sociedade Agrícola dos Alpendres, Lda. à ordem do réu BB, datado de 20-12-2010, consta aposta a quantia a pagamento de € 10.000,00.
20. De documento bancário “cheque ...33” emitido pela Sociedade Agrícola dos Alpendres, Lda. à ordem do réu AA, datado de 28-04-2011, consta aposta a quantia a pagamento de € 2.750,00.
21. De documento intitulado “venda de pastagem e comodato”, datado de 28 de abril de 2011, figura como “primeiro outorgante” o réu AA e como “segundo outorgante” CC, sócio da sociedade autora, encontrando-se tal documento subscrito por estes.
22. De tal documento consta, designadamente, que: “é celebrado o presente contrato de venda de pastagens que se rege pelas cláusulas seguintes:
O Primeiro Outorgante é dono e legítimo proprietário do prédio rústico denominado Herdade da Raposeira, sito na Freguesia de Nossa Senhora de Machede, Concelho de Évora, inscrito na Conservatória do Registo Predial de Évora com o Matriz n°..., Secção B, com a área de 288,75 ha.
Pelo presente contrato, o Primeiro Outorgante vende ao Segundo Outorgante, ou empresa que este indique, as pastagens de 250 ha da Herdade da Raposeira. A Primeira Outorgante cede também a exploração de um sistema de rega tipo center Pivot, pronto a funcionar e com capacidade de rega para 44 ha.
O segundo outorgante fica autorizado a pastorear com o seu gado os restolhos da restante área da Herdade da Raposeira que não está incluída nos 250 ha referidos na cláusula deste contrato. Esta área tem aproximadamente 50 ha.
Este contrato tem início a 1 de Janeiro de 2017, e termina em 31 de Dezembro de 2017.
A Segunda Outorgante tem obrigação de pagar à Primeira Outorgante a quantia de 17.510 (dezassete mil quinhentos e dez euros), por este contrato.
A Segunda Outorgante pode efectuar as culturas que entender”.
23. De documento intitulado “declaração”, datado de 30 de maio de 2011 e assinado por CC, consta o seguinte:
CC, residente na Quinta ... em Évora, portador do BI n.º ... e NIF ...82 declara que, por contrato de venda de pastagens e comodato, celebrado em 08.12.11 com AA adquiriu as pastagens de 250 ha do prédio rústico denominado herdade da Raposeira (…)
Declara ainda que por esse mesmo referido contrato lhe foi ainda cedido o direito de exploração de um sistema de rega tipo center Pivot, instalado no mesmo prédio rústico e com capacidade de rega para 41,05 ha.
Declara por fim que, encontrando-se a referida herdade da Raposeira integrada no Aproveitamento Hidroagrícola de Monte Novo do Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva, e enquanto exercer os direitos decorrentes do referido contrato de venda de pastagens e comodato ou a qualquer outro título proceder à exploração das áreas em causa, é ele, CC, que assume os deveres e obrigações resultantes do estatuto de beneficiário do aproveitamento Hidroagrícola referido e em especial o pagamento das taxas ele conservação, de exploração e de recursos hídricos, (…) caso o beneficiário inscrito na campanha de rega, proprietário ou outro, entre em incumprimento, atrasando-se ou faltando em definitivo no pagamento das referidas taxas. (…)”.
24. Por missiva remetida por parte do réu AA a CC, datada de 5 de fevereiro de 2013, sob o assunto “resolução de contrato de “venda de pastagem e comodato”, foi comunicado que:
“Por carta datada de 17-01-2013, concedi a Vexa. um prazo suplementar de 8 dias para pagar a quantia de 13.548,93 (treze mil quinhentos e quarenta e oito euros e
noventa e oito euros) referente ao consumo de água, sob pena de declarar a resolução do contrato celebrado em 08-12-2010.
Não obstante, e apesar de lhe ter sido enviada, conforme havia solicitado, a fotocópia da fatura em divida, Vexa, não procedeu, até à presente data, em conformidade. Permanece, assim, em dívida, a referiria quantia (…) cujo pagamento é, nos termos do contrato celebrado, da sua responsabilidade.
A falta de pagamento consubstancia uma violação culposa do contrato celebrado que, pelos prejuízos causados e quebra de confiança, torna inexigível a sua manutenção. Assim, e em face do exposto, venho declarar a Vexa, a resolução imediata do contrato de Venda de pastagem e Comodato, com fundamento em incumprimento do mesmo, em face do que deverá Vexa. desocupar o local até ao dia 10-02-2013 (…)”.».
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III.2. O mérito do recurso
De acordo com a súmula vertida pela Apelante nas suas alegações, o tribunal a quo considerou que atenta a configuração dada pela autora à presente ação, os pedidos formulados não poderiam proceder, pois que a autora não foi parte contratante do contrato a que se reporta a causa de pedir na presente ação, não radicando na sua esfera jurídica quaisquer direitos ou obrigações do mesmo decorrentes, o que não corresponde à verdade atentos os factos que invocou nos artigos 27.º a 35.º da petição inicial, que se propõe provar em fundamento do pedido formulado, que salientou na réplica, para a) Serem os R.R. condenados a reconhecerem a sociedade A., como legítima arrendatária do imóvel objecto do contrato aludido no art.27° da presente peça, denominado por Herdade da Raposeira.
Dissente igualmente que os autos contenham os factos necessários para a decisão dos demais pedidos que ainda subsistem, os das alíneas b), onde invocou o direito de retenção; da alínea c), atinente ao averbamento dos contratos de fornecimento de energia elétrica e água até ao final do contrato, e da alínea d), referente ao pedido de indemnização pelos danos e prejuízos causados pelos RR. na sua atividade agropecuária, com a base factual vertida respetivamente nos artigos 172.º a 182.º, 69.º a 153.º e 164.º a 170.º (estes quanto à legitimidade do réu AA), da petição inicial.
Vejamos, pois, se como defende a ora Recorrente «o estado do processo não permitia o conhecimento imediato do mérito da causa, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 595.º do CPC, visto depender de prova a produzir», aceitando a factualidade que se encontra provada por acordo ou documentos e se mostra acima descrita.
Como é sabido, o julgamento de mérito ou de fundo no despacho saneador só pode ocorrer quando o processo fornece já os elementos suficientes para que o litígio em causa possa ser decidido com segurança, ou seja, quando não existe prova a produzir quanto a factos essenciais para a decisão da causa.
De facto, atenta a formulação legal do artigo 595.º, n.º 1 alínea b), do CPC, o despacho saneador destina-se a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
Ponto é, pois, que o estado do processo o permita, sem necessidade de mais provas para além das já processualmente adquiridas.
Da correlação entre os n.ºs 1 e 2 do CPC, extrai-se que as partes estão oneradas com a invocação dos factos essenciais à procedência da ação ou da exceção, incumbindo-lhes alegar os factos concretos em que assentam a sua pretensão ou a sua defesa, com a efetiva identificação e concretização da causa de pedir a qual é constituída pelo conjunto de factos em que se consubstancia a relação material controvertida, pois só estes podem ser conhecidos pelo tribunal e são subsumíveis às regras de direito.
De facto, a indicação da causa de pedir, prevista no artigo 186.º, n.º 2, alínea a), do CPC, “é feita através da alegação de factos da relação material que, integrando a fatispécie da norma pertinente, permitem a sua identificação, assim se respeitando a substanciação imposta pela nossa lei adjectiva”. Assim, “a causa de pedir da acção é fixada por referência ao instituto jurídico pertinente, sendo este individualizado através da conjugação dos dois elementos fundamentais do pedido formulado pelo autor (art. 3.º, n.º 1): o pedido propriamente dito, e os fundamentos de facto invocados”. Deste modo, sendo a causa de pedir “o conjunto de factos ocorridos essenciais à procedência da acção” pode acontecer que não tenham “ocorrido (na relação material) todos os factos que a norma elege como requisitos do nascimento do direito invocado. Neste caso, a causa de pedir não sustenta o pedido. A acção improcede ainda que o autor alegue e prove exaustivamente todos os factos da causa de pedir – aqui se inserem os casos de inconcludência ou de manifesta improcedência (art. 590.º, n.º 1)” [5].
Como vimos, a Autora estribou as suas pretensões na celebração entre CC e o Réu AA, dos contratos denominados de “Venda de Pastagem e Comodato”, no dia 08.12.2010, com início no dia 01.01.2010 e termo no dia 21.12.2016, contrato que ambos concordaram em prorrogar no dia 28.04.2011, até ao dia 31.12.2017. Tendo ainda alegado nos artigos 33.º e 34.º da petição inicial que “tem sido a sociedade A. a explorar o prédio rústico objecto do aludido contrato, com o conhecimento e autorização do R. AA”, e que “a Sociedade A. ficou ainda autorizada pelo R. AA a pastorear com o seu gado, os restolhos da restante área da aludida Herdade da Raposeira” – após o convite para esclarecer como tinha sido concedida esta autorização à sociedade, transcrito no ponto 6. do relatório, a Autora respondeu, conforme consta no ponto 7., que foi através dos indicados contratos.
Por isso, e antes de mais, cremos que o caso em apreço justifica uma primeira observação, porquanto evidencia muito bem a sagaz afirmação de URBANO A. LOPES DIAS[6] de que “tudo parece ser matéria de direito: não há nada que se possa só considerar como matéria de facto”, lembrando as palavras de CASTANHEIRA NEVES quando ensinava que “o direito não pode prescindir do facto e o facto não pode prescindir do direito”. Citando este Ilustre Professor, sintetiza que “[…] «os factos são seleccionados e objectivamente determinados em função do direito aplicável […], também o direito aplicável não pode deixar de ser seleccionado, determinado e reconstituído em função das exigências problemático-concretas do caso a decidir […]: ao considerar «a questão-de-facto» está implicitamente presente e relevante a «questão-de-direito» e ao considerar-se a «questão-de-direito» não pode prescindir-se da codeterminante influência da questão-de-facto.” E acrescenta, que “«a questão-de-facto» e a «questão-de-direito» não são duas entidades em si, de todo autónomas e independentes, antes mutuamente se condicionam, além de também mutuamente se pressupõem e remetem uma para a outra”.
Vale isto por dizer que in casu, a questão de direito condiciona determinantemente a questão de facto, sendo inútil produzir qualquer prova quanto aos factos invocados na petição inicial que foram indicados pela Apelante nas alegações de recurso e que acima indicámos, porquanto, conforme bem avaliou a primeira instância, tal como a autora conformou a relação material controvertida, os autos contêm todos os elementos que importam à decisão da causa, sem necessidade da produção de prova adicional.
Com efeito, com base nos indicados contratos, a Autora pretende que o Tribunal a reconheça como legítima arrendatária da Herdade da Raposeira.
Porém, tal não pode ocorrer, desde logo, pelas razões aduzidas na sentença recorrida.
De facto, «[a] autora funda a sua causa de pedir no contrato de compra e venda de pastagem e comodato celebrado a 8-12-2010 alvo de prorrogação por um ano e com o seu término a 31-12-2017, alegando que, pese embora a designação oferecida ao mesmo, este assumiu-se em substância como um verdadeiro contrato de arrendamento, mais alegando que a conduta de ambos os réus lhe causou prejuízos e consubstanciou um incumprimento contratual por ter sido inviabilizada a sua exploração agropecuária da herdade conforme lhe era concedida por tal contrato.
Conforme decorre da factualidade provada - provado em 1, 2, 21 e 22 – o sobredito contrato foi celebrado apenas e só entre o réu AA e CC – as partes contratantes que ao mesmo se vinculam – sendo que do teor de tal contrato resulta que AA vende a CC ou a empresa da qual este seja sócio, como o caso da sociedade autora, pastagens e, para além de tal, cede a CC a exploração de um sistema de rega cujos custos de eletricidade são suportados por este último, bem como o foram os custos de fornecimento de água, passando este a ser beneficiário do aproveitamento hidroagrícola (provado em 23).
A autora alega no seu articulado que tem sido a sociedade autora a explorar a dita herdade com o conhecimento e autorização do réu AA, sustentando tal alegação, quando instada expressamente a esclarecer de onde advém tal autorização em que funda a sua causa de pedir, no referido contrato celebrado entre um terceiro – CC, a título pessoal – e o réu AA. Por tal, e com fundamento em tal contrato celebrado, pretende ser reconhecida como arrendatária da herdade e, ainda, indemnizada por ter sido perturbada na exploração agropecuária a que procedia com título legítimo (o contrato), pelos danos a que se reporta e quantifica.
Compulsada a matéria de facto assente constata-se, porém, que a autora não é, de forma evidenciada, parte outorgante no contrato em que funda a sua causa de pedir e no qual assenta todo o peticionado.
Efetivamente, se é certo que o réu AA se comprometeu e acordou com CC vender-lhe a si ou a empresa da qual fosse sócio, como o é o caso da autora, as pastagens de 250ha da Herdade da Raposeira, certo também o é que a afetação de tal contrato na esfera jurídica da sociedade autora se restringe somente a tal eventual venda de pastagens, não sendo sequer nomeada no contrato, não detendo a mesma a posição contratual de parte outorgante que lhe permita arrogar-se detentora de qualquer direito perante os réus em reclamar uma posição de arrendatária (ou comodatária) ou danos pelo incumprimento contratual os quais apenas e só poderiam ser reclamados pelo segundo outorgante CC, única pessoa para quem advêm direitos e obrigações do contrato a que se vinculou.
Note-se que (provado em 2) AA se comprometeu a vender a CC ou a sociedade de que este seja sócio pastagens, sendo que nada mais resulta do contrato em que funda a autora a ação que lhe confira a si ou a terceiros quaisquer vantagens, sendo a exploração do sistema de rega cedida ao segundo outorgante CC o qual suporta os respetivos custos de eletricidade e ficando este (e unicamente este) autorizado a pastorear com o seu gado os restolhos da restante área da herdade.
A tal respeito, mais se note que os pagamentos efetivados pela autora (e por sociedades que nem sequer em nada se prendem com a autora) dizem respeito à venda de pastagens e estão em inteira correspondência com o clausulado no contrato, mesmo que em tal sede também seja notória a confusão relativamente à real pessoa do comprador, como o evidenciam as declarações sucessivamente emitidas.
Com efeito, como resulta provado em 3, foi emitida uma fatura e recibo em nome da sociedade autora que confirma de forma expressa o objeto de tal preço pago: a venda de pastagens, sendo que nas declarações emitidas a menção é sempre feita à pessoa singular de CC e não à sociedade autora (provado em 4, 5, 6, 8), havendo cheques emitidos por sociedades distintas da pessoa coletiva da autora.
Ou seja, não assumindo a autora a posição de parte contratante, não pode arrogar-se detentora de um direito a ser ressarcida desde logo pelo incumprimento contratual de uma suposta concessão de exploração agropecuária quando perante esta nenhumas obrigações foram assumidas pelo réu AA, não detendo qualquer legitimidade substantiva para assim peticionar. (…)
As partes no contrato celebrado são inequivocamente duas: o réu AA e CC.
A autora não se confunde com a pessoa individual do seu representante legal e, do mesmo modo, a circunstância de as pastagens lhe poderem ser vendidas também não tem a virtualidade de tal confusão gerar. Os documentos carreados para os autos feitos verter na factualidade provado são, aliás, em tudo consonantes com tal conclusão, sendo a intervenção da autora nos mesmos circunscrita à venda das pastagens.
Não se tendo vinculado o réu perante a autora, não se visiona como pode esta: a) pretender ser indemnizada por parte dos (ambos os) réus que a nenhuma obrigação contratual se vincularam a qual, assim, jamais podem incumprir, inexistindo qualquer contrato que possa fundar a aludida responsabilidade civil contratual e, b) pretender ser declarada como parte num pressuposto contrato de arrendamento com o qual não tem nenhuma relação.
No caso concreto, a autora é terceira relativamente ao contratado entre AA e CC a nada se tendo vinculado tal réu perante si, pelo que esta nada lhe pode exigir por força da relação contratual invocada na petição inicial para fundar a sua pretensão.
Conforme se dispõe no artigo 406.º do Código Civil, sob a epígrafe “Eficácia dos contratos”: “1. O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei; 2. Em relação a terceiros, o contrato só produz efeitos nos casos e termos especialmente previstos na lei”.
Consagra assim, a lei, o princípio da força vinculativa dos contratos. Uma vez celebrado, o contrato plenamente válido e eficaz, constitui lei imperativa entre as partes celebrantes.
Todavia, em relação a terceiros, o contrato, ressalvadas as exceções consagradas na lei, é inoperante, por força do aludido princípio da eficácia relativa dos contratos, segundo o qual, como bem esclarece ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 9.ª ed., 279, os efeitos contratuais não afetam terceiros, restringindo-se às partes contratantes.
Atenta a configuração dada pela autora à presente ação, os pedidos formulados não poderão proceder, pois que a autora não foi parte contratante do contrato a que se reporta a causa de pedir na presente ação, não radicando na sua esféria jurídica quaisquer direitos ou obrigações do mesmo decorrentes».
Para além destas razões, que subscrevemos, cremos que outro aspeto, de direito, importa ainda realçar, e que evidencia o infundado das pretensões deduzidas.
Como vimos, em fundamento da sua pretensão, a Autora, ora Recorrente, invocou que, apesar da sua denominação de contrato de comodato e de compra e venda de pastagens, o contrato celebrado entre as partes constitui um contrato de arrendamento rural. Não justifica, porém, a razão pela qual nem no inicial nem no seu aditamento, as partes não deram ao acordo que pretenderam celebrar a denominação que afinal seria a querida… E igualmente não justificou a razão pela qual, no procedimento cautelar n.º 972/12.2TBEVR, foi o subscritor do acordo, CC, quem, com base nos mesmos contratos de venda de pastagem e comodato, se arrogou dos inerentes direitos para pedir a restituição da posse da Herdade da Raposeira. Porém, tal razão é facilmente apreensível se tivermos presente que nessa providência foi lavrado termo de transação em 09.07.2012, devidamente homologado por sentença, acordo que – conforme cristalinamente explicado no aresto deste Tribunal da Relação proferido nos autos de procedimento cautelar n.º 2374/12.1TBEVR-A.E1, esse também instaurado pela ora Autora para ser mantida na posse da dita Herdade –, “põe um ponto final no conflito (…), é para todos os efeitos uma transação válida e eficaz e, apesar de em processo cautelar, esgota a questão”.
Mas, a verdade é que, independentemente da qualificação jurídica que a conformação dada pelos outorgantes aos acordos subscritos pudesse acolher, não é a Autora a titular dos direitos que do seu incumprimento pudessem advir, mas sim, o seu sócio, CC.
Com efeito, em ambos os contratos celebrados, entre CC e o Réu AA, ficou a constar que «pelo presente contrato, o Primeiro Outorgante vende ao Segundo Outorgante, ou empresa da qual este seja sócio, as pastagens de 250ha da Herdade da Raposeira. A Primeira Outorgante cede também a exploração de um sistema de rega tipo center Pivot, pronto a funcionar e com capacidade de rega para 44ha. O custo da energia eléctrica do funcionamento deste “Pivot” será suportado pelo segundo outorgante”, que também ficou «autorizado a pastorear com o seu gado os restolhos da restante área da Herdade da Raposeira» que não está incluída nos ditos 250ha e que tem aproximadamente 50ha.
Em face do clausulado contratual a Autora poderia ter efetivamente assumido essa qualidade, mas tal não ocorreu. Na realidade, para que pudesse assumir essa titularidade necessário seria que de algum dos factos provados decorresse que o direito de nomear empresa de que fosse sócio, como é caso da autora, tivesse sido exercido pelo outorgante CC, e não foi.
Efetivamente, dispõe o artigo 452.º, n.º 1, do CC, onde se encontra a noção do contrato para pessoa a nomear, que «ao celebrar o contrato, pode uma das partes reservar o direito de nomear um terceiro que adquira os direitos e assuma as obrigações provenientes desse contrato».
PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA[7], esclarecem que «o contrato para pessoa a nomear ou a designar (já previsto no Código Comercial relativamente à compra e venda: cfr. art. 465.º) é um tipo negocial distinto do negócio celebrado por meio de representante, do contrato a favor de terceiro, da gestão de negócios e do mandato sem representação, embora tenha afinidades com estas figuras jurídicas». E, prosseguem, «o contrato para pessoa a nomear começa por produzir os seus efeitos em relação ao interveniente no negócio, e apenas pode vir a produzi-los na esfera jurídica de um terceiro que não figura no ato como representado». «(…) [N]o contrato para pessoa a nomear, uma vez efetuada a nomeação, um dos intervenientes no contrato perde a qualidade de contraente e o terceiro nomeado ao abrigo da cláusula especial passa a figurar como contraente desde a celebração do contrato».
Cremos que o acordo em questão se enquadra nesta qualificação e na referida previsão legal porquanto o primeiro outorgante aceitou que o segundo fosse o próprio CC ou uma das sociedades de que o mesmo fosse sócio, conferindo-lhe assim a faculdade de designar uma outra pessoa jurídica que assumisse a sua posição na relação contratual, tudo se passando então como se o contrato tivesse sido celebrado com esta última. Porém, tal nomeação, diz-nos o artigo 453.º do CC, deve ser feita mediante declaração por escrito ao outro contraente, dentro do prazo convencionado ou, na falta de convenção, dentro dos cinco dias posteriores à celebração do contrato, e tal declaração de nomeação deve ser acompanhada, sob pena de ineficácia, do instrumento de ratificação do contrato ou de procuração anterior à celebração deste.
In casu, esta declaração à contraparte nunca foi efetuada por CC, que não exerceu a faculdade que o contrato lhe conferia de nomear a sociedade autora, de que é sócio, mantendo-se na titularidade da posição jurídica que contratualmente subscreveu. Tanto assim, que os factos evidenciam que foi dele que o 1.º Ré AA declarou ter recebido o valor das prestações relativas ao contrato (factos provados em 4 a 6), pese embora tenha emitido a “fatura n.º 0279” e o “recibo n.º 0279” em nome da sociedade autora (facto provado em 3), nunca tendo transmitido a titularidade da sua posição contratual para uma das sociedades de que era sócio, e nomeadamente para a autora, tanto assim que foi ele, CC, quem nos acima mencionados autos de procedimento cautelar assumiu a titularidade da posição contratual que dos contratos de compra e venda de pastagens e de comodato, lhe advinha.
Assim, «este contrato produz todos os seus efeitos entre os contraentes e, apenas entre eles, porque enquanto não houver designação de outra pessoa, os contraentes são os outorgantes no contrato»[8]. É isso que decorre do artigo 455.º, n.º 2, do CC, o qual estabelece que, não sendo feita a declaração de nomeação nos termos legais, o contrato produz os seus efeitos relativamente ao contraente originário, desde que não haja estipulação em contrário, como acontece na situação em presença.
Consequentemente, pelas razões já expressas na sentença recorrida e ainda pelas que ora alinhámos, as pretensões deduzidas pela sociedade Autora nunca poderiam proceder, por não terem sido consigo celebrados os contratos ajuizados e não ter sido neles encabeçada pelo seu titular, donde lhe falha a necessária legitimidade substantiva.
Nestes termos, e sem necessidade de maiores considerações, nada há a censurar à decisão recorrida que, sem produzir prova sobre factualidade que sempre seria inútil, julgou totalmente improcedente a ação, absolvendo os Réus do pedido.
Vencida, a Apelante, suporta as custas do recurso, na vertente de custas de parte, de harmonia com o princípio da causalidade e o vertido nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do CPC.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em julgar improcedente o presente recurso de apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
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Évora, 12 de outubro de 2023
Albertina Pedroso [9]
José António Penetra Lúcio
Maria João Sousa e Faro

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[1] Juízo Central Cível e Criminal de Évora – Juiz 2.
[2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.º Adjunto: José António Penetra Lúcio; 2.ª Adjunta: Maria João Sousa e Faro.
[3] A indicação do artigo 38.º constitui um evidente lapso de escrita, porque a matéria em causa consta no artigo 34.º da petição inicial.
[4] Doravante abreviadamente designado CPC, sendo aplicável aos termos do presente recurso o texto decorrente do Código de Processo Civil na redação aprovada pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho, por estar em causa decisão proferida posterior a 1 de setembro de 2013 – cfr. artigos 5.º, 7.º, n.º 1 e 8.º deste diploma.
[5] Cfr. PAULO RAMOS DE FARIA e ANA LUÍSA LOUREIRO, in Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Os Artigos da Reforma, Almedina 2014, vol. I, 2.ª edição, págs. 37 a 39.
[6] No paper intitulado “As competências e as limitações cognitivas do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no Blog do IPPC, em 16.11.2021, para o qual se remete para maiores desenvolvimentos.
[7] In CÓDIGO CIVIL ANOTADO, volume I, 3.ª edição revista e atualizada, COIMBRA EDITORA, 1982, págs. 406 e 407.
[8] Cfr. Ac. STJ de 14.11.1991, proferido no processo n.º 078549.
[9] Texto elaborado e revisto pela Relatora, e assinado eletronicamente pelos três desembargadores que integram esta conferência.