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IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DEFICIÊNCIAS DA GRAVAÇÃO DA PROVA
PRAZO DE ARGUIÇÃO
PRECLUSÃO
DIREITO À PROVA
Sumário
I – Após a entrada em vigor do novo CPC, decorrido o prazo previsto no artigo 154.º, n.º 4, do CPC, sem que seja arguido o vício da deficiência da gravação, fica o mesmo sanado, não podendo oficiosamente ser conhecido pela Relação, nem podendo tal nulidade ser arguida sequer nas alegações de recurso, interpretação que não padece de inconstitucionalidade. II – Não tendo o Tribunal acesso a um depoimento que estriba a impugnação da matéria de facto, entende-se que fica o mesmo impossibilitado, total ou parcialmente, consoante a extensão da impercetibilidade das declarações em causa, de efetuar a pretendida reapreciação da prova, por carecer dos elementos necessários para tal, e dever a Relação estar nas mesmas condições em que se encontrou a primeira instância. III – Porém, tal limitação apenas ocorre quanto à pretendida reapreciação da matéria de facto, mas não belisca a sua relevância na formação da convicção do julgador em primeira instância. IV – Assim, o facto de não poder haver sindicância da convicção formada pelo julgador, não determina a anulação oficiosa do julgamento, antes fixa a convicção do juiz tal como vem formada, precisamente porque impede que a mesma, nessa parte, seja reapreciada pela Relação, impondo-se a imediata rejeição do recurso nessa parte, nos termos do n.º 2 alínea a) do artigo 640.º do CPC. V – O direito à prova não é uma espécie de direito absoluto. Se os AA. não cumpriram os ónus respetivos, sibi imputet. Não podem agora, sob a capa da oficiosidade pretender exercer direitos que tinham e não exerceram oportunamente, sob pena de intolerável violação do princípio da igualdade das partes. VI – Decorrendo da matéria de facto provada que a responsabilidade pela ocorrência do embate se deveu única e exclusivamente à conduta da condutora, ora Apelante, que não observou as obrigações que sobre si impendiam para mudar de direção à esquerda, atravessando, por via dessa manobra, a via destinada ao trânsito que circulava em sentido contrário, em violação do disposto no artigo 35.º, n.º 1, do Código da Estrada, e não estando demonstrada a prática de qualquer ilícito estradal pelo condutor do veículo segurado, não se vislumbra, com a absolvição da Ré, qualquer violação do disposto no artigo 483.º do CC. (Sumário elaborado pela Relatora)
Texto Integral
Processo n.º 386/22.6T8ORM.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém[1]
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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:
I – RELATÓRIO 1.AA e BB, intentaram a presente ação contra CARAVELA – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.[3], pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe:
«- 12.300,00€ respeitantes ao custo da reparação;
- 10.000,00€ a título do custo da indemnização por privação de uso;
- 1.000,00€ a título de danos não patrimoniais;
Às quantias indicadas deve acrescer o valor que vier a apurar-se em audiência de julgamento referente a despesas de parqueamento da viatura.
Devem tais quantias ser acrescidas de juros à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento e custas».
Em fundamento alegou, em síntese, que um veículo pertencente à A. AA, e por si conduzido, foi interveniente num acidente de viação com outra viatura que se encontrava segurada pela R., sendo o condutor desse veículo o responsável pela ocorrência do acidente, na medida em que foi embater na traseira do veículo conduzido pela A.
Mais invocou que em resultado do acidente a viatura por si conduzida e a si pertencente sofreu estragos, que avaliou em 12.300€, sofreu danos decorrentes de ter estado privada da sua viatura desde a data do acidente e do parqueamento da viatura sinistrada na oficina onde vai ser reparada, dos quais pretende ser ressarcida.
Aduziu ainda que teve danos não patrimoniais devido às lesões que sofreu em consequência do acidente de viação em causa nos autos, que avalia em 1.000€, que igualmente pretende sejam indemnizados.
2. A Ré contestou, impugnando os factos alegados pelos AA., imputando à A. a responsabilidade pela ocorrência do acidente, invocando que esta invadiu a via por onde circulava o veículo segurado pela R., sem assinalar a manobra de mudança de direção à esquerda com a sinalização luminosa, e pedindo a sua absolvição do pedido. 3. Realizada a audiência final, foi seguidamente proferida sentença, que julgou improcedente a ação, e absolveu a Ré do pedido.
4. Inconformados, os Autores apresentaram o presente recurso de apelação, finalizando a sua minuta recursória com 106 conclusões (!), as quais, atenta a sua extensão e prolixidade[4], não se reproduzem, sintetizando-se nas seguintes[5]: «1- O presente recurso é tempestivo, incide sobre matéria de facto e de direito e tem como objecto a reapreciação da prova gravada 2-Os recorrentes discordam dos factos dados como provados e não provados e da decisão sobre a matéria de facto 3-Os concretos pontos de facto que se impugnam são: os provados 4,6,7,8,9,10, 11, 12, 13,16, 21, 22,23,24,25 e os não provados B a S 4-O tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação dos artigos 342 do CPC e 483 do CC 5-A gravação da prova produzida em audiência de julgamento apresenta falhas profundas traduzidas em distorção, interferências e ruídos. 6-Os depoimentos das testemunhas CC, DD, EE e da A. AA são inaudíveis, impercepíveis, pelo que não é possivel apreender o seu teor 7-A gravação da prova visa assegurar um efectivo 2º grau de jurisdição em matéria de facto (…) 15-Pelo que, se em sede de recurso, for questionada a decisão proferida sobre a matéria de facto e os depoimentos afetados forem considerados relevantes e essenciais para o julgamento dos factos colocados em crise, então teremos de concluir que a nulidade decorrente da deficiente gravação influi no exame da causa 16-e nessa medida é de conhecimento oficioso, atento o disposto no artigo 9 º do Dl 39/95 e artigo 196º do CPC (…) 21-A não ser assim, a sua não arguição tempestiva, apagaria o desvalor da violação cometida, sanado-se o vicio, e impossibilitando, como consequência, o recurso em matéria de facto. (…) 26-Presume-se que a prova ficou registada e é perceptível 27-Os sujeitos processuais só tem a possibilidade de controlar a qualidade da gravação quando lhe são entregues os registos da gravação 28-e isso acontece quando pretendem avaliar da necessidade e interesse de interpor recurso sobre a matéria de facto 29-Logo, é com a entrega dos registos que terá de iniciar a contagem do prazo para arguir a nulidade previsto no nº 3 do artigo 155 do CPC (…) 34-Os recorrentes apresentaram em 03/03/2023 um requerimento a solicitar a gravação da prova 35-A gravação foi disponibilizada aos recorrentes em 07/03/2023 (cota com a refª 927212233) 36-Verificou-se que uma parte muito significativa dos depoimentos das testemunhas CC, DD, EE e das declarações de parte da A. está impercepível, não sendo possível apreender o seu teor. 37-Os recorrentes apresentaram junto do tribunal a quo, nos termos do disposto nos artigos 155º e 196º a 197º do CPC, reclamação, sobre a qual ainda não foi proferida decisão. 38-A reclamação apresentada junto do tribunal a quo foi tempestiva. 39-O tribunal a quo levou em consideração para prova dos factos referidos nos pontos 2 a 13 o tribunal o depoimento da testemunha CC, cujo o depoimento considerou lógico, credível e convincente. 40-Para prova dos factos referidos nos pontos 2 a 13, 16 e 17 o tribunal levou também em consideração em consideração o depoimento da testemunha DD, cujo o depoimento considerou lógico, credível e convincente. 41-Para prova dos factos referidos nos pontos 17, 21, 22, 23 e 24 levou em consideração as declarações de parte da A e o depoimento da testemunha EE, que considerou convincentes. 42-Referiu ainda que “a prova que os AA. apresentaram nos autos em relação aos restantes factos por si alegados, foi simplesmente as declarações da A. AA, prestados em audiência de julgamento” 43-No presente recurso os recorrentes impugnam a decisão proferida sobre a matéria de facto e pedem a sua reapreciação 44-Os depoimentos e as declarações de parte afectados pela deficiente gravação são essenciais para a reapreciação da matéria de facto 45-não sendo percetíveis não consegue o recorrente dar cumprimento ao ónus que lhe impõe o artigo 640 do CPC 46-Pelo que, deve a nulidade invocada ser declarada e em consequência determinar-se a repetição dos depoimentos e das declarações de parte afetados, declarando-se inválidos os atos subsequentes nos termos do nº 2 do artigo 195 do CPC 47-Sem prejuízo de se entender que a nulidade supra referida torna inútil a apreciação das questões que a seguir se suscitam, ainda assim e à cautela se formulam: 48-O direito à tutela jurisdicional efectiva contido no artigo 20 da CRP implica o direito à prova, que engloba a possibilidade de propô-la e produzi-la 49-Na audiência de Julgamento, o digno magistrado, assumiu desde o início, a inquirição das testemunhas e fê-lo sem invocar qualquer razão para a avocar a si 50-veja-se os depoimentos das testemunhas CC, DD, EE, FF que apesar de inaudíveis e imperceptíveis, permitem ainda assim constatar que foi o digno magistrado quem conduziu as inquirições (cfr depoimentos gravados conforme registado nas atas das audiências de julgamento de 16/11/2022 e 26/01/2023) 51-ao fazê-lo limitou o direito dos AA. de, inquirindo as testemunhas por si indicadas, demonstrarem os factos que, em seu entender, suportavam os seus direitos 52-impôs uma estratégia de inquirição diferente daquela que estava preparada para ser utilizada pela sua mandatária 53-limitou a capacidade dos AA. de influenciarem o julgador 54-e isso não foi inócuo para a prova que viria a ser alcançada 55-Nos termos do disposto no artigo 516 do CPC o interrogatório da testemunha é feito pelo advogado da parte que a ofereceu 56-Ao juiz cabe o papel de completar, esclarecer e sanar duvidas 57-Esta formalidade legal visa acautelar o direito à prova 58-A omissão dessa formalidade, influíu no exame e na decisão da causa, influencia patente no facto de o tribunal a quo ter fundado a sua convicção no depoimentos das referidas testemunhas 59-assim como no facto de ter dado como não demonstrados factos cuja a prova cabia a A, mas que, por incumprimento do disposto no artigo 516 do CPC, não lhe permitiu produzir 60-Tribunal a quo violou o artigo 20 da CRP e o direito a prova que lhe está ínsito (…) 91-Pelo a conjugação do auto policial, do seu aditamento e das fotografias, com o local de embate, o local em que incidiu o embate nos veículos e o comportamento (movimento) dos veículos após o embate e as declarações prestadas em audiência de julgamento pelas testemunhas e pela A., não podia o tribunal a quo dar como provados os factos constantes dos pontos 2 a 13, 16 e 17 e como não provado o facto S 92-Na ata de audiência de Julgamento de 26/01/2023 consta na identificação da autora AA que a mesma é educadora de ensino especial 93-Pelo que o tribunal não podia dar como não provado o ponto G, o qual deve passar a constar dos factos provados 94-A conjugação dos pontos 23 e 24 dos factos provados com as declarações de parte da A. e as regras da experiência permitem dar como provado que a A. para realizar as suas deslocações para o trabalho e pessoais recorreu ao empréstimo de veículo junto de familiares. 95-Assim, o ponto H dos factos não provados deve passar a integrar os factos provados 96-A declaração de parqueamento junta aos autos em 31/10/2022 (refª 43729825), o orçamento junto com a p.i como doc.15, a participação de sinistro junta como doc.2 com o requerimento de 26/10/2022 (ref 43686635), o relatório de perda total junto como doc. 4 com a contestação, relatório de existência que faz parte integrante do relatório de perda total, identificam a oficina para onde foi rebocado o veículo da A. 97-A conjugação destes documentos com o facto provado 21, não permite dar como não provados os pontos I e J, mas antes dar como provado que: a) O veículo ..-..-VT encontra-se aparcado na oficina A..., Lda desde 22/01/2021 b) O veículo ..-..-VT, por força dos estragos que sofreu, ficou sem circular desde 22/01/2021 c) pelo parqueamento é devido o pagamento de 5€ diários, acrescido de IVA 98-e alterar o teor do ponto 21 dos factos provados por forma a que do mesmo passe a constar a identificação da oficina ou seja: “O veículo ..-..-VT foi rebocado do local onde ocorreu o sinistro, para a oficina A..., Lda” 99-O tribunal a quo admitiu as declarações de parte da A. AA 100-Os factos não provados K,L,M,N,O,P,Q, são factos pessoais e por isso reveis à prova documental, testemunhal e pericial 101-O tribunal atentou as declarações de parte, que considerou convincentes, para dar como provados os factos dos pontos 22 e 24 102- contudo, já não considerou essas declarações convincentes e bastantes para dar como provados os factos, pessoais, que constam dos pontos K,L,M,N,O,P,Q 103- justificando a sua decisão dizendo que esse depoimento apenas poderia ser utilizado como meio de prova se fosse produzida alguma outra prova adicional, isenta e objectiva, que confirmasse o teor do depoimento de parte que foi realizado. 104- Ora exigir que sobre factos estritamente do foro privado, íntimo ou pessoal da A. seja feita outra prova que não a que resultou das declarações de parte é uma concreta e intolerável ofensa do direito à prova, no quadro da garantia de um processo equitativo e da tutela jurisdicional efetiva dos direitos subjetivos e das demais posições jurídicas 105- Tal exigência traduziu-se numa violação do artigo 20 da CRP 106- As declarações de parte da A. são essenciais para a impugnação da matéria de facto dada como não provada nos pontos K,L,M,N,O,P,Q».
5. A Ré apresentou contra-alegações, pugnando pela confirmação da sentença recorrida. 6. Previamente ao despacho em que admitiu o recurso, o julgador pronunciou-se e indeferiu «o pedido de declaração de nulidade da gravação da prova produzida na audiência de julgamento, apresentado pelos AA., na medida em que a mesma não padece de deficiência que torne a prova produzida na audiência imperceptível.
Da mesma forma, indefere-se o pedido dos AA. para que fosse declarada a nulidade da prova produzida na audiência de julgamento e que a mesma fosse repetida».
Emitiu ainda pronúncia sobre a invocada nulidade da inquirição das testemunhas, por violação do direito à prova, e considerou arguida a nulidade por omissão de pronúncia sobre a reclamação apresentada, considerando que as mesmas não se verificam.
7. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objeto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[6], é pacífico que o objeto do recurso se delimita pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, pela sua ordem lógica, as questões a apreciar consistem em saber se: i) deve ser declarada a nulidade da prova oral produzida por deficiente gravação da prova e por violação do direito à prova; ii) em qualquer caso, deve ser modificada a matéria de facto dada como provada e não provada nos termos propugnados pelos Recorrentes; iii) o tribunal a quo fez uma errada interpretação do disposto nos artigos 342.º e 483.º do Código Civil.
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III – Fundamentos III.1. – De facto Na sentença recorrida foram considerados como provados, os seguintes factos (transcrição):
«1- A R. Caravela exerce a actividade seguradora em diversos ramos.
2- No dia 22 de Janeiro de 2021, pelas 15 horas, o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca e modelo: Volkswagen Golf, de matrícula ..-..-VT, circulava pela Avenida João XXIII, na localidade de Fátima, na área do concelho de Ourém, e de competência deste Juízo local civil do Tribunal de Ourém, pertencente e conduzido pela A. AA, no sentido Norte - Sul.
3- No local por onde circulava o veículo ..-..-VT, a estrada em causa tem três vias de trânsito, existindo duas faixas destinadas ao sentido de trânsito do veículo ..-..-VT, ou seja Norte – Sul, e uma outra faixa destinada ao sentido de trânsito oposto, ou seja Sul – Norte.
4- Na mesma data, hora, avenida, e sentido de trânsito, referidos em 2) e 3), circulava o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, de marca e modelo: Opel Movano, de matrícula ..-..-AE, propriedade da empresa EMIS Portugal, e conduzido pela testemunha CC, alguns metros mais atrás do veículo ..-..-VT.
5- Do lado esquerdo da Avenida, atento o sentido de trânsito por onde circulavam os veículos ..-..-VT e ..-..-AE, existem diversos parques de estacionamento, sendo o parque de estacionamento mais próximo, o identificado com o nº12.
6- Na ocasião referida em 2), ambos os veículos ..-..-VT e ..-..-AE, circulavam pela via direita das duas vias da hemi-faixa direita de rodagem, na Avenida referida em 1), no sentido Norte – Sul.
7- Na sequência, ao aproximar-se do veículo ..-..-VT, que seguia à sua frente, o veículo ..-..-AE deslocou-se para a faixa situada à esquerda das duas do seu sentido de trânsito, para ultrapassar aquela viatura ..-..-VT, passando a circular pela mesma, seguindo em frente, na direcção da rotunda Sul.
8- Na sequência do facto referido em 7), o veículo ..-..-AE, continuando a circular na via de trânsito esquerda da hemi-faixa direita, atento o sentido Norte – Sul da Avenida referida em 2), aproximou-se do veículo ..-..-VT, que continuava a circular na via direita de trânsito dessa mesma hemi-faixa direita, a fim de proceder à ultrapassagem deste último.
9- Na sequência do facto referido em 8), pretendendo aceder ao parque de estacionamento referido em 5), repentinamente, o veículo ..-..-VT invadiu a via de trânsito da esquerda da faixa direita de rodagem, atento o sentido de trânsito Norte – Sul da Avenida referida em 2), por onde continuava a circular o veículo ..-..-AE.
10- Na sequência, o veículo ..-..-VT atravessou-se à frente do veículo ..-..-AE.
11- Na sequência dos factos referidos em 9) e 10), o veículo ..-..-AE embateu com a parte da frente do lado direito na parte lateral esquerda traseira do veículo ..-..-VT, com incidência na zona da roda traseira esquerda.
12- Na sequência, o veículo ..-..-VT rodopiou, dando uma volta de 180 graus, saiu da estrada, invadindo a berma do lado esquerdo atento o seu sentido de trânsito e foi embater com a parte lateral traseira do lado direito num muro existente nessa berma a cerca o parque de estacionamento referido em 5), ficando virado para o lado oposto do sentido de trânsito por onde circulava.
13- O embate referido em 11), ocorreu na faixa esquerda da via de dois sentidos em causa, atento o sentido de trânsito Norte – Sul, por onde circulava o veículo ..-..-AE.
14- Na ocasião referida em 2), o piso da estrada no local onde ocorreu o embate referido em 11), encontrava-se molhado.
15- Na data referida em 2), o proprietário da viatura em causa, ou seja, a empresa EMIS Portugal, havia transferido para a R. Caravela a responsabilidade pelos danos em resultado de acidente de viação pelo veículo de matrícula ..-..-AE, através da celebração de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, com a apólice n.º ...22.
16- Na sequência dos embates referidos em 11) e 12), o veículo ..-..-VT sofreu estragos na sua parte lateral esquerda traseira e na parte lateral direita traseira, nomeadamente na roda traseira do lado esquerdo, que ficou empenada e com o eixo torcido, na porta traseira do lado esquerdo, nos faróis traseiros, do lado direito e do lado esquerdo, e ainda no pára-choques e no guarda-lamas, da parte lateral traseira do lado esquerdo, e da parte lateral traseira do lado direito.
17- Devido aos estragos que sofreu, designadamente na roda traseira do lado esquerdo, o veículo ..-..-VT ficou impossibilitado de circular pelos próprios meios.
18- Por incumbência da R., foi realizada uma peritagem aos estragos sofridos pelo veículo ..-..-VT na sequência do sinistro referido supra, tendo sido orçamentado o custo da reparação desses estragos na quantia de 9.950,43 euros.
19- O veículo ..-..-VT tinha o valor comercial de 2.700 euros, na data em ocorreu o sinistro referido em 11), antes de sofrer os estragos referidos em 16).
20- A R. obteve como melhor proposta para a aquisição do veículo ..-..-VT, com os estragos referidos em 16), a contrapartida de 311 euros.
21- O veículo ..-..-VT foi rebocado do local onde ocorreu o sinistro, para uma oficina.
22- Após os embates referidos em 11) e 12), a A. AA ficou muito nervosa e preocupada com o estado do filho menor que seguia na traseira do veículo ..-..-VT, que ficou em choque e começou a chorar.
23- Devido aos estragos que sofreu, referidos em 16), o veículo ..-..-VT ficou sem circular desde o dia referido em 2).
24- A A. utilizava a viatura ..-..-VT para se deslocar para o seu local de trabalho, para levar e trazer os seus filhos da escola e para deslocações pessoais.
25- A R. enviou à A., e este recebeu-a, a carta datada de 9 de Fevereiro de 2021, cuja cópia se encontra junta a fls. 92, verso, e 93, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, e na qual consta, designadamente que: “No seguimento da peritagem efectuada a vossa viatura, concluímos estarmos perante uma situação de perda total do veículo em apreço, dado que a sua reparação é economicamente inviável…- Valor da estimativa da reparação, 9.950,43 euros…- Valor venal: 2.700 euros; Valor do salvado, 311 euros ( melhor proposta recebida). Neste contexto e caso estivéssemos a assumir a responsabilidade, o valor a indemnizar seria de 2.389 euros, deduzido do valor do salvado acima avaliado que se manterá na posse do seu proprietário…concluídas as diligências necessárias com vista à tomada de posição, apuramos que a responsabilidade pela produção do presente sinistro lhe é imputável…”». E foram julgados não provados os seguintes factos:
«A- Quando os militares da GNR que tomaram conta da ocorrência, chegaram ao local onde ocorreu o sinistro, o veículo ..-..-AE estava a abandonar o local, e o veículo ..-..-VT estava em cima de um reboque.
B- Após o embate referido em 11) ficaram estilhaços de vidro e de plástico dos veículos sinistrados, na via do sentido de trânsito sul-norte da Avenida referida em 2).
C- Na ocasião referida em 2), o veículo ..-..-VT circulava pela via à esquerda das duas vias da hemi-faixa direita, atento o seu sentido de trânsito da Avenida mencionada em 2).
D- Na sequência da situação referida em C), ao aproximar-se da entrada para o parque de estacionamento nº12, a A. AA sinalizou com o pisca a intenção da realização da manobra de mudança de direcção à esquerda para o parque, e reduziu a velocidade do veículo ..-..-VT, ficando este quase parado.
E- Quando o veículo ..-..-VT estava a iniciar a manobra de mudança de direcção para a sua esquerda, o mesmo foi embatido na traseira pela parte da frente do veículo ..-..-AE, que não reduziu a velocidade ao aproximar-se do veículo ..-..-VT.
F- Na sequência do embate referido em E), o veículo ..-..-AE desviou-se para a hemi-faixa do sentido sul-norte da Avenida referida em 2).
G- A A. é professora de educação especial e presta serviços em várias escolas.
H- Para realizar as suas deslocações para o local de trabalho e pessoais, a A. recorreu ao empréstimo de veículos junto de familiares.
I- O veículo ..-..-VT ainda se encontra actualmente aparcado na oficina mencionada em 21).
J- A oficina referida em 21) cobra o custo do parqueamento do veículo ..-..-VT na mesma.
K- Sempre que tinha de falar do acidente, a A. ficava muito nervosa, chorando compulsivamente.
L- A A. AA teve grandes perturbações de sono, após a ocorrência do sinistro, designadamente tendo dificuldades em adormecer, necessitando de recorrer a calmantes para o fazer, e acordava sobressaltada e a chorar.
M- Após o sinistro a A. recusava-se a conduzir.
N- Quando, decorridos vários meses, a A. AA voltou a conduzir, recusava-se a transportar os filhos.
O- Era o A. BB que realizava o transporte diário dos filhos.
P- O veículo ..-..-VT tinha sido oferecido à A. pela sua irmã.
Q- Antes de ocorrer o sinistro, os AA. efectuaram uma pintura integral do veículo ..-..-VT.
R- A reparação dos estragos sofridos pelo veículo ..-..-VT, referidos em 16), em resultado do sinistro referido supra, terá o custo de 12.300 euros.
S- Quando se apercebeu da manobra do veículo ..-..-VT, o condutor do veículo ..-..-AE, ou seja, a testemunha CC, buzinou, e desviou a viatura para a sua esquerda».
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III.2. – O mérito do recurso III.2.1. – Das invocadas nulidades
Nas suas alegações de recurso, vieram os Apelantes invocar a existência de nulidade da prova produzida na audiência de julgamento, com o fundamento de que a gravação da mesma estaria impercetível, impedindo assim o segundo grau de jurisdição, que, a seu ver, deverá ser oficiosamente acautelado.
Mais invocam que ocorre nulidade por violação do direito à prova, em virtude de o julgador ter feito as instâncias das testemunhas.
Ora, importa começar por esclarecer os Apelantes que, ainda que se verificasse a nulidade da prova oral produzida por qualquer uma daquelas invocadas razões, – e não se verifica, como veremos –, como as mesmas não constituem nulidade da sentença, mas sim nulidades processuais, inominadas ou secundárias, mesmo a existirem, sempre haveriam de considerar-se sanadas, por não terem sido arguidas no decurso da audiência de julgamento, encontrando-se ali presente a sua Ilustre mandatária (cfr. artigos 195.º, n.º 1, 197.º, n.º 1, e 199.º, n.º 1, todos do CPC).
Com efeito, a respeito da questão atinente ao registo da prova oral, conforme a ora relatora já afirmou em anterior aresto desta Relação[7], que nesta parte seguimos de perto, em face do disposto no artigo 155.º, n.º 4, do CPC, «A falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada».
Não existindo na lei anterior resposta à questão de saber qual o vício decorrente da inaudibilidade do registo áudio «o artigo 155.º, n.º 4 veio resolver as dúvidas, impondo à parte o ónus de invocar a irregularidade no prazo de 10 dias a contar da data em que tenha sido disponibilizada a gravação (disponibilização que deve ocorrer no prazo de dois dias a contar do acto, nos termos do n.º 3) (…)
Tratando-se de uma nulidade processual, terá de ser arguida autonomamente, sendo submetida a posterior decisão do juiz a quo, não sendo admitida a sua inserção imediata nas alegações de recurso»[8].
Assim, é entendimento que cremos pacífico após a entrada em vigor do novo CPC, que decorrido esse prazo sem que seja arguido o vício em causa, fica o mesmo sanado, não podendo oficiosamente ser conhecido pela Relação, nem podendo tal nulidade ser arguida sequer nas alegações de recurso.
«Daí afirmar-se que “a omissão ou deficiência das gravações é, após a entrada em vigor do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, um problema que deve ficar definitivamente resolvido ao nível da primeira instância, quer pela intervenção oficiosa do juiz que preside ao ato quer mediante arguição dos interessados”[6], deixando de ser admissível que a parte interessada na arguição o possa fazer no prazo de interposição do recurso – 30 ou 40 dias -, nas respetivas alegações»[9].
Acresce que, chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade de interpretação semelhante efetuada a respeito dos correspondentes preceitos do Código de Processo Penal, o Tribunal Constitucional, pronunciou-se concluindo que «a norma segundo a qual a nulidade decorrente da falta ou deficiência da documentação da prova deve ser arguida no prazo de dez dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, não padece de inconstitucionalidade»[10].
Ora, como se concluiu no já citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, «[n]ão tendo este Tribunal acesso a um depoimento que estriba a impugnação da matéria de facto, fica o mesmo impossibilitado de efetuar a reapreciação da prova pretendida pelo apelante. Conforme se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.10.2014, Cristina Coelho, 250/09, «Se é certo que, com o NCPC, a Relação se assume como um verdadeiro tribunal de instância, procedendo à reavaliação da prova e expressando a sua própria convicção com total autonomia, não menos certo é que tal reapreciação terá de ser feita com os mesmos elementos com que o tribunal recorrido se defrontou.»
No caso vertente, afirma o julgador que não se verifica a invocada inaudibilidade, mas tal não assume relevância na economia do recurso. Com efeito, são os Apelantes quem invoca que a inaudibilidade dos depoimentos é de tal sorte que não lhes permitiu cumprir os ónus que o artigo 640.º do CPC impõe aos recorrentes que impugnem a decisão proferida sobre a matéria de facto. Donde, nessa perspetiva, tal incumprimento sempre determinaria a rejeição do recurso no segmento atinente à impugnação da matéria de facto.
Com efeito, não tendo o Tribunal acesso a um depoimento que estriba a impugnação da matéria de facto, entende-se que fica o mesmo impossibilitado, total ou parcialmente, consoante a extensão da impercetibilidade das declarações em causa, de efetuar a pretendida reapreciação da prova.
Na realidade, voltando à perspetiva convocada pelos Apelantes da inaudibilidade dos depoimentos, e sendo certo que para reapreciar a prova produzida em primeira instância este tribunal tem que estar em condições para firmar na parte impugnada a respetiva convicção, devendo a Relação estar nas mesmas condições em que se encontrou a primeira instância, o certo é que, mesmo que a nulidade processual decorrente da inaudibilidade parcial ou total das declarações de parte e depoimentos não estivesse sanada, nunca teria as consequências pretendidas pelos Recorrentes de anulação da prova produzida, pela simples mas evidente razão de que tal prova não poderia ser apenas parcialmente considerada pelo tribunal superior, por estar inviabilizada a reapreciação do depoimento ou declarações prestadas.
Significa isto que, tal limitação apenas ocorre quanto à pretendida reapreciação da matéria de facto, mas não belisca a sua relevância na formação da convicção do julgador em primeira instância, conforme os Recorrentes parecem entender. Ao contrário, o facto de não poder haver sindicância da convicção formada pelo julgador, não determina a anulação oficiosa do julgamento, antes fixa a convicção do juiz tal como vem formada, precisamente porque impede que a mesma, nessa parte, seja reapreciada pela Relação.
Acresce que, o que vimos de dizer no tocante à arguição de qualquer nulidade processual, aplica-se de pleno no caso vertente a eventual irregularidade que houvesse sido cometida pelo julgador, quer no decurso dos depoimentos das testemunhas quer nas declarações de parte, a qual se encontra inelutavelmente sanada porquanto, para além do já referido quanto à necessidade de ser suscitada em primeira instância, a audiência final na qual foram prestadas as declarações de parte e ouvida a prova testemunhal teve lugar no dia 26.01.2023, conforme a respetiva ata atesta, e as alegações do presente recurso foram apresentadas em 20.03.2023.
Finalmente, refira-se, que a violação do «direito à prova» convocado pela Recorrente como fundamento da pretendida anulação, não tem a dimensão que a mesma lhe pretende conferir.
Com efeito, de acordo com o preceituado no artigo 341.º do Código Civil[11] que rege sobre a função das provas, estas visam a demonstração da realidade dos factos.
Quais factos?
Aqueles que à parte – que invocar um direito ou àquela contra quem a invocação é feita –, cabe alegar e provar, nos termos conjugadamente decorrentes do disposto nos artigos 342.º do CC e 5.º, n.º 1, do CPC, ou seja, os factos constitutivos do seu direito ou da sua defesa, relativamente aos quais, a dúvida sobre a sua realidade e sobre a repartição do ónus da prova, se resolve contra a parte a quem o mesmo aproveita, em face do comando ínsito no artigo 414.º do CPC.
Consequentemente, o ónus da prova «traduz-se para a parte a quem compete, no encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantajosas consequências de (…) sofrer tais consequências se os autos não contiverem prova bastante desse facto (trazida ou não pela mesma parte».
Assim, as regras do ónus da prova reconduzem-se a verdadeiras regras de decisão: «tem o ónus da prova aquela parte contra a qual, na dúvida, o juiz sentenciará – resolvendo, para o efeito, o non liquet num liquet desfavorável a essa parte»[12].
Deste modo, e observando agora o que vimos de dizer à luz do princípio constitucional do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva vertido no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa[13], podemos estabelecer como ponto de partida que o direito de acesso à justiça constitucionalmente consagrado comporta o direito das partes à produção de prova sobre os factos carecidos de demonstração[14], atendendo ainda, no âmbito do direito civil, ao facto de a referida garantia constitucional de acesso aos tribunais, se encontrar desde logo plasmada no artigo 2.º, n.º 2, do CPC, de acordo com o qual a todo o direito corresponde uma ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação.
Com este pano de fundo poderia pensar-se que o direito à prova é uma espécie de direito absoluto, mormente quando coberto pela capa de uma determinação do juiz quer no uso dos deveres instrutórios que a lei lhe impõe quer quando defira um determinado meio de prova a requerimento da parte que beneficia da respetiva produção, atuando a coberto do dever de cooperação para a descoberta da verdade, vertido no artigo 417.º do CPC, podendo, até este tribunal na perspetiva dos Apelantes determinar a anulação do julgamento pelos fundamentos por si indicados, para lhe conferir um direito ao segundo grau de jurisdição em matéria de facto.
Mas não é assim.
Efetivamente, à semelhança do que acontece nos demais casos de colisão de direitos, também quando estamos perante o confronto de duas espécies de direitos com tutela constitucional, outros princípios importa ter em conta, porquanto tal também decorre designadamente do comando constitucional ínsito no artigo 16.º da CRP, salvaguardando que os direitos fundamentais consagrados na constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis (…).
Ora, os AA. exerceram plenamente o respetivo direito a produzir a prova que indicaram. Acontece que, produzida a mesma, dissentiram da convicção formada pelo julgador. Tinham, pois, ao seu alcance a ampla possibilidade recursiva que a lei lhes confere, de interpor recurso para reapreciação do julgamento de facto. Para o efeito, a lei estabelece os ónus vertidos no artigo 640.º do CPC, que os Apelantes não cumpriram.
Portanto, o seu amplo direito de ação e de recurso não lhes foi coartado. Se não cumpriram os ónus respetivos sibi imputet.
Não podem agora, sob a capa da oficiosidade pretender exercer direitos que tinham e não exerceram oportunamente, sob pena de intolerável violação do princípio da igualdade das partes.
Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, improcedem as nulidades arguidas.
*****
III.2.2. Da impugnação da matéria de facto
Pretendem os Apelantes a reapreciação por este Tribunal dos factos provados sob os n.ºs 4, 6 a 13,16, 21 a 25, e os factos não provados constantes das alíneas B) a S).
Porém, como já vimos, os Apelantes não deram cumprimento aos ónus a cargo do recorrente que impugne a matéria de facto, que se encontram previstos no artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC, o que impõe a rejeição do recurso na parte em que depende da prova oral produzida.
Na realidade, salvo se algum dos factos impugnados tiver sido julgado provado ou não provado com violação pelo julgador de prova tarifada, cuja inobservância este tribunal poderia sindicar nos termos do artigo 662.º, n.º 1, do CPC, a matéria de facto que vem provada e não provada de primeira instância, para cuja convicção tenha sido relevante a prova oral produzida, deverá manter-se incólume.
Ora, basta atentar no teor dos pontos de facto impugnados, para concluir que não estamos perante matéria que decorra de prova vinculada cuja inobservância este tribunal poderia sindicar nos termos do artigo 662.º, n.º 1, do CPC.
Com efeito, conforme decorre da fundamentação da matéria de facto, para além de outros meios de prova indicados, afirmou o julgador que para a prova dos factos referidos nos pontos 2) a 13), o Tribunal levou em consideração o depoimento das testemunhas CC, que conduzia o veículo segurado pela R. e o depoimento da testemunha DD, este também quanto ao ponto 16). Pelas razões acima indicadas, não podendo este Tribunal sindicar tais depoimentos, tais factos não podem ser modificados.
Igual sorte, e pelos mesmos fundamentos, merecem os factos provados de 21) a 24), já que o julgador consignou que a respeito destes «levou-se em consideração as declarações de parte da A. AA, e ainda o depoimento da testemunha EE, que é amiga da A. e que chegou ao local do sinistro após ocorrer o acidente», igualmente insindicáveis por este Tribunal.
Quanto ao ponto 25 é a mera reprodução da carta enviada pela Ré à Autora, que naturalmente não vincula o tribunal porque não é um facto e como meio de prova, demonstra apenas que a posição ali vertida foi assumida pela Ré junto da autora.
No que tange aos factos não provados, considerou o tribunal a quo que «a A. não fez prova, ou prova convincente, nomeadamente quer testemunhal, quer documental, quanto a estes factos por si alegados, conforme lhe competia nos termos do artigo 342º, do Código Civil, por ter o respetivo ónus, não se dando assim os mesmos como demonstrados. O Tribunal não considerou para efeito de prova o depoimento da testemunha GG, na medida em que o mesmo não demonstrou ter qualquer conhecimento directo dos factos, limitando-se a realizar uma análise do acidente. Ora, quem faz a análise dos termos como ocorreu o acidente, tendo em conta as provas produzidas, é o julgador e não as testemunhas. Além disso, a prova que os AA. apresentaram nos autos em relação aos restantes factos por si alegados, foi simplesmente as declarações da A. AA, prestadas na audiência de julgamento. Esse depoimento apenas poderia ser utilizado como meio de prova se fosse produzida alguma outra prova adicional, isenta e objectiva, que confirmasse o teor do depoimento de parte que foi realizado. Ora, no caso concreto não se vislumbra que tenha sido produzida qualquer prova adicional, isenta, objectiva e imparcial, que viesse confirmar o teor das declarações prestadas pela A. quanto a esses outros factos. Daí esses factos não terem ficado provados».
Dissentem os Apelantes, defendendo que «Os factos não provados K,L,M,N,O,P,Q, são factos pessoais e por isso reveis à prova documental, testemunhal e pericial O tribunal atentou as declarações de parte, que considerou convincentes, para dar como provados os factos dos pontos 22 e 24. Contudo, já não considerou essas declarações convincentes e bastantes para dar como provados os factos, pessoais, que constam dos pontos K,L,M,N,O,P,Q. Ora, exigir que sobre factos estritamente do foro privado, íntimo ou pessoal da A. seja feita outra prova que não a que resultou das declarações de parte é uma concreta e intolerável ofensa do direito à prova, no quadro da garantia de um processo equitativo e da tutela jurisdicional efetiva dos direitos subjetivos e das demais posições jurídicas. Tal exigência traduziu-se numa violação do artigo 20 da CRP».
Terminam afirmando que «as declarações de parte da A. são essenciais para a impugnação da matéria de facto dada como não provada nos pontos K,L,M,N,O,P,Q».
Como já dissemos, não tendo os Apelantes cumprido o ónus que sobre si impende, designadamente não tendo procedido à transcrição das passagens das declarações da autora em que assenta a sua divergência, não pode este tribunal modificar qualquer uma daquelas alíneas da matéria de facto não provada.
Acresce que, apesar de não termos a posição de princípio de que as declarações de parte tenham sempre que ser corroboradas por outros meios de prova, o certo é que nenhum dos factos vertidos nas ditas alíneas configura facto estritamente do foro privado, íntimo ou pessoal da A., que não permita seja feita outra prova. Donde, não se alcança onde é que os Apelantes encontram a veiculada violação do direito à prova ou do ónus da prova, que não vislumbramos.
Consequentemente, sendo a convicção do julgador sobre os pontos de facto impugnados assente em prova oral produzida, e não tendo os Apelantes cumprido os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão da matéria de facto, que o n.º 2 alínea a) do artigo 640.º do CPC, sobre si faz impender, impõe-se a imediata rejeição do recurso nessa parte.
Deste modo, a matéria de facto, provada e não provada, fica estabilizada tal como decidida em primeira instância.
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III.2.3. Responsabilidade civil
Invocaram os Apelantes, a violação do disposto no artigo 483.º do Código Civil[15], que estabelece “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".
Acresce que, nos termos genéricos do artigo 342.º do CC, também afirmados a propósito da matéria referente à responsabilidade civil, no artigo 487.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, ao autor (lesado) incumbe a prova dos factos constitutivos do direito invocado, no caso, “a culpa do autor da lesão”, apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso – n.º 2 do citado artigo 487.º – incumbindo, ao invés, à ré a prova de que o acidente ocorreu por culpa do lesado.
Como é bom de ver, a pretendida revogação da sentença recorrida dependia da modificação da matéria de facto provada e não provada quanto à responsabilidade pela ocorrência do acidente.
Permanecendo incólume tal decisão, a pretensão veiculada pelos Apelantes está votada ao insucesso, como decidido em primeira instância.
Efetivamente, a responsabilidade extracontratual é uma responsabilidade pessoal, e não objetiva pela circulação de veículos ou de outras coisas e é sobre a pessoa responsável que recai o dever de indemnizar, daí que o seguro de responsabilidade civil por acidente de viação seja sempre pessoal, apesar de destinado ao uso de um certo e determinado veículo ou à sua direção efetiva, razão pela qual assenta na atuação ilícita ou com risco do respetivo condutor.
Conforme decorre da matéria de facto não provada na presente ação os Autores não lograram provar os factos que havia alegado tendentes a demonstrar a culpa efetiva e exclusiva do condutor do veículo segurado na ré, na produção do acidente, pressuposto da respetiva obrigação de indemnizar integralmente os danos decorrentes do mesmo.
Por seu turno, a Ré invocou que a responsabilidade pela ocorrência do acidente era exclusivamente imputável à conduta estradal da autora, o que veio a demonstrar.
Com efeito, como ficou expresso na sentença recorrida, «o veículo ..-..-VT, pertencente e conduzido pela A. AA, circulava pela Avenida referida em 2), na via situada mais à esquerda das duas vias que existiam na hemi-faixa por onde seguia, tendo abrandado para realizar uma manobra de mudança de direcção à esquerda para um parque de estacionamento ali existente. Que atrás do veículo ..-..-VT circulava a referida viatura ..-..-AE, que não teria abrandado a velocidade quando se aproximou daquele. Na sequência o veículo ..-..-AE teria ido embater com a parte da frente na traseira do veículo ..-..-VT. Que tal embate teria ficado a dever-se ao facto de o veículo ..-..-AE não ter mantido do veículo da frente a distância necessária para abrandar quando se aproximou do mesmo. E ainda que o veículo ..-..-AE circulava a uma velocidade excessiva que o impediu de parar no espaço livre e visível à sua frente e de evitar o embate com o veículo ..-..-VT.
Consequentemente, não ficou demonstrado que o condutor do veículo ..-..-AE, ou seja a testemunha CC, teria cometido a infracção aos artigos 18º e 24º, do Código da Estrada, ou seja que não tenha guardado a distância de segurança para o veículo da frente, e que circulava a uma velocidade excessiva que o impediu de parar no espaço livre e visível à sua frente.
Pelo contrário, ficou demonstrado nos autos que, na ocasião em que ocorreu o acidente de viação aqui em causa, o veículo ..-..-VT circulava na via mais à direita duas vias que fazem parte da mesma hemi-faixa da Avenida referida em 2), e que o veículo ..-..-AE circulava na via mais à esquerda, daquelas duas vias, e se preparava para ultrapassar aquele».
Mais se provou que ao aproximar-se do veículo ..-..-VT, que seguia à sua frente, o veículo ..-..-AE deslocou-se para a faixa situada à esquerda das duas do seu sentido de trânsito, para ultrapassar aquela viatura ..-..-VT, passando a circular pela mesma, seguindo em frente, na direcção da rotunda Sul; na sequência, o veículo ..-..-AE, continuando a circular na via de trânsito esquerda da hemi-faixa direita, atento o sentido Norte – Sul da Avenida referida em 2), aproximou-se do veículo ..-..-VT, que continuava a circular na via direita de trânsito dessa mesma hemi-faixa direita, a fim de proceder à ultrapassagem deste último; e nessa sequência, pretendendo aceder ao parque de estacionamento, repentinamente, o veículo ..-..-VT invadiu a via de trânsito da esquerda da faixa direita de rodagem, atento o sentido de trânsito Norte – Sul da Avenida referida em 2), por onde continuava a circular o veículo ..-..-AE, e atravessou-se à frente deste veículo que embateu com a parte da frente do lado direito na parte lateral esquerda traseira do veículo ..-..-VT, com incidência na zona da roda traseira esquerda.
Ora, de acordo com a regra geral, constante do artigo 35.º, n.º 1, do Código da Estrada[16], «o condutor só pode efetuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito», explicitando o artigo 44.º, n.º 1, a respeito da mudança de direção para a esquerda que o condutor que pretenda efetuar esta manobra «deve aproximar-se, com a necessária antecedência e o mais possível, do limite esquerdo da faixa de rodagem ou do eixo desta, consoante a via esteja afeta a um ou a ambos os sentidos de trânsito, e efetuar a manobra de modo a entrar na via que pretende tomar pelo lado destinado ao seu sentido de circulação», acrescentando o n.º 2, que «se tanto na via que vai abandonar como naquela em que vai entrar o trânsito se processa nos dois sentidos, o condutor deve efetuar a manobra de modo a dar a esquerda ao centro de intersecção das duas vias» (sublinhámos).
Assim, basta cotejar a matéria de facto dada como provada com os comandos decorrentes do Código da Estrada para concluirmos que nenhuma das obrigações que sobre si impendiam para mudar de direção à esquerda, atravessando, por via dessa manobra, a via destinada ao trânsito que circulava em sentido contrário, foi cumprida pela autora, e, ao invés, não se tendo provado factos dos quais se inferisse que o condutor do veículo pertencente ao segurado da Ré foi embater naquele quando se encontrava quase parado para realizar a dita manobra, nem qualquer outra circunstância, designadamente do estado da via ou do tempo, que pudesse influir no evento danoso, dúvidas não podem existir de que a responsabilidade pela ocorrência do embate se deveu única e exclusivamente à conduta da condutora, autora nos autos, não se vislumbrando, com a absolvição da Ré, qualquer violação do disposto no artigo 483.º do CC, pois que não está demonstrada a prática de qualquer ilícito estradal pelo condutor do veículo segurado.
Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, improcede totalmente a apelação, sendo de confirmar a sentença recorrida.
Vencidos, os Apelantes suportam as custas recursivas devidas, apenas na vertente de custas de parte – artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do CPC.
*****
IV - Decisão
Pelo exposto, acordam as juízas deste Tribunal da Relação, na improcedência da apelação, em confirmar a sentença recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
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Évora, 12 de outubro de 2023
Albertina Pedroso [17]
Ana Pessoa
Maria João Sousa e Faro
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[1] Juízo Local Cível de Ourém.
[2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.ª Adjunta: Ana Pessoa; 2.ª Adjunta: Maria João Sousa e Faro.
[3] A ação foi inicialmente instaurada contra a R. Generali, na qualidade de seguradora de danos próprios, mas esta invocou a sua ilegitimidade, e veio a ser absolvida da instância por decisão transitada, pelo que não importa neste momento relatar incidências processuais que não relevam na economia do recurso.
[4] Em claro incumprimento do dever de concluir de forma sintética, imposto pelo artigo 639.º, n.º 1, do CPC, praticamente reproduzindo o corpo das alegações.
[5] Que bastam para a compreensão da pretensão recursiva, mantendo-se a numeração constante da peça processual.
[6] Doravante abreviadamente designado CPC.
[7] Cfr., o Acórdão proferido em 11.01.2018, no processo n.º 18/11.8T8LLE.E1, disponível em www.dgsi.pt, sítio onde se encontram acessíveis os demais acórdãos que venham a ser mencionados sem indicação de outra origem.
[8] Cfr. ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina 2017, 4.ª edição, pág. 167.
[9] Cfr. por todos o Ac. TRL de 30.05.2017, processo n.º 298/13.4TBSCR.L1-7, citando extensamente o Ac. TRP de 17.12.2014 e indicando no mesmo sentido outros Acórdãos que ali identifica, explicando ainda os fundamentos e vantagens desta alteração legislativa.
[10] Cfr. Acórdão n.º 118/2017 de 15.03.2017, Processo n.º 636/2016, Relator: Teles Pereira, disponível em JusNet 1474/2017.
[11] Doravante abreviadamente designado CC.
[12] Cfr. MANUEL DE ANDRADE, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora 1979, respetivamente a págs. 197 e 199.
[13] Doravante abreviadamente designada CRP.
[14] Cfr. neste sentido, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, in As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lisboa, 1995, págs. 228 e segs., e ISABEL ALEXANDRE in As Provas Ilícitas em Processo Civil, Almedina 1998, pág. 76.
[15] Doravante CC.
[16] Doravante abreviadamente designado CE.
[17] Texto elaborado e revisto pela Relatora, e assinado eletronicamente pelas três desembargadoras que integram esta conferência.