IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REQUISITOS
DIVÓRCIO SEM CONSENTIMENTO DO OUTRO CÔNJUGE
SEPARAÇÃO DE FACTO
RUPTURA CONJUGAL
Sumário


I – A reapreciação da prova em segunda instância não configura um segundo julgamento, não se admitindo pedidos de alteração genericamente formulados, situação que necessariamente ocorre quando são integral e acriticamente transcritos os depoimentos para significar a discordância quanto a pontos concretos da matéria de facto, sem que se proceda à identificação dos concretos momentos da prova oral produzida em que assenta a discordância do recorrente quanto à convicção formada pelo julgador.
II – Não estando prevista a possibilidade de convidar o recorrente a aperfeiçoar as alegações de recurso quanto ao incumprimento dos ónus impostos a quem impugne a decisão relativa à matéria de facto, o incumprimento pelo recorrente do ónus imposto pelo artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC, impõe a imediata rejeição do recurso nessa parte.
III – A rutura definitiva da vida em comum, que nos termos do artigo 1781.º, alínea d), do CC, constitui fundamento de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, não depende do decurso de um prazo mínimo mas da gravidade e definitividade do elenco factual que leve à conclusão de que se mostra preenchida aquela cláusula geral, mesmo quando a separação de facto entre os cônjuges ocorreu há menos de um ano.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral


Processo n.º 44/22.1T8TMR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém[1]

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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I. – RELATÓRIO
1. AA instaurou a presente ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra BB, alegando, em síntese, que casaram um com o outro em 24 de setembro de 1983, mas desde finais de julho de 2021, na sequência de um conjunto de situações que invoca, não vivem em comum, não dormem juntos, não tomam refeições juntos, não mantêm laços de afetividade, cada um vive num andar da casa de habitação, fazem vidas em separado e a A. não tem intenção de restabelecer a vida em comum com o Réu.
Termina requerendo a dissolução do vínculo matrimonial com fundamento na alínea c) do artigo 1781.º e do n.º 1 do artigo 1782.º, ambos do Código Civil[3].

2. Citado, o Réu apresentou contestação, alegando, em síntese, que o invocado nos artigos 5.º a 51.º da petição inicial não corresponde à verdade, no sentido e alcance que a Autora lhes quer dar, impugnando-os motivadamente, contrapondo designadamente que “não é colaborador da empresa P..., é sócio. É casado com a sócia gerente, a ora A.”; a “A. vive com o R. e neste momento com a filha e uma neta”; a “A. tanto discute com o Réu”, “como no dia seguinte trata o R. muito bem”; “a A. está sempre presente e organiza festas com as filhas, netos cunhados e restante família”; a A. tem acompanhamento psicológico e psiquiátrico” por não estar “bem do foro psiquiátrico”, o comportamento da A. alterna “entre o muito bem disposto e o muito mal disposto”; o R. ama “profundamente a A.”.
Conclui pugnando pela improcedência da ação.

3. Frustrada a tentativa de conciliação, foi realizada a audiência final em 24.05.2022, tendo em 31.03.2023 sido proferida sentença que julgou procedente a ação, declarando o divórcio entre a A. e o R., e a consequente dissolução do respetivo casamento.

4. Inconformado, o Réu apresentou o presente recurso de apelação, terminando com as seguintes conclusões:
«1 - Alegou a A. na sua p.i. que a A. e R. vivem separados desde finais de Julho de 2021 e que no dia 27-04-2020, A. e R. desentenderam-se, porque a A. se apercebeu que tinha sido enganada, isto porque o R. já tinha tido alta da Companhia de seguros no dia 19- 03-2020, referente ao acidente de trabalho que sofrera no dia 7-02-2020, sendo este o único fundamento para a propositura da acção de divorcio.
2 - Será este um fundamento válido? Será este o motivo? Existe algum fundamento para a propositura da acção de divorcio por parte da A.?
3 - Não se vislumbra na p.i. outro fundamento, nem da audiência de julgamento resulta provado tal fundamento.
4 - Estamos perante um Capricho da A. quanto ao divorcio uma vez que resulta dos depoimentos quer da A. quer do R., quer das duas testemunhas da A. que passamos a transcrever precisamente o contrário. Senão vejamos:
5 - A douta sentença em recurso não reflecte salvo o devido respeito o que se provou na Audiência de julgamento bem como os factos alegados pela A. na sua p.i. que em momento algum esta logrou provar.
6 - Com efeito a A. não logrou provar o único fundamento que invoca para o divórcio que a A. e R. vivem separados desde finais de Julho de 2021 e que no dia 27-04-2020, A. e R. desentenderam-se, porque a A. se apercebeu que tinha sido enganada, isto porque o R. já tinha tido alta da Companhia de seguros no dia 19- 03-2020, referente ao acidente de trabalho que sofrera no dia 7-02-202,
7 – Apesar dos depoimentos de parte de A. e R. e das duas testemunhas da A. o Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo” deu como provado que […[4]]
8 - Salvo o devido respeito não foram provados os factos dados como provados sob os números: 11 a 18 da douta sentença.
9 - Assim como quanto aos factos dados como não provados entende o A. que ficaram provados os seguintes factos: ii) O Réu é sócio da sociedade comercial de que a A. é sócia; iii) O Réu e a A. residem juntos atualmente na mesma casa e juntamente com uma filha e uma neta daqueles; iv) O Réu ama a Autora; v) O Réu e a Autora mantêm relação feliz entre si
10 - Refere a A. na sua p.i. que adquiriu o direito a requerer a dissolução do vínculo matrimonial com o fundamento nos termos da al. c) do artº 1781º e do nº 1 do artº 1782º, ambos do C. Civil.
11 - Tal fundamento não se encontra provado em algum momento. Nem quanto aos factos alegado na p.i. nem da prova produzida em audiência nomeadamente das declarações de parte de A. e R. e dos depoimentos das testemunhas da A.
12 - Refere o Meritíssimo Juiz na douta sentença que essa separação não decorre continuamente há mais de um ano à data da propositura da ação e do julgamento, pelo que é manifesto e isento de dúvida que não está preenchida a hipótese normativa prevista na alínea a) do artº 1781º do Código Civil. Mas a ausência de comunhão apurada é intensa, é duradoura, e sobretudo revela fundamento numa ausência de manutenção de afeto mútuo por a A. não sentir afeto pelo Réu. Tanto basta para materializar o fundamento de divórcio. Daí que se imponha considerar verificado o fundamento previsto na alínea d) do artº 1781º citado.
13 - Ou seja, não existe separação de facto há mais de um ano, mas entendeu o Meritíssimo Juiz que ficou provada a ausência de comunhão de vida.
14 - Não podemos concordar com tal decisão uma vez que A. e R. continuam a trabalhar juntos na empresa de ambos, vivem na mesma casa e convivem com as filhas e netos, quer em festas de aniversário quer em outras festividades.
15 - Por tais factos e pelos que atrás invocados não estão reunidas as condições de facto e de direito para se decretar o divórcio entre A. e R».

5. Não foram apresentadas contra-alegações.

6. Observados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. O objeto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[5], é pacífico que o objeto do recurso se limita pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, no caso em apreço, as únicas questões objeto do recurso são as de saber:
i) se deve ser modificada a decisão proferida sobre a matéria de facto;
ii) se não estão verificados os fundamentos para decretar o divórcio entre A. e R..
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III – Fundamentos
III.1. – De facto
Na sentença recorrida foram julgados provados os seguintes factos:
«1. No dia 24 de setembro de 1983, AA e BB casaram um com o outro, com convenção antenupcial outorgada mediante escritura pública lavrada em 8 de setembro de 1983.
2. E a Ré passou a chamar-se AA.
3. Esse casamento está registado no assento de casamento n.º ...00 do ano de 2014 da Conservatória do Registo Civil de Tomar por informatização do assento de casamento n.º ...83.
4. Após a data referida em 1, Autora e Réu residiram juntos, na mesma casa.
5. Em data não apurada de abril de 2020 A. e Réu desentenderam-se por aquela se ter apercebido que este lhe ocultara já ter tido alta médica há alguns dias e o Réu permanecer então em casa sem trabalhar, ocupado com atividade física em bicicleta estática e a visionar filmes de caça e pesca.
6. Após esse desentendimento, a A. assumiu pernoitar então no rés do chão da casa em que habitavam.
7. No dia seguinte vários objetos de uso da A. foram retirados do 1º andar para o rés do chão dessa casa pelo Réu e outrem, nomeadamente algumas filhas de ambos, sem conhecimento e sem consentimento da Autora.
8. Isso causou tristeza à Autora.
9. A A. permaneceu a residir sozinha no rés do chão dessa casa até data não apurada de setembro/outubro de 2020, altura em que voltou a residir com o Réu na mesma casa.
10. Porém, em data não apurada do período de 23 de maio a julho de 2021, A. e Réu passaram a residir em casas separadas, ficando o Réu a habitar no 1º andar e a Ré a habitar no rés do chão da casa onde antes habitavam juntos, sem acesso interior.
11. Desde então a A. e o Réu não tomam refeições juntos, embora já tenham estado ambos em encontro familiar por aniversário de filha comum e em almoço para anúncio de género de neto que estava em gestação.
12. Não dormem juntos.
13. Deixaram de conviver e de dialogar, salvo por questões de trabalho na empresa onde ambos trabalham.
14. Não mais dormiram juntos na mesma cama.
15. Não mais mantiveram relações íntimas.
16. Não mais organizaram a sua vida em conjunto.
17. Não mais a A. mantém afeto pelo Réu.
18. A Autora não pretende retomar a vida em comum com o Réu.
19. A petição inicial foi apresentada em Tribunal no dia 7 de janeiro de 2022.
E foram considerados como FACTOS NÃO PROVADOS os seguintes:
«i) O facto descrito em 10 ocorreu exatamente nos finais de julho de 2021;
ii) O Réu é sócio da sociedade comercial de que a A. é sócia;
iii) O Réu e a A. residem juntos atualmente na mesma casa e juntamente com uma filha e uma neta daqueles;
iv) O Réu ama a Autora;
v) O Réu e a Autora mantêm relação feliz entre si;
vi) O Réu ameaçou a A. para esta se manter a residir no rés do chão».
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III.2. – O mérito do recurso
III.2.1. Da impugnação da matéria de facto
Conforme resulta das conclusões 8. e 9., o Recorrente considera que não foram provados os factos declarados provados sob os números 11 a 18 da sentença, e inversamente, que ficaram provados os factos julgados não provados de ii) a v).
Apreciando.
Como é sabido, quando impugna a matéria de facto, o recorrente tem de cumprir os ónus que sobre si impendem, sob pena de rejeição, conforme preceituado no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) a c), e n.º 2, alínea a), do CPC.
De tal preceito decorre que a lei exige o cumprimento pelo Recorrente dos seguintes requisitos cumulativos:
i) a indicação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
ii) a indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados;
iii) a indicação da decisão que, no seu entender, deve ser proferida quanto aos indicados pontos da matéria de facto;
iv) a indicação, com exatidão, das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, isto quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, sem prejuízo da faculdade que a lei concede ao Recorrente de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Na verdade, conforme consta exemplarmente sintetizado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.10.2015[6], frequentemente citado pelos tribunais superiores, nestes requisitos cumulativos, a jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal tem vindo a distinguir dois tipos de ónus, a saber: i) “um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes”; e ii) “um ónus secundário – tendente, não tanto a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida – que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização das passagens da gravação relevantes”.
Conforme mais recentemente se sumariou no Acórdão STJ de 02.02.2022[7], citando no mesmo sentido vários arestos que após aquele têm vindo a sedimentar esta que se considera ser a melhor interpretação do preceito, estribada também nos ensinamentos da mais recente doutrina:
“I. Os ónus primários previstos nas alíneas a), b) e c) do art.º 640.º do CPC são indispensáveis à reapreciação pela Relação da impugnação da decisão da matéria de facto.
II. O incumprimento de qualquer um desses ónus implica a imediata rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões”.
Sublinha ABRANTES GERALDES[8], que a verificação do cumprimento destas exigências deve ser feita à “luz de um critério de rigor”, porquanto “trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”, enfatizando que tais exigências devem ser o “contraponto dos esforços de todos quantos, durante décadas, reclamaram a atenuação do princípio da oralidade pura e a atribuição à Relação de efetivos poderes de sindicância da decisão da matéria de facto como instrumento de realização de justiça”.
Na verdade, e conforme mais desenvolvidamente se explica na fundamentação do citado aresto, “o ónus primário refere-se à exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, conforme previsto nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do citado artigo 640.º, visa fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto e tem por função delimitar o objeto do recurso. (…)
Relativamente ao ónus primário, nem sequer é possível recorrer às alegações para suprir deficiências das conclusões, uma vez que são estas que enumeram as questões a decidir e delimitam o objeto do recurso, devendo, quanto à impugnação da decisão de facto, identificar os concretos pontos de facto impugnados e a decisão pretendida sobre os mesmos, bem como os concretos meios de prova que imponham tal decisão.
Daí que, quando falte a especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, deva ser rejeitado o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, o mesmo sucedendo quanto aos restantes dois requisitos, nomeadamente a falta de indicação da decisão pretendida sobre esses mesmos factos”.
O critério de rigor que deve ser seguido na apreciação da verificação dos requisitos formais previstos nas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 640.º, acima indicados nos pontos i) a iii), é facilmente compreensível se tivermos presente que estes requisitos impostos pelo preceito para a admissibilidade da impugnação da decisão de facto, têm em vista, no essencial, garantir uma adequada delimitação do objeto do recurso, não apenas para circunscrever o âmbito do poder de cognição do tribunal de recurso, mas também para que a outra parte tenha a possibilidade de exercer o contraditório com o âmbito previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 640.º, designadamente indicando os meios de prova que, a seu ver, infirmem as conclusões do recorrente.
De facto, para modificar a decisão da 1.ª instância, por enfermar de erro de julgamento, necessário se torna, sob pena de rejeição, que se indiquem os concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados e a decisão que se entende deveria ter sido proferida, e, bem assim, se especifiquem os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa, alegando o porquê da discordância, explicando em que é que os depoimentos contrariam a conclusão factual do tribunal recorrido, designadamente afastando os demais meios de prova em que o julgador firmou a sua convicção, ou seja, necessário se torna que o Recorrente delimite efetivamente o objeto do recurso, e fundamente as razões da respetiva discordância.
Na verdade, com o disposto no supra citado preceito legal, o que se visa é circunscrever a reapreciação do julgamento efetuado a pontos concretos da matéria controvertida, isto porque, os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto, não visam a realização de um segundo julgamento de toda a matéria de facto, nem a reapreciação de todos os meios de prova anteriormente produzidos, devendo consequentemente recusar-se a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto[9].
Revertendo ao caso em presença, e quanto à prova oral, constata-se que na conclusão 11.ª o Apelante estriba a sua discordância nas «declarações de parte de A. e R. e dos depoimentos das testemunhas da A.», aparentando, portanto, o cumprimento formal dos ónus que sobre si impendem.
Porém, verifica-se que no corpo das alegações se limitou a efetuar a transcrição das declarações de parte e dos depoimentos das testemunhas ouvidas, reproduzindo integralmente no corpo das alegações a prova oral produzida. Antes dessa transcrição total e acrítica da totalidade da prova oral produzida, afirmou que «a douta sentença não está de acordo com os factos alegados, não está de acordo com os documentos juntos com a Contestação, nem está de acordo com as declarações das testemunhas em audiência de julgamento, quanto ao fundamento do divórcio invocado pela A», transcrevendo o que considera ser o único fundamento invocada pela autora, e questionando: «Será este um fundamento válido? Será este o motivo? Existe algum fundamento para a propositura da acção de divorcio por parte da A.?». Após, responde à sua questão afirmando: «Não se vislumbra na p. i. outro fundamento, nem da audiência de julgamento resulta provado tal fundamento.
Estamos perante um capricho da A. quanto ao divórcio uma vez que resulta dos depoimentos quer da A. quer do R., quer das duas testemunhas da A. que passamos a transcrever precisamente o contrário. Senão vejamos:», e procede à referida transcrição integral da prova, identificando antes de cada uma das declarações e depoimentos a quem se refere, bem como o respetivo início e fim. A título ilustrativo do que afirmamos o Apelante identifica «DEPOIMENTO DA AUTORA: 24/02/2022 – Início: 09:49:29 – Fim: 10:19:04», seguindo-se a reprodução integral, por escrito, das declarações prestadas em cerca de meia hora, “técnica” que igualmente usa relativamente às declarações do Réu e aos depoimentos das testemunhas CC e DD. Após, conclui que «a douta sentença em recurso não reflecte salvo o devido respeito o que se provou na audiência de julgamento bem como os factos alegados pela A. na sua p.i. que em momento algum esta logrou provar. Com efeito a A. não logrou provar o único fundamento que invoca para o divorcio que a A. e R. vivem separados desde finais de Julho de 2021 e que no dia 27-04-2020, A. e R. desentenderam-se, porque a A. se apercebeu que tinha sido enganada, isto porque o R. já tinha tido alta da Companhia de seguros no dia 19- 03-2020, referente ao acidente de trabalho que sofrera no dia 7-02-202. Apesar dos depoimentos de parte de A. e R. e das duas testemunhas da A. o Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo” deu como provado que:», passando a transcrever integralmente a matéria de facto provada, afirmando seguidamente que não foram provados os factos dados como provados sob os números 11 a 18, e concluindo que ficaram provados os factos dados como não provados de ii) a iv), que reproduz.
Como é bom de ver, pese embora no corpo das alegações o Recorrente forneça a indicação dos depoimentos em que baseia a alteração pretendida, ao invés de indicar ou transcrever as passagens da gravação tidas por si como relevantes para impor decisão diversa da recorrida[10], limitou-se, como referido, a proceder à mera transcrição integral dos depoimentos em cujo teor assenta a sua discordância ao arrepio do figurino legal vigente quanto ao cumprimento dos ónus que sobre si impendem, e concretamente do consagrado no n.º 2, alínea a), do artigo 640.º do CPC.
Ora, é pacífico que a reapreciação da prova em segunda instância não configura um segundo julgamento, não se admitindo pedidos de alteração genericamente formulados, situação que necessariamente ocorre quando são integral e acriticamente transcritos os depoimentos para significar a discordância quanto a pontos concretos da matéria de facto, sem que se proceda à identificação dos concretos momentos da prova oral produzida em que assenta a discordância do recorrente quanto à convicção formada pelo julgador.
Na realidade, conforme o Supremo Tribunal de Justiça tem também vindo repetidamente a afirmar, «não observa tal ónus o recorrente que identifica os pontos de facto que considera mal julgados, mas se limita a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham que cada um desses pontos fosse julgado provado ou não provado.
A apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do NCPC (2013). [o sublinhado é nosso].
O incumprimento de tais ónus – prescritos para a delimitação e fundamentação do objecto do recurso de facto – impedem a Relação de exercer os poderes-deveres que lhe são atribuídos para o respectivo conhecimento»[11].
Na realidade, a maior exigência introduzida pela nova redacção do preceito, surpreende-se da análise da evolução legislativa exposta no referido Acórdão, e que leva às conclusões vertidas no citado sumário do aresto, designadamente transcrevendo parte daquilo que desde logo foi afirmado no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 39/95 quanto à garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, que nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.
Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.”
Por isso que, continua o mesmo Acórdão, o ónus especificamente criado foi, assim, justificado pela necessidade de impor ao recorrente uma “delimitação do objecto do recurso” e uma “fundamentação”, repete-se, tendo em conta o âmbito possível do recurso da decisão de facto, tal como foi concebido (cfr. acórdãos de 9 de Outubro de 2008, www.dgsi.pt, proc. nº 07B3011, ou de 18 de Junho de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 08B2998).
Prosseguiu-se depois com o confronto das alterações introduzidas ao referido artigo 690.º-A do CPC, pelo Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de Agosto e seguidamente pela sua substituição com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, que acrescentou ao Código o artigo 685º-B, mantendo também os ónus referidos e, se for possível, “indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição”.
Finalmente, afirmou-se que “a reforma do Código de Processo Civil de 2013 não pretendeu alterar o sistema dos recursos cíveis, aliás modificado significativamente pouco tempo antes, pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto; mas teve a preocupação de “conferir maior eficácia à segunda instância para o exame da matéria de facto” (…).
Essa maior eficácia traduziu-se no reforço e ampliação dos poderes da Relação, no que toca ao julgamento do recurso da decisão de facto; mas não trouxe consigo a eliminação ou, sequer, a atenuação do ónus de delimitação e fundamentação do recurso, introduzidos em 1995».
Neste mesmo sentido se pronuncia ABRANTES GERALDES[12] afirmando que «relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre ao recorrente indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos», aduzindo ainda mais adiante que «a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da matéria de facto deve verificar-se» na situação de «falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda».
Por isso que não possam deixar de subscrever-se as conclusões exaradas no mais recente aresto citado, quanto ao não cumprimento dos aludidos ónus, no sentido de que esse incumprimento “acarreta a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, de acordo com o estatuído no citado art.º 640.º, nºs 1 e 2, não havendo, nestes casos, lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento.
É o que resulta do disposto naquele preceito e no art.º 652.º, n.º 1, al. a), do CPC, que limita os poderes do relator ao despacho de aperfeiçoamento “das conclusões das alegações, nos termos do n.º 3 do artigo 639.º”, o qual não contempla a inobservância dos mencionados ónus”.
Para além do mais recente aresto que vimos seguindo, este entendimento foi cristalinamente sumariado no Acórdão STJ de 24-05-2018[13], no qual se realçou que «a interpretação da expressão “sob pena de rejeição” consagrada no art. 640.º, n.º 1, do CPC, relacionada com a circunstância de o recorrente beneficiar já de um prazo suplementar de 10 dias, acrescido ao prazo normal do recurso de 30 dias, no caso de impugnar a decisão da matéria de facto com base na prova gravada (art. 638.º, n.ºs 1 e 7, do CPC), inculca a ideia que o desrespeito do cumprimento do respectivo ónus é sancionado com imediata rejeição do recurso, não havendo, neste particular, espaço para qualquer convite intercalar ao aperfeiçoamento».
Introduzidas estas notas, é tempo de voltar ao caso em apreço para concluir que aquilo que se verifica no mesmo é um efetivo incumprimento do ónus estabelecido pelo referido preceito quanto à impugnação da matéria de facto provada e não provada, já que o Recorrente se limita a transcrever integralmente a prova oral produzida, transcrição esta que não cumpre a indicação de quais os concretos excertos daqueles depoimentos que, na sua perspetiva, por si ou conjugados com a prova documental, imporiam decisão diversa da recorrida relativamente aos impugnados pontos de facto.
Assim, e sendo os ónus de cumprimento cumulativo, devemos concluir que, em face do incumprimento pelo Recorrente do ónus imposto pelo artigo 640.º, n.º 2, alínea a) do CPC, o qual expressamente estatui que «incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso», impõe-se a imediata rejeição do recurso quanto à impugnação da matéria de facto fundada na identificada prova oral.
Com efeito, ao contrário do n.º 3 do artigo 639.º do CPC, que constitui o relator na obrigação de emitir despacho de convite ao aperfeiçoamento quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o n.º 2 do mesmo preceito[14], não está prevista a possibilidade de convidar o recorrente a aperfeiçoar as alegações de recurso quanto ao incumprimento dos ónus impostos a quem impugne a decisão relativa à matéria de facto[15], não sendo consequentemente de reapreciar a decisão proferida sobre os pontos de facto a que o Recorrente aludiu no corpo das suas alegações, impondo-se a imediata rejeição do recurso nessa parte.
Pelo exposto, rejeitamos o recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto, mantendo-se incólume a decisão de facto expressa na decisão recorrida.
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III.2.2. – Dos fundamentos do divórcio
Dissente o Apelante do entendimento expresso na decisão recorrida a respeito da verificação do fundamento previsto na alínea d) do artigo 1781.º do CC, e do consequente decretamento do divórcio entre A. e R.
Insurge-se mais concretamente quanto ao segmento da fundamentação em que o julgador considerou que apesar de não existir separação de facto há mais de um ano, ficou provada a ausência de comunhão de vida, dizendo que «não podemos concordar com tal decisão uma vez que A. e R. continuam a trabalhar juntos na empresa de ambos, vivem na mesma casa e convivem com as filhas e netos, que em festas de aniversário quer em outras festividades. Por tais factos e pelos que atrás invocados não estão reunidas as condições de facto e de direito para se decretar o divorcio entre A. e R.».
Como é evidente, mantendo-se intocada a matéria de facto tal como vem provada e não provada da primeira instância, e não se mostrando provados os factos aduzidos com o sentido em que o Apelante sustenta a dita comunhão de vida, a sua pretensão está votada ao insucesso com esse fundamento.
Insiste ainda o Apelante na defesa da ideia veiculada desde a contestação de que a alegação factual apresentada pela autora não consubstancia fundamento válido para o decretamento do divórcio.
Com efeito, entende o Apelante que estando apenas provado que «A. e R. vivem separados desde finais de julho de 2021 e que no dia 27-04-2020, A. e R. desentenderam-se, porque a A. se apercebeu que tinha sido enganada, isto porque o R. já tinha tido alta da companhia de seguros no dia 19- 03-2020, referente ao acidente de trabalho que sofrera no dia 7-02-2020, sendo este o único fundamento para a propositura da acção de divórcio», tal não configura um fundamento válido de divórcio.
Depois de efetuar o enquadramento jurídico do contrato de casamento à luz da atual redação do artigo 1577.º do CC, e de enunciar os principais deveres conjugais estabelecidos no artigo 1672.º da mesma codificação, o julgador entendeu corretamente que «[n]o caso presente importa considerar três desses deveres fundamentais (…).
O dever de coabitação impõe nuclearmente que os cônjuges habitem a casa que constitua a residência da família, com todas as dimensões da vida que isso implica.
O dever de cooperação impõe aos cônjuges “a obrigação de socorro e auxílio mútuos e de assumirem em conjunto as responsabilidades inerentes à vida da família que fundaram”, como decorre do artº 1674º do Código Civil. Esse dever impõe a cada cônjuge a colaboração permanente com o outro, em todos os aspetos e em todos os momentos da vida conjugal e pessoal.
Por fim, o dever de assistência implica o dever mútuo dos cônjuges prestarem alimentos e contribuírem para os encargos da vida familiar».
Seguidamente, debruçou-se sobre o direito ao divórcio e da necessidade da existência de fundamento para a declaração do divórcio (sem consentimento de um dos cônjuges), acentuando «que culpa e fundamentos do divórcio não são sinónimos».
Destacando do artigo 1781.º, as alíneas a) e d) do CC, que sob a epígrafe “Rutura do casamento”, prescreve que “São fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges: a) A separação de facto por um ano consecutivo; (…) d) Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casamento”, e retirando do artigo 1782.º do CC, que há separação de facto para esses efeitos quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de a não restabelecer, concluiu que:
«Analisando os factos provados, é ostensivo que existe fundamento para que o Tribunal declare o divórcio impetrado, mas apenas com o fundamento alegado: a rutura definitiva da vida em comum.
Com efeito, a A. e o Réu não mantêm vigente qualquer ato de vida de casal ou de comunhão, pois vivem totalmente separados desde há vários meses, ainda que há menos de um ano até à data da propositura da ação e do julgamento, e a Autora não quer retomar a vida em comum com o Réu. Essa separação de vida entre as partes é plena e mantem-se também ininterruptamente sem qualquer comunhão, seja de mesa, de cama, de habitação ou de qualquer outro aspeto de vida em comunhão.
Porém, essa separação não decorre continuamente há mais de um ano à data da propositura da ação e do julgamento, pelo que é manifesto e isento de dúvida que não está preenchida a hipótese normativa prevista na alínea a) do artº 1781º do Código Civil.
Mas a ausência de comunhão apurada é intensa, é duradoura, e sobretudo revela fundamento numa ausência de manutenção de afeto mútuo por a A. não sentir afeto pelo Réu. Tanto basta para materializar o fundamento de divórcio.
Daí que se imponha considerar verificado o fundamento previsto na alínea d) do artº 1781º citado».
Apreciando.
Como é sabido, o conceito de separação de facto consubstanciadora do fundamento de divórcio previsto na alínea a) do artigo 1781.º do CC, é integrado por três vertentes, a saber: i) a objetiva – inexistência entre os cônjuges de comunhão de leito, mesa e habitação; ii) a subjetiva – o propósito de um ou de ambos os cônjuges não restabelecer a vida matrimonial comum; iii) a temporal – que a situação objetiva e subjetiva perdure por mais de um ano ininterrupto[16].
Como explica PEREIRA COELHO, “Esta causa de divórcio é integrada por dois elementos, um objectivo e outro subjectivo. O elemento objectivo é a divisão do habitat, a falta de vida em comum dos cônjuges, que passam a ter residências diferentes. Este elemento é muitas vezes equívoco, pois o dever de coabitação, reveste-se de grande plasticidade. Tudo depende das circunstâncias e há uma grande variedade de situações. Pode haver residências separadas – o artº 1673 permite-o – e todavia haver uma comunhão de vida (v.g. o caso dos emigrantes). Outras vezes, respeitos humanos ou o interesse dos filhos levam os cônjuges a manter uma aparência de vida em comum que não corresponde à realidade. Ao elemento objectivo que é matéria da separação de facto, há-de, pois, acrescer um elemento subjectivo, que anima essa matéria e lhe dá forma e sentido; consiste ele numa disposição interior – o “propósito” como diz o artigo da parte de ambos os cônjuges ou de um deles de não restabelecer a comunhão da vida matrimonial (...)” (Reforma do Código Civil 1981, 36 e 37).
Também a este respeito ensina ANTUNES VARELA que “A forma como na lei (artº 1782 nº 1) se define a separação de facto, tradutora da ruptura da vida em comum, mostra com efeito que ela pode resultar de uma actuação bilateral concertada entre ambos os cônjuges, como de um procedimento bilateral não acordado entre eles, como da atitude isolada de um só deles. Apesar de não ser essencial o acordo dos cônjuges quanto à separação, é evidente que esta separação compreende um elemento subjectivo (a intenção de ambos os cônjuges, ou de um deles de romper definitivamente com a vida em comum) ao lado de um elemento objectivo (não existência entre os cônjuges da comunhão de leito, mesa e habitação” (Direito da Família, ed. 1987, págs. 479 e segs.).
In casu, extrai-se da matéria de facto provada nos pontos 10. a 18. a verificação dos elementos objetivo e subjetivo, já que desde data não apurada situada entre 23 de maio e julho de 2021, A. e R. passaram a viver em casas separadas, não fazem vida como casal em comum (não releva para este efeito a existência de relação laboral ou os encontros familiares[17]), e a A. não pretende retomar a vida em comum, sendo, aliás, entendimento comummente aceite que a propositura da ação de divórcio com fundamento na separação de facto revela, por si só, e de de forma inequívoca, a intenção de não restabelecer a vida matrimonial comum por banda do cônjuge que instaura a ação, preenchendo o requisito subjetivo[18].
Porém, tendo ficado provado (facto 10.) que a coabitação entre A. e R. cessou em data não apurada do período de 23 de maio a julho de 2021, quando a ação foi apresentada em juízo, no dia 07.01.2022, não havia decorrido o período temporal de um ano, o qual também não havia decorrido quando a audiência final foi realizada, em 24.05.2022. Consequentemente, mesmo para quem defende que «na acção de divórcio a atendibilidade da manutenção da situação de saída de casa e ausência de relacionamento durante o decurso da acção não constitui alteração da causa de pedir sendo permitida pelo artigo 611º do CPC»[19], ou dito de outro modo, que «sobre a referência temporal da falta do decurso do prazo de um ano consecutivo de separação de facto ao tempo da propositura da ação prevalece o princípio da atualidade da decisão consagrado no artigo 611.º do CPC»[20], é inegável que, quando em 31.03.2023 foi proferida a sentença, a presunção jure et de juris decorrente da separação de facto por um ano consecutivo, que se encontra plasmada na alínea a) do artigo 1781.º do CC como demonstrativa da rutura definitiva do casamento, não se verificava.
Assim, a questão que agora se coloca é a de saber se, falhando o decurso do tempo que o legislador reputou como determinando a verificação dessa circunstância objetiva que fundamenta a dissolução do vínculo conjugal, por divórcio, a perduração da ausência de vida em comum, por lapso de tempo inferior, pode determinar ainda assim a extinção do casamento, pela verificação de quaisquer outros factos dos quais se retire ser definitiva a rutura do casamento, tal como previsto na alínea d) do referido artigo 1781º do CC.
A resposta não pode deixar de ser afirmativa.
Neste sentido, veja-se o sumário do Acórdão do STJ de 03.102013[21], onde se salientou que «I - A cláusula geral e objetiva da ruptura definitiva do casamento – enquanto fundamento de divórcio, previsto na alínea d) do artigo 1781.º do CC – não exige, para a sua verificação, qualquer duração mínima, como sucede com as restantes causas que impõem um ano de permanência.
II - A demonstração da ruptura definitiva – presumida no caso das alíneas a), b) e c) do artigo 1781.º do CC ao fim de um ano – implicará a prova da quebra grave dos deveres enunciados no artigo 1672.º do CC e da convicção de irreversibilidade do rompimento da comunhão própria da vida conjugal».
Com efeito, conforme tem vindo a ser decidido, designadamente no aresto deste Tribunal da Relação de 13.05.2021[22], «1 – O disposto na alínea a) do artigo 1781.º do Código Civil limita o âmbito de aplicação da alínea d) do mesmo artigo na estrita medida em que esta não pode ser interpretada no sentido de abranger a separação de facto por tempo inferior ao exigido naquela.
2 – A única exigência da alínea d) do artigo 1781.º é que se trate de factos, diversos dos previstos nas alíneas anteriores, que, independentemente da culpa dos cônjuges, demonstrem a ruptura definitiva do casamento.
3 – Tais factos determinantes da ruptura definitiva do casamento podem ocorrer sem que os cônjuges se encontrem separados de facto ou quando ainda não tenha decorrido um ano consecutivo de separação».
Nesta esteira, afirmou-se no recente aresto deste Tribunal da Relação, de 28.06.2023, que «I.- A Lei n.º 61/2008, de 31-10 alterou o regime do divórcio (artigos 113.º a 1775.º do CC), aprofundando o modelo moderno de casamento, por contraposição ao modelo tradicional, modelo esse que desvaloriza o lado institucional e faz do sentimento dos cônjuges, ou seja, da sua real ligação afetiva, o verdadeiro fundamento do casamento.
II.- Se ficou provado que a autora e réu não dormem na mesma cama, não tomam refeições do dia-a-dia juntos e não trocam afetos; atos que a autora não tem vontade de vir a fazer e o que acontece, pelo menos, desde .../.../2022, mostra-se preenchido o conceito de rutura definitiva do casamento (artigo 1781.º/d, do CC), pelo que o divórcio deve ser decretado».
A similitude com a situação em apreciação é evidente, sendo naquele caso mais escassos os factos provados do que neste que nos ocupa.
Na realidade, na espécie, mostra-se provado (factos 5 a 9) que antes da separação ocorrida em data não apurada situada entre maio e julho de 2021, já A. e R. haviam tido um desentendimento em abril de 2020, na sequência do qual a autora foi pernoitar no rés-do-chão da casa em que o casal habitava, tendo no dia seguinte vários dos seus objetos de uso pessoal sido retirados do 1.º andar para o rés-do-chão, pelo R. e algumas filhas de ambos, sem o conhecimento e consentimento da autora, o que lhe causou tristeza, tendo permanecido a residir ali sozinha até data não apurada de setembro/outubro de 2020, altura em que voltou a residir com o Réu na mesma casa. Daqui se extrai que os problemas entre o casal não se reduzem, como o Réu pretende fazer crer, a uma espécie de boa ou má disposição da Autora, tanto assim que já haviam redundado numa primeira separação à qual se sucedeu uma reconciliação, que durou alguns meses.
Porém, desde data não concretamente apurada de maio a julho de 2021, A. e R. passaram a residir em casas separadas, e, salvo situações pontuais, não tomam refeições juntos, deixaram de conviver e de dialogar, não mais dormiram juntos na mesma cama, não mais mantiveram relações íntimas, não mais organizaram a sua vida em conjunto, sendo que a A. não mantém afeto pelo Réu e não pretende retomar a vida em comum com ele (factos provados 10. a 18.).
Sem que importe apurar de quem é a culpa, esta factualidade consubstancia o incumprimento grave dos deveres conjugais estabelecidos no artigo 1672.º do CC, mais concretamente dos deveres de coabitação, cooperação e assistência, a que se reportou a sentença recorrida, nos termos já referidos, que subscrevemos.
Ora, como observa TOMÉ D’ALMEIDA RAMIÃO[23], os deveres conjugais continuaram a merecer a tutela do direito, pelo que, a questão da violação culposa ou inobservância dos deveres conjugais continua a ser relevante na apreciação da “rutura definitiva do casamento” consagrada na lei.
Sendo certo que a falta de vida em comum dos cônjuges pode ter várias justificações, sendo mesmo consentida pelo artigo 1673.º do CC, atenta a materialidade provada e o lapso de tempo decorrido, é determinante a comprovada disposição interior por parte da Autora de não restabelecer a comunhão de vida matrimonial, exteriorizada pela factualidade acima descrita que conduziu à decisão de separação de facto, e cuja relevância, por se evidenciar em todos os aspetos da vida do casal (materiais e imateriais), nos permite concluir pela rutura definitiva da vida em comum, que nos termos do artigo 1781.º, alínea d), do CC, constitui fundamento de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, e não depende do decurso de um prazo mínimo mas da gravidade e definitividade do elenco factual que nos leva à conclusão de que se mostra preenchida aquela cláusula geral, mesmo quando a separação de facto entre os cônjuges ocorreu há menos de um ano.
Em consequência, e sem necessidade de ulteriores considerações, improcede in totum o presente recurso, sendo de confirmar a sentença recorrida.
Vencido, o Réu/Recorrente, suporta as custas do recurso, na vertente das custas de parte, nos termos conjugados dos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do CPC.
*****
IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta conferência em julgar improcedente o presente recurso de apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo Recorrente.
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Évora, 12 de outubro de 2023
Albertina Pedroso [24]
Maria Adelaide Domingos
José António Moita

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[1] Juízo de Família e Menores de Tomar - Juiz 1
[2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.ª Adjunta: Adelaide Domingos; 2.º Adjunto: José António Moita.
[3] Doravante abreviadamente designado CC.
[4] Não se transcreve porque o Réu reproduz neste momento todos os factos dados como provados na sentença recorrida.
[5] Doravante abreviadamente designado CPC.
[6] Proferido no processo n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt, sítio onde se encontram acessíveis os demais arestos citados sem menção de outra origem.
[7] Proferido no processo n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1.
[8] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Almedina, 2018, pág. 169.
[9] Cfr. neste sentido ABRANTES GERALDES, ob. e loc. cit., pág. 309, e Ac. STJ de 09-02-2012, proferido no processo n.º 1858/06.5TBMFR.L1.S1.
[10] Caso em que, tal como, por exemplo, no Acórdão STJ de 31-05-2016, processo 889/10.5TBFIG.C1-A.S1, temos considerado encontrar-se suficientemente cumprido o ónus de especificar os fundamentos, quando o recorrente indica com exatidão as passagens do registo da prova em que funda o seu dissentimento.
[11] Cfr. exemplificativamente o Ac. STJ de 19-02-2015, processo n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1.
[12] Cfr. Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina 2013, págs. 126, 1267 e 128.
[13] Proferido no processo n.º 4386/07.8TVLSB.L1.S1.
[14] Cfr. Ac. STJ de 08-09-2021, proferido na revista n.º 51/17.6T8PVZ.P1.S1.
[15] Cfr. neste sentido o Ac. STJ de 12-01-2012, proferido na revista n.º 11/1999.b1.S1, relatado pelo Conselheiro João Bernardo que inclusivamente considera ser a redação introduzida no preceito interpretativa, em face das divergências jurisprudenciais anteriores, interpretação que mantém atualidade no novo regime.
[16] Assim, Ac. TRE de 23.02.2006, proferido no processo n.º 1924/05-3, quando a exigência temporal era ainda de 3 anos, do qual se extraíram as mencionadas citações doutrinais.
[17] Este é o entendimento de há muito consolidado na jurisprudência, designadamente do nosso mais Alto Tribunal, já expresso, por exemplo, no aresto de 02.03.1987, em cujo sumário consta, com interesse, que “Não afasta o propósito de não restabelecimento da vida em comum a circunstância de, em homenagem ao interesse dos filhos, os cônjuges separados se avistarem, tomando parte em refeições comuns com os filhos e presenteando-se em datas festivas, transportando-se para o restaurante no mesmo veículo. Tais factos têm o simples significado de uma atitude própria de seres sensibilizados para a manutenção de um sentimento de respeito pessoal, não subjugado por malquerenças, e de um relacionamento conjuntural imposto pela necessidade e desejo de resguardar o amparo, o encaminhamento e a educação dos filhos comuns».
[18] Cfr., neste sentido, Ac. STJ de 03.04.2003, proferido no processo n.º 03A226.
[19] Cfr., Ac. STJ de 15.09.2022, proferido no processo n.º 381/18.0T8ABT.E1.S1. Trata-se de entendimento que tem vindo a ser firmado pela mais recente jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal, e que já antes da entrada em vigor do novo regime jurídico do divórcio introduzido pela Lei nº. 61/2008 de 31/10, havia sido plasmado no acórdão de 06.03.2007, proferido no processo nº. 07A297, onde a propósito da contagem do prazo da separação de facto se considerou ser «atendível na decisão o prazo de separação de facto que se completou na pendência da lide, face ao princípio da actualidade da decisão constante do artigo 663º CPC».
Em sentido diverso, vejam-se as decisões anteriormente tiradas, por exemplo, nos arestos de 30.04.1997, processo n.º 97A249, e de 24.10.2006, processo n.º 06B2898, onde se afirmou que «o que falha é o elemento objectivo porque entre a data do início da separação e a data da propositura da acção não decorreram os três anos exigidos pela al. a) do art. 1781.º do CC; o decurso do lapso de tempo exigido pela al. a) do art. 1781.º do CC é um requisito de natureza substantiva, que, por isso, tem de estar verificado à data do pedido».
[20] Cfr., Ac. STJ de 23.02.2021, proferido no processo n.º 3069/19.0T8VNG.P1.S1.
[21] Proferido no processo n.º 2610/10.9TMPRT.P1.S1.
[22] Proferido no processo n.º 4016/19.5T8FAR.E1, para cujos fundamentos se remete, para maior desenvolvimento.
[23] In O Divórcio e Questões Conexas – Regime Jurídico Atual, 3.ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2011, págs. 75-76.
[24] Texto elaborado e revisto pela Relatora, e assinado eletronicamente pelos juízes desembargadores que compõem esta conferência.