I- É inadmissível a invocação da excepção de não cumprimento do contrato para legitimar a recusa do condómino em pagar a sua quota-parte nas despesas de condomínio.
II- Não sendo o direito de que o embargante pretende fazer valer desde já exequível não é, por consequência, compensável com o crédito exequendo;
III- O conhecimento do mérito dos embargos no saneador representa no caso subjudice um ganho em economia processual – com tudo o que a aplicação de tal princípio determina – porque o estado dos autos, perante a manifesta improcedência das “ excepções” invocadas e, por consequência, a irrelevância dos factos alegados para as sustentar, são determinantes da desnecessidade de processo prosseguir para julgamento.
(Sumário elaborado pela Relatora)
O exequente “CONDOMÍNIO ...” apresentou contestação, refutando, em síntese, os argumentos do embargante, admitindo, todavia, a prescrição dos créditos reclamados relativamente ao período anterior a novembro de 2016.
Realizada audiência final foi proferida sentença que julgou parcialmente procedentes os embargos de executado, e em consequência, determinou “uma redução dos montantes reclamados relativamente ao período anterior a novembro de 2016 à quantia exequenda, no mais absolvendo o exequente”
2. É desta sentença que recorre o embargante, formulando na sua apelação as seguintes conclusões:
I . O recorrente/ embargante, alegou que lhe assiste o direito à excepção de não cumprimento e à compensação, em virtude de umas obras que o embargante realizou e que incumbiam à exequente.
II. Mal andou o Tribunal recorrido ao julgar improcedente a excepção de não cumprimento e de compensação, pois face ao alegado na petição inicial dos embargos de executado, obrigado estava o tribunal a quo a prosseguir a acção [ nos termos do artº 596º, nº1, ex vi do artº 732º,nº2, ambos do CPC ] tendo em vista a prova da factualidade controvertida e subjacente à excepção que invocaram [ nos termos do disposto do artº 731º, do CPC ].
III. Sem produção de prova, não era possível o Tribunal recorrido decidir como decidiu, pois não tinha os factos essenciais para poder decidir em consciência.
IV. A excepção de não cumprimento do contrato (art. 428º do C.C.) é aplicável, não apenas aos contratos bilaterais, mas as todos os casos em que, por força da lei, se crie entre as partes uma situação análoga, o que nomeadamente sucederá perante obrigações proper rem, como a obrigação do condómino participar nas despesas de conservação e fruição das partes comuns do edifício (uma vez que o sinalagma que é fundamento do funcionamento da exceptio tem mais relação com o aspecto funcional do que com o aspecto genético das obrigações em causa).
V. As despesas condominiais, apesar de constituírem obrigações propter rem, que decorrem do estatuto de um direito real , consubstanciam em última análise e no plano dogmático "verdadeiras obrigações", razão porque, desde que reunidos os necessários pressupostos, nada obsta a que os condóminos possam invocar quanto ao seu pagamento a exceptio non adimpleti contractus.
VI. Ao contrário do decidido pelo tribunal a quo, a excepção de não cumprimento pode ser invocada por condóminos nas relações com o condomínio, no que concerne ao pagamento das contribuições devidas ao condomínio;
VII. No seguimento do supra referido, e existindo subjacente matéria de facto controvertida, deve determinar-se o prosseguimento dos embargos , com vista a possibilitar-se a produção de prova, pois de acordo com o alegado na petição inicial dos embargos de executado, obrigado estava o tribunal a quo a prosseguir a acção [ nos termos do artº 596º, nº1, ex vi do artº 732º,nº2, ambos do CPC ] tendo em vista a prova da factualidade controvertida e subjacente à excepção que invocaram [ nos termos do disposto do artº 731º, do CPC ].
VIII. A excepção de compensação deve ser julgada procedente, na medida em que o recorrente alegou, e juntou prova abundante no sentido de demonstrar que a compensação devia operar, pois em consequência da recusa do Condomínio em reparar a sua fração, cujos danos advieram das partes comuns, o ora recorrente realizou as obras, sob pena do prejuízo acumular-se com a não realização dessas mesmas obras por quem tinha obrigação legal de as fazer.
IX. As várias comunicações escritas pelo recorrente e dirigidas ao condomínio onde refere “acerto de contas”, por conta das obras que realizou e que eram obrigação do condomínio, sem nunca ter tido por parte deste último qualquer razoabilidade em regularizar os valores com o recorrente, configuram uma solicitação de compensação extra-judicial.
X. Face ao alegado na petição inicial dos embargos de executado, o Tribunal recorrido estava obrigado a prosseguir com a ação, pois os elementos carreados para o processo impunham que assim fosse.
XI. O crédito do recorrente não carecia estar reconhecido judicialmente para que a compensação pudesse ser invocada. É este o novo entendimento, e parece-nos o mais justo, pois permite resolver no mesmo processo dívidas e créditos relacionados, evitando o recuso a uma nova ação.
XII. Assim, quer o invocado crédito do executado seja igual ou inferior, quer seja superior ao do exequente, é-lhe permitido deduzir a excepção de compensação, seja como objecção (no caso de já extrajudicialmente ter declarado querer compensar), seja como excepção propriamente dita (no caso de essa declaração ser feita no requerimento de oposição).
TERMOS EM QUE:
Deve a sentença apelada ser revogada, sendo substituída por decisão que determine o prosseguimento dos autos/embargos e tendo em vista a realização da audiência de discussão e julgamento.
3. Contra-alegou o recorrido defendendo a improcedência do recurso.
4. O objecto do recurso, delimitado pelas enunciadas conclusões (cfr.artºs 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2 todos do CPC) reconduz-se à apreciação das seguintes questões:
4.1. Da (in) viabilidade de arguição da exceptio e de compensação por parte do embargante;
4.2. Se o estado dos autos comportava o conhecimento do mérito dos embargos no saneador.
II. FUNDAMENTAÇÃO
5. É o seguinte o quadro fáctico dado como assente na 1ª instância:
A) O Exequente é o CONDOMÍNIO ..., com o NIF.º 900497424, representada pela empresa administradora em exercício, “M.S Reinhardt, Lda.,”, titular do NIF.º 507853296;
B) O Executado é proprietário da Loja A e da Loja B;
C) Foram apresentados como títulos executivos as actas de condomínio respeitantes aos anos de 2016, 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021;
D) Nos termos da acta de 2016: “ (…)”;
E) Nos termos da acta de 2017: (…);
F) Nos termos da acta n.º 38 de 2018: (…)
G) Nos termos da acta n.º 40 de 2019: (…)
H) Nos termos da acta n.º 41 de 2020 (…)
I) Nos termos de acta n.º 44 de 2021: (…)
J) O requerimento executivo que deu início aos autos principais deu entrada a 28 de Setembro de 2021.
K) No requerimento executivo consta que: (…)
L) O embargante foi citado nos autos principais a 19 de Fevereiro de 2022.
6. Do mérito do recurso
6.1. Da (in) viabilidade de arguição da exceptio e de compensação por parte do embargante.
Visa-se na execução apensa o pagamento coercivo de quotizações de condomínio por parte do executado, ora embargante, no valor global de 8.616,31€ referentes aos anos de 2016 a 2021.
Excepcionada a prescrição, veio o embargado admitir a prescrição dos créditos reclamados relativamente ao período anterior a Novembro de 2016, extinguindo-se em conformidade (e parcialmente) a execução.
Ora, conquanto na petição de embargos, o ora recorrente reconheça não ter liquidado as quotizações, esgrimiu, para o justificar, a existência de danos causados nas fracções de que é proprietário com origem nas partes comuns, o que, perante a inércia do condomínio em repará-los, o levou a proceder a expensas suas à reparação de parte dos mesmos danos, com o que terá despendido 10.129,58 € , valor pelo qual pretende ser indemnizado e que só após tal suceder entende ficar obrigado a liquidar os valores que eventualmente se encontrem em dívida.
O Tribunal “ a quo” negou-lhe tais pretensões referindo que a exceptio pressupõe a existência de um contrato bilateral e “ no caso, fácil é de ver que não está em causa qualquer contrato bilateral, pois não há qualquer relação entre as quotas condominiais e as obras que o embargante realizou “ e, bem assim, que a compensação “só poderá ser invocada no âmbito de uma oposição à execução se o contracrédito estiver já reconhecido judicialmente e não careça de o ser nos autos de oposição. No caso, o crédito invocado pelo embargante não foi reconhecido judicialmente”.
6.1.1. Vejamos então.
Como se sabe, a excepção de não cumprimento do contrato, em termos gerais, traduz-se na possibilidade de, no âmbito de um contrato bilateral, um dos contraentes recusar a sua prestação, enquanto a outra parte não realizar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo (art. 428.° CC).
Entende-se que se não se concedesse tal possibilidade a uma das partes quebrar-se-ia o equilíbrio contratual que subjaz às relações sinalagmáticas.
Trata-se, portanto, de um meio de compelir à execução do contrato, sendo certo que sem recurso a tal figura poderiam produzir-se resultados contraditórios com o princípio da equivalência das prestações, expressão dos contratos bilaterais.
A exceptio não só pressupõe a existência e manutenção do vínculo contratual, mas também (e sobretudo) uma relação de sinalagmaticidade entre as obrigações dele emergentes pelo que, quando se verifica não existir essa relação, não se poderá recorrer a esta forma específica de tutela do direito de crédito.
Ora, a obrigação dos condóminos pagarem as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e aos serviços de interesse comum, é uma típica obrigação “ propter rem”, decorrente não de uma relação creditória autónoma, mas do estatuto do condomínio que é integrado por normas consagradas directamente na lei, por um título de origem negocial (o título constitutivo da propriedade horizontal) e relativamente à gestão das coisas comuns, por deliberações da assembleia dos condóminos.[1]
De igual sorte a obrigação do condomínio de manter, conservar e reparar as zonas comuns do edifício também é uma obrigação real ou “propter rem” que tem origem no estatuto da propriedade horizontal.
Tal obrigação deve ser concretizada mediante a intervenção dos órgãos próprios do condomínio, isto é, a assembleia de condóminos e o administrador, dentro do âmbito das respectivas competências (cfr., designadamente, o art. 1430º, nº 1, e o art. 1436º, alínea f), ambos do Cód.Civil).
Não há, outrossim, qualquer sinalagmaticidade ou correspectividade entre aquela obrigação dos condóminos e esta obrigação do condomínio e, portanto, a ausência do pagamento das quotizações por parte daqueles não terá a virtualidade de constituir um mecanismo compulsório como é apanágio da exceptio.
O que inevitavelmente vai ocorrer, sim, será o incumprimento da obrigação dos condóminos potenciar o incumprimento de obrigação do condomínio.
Efectivamente, se os condóminos não pagarem a sua quota parte das despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do prédio, a administração do condomínio poderá nem sequer ter fundos para cumprir a sua obrigação de as manter, conservar e reparar.
Em qualquer circunstância, convém recordar que tais despesas carecem de ser aprovadas na assembleia de condóminos com vista a sua concretização pelo administrador.
Se a assembleia não as aprovar, nada mais resta ao condómino do que requerer judicialmente a condenação do condomínio na sua execução.
O condómino só pode proceder a reparações nas partes comuns por sua iniciativa no caso de não haver administrador ou este não possa intervir; as obras sejam indispensáveis e urgentes ( art.º 1427º do Cód. Civil).
Se porventura as despesas tiverem sido aprovadas pela assembleia mas o administrador, negligenciando o exercício das suas funções, não as executar, sempre poderá o condómino requerer a sua exoneração judicial.
Não podem é os condóminos eximir-se de as pagar sob o pretexto de que subsistem por executar reparações nas partes comuns que afectam a fruição da sua fracção.
E, por isso, à semelhança do entendido pela 1ª instância, julgamos inadmissível a invocação da excepção de não cumprimento do contrato para legitimar a recusa do condómino em pagar a sua quota-parte nas despesas de condomínio.
6.1.2. Cuidemos agora da pretensão compensatória alicerçada num pretenso direito indemnizatório decorrente da omissão de reparação das partes comuns por parte do condomínio.
Poderá tal pretensão merecer acolhimento?
Cremos que não.
Como se referiu no acórdão desta Relação de 6.12.2018[2] “A compensação é uma forma de extinção das obrigações em que, no lugar do cumprimento, como sub-rogado dele, o devedor opõe o crédito que tem sobre o credor. Ao mesmo tempo que se exonera da sua dívida, cobrando-se do seu crédito, o compensante realiza o seu crédito liberando-se do seu débito, por uma espécie de acção directa.
Como requisitos para o exercício deste direito, refere-se a lei:
- à existência de dois créditos recíprocos (art. 847º, n.º 1, alínea a) e 851º do Cód. Civil);
- à exigibilidade do crédito do autor da compensação (art. 847º, n.º 1, alínea a) do Cód. Civil);
- à fungibilidade e homogeneidade das prestações (art. 847º, n.º 1, alínea b) do Cód. Civil);
- à não exclusão da compensação, por via legal (art. 853º do Cód. Civil);
- à declaração da vontade de compensar (art. 848º do Cód. Civil)[4] .
Repare-se ainda, que a declaração de compensação se traduz no exercício de um direito potestativo, exercitado por meio de um negócio jurídico unilateral (“pelo próprio teor (e espírito) do n.º 1, do art. 848º, uma declaração receptícia (art. 224º), que tanto pode ser feita por via judicial, como extrajudicialmente.
Como se viu, o contra crédito só pode ser feito valer no pressuposto da sua existência, da sua exigibilidade.
Ora, “o direito de que o embargante se arroga ainda não tem consistência de um crédito em sentido estrito, pois ainda não impende sobre o exequente a obrigação de efetuar uma prestação indemnizatória ao mesmo embargante, tão-pouco sabemos se virá a impender. A compensação pretendida não está em condições de ser exercida em acção executiva, nem sequer podemos ter a certeza de que venha a reunir essas condições mais tarde, pois o direito do embargante está dependente da incerta procedência de uma acção na qual demonstre os factos que sustentam a pretendida indemnização.”[3]
Não sendo o direito de que o embargante pretende fazer valer desde já exequível não é, por consequência, compensável com o crédito exequendo (subsistente), como bem se decidiu.
6.1. Do conhecimento do mérito dos presentes embargos no saneador
Insurge-se o apelante contra tal conhecimento prematuro com o argumento de que foi privado de produzir prova testemunhal que no seu entender era susceptível de influir na decisão da causa.
Entendeu-se na decisão recorrida que o estado dos autos comportava o conhecimento do mérito da acção no saneador, opção que a alínea b) do nº1 do art.º 595º do CPC (aplicável ex vi art.º 732º, nº2 do mesmo código) contempla quando não haja necessidade de produzir mais provas.
Como proficientemente se afirma no Acórdão da Relação de Coimbra de 21.1.2014 (proferido à luz do revogado CPC mas que neste conspecto mantém perfeita actualidade) o “conhecimento do mérito em sede de despacho saneador pretende evitar o arrastamento de acções que logo nesta fase já contenham todos os elementos necessários a uma boa decisão - afinal quando as partes só discordem da solução jurídica da questão a dirimir -, mas não se coaduna com decisões que, em nome de pretensas celeridades – que, depois, dão em vagares –, não permita às partes a discussão e prova, em sede de audiência, da factualidade que alegam e que poderá conduzir a soluções jurídicas muito mais abrangentes, ainda não possíveis na fase do saneador ou, pelo menos, a um desfecho diverso daquele que ao juiz do processo pareça ser o correcto nessa altura - apresentando-se a audiência de julgamento como o momento processual propício à clarificação da factualidade invocada.
Por isso, tal conhecimento só deve ocorrer se o processo contiver, seguros, todos os elementos que possibilitem decisões segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito e não somente aqueles que possibilitem a decisão de conformidade com o entendimento do juiz do processo.”.
O Tribunal “a quo” entendeu que a matéria alegada pelo embargante atinente às supostas obras por si efectuadas e aos prejuízos sofridos em consequência de omissão de reparação das partes comuns é irrelevante perante a manifesta impossibilidade de invocar a compensação e excepção de não cumprimento do contrato.
Estavam, pois, reunidos os pressupostos do julgamento imediato dos embargos no saneador o que, como salienta Paulo Ramos de Faria[4], “não é apenas um poder do tribunal de primeira instância. É um dever tributário do princípio da economia processual.”.
E explanando esta sua afirmação acrescenta o mesmo autor: “É absolutamente despropositado e inaceitável sujeitar os intervenientes processuais a uma actividade instrutória demorada e onerosa – envolvendo testemunhas, peritos e profissionais forenses, por exemplo –, quando o juiz dispõe de total jurisdição (definitiva) para fazer valer a sua abordagem firme e escrupulosa da questão de direito, se para a resolução do caso de acordo com esta abordagem é totalmente irrelevante tal actividade.”.
No caso subjudice o ganho em economia processual – com tudo o que a aplicação de tal princípio determina – é evidente porque o estado dos autos, perante a manifesta improcedência das “ excepções” invocadas e, por consequência, a irrelevância dos factos alegados para as sustentar, são determinantes da desnecessidade de processo prosseguir para julgamento.
Em suma: o processo comportava o conhecimento do mérito dos embargos no saneador, como, também, bem se decidiu.
III.DECISÃO
Por todo o exposto se acorda em julgar improcedente a apelação e em manter a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
Évora, 23 de Novembro de 2023
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Ana Pessoa
Maria Adelaide Domingos
_______________________________________
[1] Assim, Henrique Mesquita in A Propriedade Horizontal no Código Civil Português”, Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano XXIII, nºs 1-2-3-4-, págs. 147, 150 e 151
[2] Do qual foi relatora a mesma relatora do presente.
[3] Cfr. Acórdão do STJ de 4.7.2019 ( Ana Paula Boularot).
[4] In “ Relevância das (outras) soluções plausíveis da questão de direito” in Julgar Online, outubro de 2019, pag. 11