COMPRA E VENDA
COISA DEFEITUOSA
DOLO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Sumário


I – Tratando-se de uma compra e venda de um trator agrícola, não estamos perante uma compra e venda sobre amostra ou não à vista, cujos eventuais defeitos possam examinar-se para reclamação criteriosa em oito dias. O caso é, antes, de compra e venda de coisa defeituosa, nos termos do art. 913º do CC,
II – Havendo dolo do vendedor, ainda que a compra e venda tenha natureza comercial, não é aplicável o art. 471º do CCom, mas antes os arts. 913º e ss. do CC.
III - A lei apenas admite o exercício das faculdades processuais que assentem, em termos razoáveis, na realidade revelada objetivamente nos autos; proíbe, por sua vez, o uso dos meios processuais que se fundam naquilo que nunca aconteceu, e de que a parte, atuando com a prudência e diligência medianas e exigíveis, disso poderia e deveria perfeitamente aperceber-se, não lançando para os articulados pretensões assentes unicamente no que é aparente ou ilusório.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral


Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
Hipótese Verde – Unipessoal, Lda. instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra MTNI – Mudanças e Transportes Nacionais e Internacionais e Serviços Logísticos, Unipessoal, Lda., pedindo que esta seja condenada:
i) a pagar-lhe os montantes de € 6.060,51 e de € 19.79,65 a título de indemnização referente, respetivamente, a despesas de reparação do trator agrícola identificado nos autos e à privação do uso deste (na vertente de lucros cessantes), tudo acrescido de juros moratórios computados à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento;
ii) a reparar a caixa de velocidades do referido veículo.
Alega, em síntese, que adquiriu à ré, para o exercício da sua atividade comercial, o trator agrícola com a matrícula ..-PG-.., no estado de usado, pelo preço de € 21.000,00, com garantia de bom funcionamento de um ano, sucedendo que poucos dias após a sua aquisição, o trator foi apresentando as sucessivas avarias que descreve, sendo que as avarias na bomba hidráulica e no motor foram reparadas a expensas suas, atenta a recusa da ré em fazê-lo. Posteriormente, foi detetada uma anomalia na caixa de velocidades, que ainda carece de reparação.
Mais alegou que, em face de tais avarias, esteve impedida de utilizar o trator na sua atividade comercial entre outubro de 2021 e março de 2022, o que lhe causou um prejuízo no montante de € 19.079,65, correspondente ao valor que receberia por trabalho que não pôde realizar.
A ré contestou, excecionando a sua ilegitimidade processual passiva e, no mais, defendeu-se, de forma motivada, por impugnação, designadamente, negando ter transmitido o aludido trator à autora e recebido o preço correspondente, bem como ter concedido a invocada garantia, concluindo pela total improcedência da ação.
Finda a fase dos articulados, teve lugar a audiência prévia com prolação de despacho saneador, que julgou improcedente a exceção de ilegitimidade passiva, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Face ao exposto, julgo a presente ação totalmente procedente e, em consequência, condeno a Ré MTNI – MUDANÇAS E TRANSPORTES NACIONAIS E INTERNACIONAIS E SERVIÇOS LOGÍSTICOS, UNIPESSOAL LDA. a:
a) reparar a caixa de velocidades do trator agrícola com a matrícula ..-PG-.., pertencente à Autora HIPÓTESE VERDE – UNIPESSOAL LDA.;
b) pagar à Autora HIPÓTESE VERDE – UNIPESSOAL LDA. o montante global de € 27.300,20 (vinte e sete mil, trezentos euros e vinte cêntimos) – correspondendo € 25.141,16 a capital e € 2.159,04 a juros moratórios vencidos -, acrescido de juros moratórios vincendos, calculados sobre o capital de € 25.141,16 (vinte e cinco mil cento e quarenta e um euros e dezasseis cêntimos), contados diariamente, às sucessivas taxas supletivas legais aplicáveis aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais a que alude o art. 102.º, § 5 do Cód. Comercial, desde a presente data (18.05.2023) até efetivo e integral pagamento do capital em dívida.

*
Mais condeno a Ré MTNI – MUDANÇAS E TRANSPORTES NACIONAIS E INTERNACIONAIS E SERVIÇOS LOGÍSTICOS, UNIPESSOAL LDA. como litigante de má-fé no pagamento em multa, que se fixa em 5 UC’s
*
Custas pela Ré.»
Inconformada, a ré apelou do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com a formulação de 60 conclusões ao longo de 13 páginas, as quais não satisfazem minimamente a enunciação sintética ou abreviada dos fundamentos do recurso, tal como exige o art. 639º, nº 1, do CPC – sendo que muitas delas são meras transcrições de depoimentos das testemunhas - e, por isso, não serão aqui transcritas.
Das mesmas conclusões consegue respigar-se que as questões submetidas à apreciação deste Tribunal da Relação têm a ver com o alegado erro de julgamento de facto e de direito e a má-fé da ré/recorrente.

A autora contra-alegou, defendendo a manutenção da decisão recorrida.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questões a decidir consubstanciam-se na apreciação das seguintes questões:
- impugnação da matéria de facto;
- aplicação do prazo de 8 dias previsto no artigo 471º do Código Comercial e sua aplicação ao contrato sub judice - natureza do contrato: civil ou comercial?
- litigância de má-fé da ré.

III – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURÍDICA
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. A Autora é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à prestação de serviços agrícolas, incluindo a limpeza de terrenos, árvores, desmatação e podas.
2. Em 20.08.2021, a Ré encomendou à sociedade comercial com a firma “ENTREPOSTO MÁQUINAS DE COMÉRCIO EQUIPAMENTO AGRÍCOLA E INDUSTRIAL, S.A.” (doravante “ENTREPOSTO”) o trator agrícola, no estado de usado, da marca Deutz, modelo 5100 e com a matrícula ..-PG-.. (doravante, trator agrícola), pelo preço de € 16.850,00, com o fito de revendê-lo à Autora.
3. Para pagamento do preço que antecede, em 23.08.2021, a Ré emitiu e entregou à ENTREPOSTO cheque naquele mesmo montante, que a ENTREPOSTO recebeu.
4. Através da AP. 05839 de 15.09.2021, foi efetuado junto da Conservatória do Registo Automóvel o registo da propriedade do trator agrícola a favor da Ré.
5. Posteriormente, a Autora adquiriu à Ré, para o exercício da sua atividade comercial, o trator agrícola pelo preço de € 21.000,00, preço esse que a Ré recebeu entre os dias 02.10.2021 e 03.10.2021, por meio de transferência para a sua conta bancária, ordenada em 01.10.2021.
6. Através da AP. 02362 de 07.10.2021, foi efetuado junto da Conservatória do Registo Automóvel o registo da propriedade do trator agrícola a favor da Autora.
7. A Ré emitiu à Autora fatura com o número FAC/214, datada de 27.08.2021, no valor de € 21.000,00, referente à venda do trator agrícola.
8. Nesta fatura foram apostos os seguintes dizeres: «Observações: Garantia 1 ano de motor; substituição e reparação da grelha frontal; reparação dos guarda-lamas traseiro, direito e esquerdo, mudança de óleo e filtros; reparação eléctrica da cabine (faróis exteriores); reparação da folga dos olhais das barras hidráulicas traseiras. Num prazo de 6 meses recebo o tractor pelo mesmo valor se ele se encontrar nas mesmas condições que foi entregue à troca de um novo».
9. Antes de entregar o trator agrícola à Autora, a Ré sabia que o mesmo apresentava erros no respetivo painel de controlo e deficiências, pelo menos, nos seguintes componentes: veio de sensibilidade, rótulas, casquilhos, «tudo o que era parte hidráulica», pintura, filtros do ar condicionado, guarda-lamas, estrutura e parte da iluminação, anomalias estas que a Ré se comprometeu a corrigir até à referida entrega à Autora.
10. A Ré assegurou à Autora que o trator agrícola ser-lhe-ia entregue em bom estado de conservação e funcionamento.
11. O trator agrícola foi entregue à Autora por volta de outubro de 2021.
12. Poucos dias depois de tal entrega, ao ligar a tomada de força para ligar ao cardan para colocar a roçadeira, a Autora constatou que a mesma não funcionava, bem como o sistema de ar condicionado, o que foi comunicado à Ré, que procedeu à sua reparação.
13. Logo depois desta reparação, a bomba hidráulica do trator agrícola também deixou de funcionar.
14. Apesar de a Autora ter reportado à Ré tal avaria, esta recusou-se a proceder à sua reparação.
15. Ante esta recusa e porque precisava do trator agrícola para a sua atividade, por volta de janeiro de 2022, a Autora procedeu à reparação da anomalia aludida em 12 na oficina de D..., UNIPESSOAL, LDA., tendo suportado uma despesa no montante de € 1.025,55.
16. Depois desta reparação e após cerca de três/quatro horas de funcionamento, o trator agrícola acendeu no respetivo painel de controlo o sinal de falta de óleo do motor, na sequência do que se veio a constatar que o motor não estava a funcionar corretamente, não podendo trabalhar nessas condições.
17. A Autora comunicou telefonicamente à Ré a avaria do motor, tendo a Ré se recusado a repará-la.
18. Em face disto, em 28.01.2022, a Autora, através de advogada, remeteu carta registada à Ré, que recebeu, comunicando-lhe, além do mais, a ocorrência desta avaria e solicitando-lhe a respetiva reparação ou a devolução do preço (€ 21.000,00) até ao dia 08.02.2022.
19. Perante a ausência de resposta da Ré a esta missiva, por volta de março de 2022, a Autora procedeu à reparação das anomalias relacionadas com o motor do trator agrícola e o sistema de óleo na oficina de D..., UNIPESSOAL, LDA., com o que despendeu o montante de € 5.035,96.
20. Após, em data não concretamente apurada, mas anterior à data da propositura da presente ação, foi detetada uma avaria na caixa de velocidades do trator agrícola, que ainda se encontra por reparar.
21. A avarias aludidas em 13, 16 e 20 advêm de anomalias existentes em data anterior à aquisição do trator agrícola pela Autora à Ré.
22. Em consequência das anomalias acima descritas em 13 e 16, o trator não esteve apto para trabalhar entre o final de 2021 e março de 2022, o que impediu a Autora de utilizar o trator agrícola – o único de que então dispunha - para realizar um trabalho de limpeza florestal de linhas elétricas de alta e média tensão numa extensão de 33,182 hectares, na Atalaia, Vila Nova da Barquinha, que lhe havia sido solicitado, deixando de receber o montante de € 19.079,65 (€ 575,00 por hectare).
23. A Autora recorreu aos serviços da sociedade LEIRIFIN – SOLUÇÕES FINANCEIRAS, LDA. (doravante LEIRIFIN), intermediária de crédito, para obter financiamento com vista à aquisição do trator agrícola supramencionado.
24. O financiamento foi aprovado e concedido pelo BANCO COFIDIS, S.A., sendo que, nas condições particulares do acordo escrito celebrado entre a Autora e esta instituição bancária, a Ré figura como “Fornecedora do Bem Financiado”.
25. Foi a Ré quem forneceu diretamente à LEIRIFIN a fatura proforma do trator agrícola, emitida pela própria Ré, o código da respetiva certidão permanente do registo comercial, o comprovativo da sua morada, o comprovativo do seu número de sua conta bancária, os cartões do cidadão dos seus sócios e o documento único automóvel (DUA) do trator agrícola emitido em seu nome, todos solicitados pela LEIRIFIN com vista à aprovação e formalização do financiamento referido em 24.
26. A Ré afirmou em diversos contactos telefónicos havidos com a LEIRIFIN tratar-se da entidade vendedora do trator agrícola à Autora.

E foram considerados não provados estes outros factos:
A) Que, antes de entregar o trator agrícola à Autora, a ENTREPOSTO verificou o mesmo a fim de ser entregue em boas condições de funcionamento;
B) Que foi a ENTREPOSTO quem autorizou a reparação mencionada em 12; e
C) Que a Autora reportou as avarias aludidas em 13, 16 e 20 à ENTREPOSTO para acionar a respetiva garantia.

Questão prévia
No final das contra-alegações veio a autora/recorrida pugnar pela rejeição do recurso apresentado pela ré/recorrente, por esta não ter «terminado o recurso com a efetuação de proposições sintéticas», consistindo tais conclusões «na sua quase totalidade nos excertos dos depoimentos das testemunhas, tal equivale à ausência de conclusões, o que deverá dar lugar à rejeição do recurso, nos termos do artigo 641º, nº 1, alínea b) do CPC.»
E, de facto, não deixa a recorrida de ter razão, mas só em parte.
De harmonia com o disposto no nº 1 do art. 639º do CPC, as conclusões do recurso devem ser apresentadas “de forma sintética”.
Esta expressão, a exortar à síntese dos fundamentos da impugnação, foi introduzida pelo DL n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, numa mera explicitação de algo que, segundo Lopes do Rego, sempre decorreria da própria «natureza das coisas»[1]
Já na versão do Código de 1939, se prescrevia que o recorrente “concluirá pela indicação resumida dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação” da decisão impugnada.
Neste contexto, o ónus de concluir deve ser cumprido através da «enunciação de proposições que sintetizem, com precisão e concisão, os fundamentos do recurso»[2].
Na verdade, a elaboração das conclusões do recurso convoca o recorrente a ser claro e preciso quanto às suas razões e fundamentos, permitindo assim ao recorrido responder adequadamente e facilitando, também, ao tribunal ad quem, a delimitação do objeto do recurso.
Por isso, para além de ser um instrumento de disciplina, constitui, igualmente, uma forma célere de apreensão do objeto do recurso, potenciando uma eficaz administração da justiça.
Ora, como já referimos supra, a recorrente encerra as suas alegações de recurso com 60 conclusões ao longo de 13 páginas, as quais não satisfazem a enunciação sintética ou abreviada dos fundamentos do recurso, tal como exige o art. 639º, nº 1, do CPC, sendo que muitas delas são meras transcrições de depoimentos das testemunhas.
Entendemos, porém, não obstante se tratar de uma peça tecnicamente deficiente, que não se pode falar em ausência de conclusões e, ademais, a autora/recorrida identificou com clareza as questões suscitadas pela recorrente, como se colhe do teor das contra-alegações, pelo que não se justifica a rejeição do recurso, do qual se passa de imediato a conhecer.

Da impugnação da matéria de facto
Como resulta do artigo 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.
Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto: prova documental, declarações de parte e depoimentos das testemunhas registados em suporte digital.
Considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode dizer-se que a recorrente cumpriu formalmente os ónus impostos pelo artigo 640º, nº 1, do CPC, pelo que nada obsta ao conhecimento do recurso na parte atinente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
No que respeita à questão da alteração da matéria de facto face à incorreta avaliação da prova produzida, cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo artigo 662º do CPC, e enquanto tribunal de 2ª instância, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objeto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto.
Foi auditado o suporte áudio e, concomitantemente, ponderada a convicção criada no espírito da Sr.ª Juíza a quo, a qual tem a seu favor o importante princípio da imediação da prova, que não pode ser descurado, sendo esse contacto direto com a prova testemunhal que melhor possibilita ao julgador a perceção da frontalidade, da lucidez, do rigor da informação transmitida e da firmeza dos depoimentos prestados, levando-o ao convencimento quanto à veracidade ou probabilidade dos factos sobre que recaíram as provas.
Infere-se das conclusões da recorrente que esta está em desacordo com a decisão de facto relativamente aos pontos 2 a 5, 7 a 17, 21 e 26 dos factos provados, cuja factualidade, no seu entender, deve ser considerada não provada.
Na sentença recorrida fundamentou-se a decisão de facto relativamente aos pontos 4, 7, 8, 11, 12 e 18, do seguinte modo:
«Para prova dos factos vertidos em 4, 6, 7 e 8, o Tribunal ateve-se ao teor, respetivamente, da certidão do registo automóvel de fls. 12v e da fatura de fls. 12, documentos estes que revestem força probatória plena nos termos dos arts. 371.º e 376.º do Cód. Civil.
O valor do preço aludido em 5 e o respetivo recebimento por parte da Ré foi expressamente confessado pelo respetivo representante legal, AA, através de declarações de parte tomadas em audiência final, tendo sido dado cumprimento do disposto no art. 463.º do Cód. Proc. Civil (cfr. fls. 76 a 79; cfr. arts. 352.º, 355.º, n.ºs 1 e 2, 356.º, n.º 2 e 358.º, n.º 1, todos do Cód. Civil).
Por seu turno, os factos descritos em 12 e 18 mostram-se assentes por acordo das partes (cfr. art. 574.º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil). Destarte, a Ré não impugna – antes reconhece implicitamente - a anomalia e a reparação mencionadas em 12 (apenas acrescentando que «quem autorizou a sua reparação foi a “Entreposto”») e admite expressamente ter rececionado a carta de fls. 19v a 20v (cfr. arts. 22.º e 27.º da contestação). Acha-se igualmente assente por acordo das partes que o trator agrícola foi efetivamente entregue à Autora, tal como aludido em 11.»
E a factualidade dos pontos 2, 3, 5, 9, 10, 13, 14, 15, 16, 17, 21 e 26, teve a seguinte motivação:
«Para prova dos negócios vertidos em 2, 3 e 5, o Tribunal ateve-se, prima facie, ao teor da certidão do registo automóvel de fls. 12v, da qual decorre que houve uma transmissão da propriedade do trator agrícola para a Ré e, após, uma outra transmissão daquela mesma propriedade para a Autora, o que, em si mesmo, já indicia a existência de dois negócios.
Acresce que, do confronto entre as declarações de BB (gerente da Autora) e o depoimento da testemunha CC (experiente na comercialização de tratores agrícolas) resultou claro que, tendo o primeiro manifestado junto do segundo interesse em adquirir um trator agrícola para a atividade comercial da Autora, CC, depois de tomar conhecimento de que a ENTREPOSTO tinha um trator para venda, propôs a BB que o mesmo fosse ver o referido trator a Coruche, o que BB fez, tendo sido recebido por DD, funcionário da ENTREPOSTO. Após, BB ofereceu a CC o valor de € 21.000,00 pela aquisição do trator (desde que fossem efetuadas algumas reparações, conforme infra melhor se explicitará). CC contactou então AA, gerente da Ré, indagando se o mesmo estava interessado em adquirir o trator agrícola à ENTREPOSTO com o fito de o revender à Autora, ao que AA anuiu.
Ora, esta versão explica: (i) porque motivo foi a Ré – e não a ENTREPOSTO – a emitir a fatura de fls. 12, no valor de € 21.000,00, referente à venda do trator agrícola; e (ii) porque motivo tal montante foi transferido pelo BANCO COFIDIS, S.A. para a conta bancária da Ré – e não da ENTREPOSTO –, conforme atesta o comprovativo de ordem de transferência de fls. 11, datada de 01.10.2021, e, ademais, foi confessado pelo representante legal da Autora (cfr. ata de fls. 76 a 79). Talqualmente, a testemunha EE, gerente da intermediária de crédito LEIRIFIN, de modo escorreito e isento, confirmou aquele pagamento, explicando adicionalmente que o valor de € 21.000,00 ficou disponível na conta da Ré entre os dias 02.10.2023 e 03.10.2021.
BB e DD esclareceram ainda em julgamento, de forma crível e harmoniosa, que este último se limitou a mostrar o trator agrícola a BB, por indicação de CC, não tendo encetado entre si quaisquer negociações, nem discutido os termos da venda. Ademais, CC reconheceu expressamente que atuou como intermediário do negócio e que a Ré adquiriu o trator agrícola à ENTREPOSTO para revendê-lo à Autora por preço superior, assim beneficiando de uma margem de lucro (ao que seria deduzido o custo das reparações de que o trator necessitava, que a Ré assumiu suportar).
No que em particular respeita ao preço de aquisição do trator agrícola à ENTREPOSTO e à forma do respetivo pagamento aludidos em 2 e 3, o Tribunal tomou em consideração o depoimento da testemunha DD, que confirmou tal factualidade de modo direto e espontâneo, tendo-se socorrido das cópias da fatura e do cheque em causa (que levou consigo) para avivamento da memória. De resto, também a testemunha CC e o gerente da Ré, AA, admitiram que a Ré pagou à ENTREPOSTO o preço do trator agrícola e que o fez por meio de cheque. Apenas diferiram quanto ao valor do preço ajustado com a ENTREPOSTO: CC referiu que foi € 17.000,00, a que acresceria IVA; AA afirmou que a Ré entregou à ENTREPOSTO cerca de € 18.800,00. Porém, nenhuma destas duas versões mereceu o acolhimento do Tribunal.
Por diversas ordens de razão. Em primeiro lugar, não é crível que ao valor de € 17.000,00 acrescesse o IVA (23%), como sustentado por CC, já que nesta hipótese o preço de aquisição à ENTREPOSTO seria de € 20.910,00, o que não se compagina com um preço de revenda à Autora de € 21.000,00 (revenda essa que visava a obtenção de lucro). Em segundo lugar, o gerente da Ré AA declarou o valor do preço de forma insegura, utilizando a expressão «entregou 18 mil e qualquer coisa euros», só posteriormente referindo cerca de € 18.800,00. Em terceiro lugar, não passou despercebido ao Tribunal que CC e AA procuraram convencer que pouco ganhariam com este negócio (AA chegou mesmo a referir que «fez isto tudo só por causa dos € 350,00 que o Sr. CC lhe devia»), como se tal facto fosse passível de minorar uma eventual responsabilidade da Ré, o que – cremos – poderá tê-los levado a afirmar que preço de aquisição à ENTREPOSTO foi mais elevado do que efetivamente foi.
O facto aludido em 9 resulta demonstrado pelo depoimento da testemunha CC, que, como intermediário no negócio, admitiu expressamente que o trator agrícola padecia das anomalias ali elencadas e que a Ré se comprometeu a resolvê-las (e a suportar o respetivo custo) antes de o entregar à Autora. Tomou-se ainda em consideração a fatura emitida pela própria Ré, junta a fls. 12, onde justamente se discriminam várias reparações que deveriam ficar a seu cargo. Por outro lado, a testemunha DD explicou que a ENTREPOSTO se comprometeu a fazer a mudança de óleo e de filtros, mas que, pelo preço acordado, não faria qualquer outra intervenção no trator agrícola. Destarte, referiu aquela testemunha que CC «foi informado que o valor do trator era um e se fosse totalmente revisionado era outro». Ora, daqui se extrai que, tal como referido por CC, o trator careceria de outras intervenções (apesar de, em julgamento, não ter sido pedido a DD que as concretizasse). Também a testemunha D... referiu que, antes de entregar o trator à Autora, CC passou pela sua oficina para apagar os erros visíveis no painel de controlo, donde igualmente se infere que a Ré conhecia a existência de anomalias.
Por outro lado, resulta das declarações do representante legal da Autora, BB, que a Ré se comprometeu a entregar o trator agrícola devidamente reparado e em bom estado de conservação e funcionamento. Ora, o facto de a Ré se ter comprometido, como provado, a corrigir as deficiências aludidas em 9 e, ainda, de ter declarado aceitar a devolução do trator pelo mesmo valor no prazo de seis meses se aquele se encontrasse nas mesmas condições que foi entregue, conforme decorre do teor da fatura de fls. 12, são circunstâncias que inequivocamente conferem credibilidade ao relato de BB, razão pela qual se reputou demonstrada a factualidade descrita em 10.
Considerou-se demonstrado que a entrega do trator agrícola à Autora (assente entre as partes) ocorreu por volta de outubro de 2021, como aludido em 11, tendo em linha de conta que a Ré recebeu o preço no dia 02.10.2021 ou no dia 03.10.2021, que o pedido de registo de transmissão da propriedade a favor da Autora foi apresentado em 07.10.2021 e que, em 04.10.2021, a Autora celebrou contrato de subempreitada de limpeza florestal de linhas de eletricidade, cuja execução demandaria um trator (como referido por FF, BB e CC). Ora, daqui se depreende, atentas as regras da normalidade da vida e as máximas da experiência, que a entrega terá ocorrido por volta desse período, tanto mais de que inexiste notícia de que tenha sido acordado o deferimento da entrega do trator ou ocorrido atraso na mesma.
Os factos mencionados em 13, 14, 15, 16, 17 e 20 foram apurados, antes do mais, através das declarações de parte de BB, que, de forma pormenorizada e circunstanciada no tempo, modo e lugar, descreveu as avarias em causa, a respetiva e reparação e os custos que a Autora suportou. Explicou ainda os contactos telefónicos que estabeleceu com CC e AA, comunicando as avarias e solicitando a sua reparação.
Ora, no que tange especificamente às avarias, as declarações de BB estão em harmonia com o depoimento da testemunha D..., que procedeu ao diagnóstico das mesmas e, ainda, às reparações descritas em 15 e 19, confirmando que estas foram efetivamente realizadas e que a Autora pagou as competentes faturas, cujas cópias se mostram juntas aos autos a fls. 18, 19, 21, 21v e 22 e aqui se analisaram criticamente. Por reparar ficou – disse – a caixa de velocidades.
Também a testemunha FF relatou as anomalias do trator, sendo que esta assistiu ainda a contactos telefónicos do marido, BB, com CC e AA (que a testemunha não soube dizer o nome, mas descreveu como o «Senhor da empresa que passava a fatura»), dando até nota – em concordância com a versão de BB – que a dada altura aqueles não atendiam ou davam uma desculpa. Ademais, a testemunha CC reconheceu expressamente que BB «reportou-lhe tudo», acrescentando que «desde a primeira hora estive sempre com o Sr. BB».
Para a data das reparações mencionadas em 15 e 19, o Tribunal ateve-se às datas das faturas de fls. 18, 19, 21, 21v e 22, visto ser possível inferir que estas foram emitidas por ocasião da conclusão de tais reparações.
O Tribunal formou a sua convicção positiva quanto ao facto mencionado em 21 com apelo às máximas da experiência, da lógica e da normalidade da vida. Destarte, como se referiu supra, encontra-se demonstrado que o trator agrícola, não só era usado, como antes da sua aquisição pela Autora já se conheciam pelo menos as anomalias descritas em 9 (que incluíam, além do mais, o sistema hidráulico). Por outro lado, entre a entrega do trator à Autora e a ocorrência das sucessivas avarias decorreu muito pouco tempo, sendo que em boa parte dele o trator esteve avariado, sem conseguir trabalhar ou em reparação (note-se, v.g., que a avaria do motor ocorreu entre o final de 2021 e janeiro de 2022, tendo a reparação sido concluída apenas em março 2022). Conforme afirmou a testemunha CC, «desde que o trator começou a trabalhar nas mãos do BB, aquilo foi uma desgraça». Também a testemunha D... se expressou sobre o estado do trator, dizendo «isto é uma bota da tropa que está aqui».
Quer dizer, pois, que os problemas de funcionamento do trator em causa nos autos surgiram logo de início e com pouco tempo de utilização por parte da Autora. Ora, não é expetável que um trator agrícola – sendo, ademais, por regra, um veículo robusto – apresente tais avarias com tão pouco tempo de funcionamento. A única explicação plausível – ditam as máximas da experiência – é que as mesmas fossem preexistentes, apesar de detetadas ulteriormente.
(…).
Consideraram-se provados os factos descritos em 23, 24, 25 e 26, através da análise do contrato de fls. 7v a 11, que justamente atestam o financiamento em causa, o respetivo valor e, ainda, identifica a Ré como sendo a entidade fornecedora do bem financiado. BB e FF, confirmaram o recurso ao crédito com vista à aquisição do trator.
Mas, particularmente relevante para o apuramento da factualidade em causa foi o depoimento da testemunha EE, gerente da LEIRIFIN, que intermediou o financiamento. Ora, esta testemunha descreveu de forma detalhada, convincente e clara o procedimento adotado para a concessão do crédito, bem como os contactos havidos com a Ré (na pessoa de AA) e discriminou todos os elementos que a Ré lhe facultou, na qualidade de vendedora, necessários à aprovação do financiamento. AA admitiu ter entrado em contacto com a financeira «uma ou duas vezes».
Depois de ouvirmos integralmente os depoimentos de todas as pessoas que foram inquiridas na audiência de julgamento, ficámos plenamente convencidos que a Sr.ª Juíza a quo os apreciou corretamente, que foi uma Juíza ativa durante a produção dessa prova, colocando àquelas pertinentes e fundadas questões, tendo apreciado convenientemente toda essa prova e feito a sua conjugação (complementando-a) com a demais (prova documental) que já estava plasmada nos autos.
Antes ainda de dizermos porque é que consideramos acertada a decisão de facto relativamente aos pontos em questão, importa ter presente que não basta transcrever excertos truncados do que disseram as testemunhas, como faz a recorrente, e pretender, sem mais, uma alteração da decisão sobre a matéria de facto, pois os depoimentos das testemunhas têm de ser analisados no seu conjunto e pesam-se caso a caso, no contexto em que se inserem, tendo em conta a razão de ciência que invocam e a sua razoabilidade face à lógica, à razão e às máximas da experiência.
Porque nos revemos inteiramente na fundamentação da decisão de facto constante da sentença, teceremos apenas uma breves palavras no sentido de evidenciar o acerto de tal decisão.
Assim, a facticidade do ponto 2 encontra sustentação no depoimento da testemunha DD, funcionário da empresa Entreposto, que confirma a existência da nota de encomenda, fatura e cheque para pagamento e que tudo foi passado em nome da MTNI. Por sua vez, a testemunha CC referiu ter sido um mero intermediário no negócio, confirmando que foi o legal representante da ré que adquiriu o trator agrícola à empresa Entreposto Máquinas. Esta aquisição foi igualmente confirmada pela testemunha D... e pelo legal representante da ré em declarações de parte, que sabia estar a adquirir o veículo que posteriormente registou em seu nome
No que respeita ao ponto 3, não merece qualquer censura a consideração como provada da matéria de facto nele constante, sendo deveras esclarecedor o depoimento da já referida testemunha DD, que referiu, além do mais, ter o legal representante da ré passado um cheque no valor de €16.850,00 para compra do trator, o que também foi confirmado pela testemunha CC.
Ou seja, a Entreposto Máquinas não realizou qualquer negócio com a autora, nem dela recebeu qualquer importância, não havendo a menor dúvida que foi a ré quem adquiriu o trator agrícola dos autos à empresa Entreposto, vendendo-o posteriormente à autora.
Os factos dados como provados nos pontos 4, 6, 7 e 8 têm o devido respaldo, como corretamente se considerou na sentença recorrida, na certidão de registo automóvel de fls. 12 e da fatura junta aos autos, documentos revestidos de força probatória plena nos termos dos artigos 371º e 376º do Código Civil.
A versão apresentada pela ré/recorrente não encontra o menor arrimo na prova produzida, sendo que o registo automóvel da aquisição realizada pela recorrente à Entreposto, traduz um negócio real translativo e um verdadeiro negócio jurídico, pelo que a presunção derivada do registo não poderá ser ilidida, mostrando-se corretamente decidido o ponto 4.
Como referido pela testemunha EE, que foi a responsável pela elaboração do pedido de crédito pessoal da autora junto da instituição Leirifin, foi a ré quem forneceu a esta entidade toda a documentação necessária para a aprovação do mesmo (fatura proform, código da certidão comercial, comprovativo da morada, NIB, cartão de cidadão dos sócios, DUA do trator emitido em seu nome), além dos contactos telefónicos com a testemunha nos quais o legal representante da ré se identificou como vendedor do trator, sendo que a ré recebeu na sua conta a quantia de € 21.000,00 referente ao preço da venda.
Foi também a ré/recorrente que emitiu a fatura da venda do veículo à autora/recorrida, na qual consta, preto no branco, a garantia da mesma, tendo-se comprometido a entregar o trator em bom estado de conservação e funcionamento, tendo dado inclusivamente a possibilidade de no prazo de seis meses poder entregar o trator no mesmo estado sendo-lhe devolvido o dinheiro, razão pela qual não podia deixar de se considerar provada a factualidade vertida no ponto 10.
A matéria dos pontos 12, 13 e 14 resulta provada pelas declarações de parte do legal representante da autora, o qual esclareceu que logo que surgiram as primeiras avarias contactou de imediato o legal representante da ré e a testemunha CC, para que a ré procedesse à reparação do trator ao abrigo da garantia que lhe tina sido dada, o que a ré sempre recusou, pelo que não pode a recorrente invocar que desconhecia as avarias relatadas, sendo que os custos de tais reparações foram sempre custeadas pela autora, pelo que também se encontram bem decididos os pontos 15 e 17 dos factos provados.
No que tange ao ponto 21 o Tribunal a quo formou a sua convicção fazendo apelo às regras da experiência comum, o que se afigura totalmente correto.
As regras de experiência comum «não são meios de prova, instrumentos de obtenção de prova, mas antes raciocínios, juízos hipotéticos de conteúdo genérico, assentes na experiência comum, independentes dos casos individuais em que se alicerçam, com validade, muitas vezes, para além da hipótese a que respeitem, permitindo atingir continuidades, imediatamente, apreensivas nas correlações internas entre factos, conformes à lógica, sem incongruências para o homem médio e que, por isso, legitimam a afirmação de que dado facto é a natural consequência de outro, surgindo com toda a probabilidade forte, próxima da certeza, sem receio de se incorrer em injustiça, por não estar contaminado pela possibilidade física, mais ou menos arbitrária, impregnado de impressões vagas, dubitativas e incredíveis»[3].
Ora, o facto de o legal representante da autora antes da compra ter ouvido o trator a trabalhar, não significa só por si que aquele não tivesse anomalias, pois só com o mesmo em funcionamento e em trabalhos que exijam um esforço acrescido do motor, é que se percebe se as anomalias existem. E, como as avarias descritas nos autos se manifestaram num curto período subsequente à entrega do trator à autora, pode-se extrair a presunção natural de que tais avarias eram existentes em data anterior à aquisição do trator agrícola pela autora à Ré.
Por último, quanto ao ponto 26, o depoimento da já referida testemunha EE, não deixa margem para dúvidas quanto à facticidade dada como provada.
Referiu a testemunha, como já referimos supra, que quem vendeu o trator foi a ré/recorrente e que o valor do preço da venda do trator [€ 21.000,00], foi creditado na conta da recorrente, facto que o legal representante também confirmou nas declarações que prestou.
Não se vislumbra, pois, uma desconsideração da prova produzida, mas sim uma correta apreciação da mesma, não se patenteando a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido. Ou seja, no processo da formação livre da prudente convicção do Tribunal a quo não se evidencia nenhum erro que justifique a alteração da decisão sobre a matéria de facto, designadamente ao abrigo do disposto no artigo 662º do CPC.
Assim, teremos de concluir que, perante a prova produzida, bem andou a Sr.ª Juíza a quo na decisão sobre a matéria de facto, a qual, por isso, permanece intacta.

Do artigo 471º do Código Comercial: do prazo de 8 dias previsto neste normativo e da sua aplicação ao contrato sub judice - natureza do contrato: civil ou comercial?
A sentença recorrida tratou o caso dos autos como se de uma compra e venda civil se tratasse.
As recorrentes questionam este entendimento, sustentando que estamos perante um contrato de compra e venda comercial, por nele serem intervenientes comerciantes, a qual tem regime próprio no art. 463º do Código Comercial[4], sendo o regime da compra e venda civil insuscetível de regular o negócio, resultando assim afastado o regime da venda de coisas defeituosas a que aludem os arts. 913º e ss. do Código Civil[5].
Entende por isso a recorrente serem aplicáveis ao caso as disposições dos arts. 468º a 474º do C.Com., e como a coisa comprada foi objeto de exame por parte da autora/recorrida, que a achou boa e dela não tendo reclamado qualquer defeito, dispunha do prazo de 8 dias previsto no art. 471º do CCom. para reclamar os defeitos, o que não fez, pelo que ocorreu a caducidade do direito de o fazer.
A recorrida nas contra-alegações defende que estamos perante um ato de natureza subjetivamente e não objetivamente comercial, a que acresce não ser aplicável o art. 471º do CCom. por este preceito se reportar aos arts. 469º e 470º do mesmo diploma, ou seja, à venda sob amostra e à compra de coisas não à vista nem designáveis por padrão, o que não é o caso em apreciação, pelo que estamos perante uma compra e venda de coisa defeituosa, nos termos do art. 913º do CC, a que acresce ter a recorrente atuado com dolo, sendo que o art. 471º do CCom. não contempla a hipótese de dolo, razão pela qual, perante omissão do CCom, são de aplicar as correspondentes disposições do CC [art. 3º do C.Com.].
Vejamos, pois, de que lado está a razão.
Estatui o art. 2º do CCom. que «serão considerados atos do comércio todos aqueles que se acharem especialmente regulados neste código, e além deles todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio ato não resultar».
Consagra este preceito dois tipos de atos comerciais; os objetivamente comerciais que o são independentemente das qualidades dos respetivos sujeitos e os subjetivamente comerciais tendo esta natureza devido a serem comerciantes as pessoas que neles intervêm. Os primeiros encontram a sua sede de regulamentação no CCom.; os segundos encontram-se previstos naquele Diploma e igualmente no CC.
In casu estamos perante atos de natureza subjetivamente comercial; no entanto da análise dos termos do contrato não podemos concluir que estamos em face de atos objetivamente comerciais. É aliás o art. 463º do CCom. expresso em referir no nº 1 que são consideradas comerciais «as compras de coisas móveis para revender, em bruto ou trabalhadas ou simplesmente para lhes alugar o uso: para além do aluguer do uso, as compras para revenda estão na base na destrinça entre compra e venda civil ou comercial.
Acresce por outro lado não ser possível enquadrar o contrato em apreciação no art. 471º do CCom.
Estatui este preceito legal que «as condições referidas nos dois artigos antecedentes haver-se-ão por verificadas e os contratos como perfeitos se o comprador examinar as coisas compradas no ato da entrega e não reclamar contra a sua qualidade ou, não as examinando, não reclamar dentro de oito dias».
Ora, «este artigo reporta-se nitidamente aos artigos 469º e 470º, ou seja à venda sob amostra e à compra de coisas não à vista nem designáveis por padrão; no fundo consubstancia-se uma compra e venda sob reserva de a coisa agradar ao comprador»[6].
No caso em apreço temos a compra, por um comerciante a outro [art. 13º, nºs 1 e 2 do CCom.], de um trator agrícola destinado pela compradora [sociedade recorrida] - o que a sociedade vendedora [recorrente] sabia - ao exercício do seu comércio, ou seja, prestação de serviços agrícolas, incluindo a limpeza de terrenos.
O trator foi examinado pelo comprador, tanto quanto o pode ser um veículo daquela natureza, a que acresce ter a vendedora [recorrente] assegurado, na fatura que emitiu: «Garantia 1 ano de motor; substituição e reparação da grelha frontal; reparação dos guarda-lamas traseiro, direito e esquerdo, mudança de óleo e filtros; reparação elétrica da cabine (faróis exteriores); reparação da folga dos olhais das barras hidráulicas traseiras. Num prazo de 6 meses recebo o trator pelo mesmo valor se ele se encontrar nas mesmas condições que foi entregue à troca de um novo». garantido pelo prazo de um ano a reparação ou substituição de qualquer dano ou avaria na caixa, no diferencial e no motor da retroescavadora pelo prazo de três meses.»
Não estamos evidentemente perante uma compra e venda sobre amostra ou não à vista, cujos eventuais defeitos possam examinar-se para reclamação criteriosa em oito dias. O caso é, antes, de compra e venda de coisa defeituosa, nos termos do art. 913º do CC, como evidencia a seguinte factualidade:
«12. Poucos dias depois de tal entrega, ao ligar a tomada de força para ligar ao cardan para colocar a roçadeira, a Autora constatou que a mesma não funcionava, bem como o sistema de ar condicionado, o que foi comunicado à Ré, que procedeu à sua reparação.
13. Logo depois desta reparação, a bomba hidráulica do trator agrícola também deixou de funcionar.
14. Apesar de a Autora ter reportado à Ré tal avaria, esta recusou-se a proceder à sua reparação.
15. Ante esta recusa e porque precisava do trator agrícola para a sua atividade, por volta de janeiro de 2022, a Autora procedeu à reparação da anomalia aludida em 12 na oficina de D..., UNIPESSOAL, LDA., tendo suportado uma despesa no montante de € 1.025,55.
16. Depois desta reparação e após cerca de três/quatro horas de funcionamento, o trator agrícola acendeu no respetivo painel de controlo o sinal de falta de óleo do motor, na sequência do que se veio a constatar que o motor não estava a funcionar corretamente, não podendo trabalhar nessas condições.»
Ademais, está provado que tais avarias «advêm de anomalias existentes em data anterior à aquisição do trator agrícola pela Autora à Ré» [ponto 21], e que «[a]ntes de entregar o trator agrícola à Autora, a Ré sabia que o mesmo apresentava erros no respetivo painel de controlo e deficiências, pelo menos, nos seguintes componentes: veio de sensibilidade, rótulas, casquilhos, «tudo o que era parte hidráulica», pintura, filtros do ar condicionado, guarda-lamas, estrutura e parte da iluminação, anomalias estas que a Ré se comprometeu a corrigir até à referida entrega à Autora [ponto 9].
Escreveu-se no supra citado Acórdão do STJ de 07.10.2003:
«(…), o art. 471º do C. Comercial não contempla a hipótese de dolo, razão pela qual, perante omissão do Código Comercial, são de aplicar as correspondentes disposições do CC (art. 3º do C. Comercial).
Acrescem duas razões.
A unidade do sistema jurídico leva a interpretar o artigo 471º do C. comercial de forma análoga ao estabelecido no art. 916º do CC - Prof. Pedro Romano Martinez - Cumprimento Defeituoso, págs. 422/426.
Por outro lado, as razões que motivaram os prazos curtos em nome da segurança e em desfavor muitas vezes da justiça não têm razão de ser face ao dolo.»[7]
Por isso, ainda que possa qualificar-se a compra e venda em apreço de (subjetivamente) comercial, não é aplicável in casu o art. 471º do C.Com., mas antes os arts 913º ss do Código Civil.
E foi isso que se fez na sentença recorrida, onde se efetuou uma correta subsunção dos factos àquelas normas jurídicas e se concluiu acertadamente pela condenação da ré nos termos sobreditos.

Da má-fé da ré
Escreveu-se na sentença recorrida.
«No caso vertente, defendeu-se a Ré na contestação, alegando desconhecer a Autora, nada ter vendido à Autora, não ter conferido à Autora qualquer garantia, ter sido a ENTREPOSTO a receber da Autora o preço da venda e não lhe terem sido reportadas as anomalias do trator (com exceção de uma carta registada da advogada da Autora, que admitiu ter recebido).
Acontece, como demonstrado, foi a Ré quem vendeu o trator agrícola à Autora. Foi a Ré quem recebeu o preço de € 21.000,00. Foi a Ré quem faturou o preço da venda à Autora. Foi a Ré quem conferiu à Autora garantia de bom funcionamento do motor pelo período de um ano. Foi à Ré que a Autora comunicou as avarias, tendo a Ré, aliás, assegurado a reparação de uma primeira anomalia. Foi a Ré quem facultou diretamente à LEIRIFIN, intermediária de crédito, a fatura proforma do trator agrícola, emitida pela própria Ré, o código da respetiva certidão permanente do registo comercial, o comprovativo da sua morada, o comprovativo do seu número de sua conta bancária, os cartões do cidadão dos seus sócios e o DUA do trator agrícola emitido em seu nome, todos solicitados pela LEIRIFIN com vista à aprovação e formalização do financiamento solicitado pela Autora. Igualmente se provou que a Ré afirmou em diversos contactos telefónicos havidos com a LEIRIFIN tratar-se da entidade vendedora do trator agrícola à Autora.
Ora, tal factualidade demonstra à saciedade que na contestação a Ré faltou despudoradamente à verdade. Ademais, deduziu oposição cuja falta de fundamento, nessa parte, não podia ignorar. E fez do processo – rectius, da contestação - um uso reprovável, com o fim de impedir a descoberta da verdade, dando aso a que tivesse sido necessário produzir prova relativamente a factos que a mesma sabia serem verdadeiros.
Fê-lo com dolo, já que se trata de factos que a mesma conhecia, mas negou intencionalmente.
Litigou, pois, manifesta e inequivocamente, de má-fé, nos termos do disposto no art. 542.º, n.º 2, alíneas a), b) e d) do Cód. Proc. Civil, devendo ser condenada em multa.»
Subscrevemos integralmente este entendimento, que reflete uma correta análise da conduta processual da ré/recorrente.
Como se sumariou no Acórdão do STJ de 13.07.2021[8]:
«I- O comportamento processual contrário à lei, desde que se conclua que foi adoptado pelo agente com dolo ou negligência grave na prossecução de uma finalidade inadmissível e susceptível de afectar seriamente, de forma injustificada, os interesses da parte contrária, consubstancia uma conduta reprovável e sancionada no âmbito do instituto da litigância de má fé.
II- A litigância processual exige responsabilidade, probidade e prudência, não sendo aceitável ou admissível a utilização desenfreada e sem critério de todos os meios e expedientes de que a parte se lembre para a prossecução e obtenção dos fins que a possam favorecer.
III- A lei apenas admite o exercício das faculdades processuais que assentem, em termos razoáveis, na realidade revelada objectivamente nos autos; proíbe, por sua vez, o uso dos meios processuais que se fundam naquilo que nunca aconteceu, e de que a parte, actuando com a prudência e diligência medianas e exigíveis, disso poderia e deveria perfeitamente aperceber-se, não atirando para os articulados pretensões assentes unicamente no que é aparente ou ilusório.»
Face à factualidade evidenciada na sentença, bem andou o Tribunal a quo em condenar a ré/recorrente como litigante de má-fé.
Por conseguinte, o recurso improcede.
Vencida no recurso, suportará a ré/recorrente as respetivas custas – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
*
Évora, 23 de novembro de 2023
Manuel Bargado (Relator)
Ana Isabel Pessoa (1ª Adjunta)
Elisabete Valente (2ª Adjunta)
(documento com assinaturas eletrónicas)

__________________________________________________
[1] Comentário ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, p. 581.
[2] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, p. 361.
[3] Cfr. Acórdão do STJ de 06.07.2011, proc. 3612/07.6TBLRA.C2.S1, in www.dgsi.pt.
[4] Doravante abreviadamente designado CCom.
[5] Doravante abreviadamente designado CC.
[6] Cfr. Acórdão do STJ de 07.10.2003, proc. 03A2663, in www.dgsi.pt, citando, a propósito, o Acórdão da Relação de Coimbra de 30.4.2002, na Col. Jur. 2002-II-36.
[7] Cita-se neste aresto, a propósito, o Acórdão do STJ de 26.06.2001, na Col. Jur. (STJ), 2001-II-134, também disponível in www.dgsi.pt (proc. 01A1245).
[8] Proc. 1255/13.6TBCSC-A.L1-A.S1, in www.dgsi.pt.