COVID
CONTRATO DE ARRENDAMENTO COMERCIAL
RENDA
MORA
INCUMPRIMENTO DE ESCASSA IMPORTÂNCIA
Sumário


I – O artigo 437.º do CC não tem aptidão para “arredar” nem para “se impor” àquilo que esteja disposto em lei especial.
II – Tendo a crise pandémica demandado “medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”, que regulam a mora no pagamento de rendas nesse período temporal, são estas as aplicáveis.
III – Não tendo a arrendatária cumprido integralmente o figurino legalmente previsto para regularização das rendas em atraso, constitui-se em mora no cumprimento da sua obrigação.
IV – Apesar da formulação do n.º 3 do artigo 1083.º do CC, no sentido de que a mora no cumprimento pelo arrendatário do pontual pagamento da renda torna inexigível ao senhorio a manutenção da relação contratual, a verdade é que a resolução do contrato de arrendamento não opera de forma automática, não deixando aquele n.º 3 do preceito de ser uma enumeração exemplificativa de casos em que o legislador considera o incumprimento contratual relevante para efeitos de resolução do contrato, ou dito de outro modo, meras concretizações da cláusula geral constante do n.º 2.
V – Consequentemente, há que aquilatar se em face da materialidade provada, na economia do contrato e do contexto do incumprimento, aquela mora atinge a gravidade ou consequências que torne inexigível à senhoria a manutenção do arrendamento, ou se objetivamente se pode considerar o incumprimento parcial da ré como (in)significante ou de escassa importância na economia do contrato ajuizado à luz do interesse unitário da credora, uma vez que também esta não cumpriu parcialmente o contrato, por causa não imputável à devedora.
VI – In casu, sopesando as obrigações de ambas as partes na economia do contrato de arrendamento, temos da parte da devedora, ora ré, que o pagamento das rendas foi integralmente efetuado, ainda que tardiamente, correspondendo aquelas referentes ao tempo do incumprimento parcial da obrigação da autora de proporcionar à ré o gozo do locado a quatro meses de renda, ascendendo ao valor de 2.362,68€. Assim, constatamos, por simples cálculo aritmético, que o mesmo é superior àquele que seria o valor de 20% previsto no artigo 1041.º, n.º 1, do CC, e que seria o valor devido pela ré para purgar a mora e, por essa via obstar à resolução do contrato de arrendamento, valor esse que, atento o montante peticionado pela autora, seria de 1.808,28€.
VII – E tanto basta para considerar que, atentos os princípios da boa fé e do dever de cumprimento integral e pontual do contrato que impendem sobre ambas as partes, tendo a senhoria recebido já aquele valor, a mora no cumprimento por banda da arrendatária configura um incumprimento contratual insignificante, que não assume o grau de gravidade fundador da inexigibilidade da manutenção do contrato de arrendamento, já que uma execução contratual de boa fé deve atender aos interesses recíprocos dos contraentes.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral


Processo n.º 3119/21.0T8FAR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro[1]

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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I – RELATÓRIO
1. Perfectcastle, Ld.ª, instaurou a presente ação, sob a forma de processo comum, contra Shiraz – Restaurants Unipessoal, Ld.ª, pedindo que a Ré seja condenada a entregar à Autora o imóvel urbano que identificou, e a pagar-lhe a quantia de 9.041,39€, correspondente ao valor das rendas vencidas até outubro de 2021, acrescida das rendas vincendas à razão mensal de 590,67€, até efetiva entrega da loja, e de uma indemnização pela mora, de 590,67€ por cada mês, desde o trânsito em julgado da sentença que declare resolvido o contrato, e até à sua efetiva entrega.
Em fundamento da respetiva pretensão invocou ter sucedido num contrato de arrendamento comercial que havia sido celebrado com a Ré, não tendo esta pago as rendas devidas na totalidade, desde abril de 2020, opondo-se ainda à renovação do contrato após o período inicial da sua duração.

2. Regularmente citada, a ré contestou e deduziu reconvenção, invocando que a falta de pagamento das rendas se deveu à situação de pandemia, tendo tido o restaurante fechado, e ainda que, no período inicial do contrato, levou 2 anos a realizar profundas obras de benfeitorias necessárias e úteis no locado porque este não estava em condições de abrir, tendo sempre avisado a Autora da sua situação, e pedido uma moratória no período da pandemia, havendo uma alteração das circunstâncias, pelo que, terminou pedindo que a presente ação seja julgada totalmente improcedente, por não provada, e que:
«a) Seja conferido à Ré o direito a ver modificado o contrato de arrendamento, segundo juízos de equidade, a definir por esse douto Tribunal, e nas condições que enumerou no artigo 151º da contestação;
b) Seja declarada nula e sem qualquer efeito a oposição à renovação unilateral do arrendamento exercida pela Ré, por mais 5 anos, com início em 01.01.2022, efetuada pela Autora, permanecendo o contrato válido para o novo quinquénio, e com términus a 01.01.2027;
c) Caso assim não se entenda, e venha o contrato de arrendamento a ser judicialmente resolvido, se condene a Autora a pagar à Ré uma quantia não inferior a 100.000,00€, a título de compensação pelas obras de benfeitoria, úteis e necessárias, efetuadas pela Ré no locado;
d) Seja ainda a Autora condenada a pagar à Ré o quantitativo de 25.478,47€, relativos a todos custos e lucros cessantes incorridos pela Ré, no período de 15.02.2021 a 15.06.2021, período no qual não pode a Ré exercer a sua atividade, por responsabilidade exclusiva da Autora».

3. A autora replicou, invocando constar do contrato de arrendamento que a Ré aceitou o imóvel nas condições em que se encontrava, reconhecendo que estava em bom estado de conservação, tendo aceite sucessivamente períodos de não pagamento das rendas, impostos unilateralmente pela Ré, pugnando pela improcedência do pedido reconvencional, impugnando os valores peticionados e mantendo a posição vertida na petição inicial.

4. Realizada a audiência final foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
«Da ação
a) Julgar extinto, por inutilidade superveniente da lide, o pedido de pagamento das rendas em atraso deduzido pela Autora Perfectcastle, Lda à Ré Shiraz – Restaurants Unipessoal, Lda por tais valores terem sido pagos na pendência da presente ação;
b) Absolver a Ré do demais peticionado pela Autora;
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Da reconvenção
c) Proceder à modificação do contrato de arrendamento de 10 de março de 2017 de fls. 9-vº a 12 dos autos em vigor entre a Autora Perfectcastle, Lda e a Ré Shiraz – Restaurants Unipessoal, Lda, alterando a cláusula 2ª, n.º 2, no sentido em que a falta de pagamento atempado das rendas não abrange a situação excecional provocada pela pandemia Covid-19, tendo a Ré direito a renovar unilateralmente o contrato de arrendamento por mais 5 anos, com início em 1 de janeiro de 2022, pelo que o contrato se mantém em vigor entre as partes, salvo incumprimento posterior por qualquer uma delas, por alteração das circunstâncias, na sequência da pandemia Covid-19.
d) Julgar extinto, por inutilidade superveniente da lide, o pedido reconvencional deduzido pela Ré Shiraz – Restaurants Unipessoal, Lda contra a Autora Perfectcastle, Lda quanto à questão da indemnização por benfeitorias realizadas no locado e por custos da sua atividade em período que não a podia exercer por responsabilidade da Autora».

5. Inconformada, a Autora apelou, formulando as seguintes conclusões[3]:
«2.º O pagamento, atempado e integral das rendas durante a constância do período inicial do contrato, permitiria à Ré a renovação do mesmo por igual período de 5 anos, situação que a Ré bem sabia e não podia desconhecer! (…)
Objectivamente a Ré estava em incumprimento e tinha a perfeita noção de o estar.
3º. Alega a Ré, sendo nisso seguida pela M.ª Juíza “a quo” que o incumprimento se ficou a dever ao período de pandemia, que ocorreu em todo o Mundo e nomeadamente no nosso País. (…)
Invocou a Ré em sua defesa que o IHRU não lhe tinha concedido tal apoio pelas razões que refere no seu articulado, matéria que, contudo, não ficou minimamente provada como consta das alíneas o) e p) (pág. 13 da sentença recorrida).
Consequentemente, o incumprimento da R. perante a A. no caso dos autos, não foi minimamente suprida, por essas medidas do Governo, antes foi duramente sentida pela Autora.
4º. Acresce que, apesar das facilidades concedidas pela Autora na reunião de 18 de Setembro de 2020 a fim de que a Ré viesse a cumprir a promessa de pagamento das rendas em falta, a mesma não cumpriu os pagamentos que prometera efectuar.
E de tal modo o não fez, que, se tornou evidente para os gerentes da Autora que a Ré no prazo por ela própria, Ré, livremente estipulado, as rendas acabaram por não ser pagas, como efectivamente o não foram!!!
Por esse motivo, a Ré tentou obter alegadas razões para esse incumprimento, como, designadamente, a queda da massa de esboço de uma sanca, invocando que a mesma impedia a entrada no restaurante dos autos!
O certo é que, como expressamente, o referiu a este Tribunal a testemunha AA, a queda que ocorreu não foi de nenhuma pedra, como falsamente referiram algumas das testemunhas da Ré, mas apenas da massa de esboço dessa sanca (que é bem diferente de pedra!) e cuja queda ocorreu não por cima da porta de entrada, mas na zona da esplanada, reparação que os gerentes da A. mandaram efectuar, logo que, obtiveram pessoal disponível para o efeito!
5º. Entretanto, alega a Ré que esteve impossibilitada de utilizar o locado desde 15 de Fevereiro de 2021 até ao dia 15 de Junho de 2021 por causa da questão da sanca, o que como já demonstrámos não corresponde à verdade, na medida em que tal situação da queda de parte da sanca na esplanada não impediu o uso do restaurante no seu interior.
6º. Todavia, o certo é que já depois de Junho de 2021 e sem qualquer razão justificada, a Ré não pagou à A. as rendas vencidas nos meses de Julho, Agosto e Setembro de 2021!!!
Sendo que nesse período o restaurante estava a funcionar livremente, numa época alta de Verão e na altura de um grande fluxo de turismo ao Algarve logo após a retoma pós pandemia! (…)
8º. Ora, ainda que se considerasse, por mera hipótese, que, por força da situação de pandemia ou da própria actuação demonstrada pela Autora na questão da sanca, estavam justificados os incumprimentos anteriores da Ré perante a Autora, nada justificava que após a retoma da actividade de restauração, e sobretudo no período de Verão que incluía os meses de Julho, Agosto e Setembro, a Ré não cumprisse com o pagamento atempado da renda nesses aludidos meses, sendo que tal incumprimento decorre no período em que a própria Ré se tinha, unilateralmente, como se reconhece na própria sentença recorrida, obrigado perante a Autora a cumprir escrupulosamente as obrigações por ela própria assumidas!!!
E, em face disto, e tal como o sócio maioritário da Autora, Sr. Dr. BB, afirmou em audiência de julgamento, a credibilidade da Ré, perante a Autora esvaiu-se completamente, tornando-se para a Autora evidente a total perda de confiança na Ré!!!
Tal situação está expressamente reconhecida pelo Tribunal no n.º 32 dos factos provados, donde se extrai que "Nos meses de julho, agosto, setembro de 2021, a atividade do restaurante não foi suficiente, contrariamente ao que a Ré expectava, razão pela qual não pode cumprir com o valor de 3.272,01 € referente ao conjunto desses meses (artigo 89.º da contestação)".
E mais se refere nos factos provados no ponto 33 "A Ré efetuou os seguintes pagamentos à Autora por conta das rendas:
a) 04-10-2021, 590,67 €;
b) 04-10-2021, 500,00 €;
c) 03-11-2021, 590,67 €;
d) 03-11-2021, 500,00 € (artigo 93º da contestação)."
Ou seja, de todas as rendas em dívida enunciadas na petição inicial da acção pela Autora a Ré apenas pagou as rendas atrás assinaladas!
9º. O pagamento da renda, sabia-o a Ré, era essencial à manutenção em funcionamento do seu estabelecimento comercial, sustentado no contrato de arrendamento a que se faz referência nestes autos.
Assim, a Ré deveria ter como primeira preocupação para prossecução da sua actividade o cumprimento desse contrato, e nomeadamente das rendas em dívida.
A invocação de que "a actividade do restaurante não foi suficiente contrariamente ao que a Ré expectava" não é motivo justificativo do não pagamento da renda, salvo o que muitos restaurantes deste País justificariam o seu incumprimento!!!
Tinha decorrido já o período mais transmissível da Pandemia e a Ré não cumpriu no que se relacionou com os meses de Julho, Agosto e Setembro de 2021, não cumprindo também, como já se disse, com a própria promessa que fizera à Autora de modo unilateral e absolutamente livre.
Consequentemente a Autora entendeu não protelar mais a situação, iniciando a presente acção judicial.
10º. Alega a Ré, no que é seguida pela M.ª Juíza recorrida que "A autora não interpelou a Ré para o pagamento de qualquer renda entre os meses de Abril a Agosto de 2020".
Ora, além dessa interpelação ter ocorrido nos contactos pessoais ocorridos entre os gerentes da A. e o gerente da Ré, em boa verdade tal interpelação nem teria que ocorrer.
Na verdade, o pagamento do valor de renda é uma obrigação mensal da arrendatária no período correspondente de cada mês, sem que seja obrigatório ou, pelo menos, juridicamente relevante que o senhorio, tenha de mês a mês de interpelar o arrendatário para tal pagamento!
Ou seja, é uma obrigação que decorre insitamente da lei sem necessidade de qualquer interpelação.
Daí que não se compreenda o sentido de tal alegada obrigação da parte da aqui Ré, sendo que a mesma é perfeitamente irrelevante para efeito da presente acção.
11º. Reconhece-se na sentença recorrida (5º parágrafo da pág. 35 da mesma) que "o pagamento das rendas não foi acompanhado do pagamento da indemnização prevista no artigo 1041º, n.º 1 do Código Civil, mas a Autora e senhoria também não teria direito a essa indemnização dado que pretende a resolução com base no pagamento das rendas..."
Ora o pagamento da aludida indemnização é que evita a decisão do despejo como resulta do n.º 1 do art.º 1048º do CC em que se diz:
"O direito à resolução do contrato por falta de pagamento da renda ou aluguer, quando for exercido judicialmente, caduca logo que o locatário, até ao termo do prazo para a contestação da ação declarativa, pague, deposite ou consigne em depósito as somas devidas e a indemnização referida no n.º 1 do artigo 1041.º."
Ora, não tendo a Ré procedido a esse depósito do valor de renda acrescido de indemnização no prazo da contestação, o despejo tem de ser decretado, sendo que se o depósito for feito, o contrato de arrendamento continuará válido e subsistente apesar da limitação do n.º 2 do mesmo preceito.
Consequentemente, não tendo a Ré feito o depósito das rendas e bem assim das quantias impostas pelo n.º 1 do art.º 1041º do CC (indemnização de 20% do valor de cada uma das rendas vencidas e não pagas) o despejo deveria ter sido decretado apesar de nesse caso de ocorrência do despejo cessar para a Autora do direito à indemnização devida ao abrigo do n.º 1 do art.º 1041º do CC como é evidente!
12º. Invoca-se, contudo, na sentença recorrida que a situação da pandemia "não podia estar prevista por qualquer das partes no momento da celebração do contrato".
Exactamente por isso é que o Governo tomou a iniciativa imediata de medidas, para compensar os senhorios o que fez através do IHRU.
O não ter a Ré tido possibilidade de recorrer a esse meio "sibi imputet"!
Nessa medida, apesar de o Covid 19 ter constituído "uma alteração de circunstâncias porque a emergência sanitária surgida representa uma modificação (brusca) de uma condicionante geral de existência social, com impacto generalizado e, em muitos casos, brutal, na possibilidade e forma da interacção e cooperação de um número indeterminado de sujeitos..." a Ré, apesar da compreensão da Autora não cumpriu no tempo próprio aquilo a que se tinha, unilateralmente, obrigado.
E isto porque, num princípio de equilíbrio de posições a situação da Autora também tem de ser respeitada, porquanto a mesma se vê privada do rendimento que aspirava ter de um avultado investimento que fez na compra e posterior recuperação deste imóvel.
Consequentemente, os efeitos da Pandemia já estavam a produzir-se quando a Ré, assumiu, unilateralmente embora, as obrigações e compromissos com a Autora, as quais não cumpriu.
Assim como se decidiu no Ac. do S.T.J. de 20/04/1982 publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º316 pág. 255 "As circunstâncias cuja alteração anormal justifica a resolução ou modificação do contrato, prevista no art.º437º do Código Civil, são apenas aquelas em que as partes fundaram a sua decisão de contratar relativamente ao negócio efectivamente celebrado e que não se inscrevam na área normal de riscos assumidos por quem contrata".
Ou seja, já depois dos efeitos da Pandemia se fazerem sentir a Ré, assumiu compromissos que não cumpriu e que nada tem a ver com a situação inicial que se viveu pelo surgimento desta.
E, nomeadamente a falta de pagamento das rendas vencidas em Julho, Agosto e Setembro de 2021!!!.
Por isso não pode a Autora aceitar a aplicação, neste caso, da teoria da imprevisão pela alteração das circunstâncias deduzida.
13º. Refere, finalmente, a M.ª Juíza "a quo" que qualquer decisão noutro sentido constituiria ABUSO DE DIREITO.
E sustenta-se para chegar a tal conclusão nas obras de vulto realizadas pela Ré no arrendado, o que constitui, seguramente contradição da sentença recorrida.(…)
Ora, no caso dos autos a Autora ao exercer o direito à resolução do contrato de arrendamento não abusa do seu direito, porquanto a razão de ser desta acção sustenta-se essencialmente na falta de pagamento das rendas de Julho, Agosto e Setembro de 2021, que a Ré não pagou nem em tempo oportuno (até à contestação) nem depositou na Caixa Geral de Depósitos no valor respectivo.
Verifica-se, assim que a Ré não pagou todo o valor de rendas em dívida e a quantia que depositou fê-lo desatempadamente e em violação do disposto quer no art.º 1041º do CC quer do art.º 1048º do mesmo diploma.
Consequentemente, a acção deveria ter procedido.
Daí também que não possa ser admitida a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide sustentada no alegado pagamento das rendas em dívida na pendência da acção como igualmente não deverá proceder-se à modificação do contrato de arrendamento de 10/03/2017 alterando a clausula segunda n.º2 no sentido em que a falta de pagamento atempado das rendas não abrange a situação excepcional provocada pela pandemia da Covid 19 porquanto o incumprimento aqui especialmente considerado é o ocorrido nos meses de Julho, Agosto e Setembro de 2021, já após ultrapassado o período mais difícil da Covid 19 e cujo compromisso de pagamento decorre expressamente da promessa da Ré de pagamento integral das quantias em dívida, acrescido, como é óbvio, dos montantes e quantias a que houver lugar.
Termos em que deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue a acção procedente e determinado o despejo da Ré e o pedido reconvencional ser julgado improcedente (…)».

6. A Ré apresentou contra-alegações, pugnando pela confirmação da sentença.

7. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objeto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, é pacífico que o objeto do recurso se limita pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, as únicas questões a apreciar no presente recurso, consistem em saber se deve ou não ser declarada a resolução do contrato de arrendamento, por falta de pagamento das rendas devidas; e se, mercê da alteração das circunstâncias, deve ou não considerar-se o contrato unilateralmente renovado e insubsistente a deduzida oposição à sua renovação.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos[4]:
«1) A Autora Perfectcastle, Lda comprou por escritura de compra e venda celebrada em 13 de julho de 2019, o prédio urbano sito na Rua ..., em Faro, que faz parte do prédio urbano inscrito na matriz urbana n.º ... (anterior artigo ...46º) da atual União das Freguesias de Faro (Sé e S. Pedro) localizado na Rua ..., na Rua ... com os nºs 7, 9 e 11, na Rua ... e na Travessa ..., ... e 8, tal como resulta de fls. 6-vº a 9 e 13 a 19, (artigos 1º e 2º da petição inicial).
2) Por acordo escrito celebrado em 10 de março de 2017, a herança indivisa aberta por óbito de CC, com o NIF ...09, representada pelos seus herdeiros, cedeu o gozo do prédio sito na Rua ..., em Faro, referido em 1) à Ré Shiraz – Restaurants Unipessoal, Lda mediante uma contrapartida monetária, sendo o fim a atividade de restauração, pelo prazo de 5 anos, no regime de duração efetiva limitada e com início no dia 1 de janeiro de 2017, com a renda mensal de € 770,00, sendo a renda paga por transferência bancária para a conta do senhorio, constando do n.º 2 da sua Cláusula Segunda que, “Mediante a verificação integral em todos os períodos aplicáveis de que a renda, referida na cláusula sexta, foi paga pela quantia correta e dentro dos prazos definidos, a Shiraz – Restaurants, Unipessoal, Lda. terá a opção unilateral de prolongar a duração do contrato por um prazo adicional de 5 anos que se iniciará em 1 de Janeiro de 2022. O exercício desta opção deverá ser comunicado por carta registada com um período mínimo de três meses de antecedência” e da Cláusula 3º que “1. O local arrendado encontra-se em boas condições de conservação, o que ambas as partes reconhecem. 2. A realização de obras de benfeitoria carece de aprovação escrita por parte dos senhorios. A realização de obras de benfeitoria, custeadas pelos arrendatários, não originará quaisquer direitos de indemnização ou compensação a obter dos senhorios, aquando da cessação do contrato”, tal como resulta de fls. 9-vº a 12, (artigos 2º, 3º e 7º da petição inicial).
3) A Autora não pretende que o acordo referido em 2) se renove por mais cinco anos (artigo 5º da petição inicial).
4) Vencendo-se a renda mensal atualmente em 590,67 € líquidos, ou seja, já depois de descontada a retenção na fonte de 25% (artigo 6º da petição inicial).
5) Em 10 de Março de 2020 a Ré depositou na conta da senhoria a quantia de 590,67 € (artigo 8º da petição inicial).
6) A Ré apenas depositou, entre abril de 2020 e outubro de 2021, as quantias de 500,00 € em 17/05/2021, 590,67 € em 17/05/2021, 500,00 € em 18/06/2021 e 590,67 € em 18/06/2021, no total de 2.181,34 € (artigo 10º da petição inicial).
7) A Ré, em virtude do edifício, por ser muito antigo, não se encontrar do seu agrado nem nas melhores condições para garantir o sucesso do restaurante que pretendia abrir, decidiu remodelar o espaço, criar área de serviço, zona armazenagem de géneros alimentícios, cozinha, zonas de copa (limpa e suja), destintas das zonas de serviço e fabrico, bem como o vestiário e instalações sanitárias destinadas ao uso do pessoal e público, respetivas novas canalizações de abastecimento de água e esgotos, alterando os existentes, bem como criou um sistema de ventilação com ar condicionado e de extração de fumos e cheiros, tratou paredes internas das infiltrações e bolores existentes, efetuou novos pavimentos com materiais impermeáveis, não absorventes, laváveis e antiderrapantes (artigo 12º da contestação).
8) O locado está inserido em prédio de construção anterior a 1951, sendo um antigo armazém, transformado posteriormente em "casa de pasto" (artigo 13º da contestação).
9) As obras tiveram uma duração não concretamente apurada e só tendo o restaurante aberto em novembro de 2019[5] (artigo 19º da contestação).
10) A Ré realizou pelo menos as obras referidas a fls. 369-vº, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, no prédio referido em 2), que custaram pelo menos € 43.214,08, tendo valorizado o imóvel em, pelo menos, € 34.571,26 (artigo 20º da contestação).
11) A cláusula de renovação unilateral do contrato por parte do arrendatário não se encontrava prevista nos 2 contratos de arrendamento de fls. 71 a 79, [artigo 28º da contestação).
12) A Ré exerceu a opção de prorrogação unilateral do contrato referido em 2), por carta registada endereçada à Autora datada de 14 de setembro de 2021, que esta veio efetivamente a receber, tal como resulta de fls. 80, (artigo 30º da contestação).
13) Prorrogação que a Autora se veio a opor por carta data de 20 de setembro 2021, invocando incumprimento no pagamento de rendas por parte da Ré, bem como declarou não pretender a renovação do contrato, anunciando que iriam optar pela sua extinção no final do prazo inicial de cinco anos, a ocorrer em 31 de dezembro de 2021, tal como resulta de fls. 81, (artigos 31º e 32 º da contestação).
14) No início do mês de março de 2020, Portugal foi sujeito a medidas de restrição por força da Pandemia, as quais se vieram a agravar durante esse mês de março de 2020, sendo impostas pelo Comunicado do Conselho de Ministros de 12 de março de 2020 as primeiras medidas extraordinárias de resposta à epidemia do novo coronavírus (artigo 38º da contestação).
15) Passando tais medidas, com o decorrer do tempo, desde então, e até ao ano de 2022, por diversas e diferentes fases, nomeadamente pela restrição ao funcionamento de certas atividades comerciais, como a de restauração, imposição de confinamento obrigatório geral, encerramento obrigatório dos estabelecimentos de restauração, vendas só ao postigo ou entregas em casa, limitação de lugares a 50%, redução do espaço pelo afastamento de mesas, tempos de abertura reduzidos, marcações prévias de lugares, limitações a reuniões de grupos e famílias, e encerramentos pontuais aos fins de semana, obrigatoriedade de testagem e de vacinação, entre outras (artigo 39º da contestação).
16) A Ré, durante a pandemia, esteve impedida de exercer a sua normal atividade, e com ela obter rendimentos para as suas despesas fixas (artigo 42º da contestação).
17) A Ré deu conhecimento à Autora de que tinha dificuldades financeiras, por carta registada com aviso de receção, datada de 30 de março de 2020, na qual, por considerar ser enquadrável nas medidas de apoio ao pagamento de rendas que foram anunciadas e aprovadas na altura, Lei n.º 4 - C/2020, Regime excecional para as situações de mora no pagamento da renda devida nos termos de contratos de arrendamento urbano habitacional e não habitacional, no âmbito da pandemia COVID-19, pediu uma moratória que manter-se-ia durante todo o período em que se verifique o encerramento obrigatório do estabelecimento, sendo as rendas que se verifiquem diferidas, recuperadas por acréscimo às devidas, a partir do primeiro mês após fim do estado de emergência e abertura do estabelecimento, diluídas em partes iguais durante um período não inferior a 12 meses, “Tudo isto sem prejuízo de logo que se verifique a concretização das medidas aprovadas no Conselho de Ministros de 26 de Março de 2020, de entre as quais se prevê que os serviços e as entidades que foram obrigadas a fechar passam a ver suspensa a obrigação legal de pagar a renda do espaço em que funcionem, diploma legal que se espera ver aprovado pela Assembleia da República (e em vigor) já no início do próximo mês”, mais referindo que, “logo que tal legislação entre em vigor, e porque esta sociedade se enquadra na supra referida medida irá de imediato, recorrer a tal apoio o qual logo que lhe seja concedido reverterá para a liquidação das rendas que se mostrem diferidas até à data da disponibilização do referido financiamento”, tal como resulta de fls. 82, (artigo 45º da contestação).
18) Acordo moratório para o qual a Ré não encontrou oposição da Autora, tendo pagado a renda referente a março de 2020, depositando na conta da senhoria o montante de 590,67 €, correspondente à renda de 770,00 €, descontada a retenção na fonte de 25% (artigo 50º da contestação).
19) A Autora não interpelou a Ré para o pagamento de qualquer renda entre os meses de abril a agosto de 2020 (artigo 54º da contestação).
20) Em 18 de setembro de 2020, a Autora e Ré reuniram com vista a tentar arranjar uma solução para a questão das rendas em atraso (artigo 60º da contestação).
21) Nessa mesma reunião, veio ainda a Autora a manifestar perante a Ré a sua intenção de adaptar a parte habitacional do prédio a Alojamento Local/Hostel, pelo que necessitava de instalar um elevador para os pisos superiores (artigo 61º da contestação).
22) Instalação que iria retirar ao espaço da sala do restaurante da Ré e consequentemente do seu potencial rendimento (artigo 62º da contestação).
23) Sem que, no entanto, entendesse ou estivesse disposta a Autora a pagar qualquer compensação pela cedência do espaço, ou efetuar uma consequente redução na renda do locado face à diminuição de área (artigo 63º da contestação).
24) Em resultado da reunião, em 15 de fevereiro de 2021, veio a Ré responder à Autora por comunicação enviada para o email dos representantes e sócios da Autora, Sr. Dr. BB e Sr.ª Arq. DD, pela qual fez um resumo da situação económica e financeira, e propôs um plano para recuperação e pagamento das rendas em atraso, o qual consistia em pagar:
i. A partir do dia 1 de maio de 2021, iniciar um pagamento mensal de 500,00€;
ii. A partir do dia 1 de agosto de 2021, incrementar o pagamento mensal para 1.000,00€, sendo que deste valor, 590,67€ se referem à renda mensal, e os restantes 409,33€ para amortizar o incumprimento existente, mantendo-se este pagamento até este se mostrar completamente liquidado, tal como resulta de fls. 83 e 84, (artigos 64º e 65º da contestação).
25) Em 17 de fevereiro de 2021, a Ré recebeu uma mensagem via WhatsApp, do Senhor EE, informando-o que uma parte da fachada do prédio do locado (sanca) localizada por debaixo das telhas, na fachada do edifício em que se situa a porta de acesso ao estabelecimento e esplanada da Ré, cerca de sete metro por cima desta, havia ruido, mais informando que já havia comunicado a ocorrência ao senhorio, aqui Autora, na pessoa do Dr. BB (artigos 67º e 68º da contestação).
26) Tendo, no mesmo dia, os serviços da Câmara Municipal de Faro (Polícia Municipal) colocado uma fita no local, por forma a o isolar, impedindo a passagem de pessoas, face ao risco e perigo de novos desprendimentos, e queda de materiais da referida sanca, situação que, como decorre da normal experiência de vida, representava um perigo para quem circulasse no local, ou para quem pretendesse entrar/sair do restaurante, ou mesmo pretendesse se instalar na sua esplanada (artigos 69º e 70 º da contestação).
27) Sucede que a reparação da fachada, pese embora as insistências da Ré junto do representante da Autora, só veio a ocorrer no dia 15 de junho de 2021, conforme se comprova pela mensagem via e-mail dirigida pelo representante da Autora ao gerente da Ré, datada de 6 de junho de 2021 (artigo 72º da contestação)
28) A partir do dia 5 de abril, o restaurante teria tido a possibilidade de reabrir a esplanada, e a partir do dia 19 de abril a sala, com limitação de lugares, é certo, o que não era possível devido à sanca não ter sido reparada pela Autora (artigo 76º da contestação).
29) A Ré esteve impossibilitada de utilizar o locado desde o dia 15 de fevereiro de 2021 até ao dia 15 de junho de 2021 por causa da questão da sanca.
30) A Ré incorreu, entre o dia 15 de fevereiro de 2021 até ao dia 15 de junho de 2021 em custos com o pagamento de salários aos seus 4 funcionários, no quantitativo total mensal de 2.745,00€, sendo que os mesmos exerciam tarefas noutros estabelecimentos comerciais da Ré ou do seu legal representante (artigo 78º da contestação).
31) A que acrescem os custos dos descontos efetuados para a Segurança Social, no valor de 23,75% do vencimento ilíquido auferido pelos funcionários, ou sejam mais, 2.295,97€ (artigo 79º da contestação).
32) Nos meses de julho, agosto, setembro de 2021, a atividade do restaurante não foi suficiente, contrariamente ao que a Ré expectava, razão pela qual não pode cumprir com o valor de 3.272,01€ referente ao conjunto desses meses (artigo 89º da contestação).
33) A efetuou os seguintes pagamentos à Autora por conta das rendas:
a) 04-10-2021, 590,67€;
b) 04-10-2021, 500,00€;
c) 03-11-2021, 590,67€;
d) 03-11-2021, 500,00€ (artigo 93º da contestação).
34) Entre outubro de 2021 e fevereiro de 2023, foram pagas à Autora todas as rendas em atraso relativas ao contrato referido em 2), bem como a Ré tem pago atempadamente as rendas do respetivo mês a que respeitam.
E foram dados como não provados os seguintes factos:
«a) Para além do provado em 7), o prédio referido em 2) não reunia as condições de servir ao fim a que se destinava o arrendamento, ou seja, à restauração, por falta de condições das instalações para cumprirem com os requisitos legais a tal atividade, o que era do conhecimento de ambas as partes (artigo 9º da contestação).
b) Para além do provado em 7), o seu interior encontrava-se bastante degradado, não estando em condições de nele se poder exercer, legalmente, tal atividade (artigo 10º da contestação).
c) Para além do provado em 7), o espaço e instalações (infraestruturas básicas) não cumpram os requisitos regulamentares para funcionamento e de higiene e salubridade, exigidos pelo regime de classificação dos estabelecimentos de restauração e de bebidas, não podendo assim abrir ao público (artigo 11º da contestação).
d) Para além do provado em 7), o locado apresentava ainda aquando do seu arrendamento pela Ré, extensas infiltrações de águas pluviais vindas dos pisos superiores e telhado do edifício onde se mostra inserido, quer nas paredes exteriores, quer interiores, extensíveis aos tetos e pavimentos, com carpintarias e soalho apodrecidos, canalizações, esgotos, instalações sanitárias entupidas, instalação elétrica degradadas e inadequadas para a potência elétrica necessária, bem como deficiente sistema de extração de fumos e cheiros, para além de estar infestado com uma "praga" de baratas (artigo 14º da contestação).
e) Para além do provado em 7), muitas destas anomalias encontradas no locado só foram, e podiam ser, verificadas após a intervenção e o início das obras no locado, as quais a Ré acreditava, quando contratou, que se cingiriam somente às necessidades visíveis de conservação, manutenção e modernização (artigo 16º da contestação).
f) Para além do provado em 7), no decorrer da intervenção, e após estarem reparadas as infiltrações provindas do andar superior e paredes exteriores, estas, nos invernos de 2018 e 2019 voltaram a reaparecer, principalmente na parede do lado direito da sala de restauração (artigo 17º da contestação).
g) … Facto que obrigou a três novas e extensas intervenções, tendo sido necessário, para resolver o problema, que provinha de andares superiores, de criar uma parede falsa com uma distância de 10 cm da parede original para garantir circulação de ar e evitar bolores e cheiros a "podre" (artigo 18º da contestação).
h) E importando as obras não previstas, num custo de cerca de 40% relativamente ao inicialmente orçamentado, ou sejam, cerca de 41.000,00 euros (artigo 21º da contestação).
i) No momento da celebração do contrato de arrendamento com a anterior senhoria, já se previa a necessidade de se efetuarem obras de benfeitoria necessárias e úteis, o que de resto a Ré foi autorizada a efetuar (artigo 25º da contestação).
j) embora não fosse previsível a extensão e profundidade que se veio a mostrar necessária com a deteção dos vários problemas ocultos, e só revelados com o início dos trabalhos (artigo 26º da contestação).
k) Essa foi a forma que foi encontrada entre a Ré e os anteriores proprietários do prédio, para permitir à Ré o tempo, em normais circunstâncias de atividade, de recuperar o seu elevado investimento, pois tais benfeitorias não poderiam ser retiradas com o cessar do arrendamento e muito menos recuperar o investimento no prazo reduzido de só cinco anos (artigo 20º da contestação).
l) Era intenção da Ré vir a adquirir a totalidade do prédio em que se inseria o estabelecimento locado, com recurso a financiamento bancário, sendo este um dos motivos pelos quais também acedeu em efetuar as obras, para além do previsto, e com a extensão supra descrita (artigo 35º da contestação).
m) Sendo certo que a sua tesouraria se encontrava exaurida devido ao elevado custo das obras, de extensão e profundidade inicialmente imprevistas, e que se viu forçada a efetuar, as quais só se mostraram possíveis de executar com suprimentos do sócio único à Ré, no que investiu a totalidade das suas poupanças, pagando ainda do seu "bolso" alguns trabalhos efetuados (artigos 43º e 44º da contestação).
n) Carta que foi antecedida de contatos telefónicos entre o gerente da Ré e o representante da Autora, o Senhor Dr. BB, missiva pela qual a Ré, como lhe foi solicitado, formalizou o pedido de moratória no pagamento de rendas então informalmente acordado, com início em 01.04.2020, e tal enquanto durasse o estado de emergência nacional e de encerramento obrigatório do seu estabelecimento, o restaurante, e que se iniciou em 19.03.2020 (artigo 46º da contestação).
o) A Ré, logo que anunciada a disponibilização da linha de apoio ao pagamento das rendas pelo IHRU, apresentou a sua candidatura, tendo sido surpreendida em inícios de agosto de 2021, pela recusa na sua concessão, e tal motivada pelo facto de no ano de 2019 a Ré ter apresentado um elevado resultado negativo de exploração, o que, consequentemente, provocou um capital social negativo, bem como pelo facto de não ter tido atividade nesse ano de 2019, não existir termo de comparação se verificar da redução de atividade, pelo que foi liminarmente excluía do apoio do IHRU, devido a estes dois requisites (artigos 55º a 57º da contestação).
p) O resultado de exploração negativo se deveu à contabilização dos custos das obras efetuadas no locado, de valor e com duração muito para além do que a Ré poderia conhecer ou imaginar quando contratou, e ao facto de por via das mesmas, o estabelecimento se ter mantido encerrado até o início do ano de 2020 (artigo 58º da contestação).
q) Facto que a Ré veio a informar o representante da Autora, contrariamente ao que afirma no seu petitório, e tal em meados de agosto desse ano de 2020, solicitando-lhe uma reunião na qual pudessem debater o assunto e encontrarem uma via consensual de resolução para as rendas em atraso, e tal dentro das capacidades económicas e financeiras da Ré (artigo 59º da contestação).
r) Preocupado com a situação, o gerente da Ré entrou em contato telefónico em 23.02.2021, com o referido representante da Ré, no sentido de lhe solicitar a rápida reparação do sanca da fachada, pois, no circunstancialismo descrito, a Ré estava impedida de exercer a sua atividade, estando o restaurante fechado, ao que este lhe respondeu, ironicamente, que "iria tratar", sem indicar qualquer prazo para a resolução (artigo 71º da contestação).
s) De resto, mesmo que a Ré pretendesse proceder à reparação da fachada do prédio do locado a suas expensas, em face da demora e negligência da Autora, a tal não foi autorizada (artigo 75º da contestação).
t) Durante esses quatro meses, a Ré deixou de auferir, um quantitativo, de acordo com os seus movimentos de caixa anteriores, que levam a admitir, com muita certeza, que faturaria durante esse período, um valor médio, mínimo, de 150,00 € por dia (entre entregas takeaway e esplanada), o qual representaria, para o período em questão, de 88 dias, 13.200,00 € (artigo 80º da contestação).
u) A Ré comunicou ao representante da Autora, tendo ficado acordado que os valores que a Ré deixara de pagar nesses 3 meses (3.272,01 €), seriam descontados/ garantidos pelo crédito da Ré sobre a Autora, no montante de 12.278,47 € (custo e encargos com os trabalhadores da Ré no período de 15.02.2021 a 15.06.2021), já que a Autora questionou e discordou do valor dos lucros cessantes supra apresentados (artigo 91º da contestação).
v) Tendo ainda sido acordado que a Autora não cobraria quaisquer juros ou penalidades pelos atrasos no pagamento de rendas, em troca da Ré não reclamar quaisquer lucros cessantes pelo encerramento no período indicado, que se quantificaram supra em 13.200,00 euros (artigo 92º da contestação).
w) A Autora solicitou várias vezes o pagamento das rendas à Ré entre abril de 2020 e maio de 2021 (artigo 8º da réplica).
x) Na verdade, quando aberto, o restaurante está, literalmente “às moscas”, sendo que a maior parte das vezes está encerrado (artigo 18º da réplica).
y) já nada tem a ver com a pandemia ou a falta de turismo, mas antes com a capacidade para gerir o estabelecimento por parte do gerente da Ré (artigo 19º da réplica).
z) A queda do estuque da sanca não impediu, nem nunca impediria o funcionamento do estabelecimento em causa (artigo 54º da réplica)».
*****
III.2. – O mérito do recurso
Preliminarmente cumpre afirmar que a matéria de facto a considerar na apreciação do recurso se considera assente tal como vem julgada da primeira instância, porque apesar das referências efetuadas pela apelante nas suas conclusões a meios de prova, de se referir a factos alegados que não demonstrou, como se o tivesse feito, ou ainda de manifestar a sua discordância quanto ao teor de alguns factos provados, a verdade é que não deu cumprimento a qualquer um dos ónus impostos pelo artigo 640.º do CPC ao recorrente que pretende impugnar a matéria de facto, não se podendo considerar sequer que a mesma venha impugnada por não se vislumbrar em momento algum que a matéria de facto seja objeto do recurso.
Isto dito.
Tal como as partes configuraram a ação, o objeto do litígio foi identificado na audiência prévia em moldes que, atento o objeto do recurso, se mantêm em sede recursiva.
Com efeito, importa saber se, em face da materialidade dada como provada e não provada:
«a) A Ré deve despejar o locado por falta de pagamento das rendas ou ocorreu alteração superveniente das circunstâncias ou a Ré exerceu licitamente a opção de renovação do contrato acordada no mesmo;
b) Caso seja declarada a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre as partes, apurar se a Ré tem direito a indemnização por realização de benfeitorias úteis e necessárias no imóvel locado e ainda a uma indemnização por custos da sua atividade em período que não a podia exercer por responsabilidade da Autora», questão que a este tribunal incumbirá apreciar, em caso de procedência da pretensão da Apelante, em substituição do tribunal recorrido, atento o disposto no artigo 665.º, n.º 2, do CPC.
Não vem questionado o segmento da decisão recorrida relativo à sucessão da lei no tempo onde, atento o disposto no artigo 59.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro[6], corretamente se afirmou que na data da celebração do contrato dos autos, 10 de março de 2017, estava em vigor o NRAU na redação introduzida pelas Leis n.º 31/2012, de 14 de agosto, e 79/2014, de 19 de dezembro, e na data da resolução do referido contrato estava em vigor tal regime com as alterações entretanto introduzidas pela Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro.
Apreciando.
Nos termos dos artigos 1022.º e 1023.º do Código Civil[7], o contrato de arrendamento é o acordo mediante o qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa imóvel, mediante retribuição, emergindo do mesmo para cada uma delas obrigações, de entre as quais avultam as previstas para o senhorio no artigo 1031.º, alíneas a) e b), do CC – de entregar a coisa e assegurar o gozo desta para os fins a que se destina; e para o arrendatário no artigo 1038.º do CC, onde – para além das demais que ora não importa ao caso -, consta expressamente na alínea a), a obrigação de pagar a renda.
A autora, tendo sucedido à primitiva senhoria por ter adquirido o prédio urbano melhor identificado no ponto 1) da matéria de facto, intentou em 28.10.2021 a presente ação para resolução do contrato celebrado em 10.03.2017, pelo prazo de cinco anos, com início em 01.01.2017, pelo qual aquela deu de arrendamento à Ré, e esta aceitou, o dito prédio urbano, com a finalidade de ali exercer atividade de restauração, mediante o pagamento de uma renda mensal de 770,00€, por transferência bancária para a conta do senhorio, após a retenção na fonte de 25%, no valor líquido de 590,67€, com fundamento na falta de pagamento integral das rendas vencidas desde abril de 2020, até outubro de 2021, pedindo a condenação da Ré no pagamento das rendas vencidas então em falta, e nas rendas vincendas, pedindo a resolução do contrato e a consequente entrega do imóvel.
Invocou ainda que, constando do n.º 2 da Cláusula Segunda que, "Mediante a verificação integral em todos os períodos aplicáveis de que a renda, referida na cláusula sexta, foi paga pela quantia correta e dentro dos prazos definidos, a Shiraz - Restaurants, Unipessoal, Lda. terá a opção unilateral de prolongar a duração do contrato por um prazo adicional de 5 anos que se iniciará em 1 de Janeiro de 2022”. Porém, tendo-lhe sido comunicado pela arrendatária que pretendia exercer esta opção, opôs-se à renovação do contrato por não haver sido efetuado o pagamento pontual das rendas, pressuposto do exercício daquela possibilidade de renovação unilateral do contrato.
O não pagamento pontual das rendas é, pois, o cerne do litígio.
Com interesse a este respeito, consta na cláusula sexta do contrato de arrendamento que: «1. Os arrendatários obrigam-se a pagar aos senhorios (sic), como contrapartida da cessão do gozo do local arrendado, a renda mensal de 770€ (770 Euros), até ao oitavo dia útil do mês anterior aquele a que se refere (…).
4. O primeiro pagamento subsequente ao início do contrato de arrendamento deverá ocorrer até 8 de abril de 2017, referente ao mês de maio de 2017.
5. O atraso no pagamento das rendas (pagamento após o dia 8 de cada mês) implicará um agravamento de 50% (cinquenta por cento), sobre o valor devido, nos termos da legislação em vigor (cfr. artigo 1041.º do Código Civil)».
Mais se encontra provado, nos pontos 4) a 6), que vencendo-se a renda mensal atualmente em 590,67€ líquidos, ou seja, já depois de descontada a retenção na fonte de 25%, em 10 de março de 2020 a Ré depositou na conta da senhoria a quantia de 590,67€, e entre abril de 2020 e outubro de 2021, apenas depositou as quantias de 500,00€ em 17.05.2021, 590,67€ em 17.05.2021, 500,00€ em 18.06.2021 e 590,67€ em 18.06.2021, no total de 2.181,34€.
Releva ainda considerar que a contestação da presente ação deu entrada em juízo no dia 15.12.2021, e que (factos provados nos pontos 33 e 34) «a Ré efetuou os seguintes pagamentos à Autora por conta das rendas: a) 04-10-2021,590,67 €; b) 04-10-2021,500,00 €; c) 03-11-2021, 590,67 €; d) 03-11-2021,500,00 €; Entre outubro de 2021 e fevereiro de 2023, foram pagas à Autora todas as rendas em atraso relativas ao contrato referido em 2), bem como a Ré tem pago atempadamente as rendas do respetivo mês a que respeitam».
Em face dos sobreditos factos provados é evidente que a Ré não pagou todas as rendas no tempo contratualmente estabelecido – até ao dia 8 de cada mês –, tendo em março de 2020 efetuado o pagamento da renda no dia 10, e efetuado depois apenas os indicados pagamentos.
Portanto, numa situação de normalidade das relações contratuais, não haveria dúvidas que estaria verificado o fundamento de resolução do contrato por banda do senhorio, previsto no artigo 1083.º, n.º 3, do CPC, de acordo com o qual, é inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas, que corram por conta do arrendatário (…).
Com efeito, «[s]endo a renda a obrigação principal do sinalagma contratual que impende sobre o arrendatário por força do preceituado nos artigos 1022.º, in fine, e 1038.º alínea a), ambos do CC, facilmente se compreende que o legislador considere que o incumprimento de tal obrigação por um período temporal igual ou superior a [três] meses quebre tal vínculo sinalagmático, tornando inexigível ao senhorio que continue a cumprir a respetiva obrigação principal de proporcionar ao arrendatário o gozo da coisa, prevista desta feita na primeira parte do referido artigo 1022.º e no artigo 1031.º, alínea a), daquela codificação». Estamos, pois, «perante a consagração legal de um fundamento de resolução que opera pela verificação de um incumprimento considerado pela lei como objetivamente grave, e que torna inexigível ao senhorio a manutenção da relação contratual, sendo dispensável o recurso à ação de despejo»[8].
Efetivamente, aquando da redação inovatória introduzida pela Lei n.º 6/2006, no n.º 3 do artigo 1083.º, a mora no pagamento da renda pelo decurso do tempo estabelecido no preceito – e, com a redação introduzida pela Lei n.º 31/2012, também para o novo fundamento consagrado no seu n.º 4 –, permitem até, nos termos do artigo 1084.º, n.º 1, «a resolução extrajudicial do contrato de arrendamento pelo senhorio, precisamente porque o legislador considerou que pela sua simples verificação, e atenta a objetiva gravidade na vida do contrato, pela quebra no sinalagma que, por si só, representam, integram os conceitos indeterminados de gravidade e inexigibilidade, sem necessidade de recurso à avaliação judicial para sua determinação»[9].
Porém, a forma extrajudicial de operar a resolução é optativa, nada impedindo, portanto, que os senhorios continuem a recorrer à ação judicial, se tal recurso lhes for mais conveniente[10]. Tal é manifestamente o caso vertente porquanto a ré já havia manifestado à autora a intenção de exercer a opção unilateral de prolongar a duração do contrato por um período adicional de 5 anos, que a cláusula segunda do mesmo lhe conferia, “mediante a verificação integral em todos os períodos aplicáveis de que a renda referida na cláusula sexta, foi paga pela quantia correta e dentro dos prazos definidos”, condição que objetivamente não havia cumprido.
Assim, sabendo por este motivo e de antemão que a resolução extrajudicial não iria ser bastante para a desocupação do arrendado, o recurso à ação judicial permitiria que o litígio fosse integralmente apresentado, como efetivamente foi, tendo inclusivamente a Ré deduzido pedido reconvencional para o caso de ser julgado procedente o pedido formulado pela Autora.
Com efeito, aceitando que no período em causa pagou apenas umas rendas e não pagou outras, veio a Ré invocar que o não pagamento pontual das rendas foi devido à situação pandémica que determinou o encerramento do restaurante ou restringiu o seu funcionamento, aduzindo ainda que, por causa da queda de uma sanca da fachada do prédio e do tempo que a autora demorou a proceder à sua reparação, esteve impossibilitada de usar o restaurante desde o dia 15.02.2021 até ao dia 15.06.2021, tendo por si sido proposto um acordo de pagamento e recuperação das rendas em atraso à autora, que foi cumprido, sendo que em que tal plano não estavam previstas quaisquer penalidades, assistindo-lhe portanto o direito ao prolongamento do contrato.
Cumpre, pois, primeiramente apreciar e decidir se o incumprimento do pontual pagamento das rendas por banda da ré, pode estar coberto pelo quadro decorrente da pandemia e objeto de legislação especial então publicada, já que a primeira instância à mesma não se reportou, julgando apenas com respaldo na alteração das circunstâncias em que as partes decidiram contratar, nos termos dos artigos 437.º e 438.º do CC, sem convocar tal legislação. Mas é por esta que cumpre começar.
Com efeito, conforme o Supremo Tribunal de Justiça afirmou no recente aresto de 11.05.2023[11], «a crise COVID-19 configura uma “modificação brusca das condicionantes estruturais da coexistência social”, isto é, uma “grande alteração das circunstâncias”[3] – e uma em grau superlativo, que escapa às categorias dogmáticas habituais. Por isso, mais do que consentir intervenções pontuais, por iniciativa das partes, no domínio dos contratos, ela exige uma verdadeira reconformação do quadro em que se desenvolve a generalidade das relações jurídicas de carácter patrimonial.
Esta reconformação é – ou deve ser –, antes de mais, legislativa [4]. Mas quando não haja diploma específico há sempre regras e princípios de carácter geral – o artigo 437.º do CC) e, em especial, o princípio da boa fé.
Dispõe-se no artigo 437.º, n.º 1, do CC:
Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato”.
Sem pretender proceder a uma análise minuciosa da norma – porque impraticável e inoportuno –, é evidente que a crise COVID-19 configura uma alteração anormal das circunstâncias, portanto, se reconduz à hipótese regulada na norma.
No entanto, o artigo 437.º do CC não prevalece – não pode prevalecer – sobre o que a lei preveja em especial. Por outras palavras: há um princípio ou regra da prioridade das regras legais específicas sobre as regras legais genéricas, o que significa que o artigo 437.º do CC não tem aptidão para “arredar” nem para “se impor” àquilo que esteja disposto em lei especial».
Como é sabido, a crise pandémica demandou “medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19” com início no Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, que decretou o estado de alerta determinando no seu artigo 12.º, n.º 1, a suspensão do acesso ao público aos estabelecimentos de restauração, cujos efeitos foram ratificados pela Lei .º 1-A/2020, de 19 de março, seguindo-se toda uma produção legislativa de caráter excecional e temporário tendente designadamente a fazer face às necessidades sociais e a mitigar os desequilíbrios contratuais, e visando logo a Lei n.º 4-C/2020, de 6 de abril, de acordo com os seus considerandos “estabelecer um regime excecional para as situações de mora no pagamento da renda devida nos termos de contratos de arrendamento urbano habitacional e não habitacional, no âmbito da pandemia COVID‐19, permitindo a famílias e empresas adiar o pagamento das rendas devidas, principalmente, pela execução de contratos de arrendamento”.
Louvando-nos na resenha efetuada no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.11.2022[12], onde se explanou o quadro legal referente ao arrendamento não habitacional, em moldes que têm plena aplicação ao caso ajuizado, «[c]omo ponto de partida, é importante começar por ter presente que o Estado de Emergência, fruto da pandemia Covid 19, vigorou em Portugal em dois períodos de tempo distintos. Num primeiro período, entre 19/03/2020 e 02/05/2020 (…) e, num segundo período, entre 09/11/2020 e 30/04/2021 (…).
De permeio, entre os dias 03/05/2020 e o dia 08/11/2020, foi declarada a Situação de Calamidade (…) e a Situação de Calamidade, Contingência e Alerta (…), mas não vigorou o Estado de Emergência.
Esta distinção é relevante porque, justamente devido à presumida quebra de rendimentos de alguns dos arrendatários de estabelecimentos abertos ao público que foram obrigados a encerrar ou viram a sua atividade suspensa e/ou limitada, foi publicada, logo no dia 06/04/2020, a Lei n.º 4-C/2020, que previa que esses arrendatários pudessem deferir “o pagamento das rendas vencidas nos meses em que vigore o estado de emergência e no primeiro mês subsequente, para os 12 meses posteriores ao término desse período, em prestações mensais não inferiores a um duodécimo do montante total, pagas juntamente com a renda do mês em causa- (artigo 8.º - cfr. também artigo 7.º).
E acrescentava o artigo 9.º do mesmo diploma legal:
“1- A falta de pagamento das rendas que se vençam nos meses em que vigore o estado de emergência e no primeiro mês subsequente, nos termos do artigo anterior, não pode ser invocada como fundamento de resolução, denúncia ou outra forma de extinção de contratos, nem como fundamento de obrigação de desocupação de imóveis.
2- Aos arrendatários abrangidos pelo artigo 7.º não é exigível o pagamento de quaisquer outras penalidades que tenham por base a mora no pagamento de rendas que se vençam nos termos do número anterior”».
É a esta luz que cumpre voltar a olhar para a matéria de facto que está provada com relevância direta a este respeito, que consta vertida nos pontos 16 a 18 e 20, e dos quais se extrai que a Ré, durante a pandemia e mais concretamente logo após o dia 13.03.2020, quando foi feita a publicação do DL n.º 10-A/2020, esteve impedida de exercer a sua normal atividade, e com ela obter rendimentos para as suas despesas fixas, tendo dado conhecimento à Autora de que tinha dificuldades financeiras, logo por carta registada com aviso de receção, datada de 30 de março de 2020, na qual, por considerar ser enquadrável nas medidas de apoio ao pagamento de rendas que foram anunciadas e aprovadas na altura, pela Lei n.º 4-C/2020, pediu uma moratória que manter-se-ia durante todo o período em que se verifique o encerramento obrigatório do estabelecimento, sendo as rendas que se verifiquem diferidas, recuperadas por acréscimo às devidas, a partir do primeiro mês após o fim do estado de emergência e abertura do estabelecimento, diluídas em partes iguais durante um período não inferior a 12 meses. Está ainda assente que a Autora não respondeu a tal missiva[13] e não interpelou a Ré para o pagamento de qualquer renda entre os meses de abril a agosto de 2020. Sendo certo que numa situação de normalidade a obrigação de pagamento da renda não é precedida de interpelação, na situação excecional vivida, perante a missiva enviada pela ré, e a legislação publicada, trata-se de um comportamento concludente da autora no sentido da não oposição ao proposto deferimento que resultava, aliás, da expressa previsão legal acima transcrita.
Assente que o pagamento das rendas foi validamente diferido pela ré neste primeiro momento, importa também realçar que a menção ao depósito da renda de março de 2020, tem de interpretar-se corretamente atentos os termos do contrato, como respeitando à renda de abril. Ora, como já vimos, neste primeiro momento da pandemia, o estado de emergência esteve vigente de 19 de março a 2 de maio de 2020. Assim, considerando que por via do clausulado contratual o pagamento se reportava ao mês seguinte àquele em que era efetuado, as rendas vencidas no estado de emergência e no mês subsequente são as correspondentes aos meses de maio a julho de 2020, cujo pagamento devia ter sido efetuado nos meses imediatamente anteriores e não foi.
Acontece que, no decurso destes meses, foi entretanto publicada a Lei n.º 17/2020, de 29 de maio, que procedeu à primeira alteração à Lei n.º 4-C/2020, de 6 de abril e, entre outros aspetos, alterou a redação aos artigos 7.º, 8.º e 9.º, da Lei n.º 4-C/2020, acrescentando, com interesse para este recurso, alínea b) ao artigo 7.º, que rege sobre a “quebra de rendimentos dos arrendatários não habitacionais” estabelecendo que o capítulo III, onde se inserem estas normas, aplica-se “aos estabelecimentos de restauração e similares, encerrados nos termos das disposições anteriores, incluindo nos casos em que estes mantenham atividade para efeitos exclusivos de confeção destinada a consumo fora do estabelecimento ou entrega no domicílio, nos termos previstos no Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março, ou em qualquer outra disposição que o permita”.
Ora, recorda-se que o artigo 7.º deste decreto determinou o encerramento das instalações e estabelecimentos referidos no seu anexo I, que dele faz parte integrante, e em cujo ponto 6, relativo às atividades de restauração, se encontram os “restaurantes e similares, cafetarias, casas de chá e afins, com as exceções do presente decreto”, sendo elas as previstas no artigo 9.º, cujo n.º 2 previa que os estabelecimentos de restauração e similares pudessem manter a respetiva atividade, se os seus titulares assim o decidirem, para efeitos exclusivos de confeção destinada a consumo fora do estabelecimento ou entrega no domicílio, diretamente ou através de intermediário.
Portanto, o que a lei estabeleceu em seguida, aplica-se ao arrendado, porquanto a arrendatária se dedicava à atividade de restauração.
Ora, o anterior corpo do artigo 8.º constante da redação da Lei n.º 4-C/2020, com a epígrafe “Diferimento de rendas de contratos de arrendamento não habitacionais”, acima transcrito, passou a ser o n.º 1 da redação dada pela lei n.º 17/2020, e foram aditados os números 2 a 5 ao artigo 8.º, nos quais se prescreve o seguinte:
“2- Até 1 de setembro de 2020, o arrendatário que preencha o disposto no artigo anterior pode igualmente diferir o pagamento das rendas vencidas, pelos meses em que ao abrigo de disposição legal ou medida administrativa aprovada no âmbito da pandemia da doença COVID-19 seja determinado o encerramento de instalações ou suspensão de atividades ou no primeiro mês subsequente desde que compreendido no referido período, aplicando-se o disposto nos n.ºs 4 e 5.
3- No caso de arrendatários abrangidos pelo disposto nos números anteriores, o período de regularização da dívida só tem início a 1 de setembro de 2020, ou após o término do mês subsequente àquele em que cessar o impedimento se anterior a esta data.
4- Do disposto nos números anteriores não pode, contudo, resultar um período de regularização da dívida que ultrapasse o mês de junho de 2021.
5- As rendas vencidas e cujo pagamento foi diferido ao abrigo do presente regime devem ser satisfeitas em prestações mensais não inferiores ao valor resultante do rateio do montante total em dívida pelo número de meses em que esta deva ser regularizada, pagas juntamente com a renda do mês em causa”.
Por outro lado, acrescentou um outro número (n.º 2) ao artigo 12.º da referida Lei 4-C/2020, estabelecendo que a indemnização prevista no artigo 1041.º, n.º 1, do Código Civil, “por atraso no pagamento de rendas que se vençam até 1 de setembro de 2020, não é exigível nos casos em que o seu pagamento possa ser diferido conforme o disposto no n.º 2 do artigo 8.º”.
Entretanto, no dia 20/08/2020, foi publicada a Lei n.º 45/2020, que alterou o artigo 8.º da Lei 4-C/2020, passando o mesmo a ter a seguinte redação:
“1- O arrendatário que preencha o disposto no artigo anterior pode diferir o pagamento das rendas vencidas:
a) Nos meses em que vigore o estado de emergência e no primeiro mês subsequente;
b) Nos meses em que, ao abrigo de disposição legal ou medida administrativa aprovada no âmbito da pandemia da doença COVID-19, seja determinado o encerramento das suas instalações ou suspensão da respetiva atividade;
c) Nos três meses subsequentes àquele em que ocorra o levantamento da imposição do encerramento das suas instalações ou da suspensão da respetiva atividade.
2- Nos casos previstos no número anterior:
a) O diferimento não pode, em qualquer caso, aplicar-se a rendas que se vençam após 31 de dezembro de 2020;
b) O período de regularização da dívida tem início a 1 de janeiro de 2021 e prolonga-se até 31 de dezembro de 2022;
c) O pagamento é efetuado em 24 prestações sucessivas, de valor correspondente ao resultante do rateio do montante total em dívida por 24, liquidadas juntamente com a renda do mês em causa ou até ao oitavo dia do calendário de cada mês, no caso de renda não mensal.
3- Para efeitos do disposto na alínea b) do número anterior, o montante total em dívida exclui as rendas vencidas e já pagas, as quais se consideram, para todos os efeitos, liquidadas.
4- Sem prejuízo do disposto no n.º 3, o arrendatário pode, a qualquer altura, proceder ao pagamento total ou parcial das prestações em dívida.
5- (…)”.
Para poder beneficiar deste regime, a mesma Lei 45/2020, aditou à referida Lei n.º 4-C/2020, um outro preceito, que denominou como artigo 8.º-A, nos termos do qual impôs ao arrendatário a obrigação de comunicar por escrito ao senhorio a intenção de usufruir do referido diferimento no pagamento de rendas ou uma proposta de acordo diferente para o realizar.
Além disso, acrescentou o artigo 13.º-A à mesma Lei n.º 4-C/2020, no qual se passou a prever o seguinte:
“1- O disposto na presente lei não prejudica a existência de regimes mais favoráveis ao arrendatário, decorrentes da lei ou de acordo, celebrado ou a celebrar entre as partes, nomeadamente acordos de perdão de dívida ou acordos de diferimento no pagamento de rendas mais benéficos para o arrendatário.
2- Nos casos de arrendamento não habitacional, existindo acordo previamente celebrado que estabeleça condições menos favoráveis para o arrendatário, o mesmo fica sem efeito mediante comunicação a enviar pelo arrendatário, no prazo de 30 dias após a entrada em vigor da Lei n.º 45/2020, de 20 de agosto, para a morada do senhorio constante do contrato de arrendamento ou da sua comunicação imediatamente anterior, através da qual o arrendatário manifesta a intenção de aplicar o presente regime.
3- São nulas as cláusulas de renúncia a direitos atribuídos pela presente lei ou de recurso a meios judiciais e de aceitação de aumentos de renda ou do período do contrato dispostas nos contratos referidos no número anterior.
4- No caso previsto no n.º 2, as quantias que já tenham sido pagas a título de renda não são devolvidas ao arrendatário, relevando antes para efeitos de cálculo do montante total em dívida a que se refere a alínea b) do n.º 3 do artigo 8.º (…)”.
Por fim, a Lei n.º 75-A/2020, de 30 de dezembro, alterou a redação do n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 4-C/2020, estabelecendo que “[a] indemnização prevista no n.º 1 do artigo 1041.º do Código Civil, por atraso no pagamento de rendas que se vençam nos meses em que é possível o respetivo diferimento, não é exigível sempre que se verifique o disposto nos artigos 4.º e 7.º da presente lei” e estabeleceu um novo regime (no artigo 8.º-B) de deferimento de rendas para os arrendatários de estabelecimentos que permanecessem encerrados no dia 01/01/2021».
Esta lei introduziu ainda uma alteração ao artigo 8.º, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, com interesse no caso ajuizado[14], prevendo que:
“1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 4, ficam suspensos até 30 de junho de 2021: (…) b) A caducidade dos contratos de arrendamento habitacionais e não habitacionais, salvo se o arrendatário não se opuser à cessação; (…)
2 - O disposto no número anterior depende do regular pagamento da renda devida nesse mês, salvo se os arrendatários estiverem abrangidos pelo regime previsto nos artigos 8.º ou 8.º-B da Lei n.º 4-C/2020, de 6 de abril, na sua redação atual.
3 - O disposto no número anterior aplica-se às rendas devidas nos meses de outubro a dezembro de 2020 e de janeiro a junho de 2021.
4 - No caso de contrato de arrendamento para fins não habitacionais relativo a estabelecimentos que, por determinação legal ou administrativa da responsabilidade do Governo, tenham sido encerrados em março de 2020 e que ainda permaneçam encerrados a 1 de janeiro de 2021, a duração do respetivo contrato é prorrogada por período igual ao da duração da medida de encerramento, aplicando-se, durante o novo período de duração do contrato, a suspensão de efeitos prevista no n.º 1.
5 - A prorrogação prevista no número anterior conta-se desde o termo original do contrato e dela nunca pode resultar um novo período de duração do contrato cujo termo ocorra antes de decorridos seis meses após o levantamento da medida de encerramento e depende do efetivo pagamento das rendas que se vencerem a partir da data de reabertura do estabelecimento, salvo se tiverem efetuado o respetivo diferimento.
6 - A suspensão de efeitos prevista no n.º 1 e a prorrogação prevista no n.º 5 cessam se, a qualquer momento, o arrendatário manifestar ao senhorio que não pretende beneficiar das mesmas ou se o arrendatário se constituir em mora quanto ao pagamento da renda vencida a partir da data da reabertura do estabelecimento, salvo se tiverem efetuado o respetivo diferimento.”
Posto o quadro legal integral aprovado pelo legislador no intuito de mitigar os efeitos da crise provocada pela COVID-19 que na espécie importa considerar, é tempo de olhar de novo para a materialidade provada que releva para o enquadramento do caso em apreço à sua luz, tendo presente que o estabelecimento em causa é um restaurante e que os sucessivos diplomas entretanto publicados se referiram não apenas ao encerramento do estabelecimento mas à suspensão/limitação da sua atividade, por via legal.
Como vimos, o não pagamento pontual das rendas vencidas no decurso do estado de emergência, estava já coberto pelo deferimento inicialmente previsto, porque a lei permitia que o pagamento das rendas vencidas nos meses em que vigorasse o estado de emergência e no primeiro mês subsequente, pudesse ser deferido para os 12 meses posteriores ao término desse período, em prestações mensais não inferiores a um duodécimo do montante total (artigo 8.º da Lei n.º 4-C/2020). Assim, tendo em conta que o primeiro Estado de Emergência vigorou, como vimos, entre os dias 19/03/2020 e 02/05/2020, a arrendatária podia pagar as rendas referentes a estes meses e ainda a do mês de junho de 2020 até ao mês de junho de 2021.
Acresce que, com a alteração introduzida pela Lei n.º 17/2020, aos artigos 7.º e 8.º, da Lei n.º 4-C/2020, até ao dito mês de junho, passaram a poder ser pagas também as rendas vencidas até ao dia 01/09/2020, desde que preenchidos os pressupostos aí previstos, caso em que o período de regularização da dívida só teria início a 1 de setembro de 2021.
E finalmente, com a publicação no dia 20/08/2020, da Lei n.º 45/2020, que alterou o artigo 8.º da Lei 4-C/2020, a ré, integrando-se nos arrendatários que preenchiam o disposto no artigo 7.º, e da alínea b), poderia diferir o pagamento das rendas vencidas também nos meses em que, ao abrigo de disposição legal ou medida administrativa aprovada no âmbito da pandemia da doença COVID-19, seja determinado o encerramento das suas instalações ou suspensão da respetiva atividade.
Porém, advertia o n.º 2 do preceito que:
a) O diferimento não pode, em qualquer caso, aplicar-se a rendas que se vençam após 31 de dezembro de 2020;
b) O período de regularização da dívida tem início a 1 de janeiro de 2021 e prolonga-se até 31 de dezembro de 2022.
Está demonstrado que a ré não cumpriu estes dois requisitos para que o deferimento pretendido tivesse respaldo nesta legislação excecional, já que não efetuou o pagamento pontual de rendas vencidas em 2021, e não regularizou integralmente a dívida até 31 de dezembro de 2022.
Com efeito, apesar de no dia 30 de dezembro ter sido ainda publicada a Lei n.º 75-A/2020, que aditou à Lei n.º 4-C/2020 um novo artigo (artigo 8.º-B) que permitiu um novo diferimento no pagamento de rendas, inclusive as vencidas no ano de 2021, a concretização desse direito já não era extensível aos estabelecimentos com a atividade suspensa ou limitada, aplicando-se apenas, por via do disposto no respetivo n.º 1, aos arrendatários cujos estabelecimentos tenham sido encerrados, por determinação legal ou administrativa da responsabilidade do Governo, desde, pelo menos, março de 2020, e que, a 1 de janeiro de 2021, ainda permanecessem encerrados, situação que não foi alegada pela ré, e consequentemente, também não se provou.
Na realidade, o que retira da factualidade provada em 20), é que pese embora no dia 18 de setembro de 2020, a Autora e a Ré tenham reunido com vista a tentar arranjar uma solução para a questão das rendas em atraso, na qual foram abordadas outras questões atinentes à vida do contrato, que impunham a redução do espaço da sala do restaurante mas sem que a autora estivesse disposta a efetuar uma redução da renda ou compensar a arrendatária (cfr. factos provados em 21 a 23), em resultado dessa reunião, em 15 de fevereiro de 2021, veio a Ré responder à Autora por comunicação enviada para o email dos representantes e sócios da Autora, Sr. Dr. BB e Sr.ª Arq. DD, pela qual fez um resumo da situação económica e financeira, e propôs um plano para recuperação e pagamento das rendas em atraso, o qual consistia em pagar:
i. A partir do dia 1 de maio de 2021, iniciar um pagamento mensal de 500,00€;
ii. A partir do dia 1 de agosto de 2021, incrementar o pagamento mensal para 1.000,00€, sendo que deste valor, 590,67€ se referem à renda mensal, e os restantes 409,33€ para amortizar o incumprimento existente, mantendo-se este pagamento até este se mostrar completamente liquidado (facto provado 24)).
Porém, como resulta dos factos provados em 32) a 34), nos meses de julho, agosto, setembro de 2021, a atividade do restaurante não foi suficiente, contrariamente ao que a Ré expectava, razão pela qual não cumpriu com o valor de 3.272,01€ referente ao conjunto desses meses, tendo efetuado apenas os seguintes pagamentos à Autora por conta das rendas: a) 04-10-2021,590,67 €; b) 04-10-2021,500,00 €; c) 03-11-2021, 590,67 €; d) 03-11-2021,500,00 €.
Acresce que, estando provado que entre outubro de 2021 e fevereiro de 2023, foram pagas à Autora todas as rendas em atraso relativas ao contrato referido em 2), e bem assim que a Ré tem pago atempadamente as rendas do respetivo mês a que respeitam, também é óbvio que a ré excedeu o período máximo legalmente concedido para regularização.
Conclui-se, pois, que a Ré não se encontra em condições de beneficiar do regime especial de alteração das circunstâncias que o legislador gizou precisamente para afastar a mora decorrente do não cumprimento pontual da obrigação de pagamento da renda.
Está igualmente demonstrado que a ré não fez cessar a mora, nos termos previstos no artigo 1042.º, n.º 1, do CC, já que o pagamento das rendas em atraso foi efetuado em singelo, resultando ainda do disposto no artigo 1041.º, n.º 4, do CC, que o recebimento pelo locador de novas rendas não o priva do direito à resolução do contrato.
Vejamos, pois, se no concreto circunstancialismo dos autos, tal mora determina ou não a peticionada resolução do contrato.
Com efeito, apesar da formulação do n.º 3 do artigo 1083.º do CC, no sentido de que a mora no cumprimento pelo arrendatário do pontual pagamento da renda torna inexigível ao senhorio a manutenção da relação contratual, a verdade é que a resolução do contrato de arrendamento não opera de forma automática, não deixando aquele n.º 3 do preceito de ser uma enumeração exemplificativa de casos em que o legislador considera o incumprimento contratual relevante para efeitos de resolução do contrato, ou dito de outro modo, meras concretizações da cláusula geral constante do n.º 2[15].
Consequentemente, há que aquilatar se em face da materialidade provada, na economia do contrato e do contexto do incumprimento, aquela mora atinge a gravidade ou consequências que torne inexigível à senhoria a manutenção do arrendamento.
Desde já avançamos que não cremos que tal gravidade, fundadora do direito potestativo à resolução do contrato de arrendamento, se haja constituído na esfera jurídica da autora.
Com efeito, e desde logo, está também demonstrado que a Ré esteve impossibilitada de utilizar o locado durante quatro meses, mais concretamente desde o dia 15 de fevereiro de 2021 até ao dia 15 de junho de 2021, em virtude de ter ruído parte da sanca localizada por baixo das telhas da fachada do prédio, situação logo comunicada à autora, mas cuja reparação só ocorreu na última data mencionada (factos provados 25 a 29).
Ora, de acordo com o disposto no artigo 1040.º, n.º 1, do CC, tal privação total do gozo da coisa, da responsabilidade do locador a quem foi prontamente comunicada mas que só procedeu à reparação na data indicada, não daria lugar apenas à redução do valor da renda já que, por via do funcionamento da exceção de não cumprimento do contrato prevista nos artigos 428.º a 431.º do CC, de que aquele preceito constitui afloramento, daria lugar à suspensão do pagamento das rendas durante aquele período[16].
Portanto, também a autora incumpriu parcialmente a sua obrigação.
Com interesse a respeito dos critérios de valoração do incumprimento parcial, dispõe o artigo 802.º, n.º 2, do CC, que o credor não pode resolver o negócio se o não cumprimento parcial, atendendo ao seu interesse tiver escassa importância.
JOSÉ CARLOS BRANDÃO PROENÇA[17], enfatiza que este preceito “levanta o problema (com directa incidência nos limites materiais do direito de resolução, ou seja, no plano essencial da gravidade do incumprimento) decorrente da limitação consagrada no seu n.º 2 e que leva a formular a questão de saber se o credor poderá resolver totalmente o contrato quando a parte ainda possível da prestação motivar potencialmente o seu interesse”. Acrescentando não ser unívoca a resposta a esta questão entre os autores, dá-nos nota “que os três autores[18] parecem encontrar-se quando excluem a resolução (total ou parcial) nos casos de incumprimento insignificante ou com «escassa importância» e introduzem assim (invocando o princípio da boa fé ou o critério do abuso do direito) limites «normativos» ao exercício do direito de resolução. Por seu turno, entende que o artigo 802.º, n.º 2, “consagra um juízo valorativo de uma possibilidade resolutiva com base num incumprimento parcial significante e num interesse unitário (…) do credor”, e avança: “num sistema geral de exercício resolutivo por mera declaração (art. 436.º, n.º 1, do CC), a secundarização do papel do juiz na apreciação da significância ou insignificância da «perturbação» contratual parcial pode ser atenuada por iniciativa do devedor, quando julgar que a sua culpa deve ser excluída (em nome do princípio da boa fé) ou puder invocar a irrelevância do seu incumprimento ou o incumprimento equivalente do seu credor. Parece-nos assim que, depois de projectada a boa fé na «normatividade» da resolução (na sua admissão e não no seu alcance) e resolvido o problema da relevância ou irrelevância do incumprimento, o credor é soberano na opção entre uma resolução total ou parcial. Se o devedor se encontra protegido, na fase da admissão ou não da resolução, pelo limite do n.º 2 do artigo 802.º, enquanto expressão do princípio da boa fé, o credor deve estar garantido por uma possibilidade discricionária de eleição da via que melhor defenda os seus objectivos”.
Revertendo estes ensinamentos à situação em presença, cientes que a apreciação da (ir)relevância do incumprimento da devedora, se situa na fase da admissão da resolução, e que “o disposto no n.º 2 do artigo 802.º do CC constitui um afloramento do princípio geral do direito de que no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé”[19], apreciemos, pois, se objetivamente se pode considerar o incumprimento parcial da ré como (in)significante ou de escassa importância na economia do contrato ajuizado à luz do interesse unitário da credora, uma vez que também esta não cumpriu parcialmente o contrato, por causa não imputável à devedora, que “só não poderá resolver o negócio se a falta parcial do cumprimento tiver pequena importância, atendendo ao seu interesse na prestação”[20].
In casu, sopesando as obrigações de ambas as partes na economia do contrato de arrendamento, temos da parte da devedora, ora ré, que o pagamento das rendas foi integralmente efetuado, ainda que tardiamente, correspondendo aquelas referentes ao tempo do incumprimento parcial da obrigação da autora de proporcionar à ré o gozo do locado a quatro meses de renda, ascendendo ao valor de 2.362,68€. Assim, constatamos, por simples cálculo aritmético, que o mesmo é superior àquele que seria o valor de 20% previsto no artigo 1041.º, n.º 1, do CC, e que seria o valor devido pela ré para purgar a mora e, por essa via obstar à resolução do contrato de arrendamento, valor esse que, atento o montante peticionado pela autora, seria de 1.808,28€.
E cremos que tanto basta para considerar que, atentos os princípios da boa fé e do dever de cumprimento integral e pontual do contrato que impendem sobre ambas as partes, tendo a senhoria recebido já aquele valor, a mora no cumprimento por banda da arrendatária configura um incumprimento contratual insignificante, que não assume o grau de gravidade fundador da inexigibilidade da manutenção do contrato de arrendamento, já que uma execução contratual de boa fé deve atender aos interesses recíprocos dos contraentes.
Pela mesma ordem de razões, entendemos que igualmente não pode proceder a deduzida oposição da autora à opção da ré pela renovação do contrato de arrendamento, pelo período de 5 anos. Relativamente à questão da mora da arrendatária, valem as considerações ora tecidas, não deixando de ser também impressivo no quadro de equivalência das prestações já descrito, e apesar do teor da cláusula atinente à inexistência de indemnização por benfeitorias levadas a cabo pela ré, que a autora haja deduzido tal oposição, quando sabe o que os factos provados de 8 a 10, espelham. A tal se oporia também o princípio da boa fé, neste caso raiando até um abusivo exercício desse direito, que seria vedado pelo artigo 334.º do CC.
Com efeito, o locado está inserido em prédio de construção anterior a 1951, sendo um antigo armazém, transformado posteriormente em "casa de pasto", no qual a ré realizou obras, que tiveram uma duração não concretamente apurada mas só tendo o restaurante aberto em novembro de 2019, pagando a ré a renda desde janeiro de 2017.
Tais obras foram de monta, tanto assim que custaram pelo menos € 43.214,08, e não foram voluptuárias porquanto valorizaram o imóvel em, pelo menos, € 34.571,26.
Ora, escassos meses após a abertura do restaurante, o país entrou no quadro de crise pandémica acima descrita com efeitos devastadores em muitas áreas da economia e concretamente na área da restauração. Num quadro geral e concreto como o descrito, acolher a pretensão da autora seria postergar os princípios que enformam as relações contratuais e, concretamente, o princípio da boa-fé.
Termos em que, a apelação improcede, sendo de confirmar, ainda que por razões não coincidentes, a sentença recorrida.
*****
IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação, em julgar improcedente o presente recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela autora.
*****
Évora, 23 de novembro de 2023
Albertina Pedroso [21]
Maria Adelaide Domingos
Manuel Bargado

__________________________________________________
[1] Juízo Central Cível de Faro, Juiz 2.
[2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.ª Adjunta: Maria Adelaide Domingos; 2.º Adjunto: Manuel Bargado.
[3] Que se restringem, mantendo a numeração de origem mas expurgando os segmentos que se reportam à transcrição da decisão, de normas legais, das cláusulas contratuais e dos fundamentos da ação, que manifestamente não têm cabimento nas conclusões das alegações.
[4] Que reproduzimos, tal como constam na sentença, retirando a menção “cujo teor se dá por integralmente reproduzido” e retificando os evidentes lapsos de escrita.
[5] Retifica-se o notório lapso de escrita que se evidencia pela própria data anterior da entrada da ação em juízo, e especificamente pela motivação de facto da decisão recorrida, concretamente das págs. 20 e 23 da sentença, devendo onde constava 2022 ficar a constar 2019.
[6] Doravante abreviadamente designada NRAU.
[7] Doravante abreviadamente designado CC.
[8] Cfr. ALBERTINA PEDROSO (ora Relatora), no estudo intitulado A RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO NO NOVO E NOVÍSSIMO REGIME DO ARRENDAMENTO URBANO, in Revista JULGAR, n.º 19, pág. 51, quando estava em vigor a redação da Lei n.º 31/2012, que havia reduzido o período temporal para dois meses, mas que no mais tem plena atualidade.
[9] Idem, pág. 49.
[10] Para um olhar mais aprofundado sobre as vantagens e inconvenientes elencados a respeito da redação primitiva do NRAU, ARRENDAMENTO URBANO, Novo Regime Anotado e Legislação Complementar, 3.ª edição, Quid Juris, Lisboa 2009, págs. 409 a 413 e o indicado artigo da ora Relatora na revista JULGAR, pág. 58 a 62.
[11] Proferido no processo n.º 1455/21.5YLPRT.L1.S1.
[12] Proferido no processo n.º 15135/21.8T8PRT-A.P1, que seguiremos de perto na parte em que a similitude com a situação em presença, por igualmente reportado a arrendamento não habitacional, o justifica, remetendo para a sua consulta a indicação da legislação pertinente publicada que suprimimos da parte onde consta (…), e inserindo no lugar próprio da aplicação da legislação aos vários momentos do lapso temporal em questão que temos de olhar.
[13] Formulação que se considera preferível à que vem formulada na sentença.
[14] Trata-se de norma que entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação (31.12.2021) e só foi revogada pela Lei n.º 31/2023, de 4 de julho.
[15] Cfr., neste sentido, obra citada, pág. 375.
[16] Idem, págs. 208 e 209.
[17] In A RESOLUÇÃO DO CONTRATO NO DIREITO CIVIL, DO ENQUADRAMENTO E DO REGIME – reimpressão, Coimbra Editora, 2006, págs. 110 a 113.
[18] Reporta-se a VAZ SERRA, de um lado, que “só admite a resolução total quando a prestação parcial não tiver qualquer interesse para o credor”, e de outro, a ANTUNES VARELA e BAPTISTA MACHADO, que dão resposta positiva à questão.
[19] Cfr. Ac. STJ, de 21.11.2019, proferido no processo n.º 1668/17.4T8PVZ.P1.S1.
[20] Cfr., PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in CÓDIGO CIVIL ANOTADO, vol. II, 3.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, 1986, pág. 61.
[21] Texto elaborado e revisto pela Relatora, e assinado eletronicamente pelos 3 juízes que compõem esta conferência.