COMPETÊNCIA MATERIAL
FISCALIZAÇÃO ABSTRACTA
CONSTITUCIONALIDADE
Sumário


Inexistindo um concreto litígio cuja resolução seja solicitada ao tribunal comum, não é este tribunal o competente para conhecer da pretensão formulada pelas Autoras visando o reconhecimento do direito ao exercício de uma atividade comercial, que lhes foi vedada por lei, pois que as pretensões de apreciação e declaração da sua inconstitucionalidade e ilegalidade não configuram in casu uma questão incidental, mas a pretensão principal, pelo que, a sua apreciação por um tribunal comum nas descritas circunstâncias redundaria numa fiscalização abstrata da constitucionalidade, que aos tribunais comuns está vedada, por ser da competência exclusiva do Tribunal Constitucional.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral


Processo n.º 1103/22.6T8FAR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro[1]

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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I – RELATÓRIO
1. SOCONLAR – DESMANTELAMENTO DE VEÍCULOS EM FIM DE VIDA E RECICLAGEM DE RESÍDUOS PERIGOSOS E NÃO PERIGOSOS, LDA., NIPC 504866877, FARMETAIS, LDA., NIPC 509764975, ROGÉRIO & EMANUEL – COMÉRCIO AUTOMÓVEIS, LDA., NIPC 503847704, FILÁGUEDA, LDA., NIPC 503689637, RECIGARVE – GESTÃO DE RESÍDUOS, UNIPESSOAL, LDA., NIPC 505881837, ALGARMÁQUINAS – COMÉRCIO DE MÁQUINAS E SUCATAS, UNIPESSOAL, LDA., NIPC 507022122, RECYCLING AKTIV – PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS E RECICLAGEM DE RESÍDUOS, LDA., NIPC 510862330, AUTO-PEÇUSA – COMÉRCIO DE AUTOMÓVEIS E PEÇAS USADAS, LDA., NIPC 502682442, PLASFARO – RECUPERAÇÃO DE PLÁSTICOS, UNIPESSOAL, LDA., NIPC 501814302, AZIMUTEMBAL – GESTÃO DE RESÍDUOS UNIPESSOAL, LDA., NIPC 513897356, FINALIZESCOLHA GESTÃO DE RESÍDUOS, LDA., NIPC 513410180, RECISSEQUEIRA – GESTÃO DE RESÍDUOS, LDA., NIPC 510708226, AMBIMARTO – GESTÃO DE RESÍDUOS, LDA., NIPC 513949500, ACTIVEDIDACTIC UNIPESSOAL, LDA., NIPC 513036318, JORGE OLIVEIRA – RECICLAGEM, LDA., NIPC 508730546, R&P – TRATAMENTO DE RESÍDUOS, LDA., NIPC 509884750, R.V.O. – RECICLAGEM – VALORIZAÇÃO OUTEIRENSE, LDA., NIPC 507534409, RECYCLOTINTO, LDA., NIPC 513388648, SUCATAS LOPES – COMÉRCIO DE SUCATAS, LDA., NIPC 505140896, e VIOLETASAFIRA – UNIPESSOAL, LDA., NIPC 510296858, intentaram a presente ação declarativa com a forma de processo comum, contra o ESTADO PORTUGUÊS e contra a APA – AGÊNCIA PORTUGUESA DO AMBIENTE, I.P., pedindo que os réus sejam condenados a reconhecer e seja proferida decisão que:
«a) Declare a inconstitucionalidade do disposto no art. 10, nº 3, a contrario, e o art. 117, 1, u) e bb) e 2, c) e p) até x), do Regime Geral de Gestão de Resíduos (RGGR) aprovado pelo anexo i do Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de dezembro, e os arts. 59, 4, g), e 65, 2) do regime jurídico da gestão dos seguintes fluxos específicos de resíduos (Decreto-Lei n.º 152-D/2017), por violação dos arts. 61, nº 1, 62, 83 e do n.º 3 do art. 86 da Constituição Portuguesa, por violar a proibição do confisco e os princípios da economia de mercado e da livre concorrência, de modo arbitrário;
b) Declare a ilegalidade das suprarreferidas normas bem como a ilegalidade das normas da Portaria n.º 20/2022, de 5 de janeiro, por violação do disposto nos arts. 61, nº 1, 62, 83, nºs 1 e 3, 86 da Constituição da República e dos arts. 106, 107 e 108 do Tratado de Funcionamento da União Europeia;
c) Autorize os autores a receber, transportar, depositar nos centro de recolha autorizados, triar e comercializar os resíduos urbanos (que se enquadrem na classificação dos subcapítulos dos códigos LER 1510 e 20, como eletrodomésticos, metais, vidros e plásticos) de qualquer particular, independentemente do volume diário que produza, podendo para o efeito emitir as guias de transporte e-GAR correspondentes e preencher os mapas e registos de resíduos legalmente exigíveis, no âmbito da sua atividade de operadores de resíduos, conforme aos respetivos títulos.»
Em fundamento da sua pretensão, as Autoras alegaram, em síntese, que são sociedades comerciais que têm por objeto a atividade de gestão de resíduos e que requereram e obtiveram da Autoridade Nacional dos Resíduos, títulos de operadores de resíduos, designados Títulos Únicos Ambientais (TUA), sendo operadores intermédios de resíduos, que fazem a recolha, triagem e desmantelamento (no caso de veículos e de equipamentos elétricos e eletrónicos em fim de vida), recebendo-os dos detentores e entregando-os de modo organizado e separado nos operadores transformadores.
As AA. restringem o objeto da presente ação às categorias de resíduos detidos por particulares, na parte em que compreendem metais, eletrodomésticos, equipamentos elétricos e eletrónicos e pilhas, incluídos nos códigos, que especificaram, da Lista Europeia de Resíduos (LER) anexa à Decisão n.º 2000/532/CE, da Comissão, de 3 de maio de 2000.
Todas as AA. têm autorização de receção de resíduos urbanos e equiparados (resíduos domésticos, do comércio, da indústria e dos serviços), incluindo as frações recolhidas seletivamente.
Através de atividades de processamento, as AA. separam e selecionam os diversos componentes dos resíduos, que são posteriormente comercializados para a indústria de reciclagem e transformação, consoante a aptidão e o aproveitamento tecnológico aplicável, pagando aos produtores de resíduos pela receção de resíduos aproveitáveis, sobretudo eletrodomésticos, equipamentos elétricos ou metálicos, e comercializando esses resíduos, já selecionados, junto da indústria.
A receção, transporte e saída dos resíduos, incluindo dos metais, é também regulada pelo regime geral da gestão de resíduos (doravante abreviadamente “RGGR”) e pelo regime da gestão de fluxos específicos de resíduos (doravante abreviadamente “RGFER”), aprovados respetivamente pelos Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de dezembro, e Decreto-Lei n.º 152-D/2017, de 11 de dezembro, diplomas que, nas suas versões originais, permitiam-lhes que recebessem e transportassem resíduos (desde que não se tratassem de resíduos abrangidos pelos sistemas de recolha municipais) entregues por particulares, (considerados estes como qualquer pessoa que não exerce atividade comercial ou industrial e que não tem fins lucrativos).
Sucede que, com as alterações introduzidas ao RGGR e ao RGFER, pelos Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro, Decreto-Lei n.º 119-A/2021, de 22 de dezembro e pela Lei n.º 52/2021, de 10 de agosto, com Declaração de Retificação n.º 3/2021, de 21 de janeiro, e, por força da alteração do disposto no artigo 10, n.ºs 2 e 3, do RGGR, apenas podem recolher, atualmente, resíduos domésticos provenientes de um estabelecimento que produza pelo menos 1100 litros de resíduos por dia, ou de outros estabelecimentos comerciais em casos específicos, e todos os restantes resíduos detidos por particulares têm de ser entregues nos pontos de recolha dos municípios, de operadores escolhidos por estes ou de entidades gestoras.
A nova redação do artigo 59.º, n.º 4, al. g), assim como o também alterado artigo 65.º, n.º 2 do RGFER (Decreto-Lei n.º 152-D/2017) veio proibir a receção de resíduos provenientes de utilizadores particulares por operadores de tratamento de resíduos, como as AA., pelo que, os particulares não podem atualmente entregar resíduos às AA., sendo a violação daquelas proibições cominada como contraordenação pelo artigo 117.º, n.º 1, alíneas u) e bb) e n.º 2, alíneas c) e p) até x), do RGGR.
Mais invocam que, com as restrições impostas pelo RGGR aprovado pelo anexo I do Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de dezembro e pelo Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos, aprovado pela Portaria n.º 241-B/2019, as AA. ficaram proibidas de exercer a sua atividade habitual, porquanto os particulares têm de entregar gratuitamente todos os resíduos a sistemas municipais de recolha ou a entidades gestoras de resíduos.
Concluem as AA. que a proibição de receberem resíduos de particulares é completamente arbitrária e não tem racionalidade económica legítima, tanto assim que, ao invés da legislação portuguesa, que proíbe tal atividade pelos privados, as Diretivas 94/62/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de dezembro de 1994, 1999/31/CE, do Conselho, de 26 de abril de 1999, 2000/53/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de setembro, 2006/66/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de setembro de 2006, 2012/19/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012 e 2008/98/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de novembro de 2008 não impõem qualquer restrição à entrega de resíduos por particulares a operadores de resíduos autorizados.
Consideram as AA. que o RGGR aprovado pelo anexo i do Decreto-Lei n.º 102-D/2020 vai para além das diretivas que deveria ter transposto, em especial, na imposição de um processamento municipalizado e por empresa concessionária, como resulta do ponto 7 do preâmbulo da Diretiva 2018/851, o que as AA. entendem ser uma discriminação dos pequenos produtores, violadora do disposto no artigo 11.º, al. b) da Lei de Bases do Ambiente (aprovada pela Lei n.º 19/2014, de 14 de Abril).
No plano constitucional, alegam as AA. que o n.º 3 do artigo 86.º da Constituição da República Portuguesa (doravante abreviadamente “CRP”) estabelece que “a lei pode definir sectores básicos nos quais seja vedada a atividade às empresas privadas e a outras entidades da mesma natureza”. Efetivamente, a Lei n.º 88-A/97, de 25/07, reserva a recolha e tratamento de resíduos urbanos a serviços municipais, exceto se concessionados a privados, e, nos termos do Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20/08, aos serviços municipais é conferida exclusividade territorial (artigos 2.º, n.º 1, al. c) e 4.º, n.º 1). Todavia, aos sistemas municipais não pertence o exclusivo da recolha de resíduos que se enquadrem na classificação dos subcapítulos dos códigos LER 1510 e 201 (artigo 11.º, n.º 1, do RGGR) salvo se forem produzidos nas habitações (artigo 10.º, n.º 2 do mesmo diploma).
Consideram as AA. que o artigo 10.º do RGGR cria um sistema pelo qual os produtores de unidades comerciais (que produzem mais de 1100 litros por dia, ou outros em casos especiais) podem escolher o destino dos seus resíduos, entregando-os, por exemplo, às AA., enquanto que o n.º 2 do mesmo artigo do RGGR proíbe que os particulares destinem às AA. os resíduos objeto da presente ação – como pilhas, metais e equipamentos – mesmo que sejam produzidos fora das habitações.
Alegam ainda as AA., que as proibições de entrega, receção, comercialização e transporte de resíduos são proibições de exploração económica e correspondem a confisco de bens privados, sem justificação ambiental alguma, tanto mais que a própria lei que estabelece a proibição reconhece às AA. a capacidade de receberem, transportarem, armazenarem e destinarem resíduos. O direito de propriedade de resíduos deve traduzir o direito à exploração económica, pela entrega no mercado a operadores autorizados, para o devido processamento ambiental e para benefício da economia circular, sem possibilidade de proibição da remuneração que resulta do mercado. De outro modo ocorre confisco, proibido pelos artigos 62.º e 83.º da CRP.
Pelo que, entendem as AA. que o disposto no artigo 10.º, n.º 3, a contrario, e o artigo 117.º, n.º 1, als. u) e bb) e n.º 2, als. c) e p) até x), do RGGR, aprovado pelo anexo i do Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de dezembro, e os artigos 59.º, n.º 4, al. g), e 65.º, n.º 2 do RGFER, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 152-D/2017, são inconstitucionais, por violação do artigo 62.º e do n.º 3 do artigo 86.º da CRP, na medida em que proíbem que as AA. recebam resíduos de particulares e na medida em que obrigam os particulares a entregar gratuitamente os seus resíduos a municípios ou a entidades gestoras.
Consideram também que as mesmas disposições violam o disposto nos artigos 106.º, 107.º e 108.º do TFUE, por violarem os princípios da economia de mercado e da livre concorrência, de modo arbitrário, assim como violam o princípio de gestão de resíduos estabelecido no artigo 11.º, al. b) da Lei de Bases do Ambiente, pelo que são ilegais.
Por fim, defendem as AA. que o regime fixado na Portaria n.º 20/2022, de 5 de janeiro, na medida em que impede a entrega, recolha, transporte e tratamento de resíduos de pequenos produtores por parte das AA. é ilegal e deve ser revogado.

2. Regularmente citados, ambos os Réus apresentaram contestação.
2.1. A R. AGÊNCIA PORTUGUESA DO AMBIENTE, I.P. (doravante abreviadamente APA, I.P.), contestou, por impugnação, e por exceção, arguindo a incompetência material do Tribunal e a ilegitimidade passiva, relativamente a todos os pedidos formulados pelas AA., defendendo que:
As normas contidas nos artigos 10.º, n.º 3 e 117.º, n.º 1, als. u) e bb) e n.º 2, als. b), p) e x) do DL 102-D/2020 e os artigos 61.º, n.º 4, al. g) e 65.º, n.º 2 do DL 152-D/2017, são lei em sentido material e em sentido formal, que provieram de órgão com competência legislativa (o Governo), nos termos do artigo 112.º, n.º 1 da CRP, aprovados ao abrigo do artigo 198.º, n.º 1, al. a) da CRP;
A inconstitucionalidade das normas é suscitada pelas AA. em abstrato, isto é, não é suscitada por referência à sua aplicação a um caso concreto submetido a juízo;
A apreciação e declaração, com força obrigatória geral, de inconstitucionalidade de quaisquer normas jurídicas - a fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade e da legalidade - encontra-se atribuída em exclusivo ao Tribunal Constitucional, nos termos do disposto nos artigos 221.º, 223.º, n.º 1 e 281.º, n.º 1 da CRP e dos artigos 51.º a 56.º e 62.º a 66.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, a Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (doravante abreviadamente “LTC”);
Consequentemente, o tribunal judicial é absolutamente incompetente, por falta de jurisdição, para decidir a presente ação no que respeita ao pedido de declaração de inconstitucionalidade de normas constantes de ato legislativo.
Acresce que, a legitimidade processual passiva é atribuída ao órgão que editou ou aprovou o ato de onde consta a norma sujeita a fiscalização (artigo 54.º e 55.º, n.º 3 da LTC) e que, no caso, seria o Primeiro-Ministro, considerando que as normas impugnadas constam de dois Decretos-Leis.
A aludida incompetência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do presente tribunal judicial (artigo 96.º a) do CPC), por falta de jurisdição, que consubstancia uma exceção dilatória insanável, de conhecimento oficioso, determinante da absolvição dos Réus da instância, nos termos do disposto no 576.º, n.º 1 e 2, 577.º alínea a), 278.º, n.º 1, alínea a) e 578.º todos do CPC.
No que respeita aos pedidos de declaração de ilegalidade de normas contidas nos artigos 10.º, n.º 3 e 117.º, n.º 1, als. u) e bb) e n.º 2, alS. b), p) e x) do DL 102-D/2020 e os artigos 61.º, n.º 4, al. g) e 65.º, n.º 2 do DL 152-D/2017 por violação dos artigos 106.º a 108.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (doravante TFUE), a R. alega que tal pedido é feito em abstrato, sendo que, o mecanismo processual de reenvio prejudicial, previsto no artigo 267.º do TFUE, só é possível quando o juiz nacional tenha dúvidas quanto à validade ou interpretação de uma norma de direito da União Europeia, aplicável ao caso concreto, perante si pendente.
Quanto aos pedidos de declaração de inconstitucionalidade e de ilegalidade da Portaria n.º 20/2022, de 5 de janeiro, que aprova o Regulamento de Funcionamento do Sistema Integrado de Registo Eletrónico de Resíduos (SIRER), alega a R. que as AA. não identificam as concretas normas que pretendem que sejam declaradas inconstitucionais/ ilegais.
De todo o modo, a declaração de ilegalidade / inconstitucionalidade de normas administrativas insere-se no âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos (artigos 1.º e 4.º, n.º 1 alínea b) do ETAF e artigo 2.º, n.º 2, alínea d) e 72.º a 77.º do CPTA).
Acresce que a R. sempre seria parte ilegítima, tendo legitimidade processual passiva o Ministério do Ambiente (artigo 8.º-A, n.º 3 e artigo 10.º, n.º 2 do CPTA).
Por fim, no que se refere ao pedido de autorização das Autoras para receber, transportar, depositar nos centros de recolha autorizados, triar e comercializar os resíduos urbanos de qualquer particular, alega a R. que a “autorização” é um ato administrativo, que constitui um dos modos de exercício do poder administrativo. Se se entender que o pedido dirigido ao tribunal é no sentido de condenar a Administração a praticar ato autorizativo, tal competência é da jurisdição dos tribunais administrativos (artigos 1.º e 4.º, n.º 1, alínea o) do ETAF e artigo 2.º, n.º 2, alínea b) e 66.º a 71.º do CPTA), e a entidade com legitimidade passiva para um pedido desta natureza seria o Ministério da Coesão Territorial, considerando que a direção das CCDR cabe à Ministra da Coesão Territorial (artigo 28º, n.º 8 do Decreto-Lei n.º 32/2022, de 09/05, Lei Orgânica do XXIII Governo Constitucional), uma vez que a entidade competente para licenciar / autorizar a atividade de tratamento de resíduos pretendida pelas Autoras é a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), enquanto Autoridade Regional dos Resíduos, nos termos do disposto no artigo 14º, n.º 1, alínea b) do Novo Regime Geral de Gestão de Resíduos, aprovado pelo DL 102-D/2020, de 10 de dezembro em conjugação com o Decreto-Lei n.º 228/2012, de 25 de outubro, diploma que aprovou a orgânica das CCDR.
A Ré alegou ainda exceção dilatória de ilegitimidade passiva em relação a qualquer um dos pedidos formulados pelas Autoras e exceção substantiva de ilegitimidade, porquanto atenta a causa de pedir invocada, em concreto inconstitucionalidade e ilegalidade de normas contidas em Decretos-Leis e em Portaria, diplomas do Governo, e o pedido de autorização de exercício de atividade cuja entidade competente para o licenciamento é a CCDR Algarve, é forçoso concluir que contra a APA, IP não pode ser dirigido nenhum dos pedidos formulados pelas Autoras.

2.2. O ESTADO PORTUGUÊS, representado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, contestou, por impugnação, e por exceção, arguindo a incompetência material, na medida em que a questão da inconstitucionalidade não é meramente uma questão incidental que se associe à questão objeto do processo (o que constituiria um pedido de fiscalização concreta da constitucionalidade) mas é antes a questão principal objeto do presente processo, porquanto as Autoras pretendem a fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade, competência exclusiva do Tribunal Constitucional, para a qual as Autoras também não têm legitimidade ativa para requerer a fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade, nos termos do artigo 281.º, n.º 1 da CRP.
Mais invoca que, a declaração de ilegalidade das normas da Portaria n.º 20/2022 compete materialmente à jurisdição administrativa.
Relativamente ao pedido de autorização das Autoras a receber, transportar, depositar nos centros de recolha autorizados, triar e comercializar os resíduos urbanos de qualquer particular, tal competência é de um órgão da função administrativa do Estado, podendo a jurisdição administrativa ser jurisdicionalmente competente, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, al. o) do ETAF.

3. Facultado o contraditório às AA. para se pronunciarem quanto às exceções dilatórias invocadas pelos RR., as mesmas vieram reiterar o já alegado, aduzindo que a presente ação de processo comum é claramente uma ação de simples apreciação, cabendo a apreciação da constitucionalidade das leis na competência do tribunal cível, porquanto a mesma é suscitada em concreto pelas AA..
Mais alegam as AA. que as matérias de direito europeu são matérias de direito interno que cabem na competência dos tribunais portugueses.
Quanto ao pedido formulado na alínea c), consideram as AA. que o mesmo não consubstancia o pedido de uma autorização administrativa, mas um pedido de reconhecimento do direito de exercício da atividade aí melhor explicitada, suscitando o suprimento do tribunal, que tem o poder-dever de corrigir oficiosamente algum erro que detete na qualificação jurídica vertida na petição inicial.
Por fim, entendem que a R. APA, I.P., é parte legítima, porquanto controla a gestão dos resíduos que estão em causa nos presentes autos, assim como os mapas de registo de resíduos urbanos, atuando as CCDR sob as determinações da APA, I.P.

4. No despacho saneador proferido em 06.12.2022, julgou-se o Juízo Local Cível de Faro absolutamente incompetente em razão da matéria para a apreciação da presente ação e, em consequência, os Réus foram absolvidos da instância.

5. Inconformadas, as AA. apelaram, encerrando as suas alegações com as seguintes conclusões:
«a) A douta sentença incorre em erro, por na apreciação do objeto da ação se confinar aos pedidos e em função deles atribuir a competência ora ao Tribunal Constitucional, ora ao tribunal administrativo, e por não admitir a requerida modificação do pedido;
b) A ação tem por objeto matéria cível (reação das Autoras contra a apropriação de bens alheios, o confisco e a restrição arbitrária da atividade económica, operadas por via legislativa) da exclusiva competência do tribunal judicial, nos termos do art. 40, nº 1, da LOSJ e do art. 64, nº 1, do CPC;
c) O direito de ação resulta do disposto nos arts 2, nº 3, e 26, nº 1, da LOSJ, os quais cumprem o art. 20, nº 1, da Constituição, intervindo as Autoras em defesa dos seus direitos de propriedade e de atividade económica, garantidos pelos arts. 61, nº 1, e 62, nº 1, da Constituição, que são diretamente aplicáveis por força do art. 18, nº 1, da Constituição;
d) A ação tem a natureza de simples apreciação positiva (art. 10, nº 3, a), do CPC);
e) O pedido formulado na alínea c) da p.i. não consubstancia uma autorização administrativa, mas um pedido de reconhecimento do direito de exercício da atividade aí melhor explicitada, pelo que deve admitir-se a modificação, enquanto erro de qualificação jurídica (arts. 5, nº3 e 608, nº 2 in fine do CPC), ou erro de escrita (art. 146 do CPC), ou admitida a sua redução ou ampliação (art. 265, nº 2, do CPC), passando a ler-se “reconheça às Autoras o direito de” em vez de “Autorize as Autoras a”;
Consequentemente, deve a douta sentença ser revogada e o tribunal judicial ser declarado competente para julgar a causa, ordenando-se o prosseguimento dos autos.».

6. O Ministério Público apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência da apelação.

7. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objeto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[3], é pacífico que o objeto do recurso se limita pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, a única questão colocada para apreciação no presente recurso de apelação consiste em determinar se a jurisdição comum é ou não competente para decidir a pretensão formulada pelas AA..
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III. – O mérito do recurso
Pretendem as Apelantes que o tribunal a quo, incorreu em erro ao atribuir a competência para a apreciação das pretensões formuladas ora ao Tribunal Constitucional, ora aos tribunais administrativos, em primeiro lugar, por na apreciação do objeto da ação se confinar aos pedidos e em função deles não admitir a requerida modificação do pedido, defendendo que a ação tem a natureza de simples apreciação positiva, sendo da competência dos tribunais comuns.
Apreciando.
Em face do disposto no artigo 211.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa[4], os Tribunais Judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal, e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas, estabelecendo os artigos 64.º do CPC e 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/08 – Lei da Organização do Sistema Judiciário[5] –, que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, tendo consequentemente também competência residual no confronto com as outras ordens de tribunais.
Como evidenciam ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO e NORA[6], «[p]ara que possa decidir sobre o mérito ou fundo da questão, requer-se que o tribunal, perante o qual a acção foi proposta, seja competente». Por isso, a competência é «um dos pressupostos processuais mais importantes, relativo ao tribunal», e «resulta do facto de o poder jurisdicional ser repartido, segundo critérios diversos, por numerosos tribunais», que no plano interno se organizam em diferentes categorias de tribunais, a cada uma das quais estão cometidas determinadas matérias de direito.
Prosseguem, ensinando que «[a] competência em razão da matéria distribui-se deste modo por diferentes espécies ou categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia (de subordinação ou dependência) entre elas. Na base da competência em razão da matéria está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram».
Esclarecem ainda JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE[7], que o critério da competência em razão da matéria não atua «apenas no plano da contraposição dos tribunais judiciais aos outros tribunais, mas também, como resulta do art. 65, no plano da contraposição dos vários tribunais de 1.ª instância entre si». Porém, salientam, para o regime da incompetência, «esse plano é mais gravoso (…) quando sejam violadas as regras da competência em razão da matéria que respeitem à delimitação entre os tribunais judiciais e os outros tribunais (entre os quais figura a norma do art. 64)».
Distinguindo ambas as situações, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA[8], não deixando de «reconhecer que as questões da delimitação do âmbito da jurisdição administrativa não deixam, em bom rigor, de ser, de acordo com os quadros tradicionais, questões de competência em razão da matéria, pois que se trata de distribuir competências entre tribunais de acordo com um critério de especialização em função da natureza dos litígios a dirimir», considera, «no entanto, justificado diferenciar as questões de (mera) competência em razão da matéria» que se colocam dentro do âmbito da mesma jurisdição, «daquelas que se colocam no âmbito das jurisdições, reservando, desse modo, o conceito de competência em razão da matéria (em sentido estrito) apenas para aquele primeiro plano e falando, a propósito deste último, de competência em razão da jurisdição».
Vem apontado à decisão recorrida este erro mais grave, ou seja, o erro na determinação da competência entre jurisdições, in casu, entre o tribunal a quo, de competência especializada em matéria cível, versus os tribunais qualificados como especiais por terem as suas competências limitadas às matérias que lhes são especialmente atribuídas, os tribunais administrativos pela lei, e o Tribunal Constitucional pela Constituição, que lhe confere uma posição autónoma relativamente aos outros tribunais, e com a especificidade de ele próprio definir as questões relativas à delimitação da sua competência.
Sintetizando a ideia vertida pelas Apelantes nas alegações recursivas, «a presente ação tem por objeto matéria cível (direito de comércio e de atividade comercial e direito de propriedade) da exclusiva competência do tribunal judicial, nos termos do art. 40, nº 1, da LOSJ e do art. 64, nº 1, do CPC. As questões constitucionais suscitadas na causa de pedir correspondem aos próprios direitos que se pretendem defender. Os pedidos relativos à constitucionalidade são instrumentais e o pedido de reconhecimento do direito de exercício da atividade e da manutenção da propriedade é o pedido fundamental».
Admitindo que os pedidos poderiam ter sido concebidos de outro modo, sustentam que, ainda assim, estes estão numa relação de identidade com a causa de pedir e merecem tutela judicial, porque «aquela legislação, no que respeita às normas concretamente limitativas apontadas na p.i., constituem apropriação de bens alheios, confisco e restrição arbitrária da sua atividade económica», não sendo a ação constitutiva, como se afirmou na sentença recorrida, já que o Estado não é condenado a revogar a lei, mas tendo a natureza de simples apreciação positiva: «Aprecia o direito de as Autoras exercerem atividade comercial, de fazerem seus, conservarem, transacionarem ou entregarem para reciclagem bens com valor económico, embora classificados de resíduos, nos termos do art. 10, nº 3, a), do CPC».
Vejamos.
As apelantes creem que a qualificação da ação que propuseram como sendo uma ação de simples apreciação e a modificação do pedido formulado na alínea c), por forma a que em vez de “Autorize as Autoras a”, passe a ler-se “reconheça às Autoras o direito de”, determinaria o prosseguimento da ação, mas, a nosso ver, não têm razão.
Com efeito, conforme se sumariou no aresto do Supremo Tribunal de Justiça de 25.11.2008[9], «[o] autor que intenta uma acção de simples apreciação tem de demonstrar o seu interesse em propor a acção, a sua necessidade em obter a declaração judicial da existência ou inexistência de um direito ou de um facto.
Tendo as acções de simples apreciação por único objectivo pôr termo a uma situação de incerteza, só é legítimo o recurso a este tipo de acções quando o autor estiver perante uma incerteza real, séria ou objectiva, de que lhe possa resultar um dano».
Também no acórdão deste Tribunal da Relação de 02.10.2018[10], se concluiu naqueles termos – num caso em que se confirmou a decisão recorrida que havia absolvido o réu da instância por falta de interesse em agir dos ali autores que haviam peticionado a declaração da existência do seu direito legal de preferência –, salientando o já afirmado pelo nosso mais Alto Tribunal, e a lição da doutrina, ponderando que «[na acção declarativa de simples apreciação, “não se exige do réu prestação alguma, porque não se lhe imputa a falta de cumprimento de qualquer obrigação. O autor tem simplesmente em vista pôr termo a uma incerteza que o prejudica: incerteza sobre a existência de um direito” (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, pág. 15). Como justificação das acções de simples apreciação, escreve ainda o mesmo autor (R.L.J. Ano 80º- 231): “o estado de incerteza sobre a existência de um direito ou de um facto é susceptível de causar prejuízo a uma pessoa; deve, por isso, pôr-se à disposição dessa pessoa um meio de se defender contra tais prejuízos. Esse meio é a acção declarativa. Quer dizer, o prejuízo inerente à incerteza do direito ou do facto legitima e justifica o uso da acção de simples declaração positiva ou negativa”.
Com efeito, este pressuposto processual, «consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial. É o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo. Não se trata de uma necessidade estrita, nem tão-pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo de intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece»[11].
Por seu turno, no sumário do Acórdão do TRP de 10.01.2022[12], enfatizou-se que o interesse processual ou interesse em agir, «tem como finalidade limitar a liberdade de ação do Autor para agir em juízo por forma a, circunscrevendo o direito de ação às situações objetivamente carecidas de tutela jurisdicional, garantir a eficácia e o prestígio dos tribunais, aos quais se reservam, apenas, os casos de objetiva necessidade, merecedores de tutela judicial.
Aferindo-se face à petição inicial, para que se verifique tal pressuposto processual tem o Autor de invocar situação justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo para nele fazer valer direito seu carecido de tutela judiciária.
Os princípios constitucionais do acesso ao direito e à justiça impõem solução equilibrada, por proporcional e adequada, que não vede o acesso necessário ou útil nem permita o acesso supérfluo e inútil».
Ora, revertendo estes ensinamentos à situação em apreciação, mesmo que se admitisse que a presente ação – tendo em conta apenas aquele pedido de reconhecimento do direito das autoras a exercerem a sua atividade comercial nos termos ali concretizados e a causa de pedir formulados –, configurasse uma ação de simples apreciação (positiva), por ter por fim obter unicamente a declaração da existência desse direito (cfr. artigo 10.º, n.ºs 2 e 3, alínea a) do CPC), a verdade é que não seria legítimo às autoras o recurso a esse tipo de ação para os fins em vista, por não estarem perante uma situação de incerteza objetiva sobre a existência desse seu direito. De acordo com a sua própria alegação, trata-se de direito que tinham na sua esfera de atividade antes da alteração legislativa que o veio retirar. Portanto, as autoras sabem bem que atualmente, mercê da alteração legislativa contra a qual se insurgem na presente ação, não têm o direito cujo reconhecimento pretendem seja feito por via desta demanda.
Como assim, não haveria qualquer situação de incerteza real que prejudicasse as Autoras, donde não se verificaria a necessária justificação/utilidade para o recurso à ação de simples apreciação, o que sempre determinaria (pelo menos) o mesmo resultado a que chegou o tribunal a quo: a absolvição da instância dos réus, desta feita, com fundamento na falta desse pressuposto processual inominado, que não se confunde com o interesse subjetivo que as autoras possam ter na prossecução de uma atividade comercial que antes exerciam e cujo exercício o legislador lhes vedou.
Acresce que, conforme se extrai do disposto nos artigos 2.º e 3.º do CPC, subjacente a qualquer ação judicial de natureza civil está, necessariamente, um conflito entre interesses divergentes das partes, litígio que as apelantes não configuraram, pelo que, também por esta razão e mesmo no pressuposto adiantado pelas mesmas, da qualificação da ação como de simples apreciação, não existiria da sua parte interesse em agir[13].
Com efeito, sendo certo que, quer «do art. 6º da CEDH como do art. 20º, nº4, da CRP, resulta para o Estado o dever de proporcionar mecanismos de tutela jurisdicional que, com as garantias de independência e de imparcialidade (e também de acordo com as regras da boa fé e de proteção das expectativas STJ 9-7-14, 2577/05) cumpram o objetivo da celeridade e da eficácia na resolução de conflitos e na regulação de interesses»[14], no que tange aos tribunais judiciais tal dever, só se configura em situações de necessidade de recurso à via judiciária, por existência de litígio, que no caso em apreciação não se descortina.
Na realidade, o cerne da questão decidenda, independentemente das vestes com que as Apelantes a apresentam, é tão-somente a de saber se, a pretexto da invocação de direitos tutelados pela Constituição e pelo Código Civil, podem ser postos em crise atos legislativos, em si mesmo considerados, por via de pretensão formulada nos tribunais comuns que na sua essência se consubstancia na não aplicação às autoras das invocadas normas legais. Dito de outro modo, in casu está em causa aquilatar se a ordem jurídica reconhece às autoras o direito a instaurarem uma ação que tenha como escopo o reconhecimento pelos tribunais judiciais, sem existência de um concreto litígio, do seu direito a exercerem uma atividade comercial cuja possibilidade de exercício tinham anteriormente, mas cuja prática a lei que entendem ser inconstitucional e ilegal, lhes vedou.
Aventam ainda as Apelantes que «caso tivesse sido pedida indemnização (nos termos da lei 67/2007), à causa de pedir atual estaria subordinada a do prejuízo, e a ação implicaria a simples apreciação (da causa principal e da subordinada) e a consequente condenação (na indemnização)».
Pois bem, são as mesmas que avançam com fundamento que desfavorece até a defesa da sua tese. Com efeito, se as Apelantes tivessem peticionado uma indemnização nos sobreditos termos, havia notoriamente interesse em agir, mas os tribunais competentes para o dirimir seriam os tribunais administrativos, que poderiam então incidentalmente conhecer das invocada inconstitucionalidade e ilegalidade.
A questão é, pois, de competência material, e a resposta não pode deixar de ser negativa, sem que de tal decorra qualquer violação do direito constitucional de acesso à justiça, que não assume um caráter absoluto, nem acolhe um recurso incondicionado aos tribunais que, sem a existência de um litígio subjacente, permita que os particulares aos mesmos se dirijam visando o reconhecimento de um direito que se reconduz afinal à pretensão de uma declaração judicial que lhes permita o exercício de uma atividade que o legislador entendeu dever vedar-lhes.
Com efeito, conforme o Tribunal Constitucional[15] tem vindo reiteradamente a afirmar, «o artigo 20.º da CRP garante a todos o direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, impondo igualmente que esse direito se efetive – na conformação normativa pelo legislador e na concreta condução do processo pelo juiz - através de um processo equitativo (n.º 4).
Como o Tribunal Constitucional tem repetidamente sublinhado, o direito de acesso aos tribunais é, entre o mais, o direito a uma solução jurídica dos conflitos a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência, mediante o correto funcionamento das regras do contraditório (acórdão n.º 86/88, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11º, pág. 741). (…) (entre muitos outros, o acórdão n.º 1193/96).
Importa reter, no entanto, que o legislador dispõe de uma ampla margem de liberdade na concreta modelação do processo, cabendo-lhe designadamente ponderar os diversos direitos e interesses constitucionalmente relevantes. (…)
«O direito de acesso aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos e obtenção de uma sua tutela jurisdicional, plena e efetiva, constitui um direito ou garantia fundamental que se encontra consagrada no art.º 20.º da Constituição. Mas daí não decorre que seja um direito absoluto, de uso incondicionado. Desde logo, ele consente as restrições que caibam nos parâmetros estabelecidos nos n.ºs 2 e 3 do art.º 18.º da CRP. (…) Ponto é que esses condicionamentos, pressupostos e prazos não se revelem desnecessários, desadequados, irrazoáveis ou arbitrários, e que não diminuam a extensão e o alcance do conteúdo desse direito fundamental de acesso aos tribunais” (Acórdão n.º 178/2007)».
Ora, nesses condicionamentos enquadram-se as regras atinentes à competência material.
Conforme enfatizam JOÃO DE CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[16], «[a] competência é, grosso modo, a adstrição a certo tribunal de certa categoria de processos. Vista pelo ângulo do tribunal, a competência pertence à organização judiciária e como tal é regulada pelas leis de organização judiciária (art. 37.º, n.º 1, 40.º, 41.º e 42.º, n.º 1 e 2 da LOSJ) e, por vezes, pelo CPC (art. 65.º e 66.º)».
Assim, perante um caso concreto em que se suscite a questão da delimitação da jurisdição competente, a primeira tarefa é determinar qual a específica matéria em causa, já que é por esta que se afere a competência.
Ora, decorrendo do artigo 64.º do CPC que “[s]ão da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”, a delimitação da competência material dos tribunais judiciais faz-se pela negativa, tratando-se de uma competência residual, cabendo a estes tribunais julgar os feitos que não estejam cometidos a outras ordens jurisdicionais. Donde, havendo competência positiva no confronto com outras jurisdições, fica afastada a competência material genérica ou residual dos tribunais comuns.
Dizem as Apelantes que o tribunal a quo se ateve apenas aos pedidos formulados, para atribuir a competência ora ao Tribunal Constitucional ora aos Tribunais Administrativos, mas não cremos que assim haja sido.
Com efeito, afirmou-se na decisão recorrida que «do disposto no n.º 3 do artigo 581.º do CPC extrai-se que o pedido, na sua vertente substantiva, consiste no efeito jurídico que o autor pretende obter com a ação, o que se reconduz à afirmação do efeito prático-jurídico pretendido, efeito este que não se restringe necessariamente ao seu enunciado literal, podendo ser interpretado em conjugação com os fundamentos da ação com eventual suprimento pelo tribunal de manifestos erros de qualificação, ao abrigo do disposto no artigo 6.º do CPC, desde que se respeite o conteúdo substantivo da espécie de tutela jurídica pretendida e as garantias associadas aos princípios do dispositivo e do contraditório.
Por seu lado, o n.º 4 do indicado artigo 581.º define a causa de pedir como sendo o facto jurídico de que o autor faz proceder o efeito pretendido. E, em particular no que concerne às pretensões reais, o mesmo normativo, inspirado na teoria da substanciação, precisa que a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real invocado.
Como é sabido, o objeto da ação consubstancia-se numa pretensão processualizada integrada pelo pedido e causa de pedir.
Assim, sobre o Autor impende o ónus de indicar o concreto efeito prático-jurídico pretendido e de alegar uma factualidade específica ou concreta que viabilize a formulação de um juízo de mérito sobre a pretensão deduzida contra o Réu».
Ressalta, pois, da motivação da decisão recorrida que, ao contrário do afiançado pelas Apelantes, o tribunal a quo aferiu a competência material por reporte à alegação das autoras, mais concretamente, na pretensão deduzida e nos seus fundamentos, de harmonia com o que uniformemente tem observado a jurisprudência, mormente do Tribunal de Conflitos[17].
Com efeito, a propósito dos elementos determinativos da competência material para conhecer do litígio, MANUEL DE ANDRADE[18] nota que “são vários esses elementos também chamados índices de competência (CALAMANDREI). Constam das várias normas que proveem a tal respeito. Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um, deve olhar-se aos termos em que foi posta a ação – seja quanto aos seus elementos objetivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou ato donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjetivos (identidade das partes). A competência do tribunal – ensina REDENTI, «afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)»; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor”.
Ainda a respeito da aferição da competência, JOÃO DE CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[19] sublinham que «a situação mais frequente é constituída pelos chamados casos sic-non, que são aqueles em que os factos alegados pelo autor só permitem uma qualificação jurídica e em que o tribunal só é competente se essa qualificação couber no âmbito da sua competência material. Por exemplo: o tribunal comum só é competente se a relação alegada pelo autor puder ser qualificada como privada (e não, por hipótese, como administrativa). Os factos que relevam para a aferição da competência material do tribunal são igualmente relevantes para a apreciação do mérito da causa, ou seja, são factos duplamente relevantes; por isso, para aferir essa competência, basta pressupor a veracidade desses factos, mas, se depois de realizada a sua prova, eles não forem considerados verdadeiros, a acção é julgada improcedente. (…)
Também nos casos aut-aut e et-et basta a pressuposição da existência dos factos alegados pelo autor para aferir a competência do tribunal: o que releva, para este efeito, é apenas a qualificação jurídica desses factos. Se esses factos forem suficientes para assegurar a competência do tribunal, mas forem impugnados pelo réu, cabe ao autor fazer a prova deles (cf. art. 342.º, n.º 1, CC); na falta desta prova, a acção é julgada improcedente».
Na esteira da mais autorizada doutrina, a jurisprudência dos Tribunais Superiores, e designadamente do Tribunal de Conflitos, tem repetidamente enfatizado que «[a] competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo»[20].
A forma como as Autoras estruturaram a causa e a(s) pretensão(ões) deduzida(s), já acima consta no relatório, e foi por nós delimitada, não divergindo da forma como as próprias Apelantes a circunscrevem: as Autoras pretendem que o tribunal comum lhes reconheça o direito a exercerem a sua atividade comercial com uma amplitude que a lei lhes vedou. Para aquele efeito, pugnam pela inconstitucionalidade e ilegalidade da alteração legislativa que limitou aquela atividade tal como a exerciam, e que peticionaram, sem que, porém, esteja subjacente a esta causa um verdadeiro litígio.
Para o efeito, avançaremos desde já que os tribunais administrativos não são competentes.
Na realidade, o artigo 212.º, n.º 3, da CRP, e o artigo 1.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais[21], estabelecem respetivamente que aquela categoria de tribunais tem competência para o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, «nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto», sendo essa competência aferida à data da propositura da ação[22].
Enfatizando que o principal mérito que resultou da revisão de 2015 a respeito do artigo 4.º do ETAF, foi o de tornar claro, em termos metodológicos, que o ponto de referência para determinar se um caso concreto deve ser submetido à apreciação dos tribunais administrativos ou dos tribunais judiciais «não reside, em primeira linha, no critério constitucional da relação jurídica administrativa ou fiscal», que «passou a ser enunciado numa alínea final do n.º 1 do artigo 4.º, como um critério de aplicação subsidiária e residual», MÁRIO AROSO DE ALMEIDA[23], adverte que «o que, em primeiro lugar, cumpre indagar é se, sobre a específica matéria em causa, existe disposição legal que, independentemente desse critério, dê resposta expressa à questão da jurisdição competente», concluindo que «só em relação às matérias que, nem em legislação avulsa, nem no artigo 4.º do ETAF são objecto de específica atenção do legislador, [é] que cumpre lançar mão do critério da alínea o) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF. Isto, na prática, significa que só em relação a um universo residual de situações se torna necessário resolver a questão da delimitação do âmbito da jurisdição por aplicação directa desse critério».
Dispõe, na parte pertinente, o referido preceito legal que:
«1. Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto: d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos».
Porém, como se observa no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 09-06-2022[24], no quadro da enunciação e definição de critérios de diferenciação entre atos legislativos e atos administrativos, «não é possível proceder à impugnação direta nos tribunais administrativos de atos praticados no exercício da função legislativa, salvo se esses atos emanados sob a forma de atos legislativos contenham, todavia, decisões materialmente administrativas e que, por isso, sob o ponto de vista material não constituam atos emitidos no quadro daquela função [cfr. arts. 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP), e 52.º, n.º 1, do CPTA], (…). [E]staremos em presença de um ato materialmente legislativo quando este introduz na ordem jurídica disciplina normativa reveladora de uma opção primária e inovadora, que tem como parâmetro de validade a Constituição ou outras leis que, por força daquela, sejam pressuposto normativo necessário ou que por outras devam ser respeitadas [cfr. n.º 3 do art. 112.º da CRP], e isso «independentemente de saber se essa materialidade se exprime com caráter geral e abstrato, visando destinatários determináveis ou indetermináveis ou através de uma determinação individual e concreta» (…)».
Adverte-se ainda no citado aresto, citando SÉRVULO CORREIA e FRANCISCO PAES MARQUES[25] que “«nem a generalidade e abstração podem considerar-se propriedades necessárias dos atos legislativos, nem a individualidade e concretude são insuscetíveis de constituir traços exclusivos dos atos da função administrativa» e que a primariedade da disciplina legislativa «é inegável a sua importância na caraterização da função legislativa», sendo que é «na lei que se positiva juridicamente a definição pelo Estado dos fins últimos da comunidade que seguidamente preside ao desempenho aplicativo das funções jurisdicional e administrativa», presente que «quando se queira concentrar numa fórmula definitória … a essência da função legislativa em face das outras funções do Estado, se impõe manter as vertentes orgânica, formal e hierárquica, sem as quais esta atividade perderia a feição que a Constituição lhe confere, mas circunscrevendo-lhes o âmbito em função da primariedade da disciplina preceituada, ainda que se reconheça a presença desta também nos atos legislativos de desenvolvimento de leis», já que «em face da abertura ou incompletude dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevam, os decretos-leis … que os desenvolvem se mantêm ainda na área da definição de uma disciplina primária», tanto mais que «se a intensa especificidade da disciplina primária poderá disciplinar excecionalmente (na “lei-medida”) a generalidade e abstração do ato legislativo, estas constituirão em regra um seu atributo» dado que «a primariedade da disciplina estatuída não constitui hoje exclusivo do ato legislativo, a convocação desta para a caraterização da função legislativa só faz sentido graças à sua conjugação com os critérios formal e hierárquico», definindo a função legislativa como a «atividade estadual exercida pela Assembleia da República, pelo Governo … sob as formas de lei, decreto-lei …, consistindo na estatuição de normas jurídicas providas de superioridade hierárquica quanto a quaisquer outras normas jurídicas internas de valor infraconstitucional, caraterizadas pela primariedade da disciplina estabelecida em um só diploma ou também através de desenvolvimento de leis e princípios e bases gerais, e revestidas de generalidade e abstração a menos que a intensa especificidade de uma disciplina primária as dispense»”.
Não sofre dúvidas que as disposições legais cuja inconstitucionalidade e ilegalidade as Autoras colocam em causa, são de considerar-se como atos legislativos, estando, portanto, a apreciação da sua inconstitucionalidade e legalidade qua tal subtraída à jurisdição administrativa e à jurisdição comum, na decorrência do princípio da separação de poderes e da necessidade de distinção substancial entre as funções estaduais, e mais concretamente entre a função legislativa e a função judicial.
Consequentemente, e enquanto ato legislativo emanado do órgão competente, não pode a vontade do legislador expressa em letra de lei ser afastada pelos tribunais comuns – o que necessariamente ocorreria para dar procedência ao pedido formulado em c) –, senão no âmbito do quadro legal vigente.
A primeira instância, em decisão profusa e corretamente fundamentada com recurso aos ensinamentos da mais autorizada doutrina, afastou a competência material dos tribunais comuns para decisão dos pedidos formulados em a) e b).
Dissentem as Apelantes invocando que «[a] questão da constitucionalidade das leis cabe obviamente na competência do tribunal cível e é suscitada em concreto pelas Autoras – em concreto, na medida que diz respeito à sua atividade concreta, à atividade que estão expressamente proibidas de exercer como exerciam até à entrada em vigor da lei impugnada, melhor especificada na p.i., à propriedade que perdem, etc., entendimento extensivo às questões da ilegalidade também suscitada na p.i. As matérias de direito europeu são matérias de direito interno que cabem na competência dos tribunais portugueses, embora com reenvio em certos casos especiais».
É certo, mas, o modo como vem colocada a questão já não é o correto.
Com efeito, não se reportando a um concreto litígio, é a pretensão deduzida pelas Apelantes que não é da competência material dos tribunais judiciais, por constituir uma forma encapotada de fazer entrar pela janela aquilo a que o legislador fechou a porta.
Na realidade, a fiscalização concreta da constitucionalidade não se confunde com o facto de ser a “concreta atividade” das autoras que foi afetada pelos indicados atos legislativos. O ponto está em que, o reconhecimento do direito que as Autoras pretendem ver efetuado pelo tribunal comum, configura, em rigor, uma apreciação abstrata da constitucionalidade das normas em questão, cuja competência o legislador constituinte reservou ao Tribunal Constitucional, já que, nos termos do disposto no artigo 281.º, n.º 1, al. a) da CRP, é o Tribunal Constitucional o único órgão jurisdicional com competência para apreciar e declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das referidas normas. Porém, as entidades com poder geral de pedir a fiscalização abstrata são o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República, o Primeiro-Ministro, o Provedor de Justiça, o Procurador-Geral da República e um décimo dos Deputados à Assembleia da República, nos termos previstos no artigo 281.º, n.º 2, als. a) a f) da CRP. Como as Autoras carecem de legitimidade para tal pedido, não podem obviamente vir obter a mesma finalidade por via do seu conhecimento, ainda que incidental nestes autos, onde, como se disse e repete, não existe um litígio para dirimir.
Como impressivamente se observou no Acórdão do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 03.06.2020[26]: «(…) II - A impugnação directa da constitucionalidade e legalidade das normas, com autoridade para a declaração da sua inconstitucionalidade ou ilegalidade com força obrigatória geral, deve ser submetida, em exclusivo, à apreciação do Tribunal Constitucional, no âmbito da sua competência para a fiscalização abstracta; aos tribunais apenas compete desaplicar as normas aplicáveis à resolução das questões suscitadas nos casos concretos, com fundamento na sua inconstitucionalidade, se houver um nexo incindível entre a questão de constitucionalidade e a decisão da causa (arts.204.º, 280.º n.º 1 al. a) e 281.º n.º 1 C.R.P.)».
Subscreve-se, pois, o entendimento expresso na decisão recorrida que os pedidos formulados não reúnem os requisitos para que o Juízo Local Cível os possa apreciar, usando da competência para fiscalização concreta da constitucionalidade, nos termos do disposto nos artigos 204.º e 280.º da CRP, respigando-se os seguintes segmentos por absolutamente elucidativos do infundado da pretensão das recorrentes.
«Nas palavras de JORGE MIRANDA (Manual de Direito Constitucional, vol. III, Tomo VI, Coimbra Editora, 2014, pág. 244-245) a fiscalização concreta da constitucionalidade significa que: «a) Todos os tribunais, seja qual for a sua categoria (art. 209.º), exercem fiscalização (…); b) Por conseguinte, todos os juízes são necessariamente juízes constitucionais (…); c) A fiscalização dá-se nos “feitos submetidos a julgamento”, nos processos em curso em tribunal, incidentalmente, não a título principal; d) Ninguém pode dirigir-se a tribunal a pedir a declaração de inconstitucionalidade de uma norma, mas (…) é admissível que alguém se lhe dirija propondo uma ação tendente à declaração, à realização ou à reparação de um seu direito ou interesse, cuja procedência depende de uma decisão positiva de inconstitucionalidade; e) A questão de inconstitucionalidade só pode e só deve ser conhecida e decidida na medida em que haja um nexo incindível entre ela e a questão principal objeto do processo, entre ela e o feito submetido a julgamento; f) Trata-se de questão prejudicial imprópria, porque questão que se cumula com a questão objeto do processo e cujo julgamento cabe ao mesmo tribunal, não se devolve para outro processo ou para outro tribunal. (…); g) O juiz conhece da questão em qualquer fase do processo e, por conseguinte, a sua decisão pode não ser uma decisão final (pode ser o despacho saneador ou a decisão sobre reclamação) (…)».
Resulta, assim, das palavras do Insigne Professor, que não é constitucionalmente admissível o pedido a título principal, a um tribunal judicial, da declaração de inconstitucionalidade formulado pelas Autoras (…)
Por fim, acresce que, as normas contidas nos artigos 10.º, n.º 3, a contrario, e o artigo 117.º, n.º 1, als. u) e bb) e n.º 2, als. c) e p) até x), do RGGR, aprovado pelo anexo i do Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de dezembro, e os artigos 59.º, n.º 4, al. g), e 65.º, n.º 2 RGFER, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 152-D/2017, são lei em sentido material e em sentido formal, que provieram de órgão com competência legislativa (o Governo), nos termos do artigo 112.º, n.º 1 da CRP, aprovados ao abrigo do artigo 198.º, n.º 1, al. a) da CRP, sendo pois o seu conteúdo constituído de normas jurídicas, isto é, comandos gerais, por se dirigirem a uma generalidade de destinatários, e abstratos, por regularem um número indeterminado de casos.
Não obstante o alegado pelas AA., em sede de resposta, defendendo que cabe a apreciação da constitucionalidade das leis na competência deste Juízo Local Cível, «porquanto a mesma é suscitada em concreto pelas AA.» («em concreto, na medida que diz respeito à sua atividade concreta, à atividade que estão expressamente proibidos de exercer como exerciam até à entrada da lei impugnada, melhor especificada na p.i., à propriedade que perdem, etc., entendimento extensivo à questão da ilegalidade também suscitada»), a resposta àquela questão terá de ser negativa.
Compulsada toda a petição inicial, cuja síntese se deixou no relatório, para o qual se remete por razões de economia da presente decisão, inexiste a invocação por banda das Autoras de qualquer litígio existente entre estas e os Réus, que exija, por este Juízo Local Cível, a aplicação, num primeiro passo, das normas contidas nos artigos 10.º, n.º 3, a contrario, e 117.º, n.º 1, als. u) e bb) e n.º 2, als. c) e p) até x), do RGGR, aprovado pelo anexo i do Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de dezembro, e nos artigos 59.º, n.º 4, al. g), e 65.º, n.º 2 RGFER, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 152-D/2017, de 11 de Dezembro.
Assim, pressuposto da fiscalização concreta da constitucionalidade das normas citadas, por este Juízo Local Cível, era, como já se deixou transparecer, a existência de um «feito submetido a julgamento» (cfr. artigo 204.º da CRP), de um litígio, de um caso concreto, que exigisse, para a sua decisão, a ponderação entre a aplicação da estatuição das referidas normas, por um lado, e a apreciação conforme ou desconforme das mesmas com as normas e os princípios constitucionais que daquela aplicação resultaria, funcionando aquela aplicação ou desaplicação como resultado do pedido principal e este juízo ponderativo de constitucionalidade como efeito do pedido incidental.
Na verdade, o que sucede, é que as Autoras se limitam a peticionar, a título principal, que seja declarada a inconstitucionalidade daquelas normas, constituindo esta a questão principal objeto do processo, quando deveria constituir a questão incidental (se principal houvesse, o que não se verifica). É ostensivo que não é invocado nenhum litígio inter partes, mas sim a inconstitucionalidade propriamente dita de várias normas contidas nos referidos diplomas, o que determina a incompetência material deste Juízo Local Cível para conhecer deste pedido das Autoras».
E é por esta razão que a pretensão deduzida pelas Apelantes não pode proceder, independentemente da apresentação que do seu caso tentam fazer, agora perante este Tribunal.
Com efeito, dizem agora que os pedidos formulados em a) e b) são incidentais relativamente ao pedido formulado na alínea c). Mas a verdade é que este seria o corolário lógico da declaração de inconstitucionalidade das normas em crise e não o inverso. Estando os tribunais sujeitos à Constituição e à lei, a sua apreciação por um tribunal comum em caso de inexistência de litígio redundaria numa fiscalização abstrata da constitucionalidade, que aos tribunais comuns está vedada, por ser da competência exclusiva do Tribunal Constitucional.
Consequentemente, e sem necessidade de maiores considerações, as conclusões recursivas mostram-se deslocadas, improcedendo, pois, a apelação.
Porque vencidas, de harmonia com o princípio da causalidade previsto no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, incumbe às Autoras, ora Apelantes, suportar as custas de parte devidas neste recurso (artigos 529.º e 533.º do CPC).
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, na improcedência da apelação, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pelas Apelantes.
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Évora, 23 de novembro de 2023
Albertina Pedroso [27]
Maria Adelaide Domingos
Francisco Xavier

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[1] Juízo Local Cível de Faro – Juiz 1.
[2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.ª Adjunta: Maria Adelaide Domingos; 2.º Adjunto: Francisco Xavier.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC.
[4] Doravante abreviadamente designada CRP.
[5] Doravante abreviadamente designada LOSJ.
[6] In Manual de Processo Civil, 2.ª edição, revista e atualizada, Coimbra Editora, 1985, págs. 194, 195 e 207.
[7] In Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 4.ª edição, Almedina, 2018, pág. 165.
[8] In Manual de Processo Administrativo, 3.ª edição, Almedina, 2017, pág. 157.
[9] Proferido no processo n.º 08A2603, disponível em www.dgsi.pt, onde também se encontram acessíveis os demais arestos doravante citados sem menção de outra fonte.
[10] Proferido no processo n.º 814/16.0T8EVR.E1, relatado pelo ora 2.º Adjunto.
[11] MANUEL DE ANDRADE prefere o termo “interesse processual”, também usado por CALAMANDREI (págs. 79 e 80). MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA in “As partes, o objecto e a prova na acção declarativa”, Almedina 1998, define o interesse processual ou interesse em agir como o “interesse da parte activa em obter tutela judicial de uma situação subjectiva através de um determinado meio processual e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão dessa tutela”.
[12] Proferido no processo n.º 129/21.1T8VGS.P1.
[13] Cfr., neste sentido da necessidade de conflito de interesses, Ac. TRL de 19.01.2017, proferido no processo n.º 3583/16.0T8SNT.L1-2.
[14] Cfr. ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª Edição, Almedina, pág. 16 e seg.
[15] Cfr., a título meramente exemplificativo, e convocando anteriores arestos no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal Constitucional de 08.10.2013, proferido no processo n.º 272/12, 3.ª Secção, sendo nosso o destacado.
[16] In Manual de Processo Civil, vol. I, AAFDL EDITORA, Lisboa, 2022, págs. 141.
[17] Cfr., a título meramente exemplificativo, o recente Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 01.03.2023, proferido no processo n.º 01301/22.2T8SRE.S1.
[18] In Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, págs. 90 e 91.
[19] Obra citada, págs. 142 e 143.
[20] Cfr., Acórdão de 01.10.2015, proferido no processo n.º 08/14, e mais recentemente, evidenciando a dita uniformidade, o já acima indicado aresto.
[21] Doravante abreviadamente designado ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, retificada pela Declaração de Retificação n.º 18/2002, de 12 de abril, alterada pela Lei 107-D/2003, de 31 de dezembro, que entrou em vigor em 01.01.2004, e cuja redação atual promana da alteração introduzida pela Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro, que modificou designadamente o n.º 1 do artigo 1.º e as alíneas l) e m) do n.º 1 do artigo 4.º, e que entrou em vigor em 11 de novembro de 2019.
[22] De harmonia com o disposto no artigo 5.º, n.º 1, do ETAF, de acordo com cuja estatuição «a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente».
[23] Obra citada, pág. 160.
[24] Proferido no processo n.º 053/22.0BALSB, citando abundante jurisprudência no mesmo sentido.
[25] In “Noções de Direito Administrativo”, vol. I, 2.ª edição, (2021), págs. 40, 44, 46 e 47.
[26] Proferido no processo n.º 03337/14.8BEPRT0704/16, citado na decisão recorrida.
[27] Texto elaborado e revisto pela Relatora, e assinado eletronicamente pelos três juízes desembargadores que compõem esta conferência.