CONTRAORDENAÇÃO
DECISÃO DE APLICAÇÃO DE COIMA
NULIDADE
Sumário

I - A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do artigo 58.º, n.º 1 do R.G.C.O. constitui elemento fundamental para garantia do direito de defesa do arguido consagrado constitucionalmente (cf. art.º 32.º da Constituição) que só poderá ser efetivo com o adequado conhecimento dos factos imputados, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem.
II - A consequência da falta dos elementos essenciais que constituem a centralidade da própria decisão – sem o que nem pode ser considerada decisão em sentido processual e material – tem de ser encontrada no sistema de normas aplicável, se não direta quando não exista norma que especificamente se lhe refira, por remissão ou aplicação supletiva; é o que dispõe o artigo 41.º do R.G.C.O. sobre “direito subsidiário”, que manda aplicar, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.
III - Deste modo, a decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima (ou outra sanção prevista para uma contraordenação), e que não contenha os elementos que a lei impõe, é nula por aplicação do disposto no artigo 374.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal para as decisões condenatórias.
IV - Não estando integrados os elementos da tipicidade da contraordenação referida pela decisão administrativa, a consequência da declaração de nulidade da decisão administrativa terá de ser a absolvição, caso tenha sido realizado o julgamento, ou o arquivamento dos autos caso estejamos em sede de decisão por simples despacho.

Texto Integral

Proc. n.º 767/23.8T9VLG.P1
Tribunal de origem: Juízo Local Criminal de Valongo – J2 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto



I. Relatório:
No âmbito do Processo de Contraordenação n.º ...2..., a “Autoridade da Segurança Alimentar e Económica”, por decisão proferida a 02.11.2022, expedida por carta registada com aviso de receção a 06.12.2022, decidiu (transcrição):
“(…).
1. Face à prova produzida, e considerando que a arguida é um dos maiores grupos económicos instalados no mercado português, com mais de cerca de 25.000,00 trabalhadores e lojas distribuídas por todo o país, sendo notório que no exercício da sua atividade movimenta milhares de milhões de euros, conjugando tais factos com os princípios da adequação e proporcionalidade, decide-se condenar a arguida A..., S.A., a título de dolo, pela prática da infração de publicitar a venda com redução de preços, no pagamento de uma coima no valor de € 8.000,00 (oito mil euros);
(…).”

Notificada da decisão administrativa, a arguida apresentou, o que foi recebido a 10.01.2023, impugnação judicial, ao abrigo do disposto nos art.ºs. 59.º e seguintes do DL 433/82, de 27.10, pugnando pela nulidade da decisão condenatória proferida pela ASAE por omissão de imputação subjetiva e objetiva da infração à arguida.

O Ministério Público, a 26.01.2023, apresentou o recurso de impugnação da decisão final proferida pela ASAE, em sede de recurso contraordenacional, fazendo valer tal apresentação como acusação.

Foi proferida sentença, datada de 22.05.2023, tendo aí sido decidido (transcrição) (cf. fls. 91/92 dos autos):
“I.
Nos presentes autos de recurso de contraordenação é arguida “A..., SA”, com sede na Rua ..., Lisboa;

*
Sendo-lhe imputada a prática de factos consubstanciadores de infração ao disposto no art. 2.º, al. h) do DL n.º 28-B/2020 de 16/06 – diploma legal que estabelece o regime contraordenacional, no âmbito da situação de calamidade, contingência e alerta – punível nos termos do disposto no art. 3.º, n.º s 1, 4 e 5 do mesmo diploma legal, na sequência do que a autoridade administrativa – ASAE – lhe aplicou uma coima no valor de € 8.000,00 (oito mil euros), acrescida de custas – para o que considerou a elevada gravidade e alta censurabilidade da conduta.
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Inconformada, interpôs a arguida recurso de tal decisão, concluindo pela sua nulidade, para o que convocou, em suma, a inexistência de factos, quer no auto de contraordenação, quer na decisão administrativa, sustentando que esta última se reconduz a conclusões de Direito.
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Proferido despacho nos termos e para os efeitos do art. 64.º, n.º s 1 e 2 do RGCO, não foi deduzida qualquer oposição a que o presente recurso fosse decidido sem necessidade de realização de audiência de julgamento.
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O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio e válido.
O âmbito do conhecimento deste Tribunal assenta nas conclusões da recorrente.
II.
Dispõe o art. 58.º, n.º 1, do RGCO que a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter, entre o mais, a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas e a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão. Contrariamente ao sufragado pela recorrente, não somos a entender que a decisão administrativa – sendo esta a peça que, fazendo as vezes de uma acusação em processo penal, se nos afigura como sindicável nessa exata medida – padeça do vício que lhe assaca, e, deste modo, que seja omissa em factos propriamente ditos e pródiga em conclusões de Direito. Na realidade, e sendo certo que a referida decisão remete para os factos constantes do auto de contraordenação, da notificação da infração e da aplicação de medidas de polícia ao abrigo do DL n.º 28-B/2020 de 26/06, no que não vislumbramos uma qualquer irregularidade (veja-se a possibilidade de remissão para o auto de notícia em processo penal tramitado sob a forma sumária), o que se impunha à autoridade administrativa era a concretização do elemento subjetivo do tipo em apreço, Ora, percorrida a peça recorrida, concluímos que esta exigência se encontra satisfeita, sendo consabidos e, por isso, notórios, factos como a circunstância de a recorrente ser um dos maiores grupos económicos do país e de este se encontrar em estado de calamidade, determinante da publicação de legislação temporária que acautelasse o interesse da saúde pública, deste modo se surpreendendo explicada, em termos factuais, a negligência da conduta contraordenacional imputada.
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Ora, a primar a negligência, e reparo algum nos mereceria a decisão administrativa. Sucede que a autoridade administrativa, posteriormente aos considerandos que vimos de sumariar, se enreda numa evidente confusão entre dolo e negligência: no segmento dos factos provados integra a fórmula comummente utilizada no sentido de “a arguida ter agido de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei” (sic), própria do dolo; no segmento referente à “culpa do agente” (sic), e após repristinar aqueles mesmos considerandos, concluindo que a arguida “tinha o dever especial de cumprir todas as medidas temporárias e excecionais em vigor, o que não acautelou, colocando em risco a segurança e saúde pública, pelo que entendemos que a sua conduta é altamente censurável” – inculcando a negligência – repete a referida fórmula da atuação livre, deliberada e consciente – conforme acima notado, exclusiva do dolo; e, no segmento do dispositivo, condena a arguida “a título de dolo” (sic). É nesta dimensão que o alegado em sede recursória adquire relevo, sendo certo que a questão sempre seria de conhecimento oficioso, pois que inexistem na decisão ora em análise quaisquer factos que suportem o elemento subjetivo da contraordenação sob a forma de dolo, mas, tão-só, os suficientes para a consideração de uma atuação negligente. Verifica-se, pois, uma situação análoga à do art. 410.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal, na qual se estatui a contradição insanável (…) entre a fundamentação e a decisão.
*
A este propósito, temos como singular a exposição preconizada no Ac. do TRL de 31/10/19 (in www.dgsi.pt), que, por esse motivo, cujo sumário nos permitimos reproduzir nos seus segmentos mais relevantes: “estando em falta, na decisão administrativa, a narração de factualidade concretizadora do tipo subjetivo da contraordenação que é imputada ao arguido, esse hiato, à luz da jurisprudência fixada pelo acórdão do STJ n.º 01/2015 de 27 de Janeiro (in DR, I Série, 18, de 27/01/15), não pode ser integrado em julgamento, ou, neste caso, no recurso de contraordenação interposto para o Tribunal de 1.ª Instância e, logo, na sua decisão final, mesmo com recurso ao disposto no art. 358.º do Código de Processo Penal”, tratando-se de uma decisão “nula, porque omissa em factos concretizadores do tipo subjetivo contraordenacional imputado, e pela qual condenou, (…) [omitindo] a referência obrigatória no elenco dos factos no tocante aos elementos subjetivos, (…) sendo questão que não pode ser revertida por qualquer outro modo legal, ou seja, com a sanação de tal nulidade” (in www.dgsi.pt).
Ora, de acordo com o disposto no art. 338.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, o tribunal conhece e decide das nulidades e de quaisquer outras questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa acerca das quais não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo apreciar, afigurando-se-nos inexistir qualquer obstáculo à convocação de tal normativo legal, por remissão permitida pelo art. 41.º, n.º 1 do RGCO, por forma a encontrar arrimo para o conhecimento da nulidade decorrente da falta de fundamentação que ora se debate. Por fim, e de acordo com o art. 64.º, n.º 3 do RGCO, o despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação. Analisados os respetivos n.º s 4 e 5, somos a considerar a inaplicabilidade das correspondentes previsões a hipóteses como a sub judice, na precisa medida em que sequer se do mérito da decidido se aprecia, em homenagem ao que cremos restar, como única solução aplicável, o arquivamento dos autos, neste particular, de resto, se afastando o RGCO da lei processual penal, ao consagrar uma tal possibilidade, sendo certo que o recurso ao direito subsidiário apenas se prefigura legítimo nos moldes do n.º 1 do art. 41.º daquele primeiro diploma legal.
III.
Pelo exposto, resulta procedente a impugnação judicial em apreço, porquanto, atentos os termos conjugados do art. 58.º, n.º 1, als. c) e d), e 64.º, do RGCO e dos arts. 283.º, n.º 1, al. b) e 338.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, ex vi art. 41.º, n.º 1 do RGCO, se constata a nulidade da decisão administrativa recorrida, em consequência do que se determina o arquivamento dos autos, nos termos do art. 64.º, n.º 3 deste último diploma legal.
Sem custas – art. 93º do RGCO.
Comunique à entidade administrativa – art. 70.º, n.º 4 do RGCO. (…)”.

Desta decisão veio o Ministério Público interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 94/96 dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das seguintes conclusões:
1. O incumprimento dos requisitos descritos no nº 1 do art.º 58.º do RGCO implica a verificação da nulidade prevista no art.º 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, aplicável ao processo contraordenacional ex vi do art.º 41.º do primeiro dos referidos diplomas.
2. O Tribunal a quo decidiu tal questão por despacho, nos termos do disposto no art.º 64.º do RGCO, constatando a nulidade da decisão administrativa, nos termos conjugados do art.º 58.º, n.º 1, alíneas c) e d), e 64.º do RGCO e dos art.ºs 283.º, n.º 1, alínea b), e 338.º, nº 1, do Código de Processo Penal ex vi do art.º 41.º, n.º 1, do RGCO.
3. Ora, existindo nulidade por não se mostrarem cumpridas as formalidades descritas no art.º 58.º do RGCO, esta não está sanada, mas isso não significa que não deva ser suprida pela autoridade administrativa que inicialmente tramitou o processo, por referência ao n.º 2 do art.º 374.º do Código de Processo Penal, desde logo de harmonia com os princípios do máximo aproveitamento dos atos processuais e da economia processual.
4. Entendemos, salvo o devido respeito por opinião contrária, que o tribunal “a quo” ao declarar a nulidade da decisão administrativa com os sobreditos fundamentos, deveria, como consequência, remeter os autos à autoridade administrativa competente para sanação daquela e não, determinar o arquivamento dos autos.
5. Pelo que, deve o presente recurso ser considerado procedente, por provado e, em consequência, deve a sentença recorrida revogada, na parte que determinou o arquivamento dos autos e substituída por outra que devolva os autos à autoridade administrativa – ASAE - com vista à sanação da declarada nulidade.
6. Caso contrário, verifica-se, no nosso entendimento, a violação do disposto nos art.ºs 41.º e 58.º do Regime Geral das Contraordenações e artºs 122.º, n.ºs 1 e 2, 311.º, n.º 2, alínea a), e 3, alínea b), 374.º e 379.º, todos do Código de Processo Penal..
Termina pedindo seja a decisão recorrida revogada na parte que determinou o arquivamento dos autos e substituída por outra que devolva os autos à autoridade administrativa com vista à sanação da declarada nulidade.

Notificada das alegações de recurso, a recorrida apresentou a sua resposta, nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 98/99 dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das seguintes conclusões:
1.ª A douta sentença em crise reconheceu a existência de nulidade insanável da decisão administrativa impugnada, tendo consequentemente absolvido a recorrida;
2.ª A douta sentença recorrida efetuou correta apreciação de facto e de Direito da matéria em apreço nos autos, encontrando-se devidamente fundamentada e sustentada a decisão proferida.
3.ª Nenhum reparo merece a douta sentença recorrida, pelo que deverá ser mantida nos seus precisos termos.
Termina pedindo seja a decisão recorrida mantida nos seus precisos termos.

Neste Tribunal de recurso a Digna Procuradora-Geral Adjunta no parecer que emitiu e que se encontra a fls. 102/103 dos autos, pugna pela procedência do recurso.
Cumprido o preceituado no art.º 417.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal, nada veio a ser acrescentado de relevante no processo.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II - Fundamentação:
II.2.1. Com interesse para a decisão da questão suscitada, consideram-se provados os seguintes factos:
1) No “auto de contraordenação n. ...51”, datado de 28.12.2021, a fls. 2 dos autos, consta, para além do mais, “À data e hora acima indicadas encontravam-se a ser comercializados bens não alimentares, em venda com redução de preço, na modalidade de promoção, violando o disposto no art.º 3.º do DL 119-B/2021, de 23.12, conjugado com a norma abaixo indicada (art.º 2.º, al. h), DL 28-B/2020, de 26 junho e art.º 3.º , n.ºs 1, 4, 5, do mesmo diploma. (…)”
2) Na “Notificação da Infração e da Aplicação das Medidas de Polícia no âmbito do Decreto-Lei n.º 28-B/2020, de 26 de junho”, a fls. 3 a 6 dos autos, consta, para além do mais, “(…). No dia 28.11.2021, eu, AA, verifiquei que as instalações sitas no ponto 3 da presente notificação, exploradas por “A..., S.A.”, (…), encontrava-se em desconformidade legal como de seguida se descreve: Falta de observância da proibição de publicidade de práticas comerciais com redução de preço, que possam ter como resultado o aumento de fluxo de pessoas a frequentar o estabelecimentos, o que constitui infração de natureza contraordenacional prevista nos termos do disposto na al. h) do art.º 2.º e punida pelos n.ºs 1, 4 e 5 do art.º 3.º, todos do Decreto-Lei 28-B/2020, na sua atual redação”.
Fica, desde já, advertido que deve abster-se de praticar a conduta ilícita supra descrita, e que a eventual prática das contraordenações supra identificadas determinará a instauração do correspondente procedimento contraordenacional, que culminará na aplicação de coima entre 100,00€ a 500,00€no caso de pessoas singulares, e de 1000,00€ a 10000,00 no caso de pessoas coletivas.
Informa-se que enquanto vigorar o estado de emergência, os valores mínimos e máximos das coimas acima referidas são elevados par ao dobro nos termos do disposto no art.º 3.º-A do Decreto-Lei n.º 28-B/2020, na sua redação atual. (…)”.
3) No âmbito do Processo de Contraordenação n.º ...2..., a “Autoridade da Segurança Alimentar e Económica”, por decisão proferida a 02.11.2022, expedida por carta registada com aviso de receção a 06.12.2022, decidiu:
“I. Identificação da arguida: A..., S.A. (…);
(…).
Fundamentação da matéria de facto e de direito:
(…)
a) Factos provados:
Todos os constantes no auto de contraordenação, assim como na notificação da infração e de aplicação de medidas de polícia ao abrigo do Decreto-Lei n.º 28-B/2020, de 26 de junho.
A arguida sabia que, à data dos factos, o país encontrava-se em situação de calamidade, pelo que tinha consciência e pleno conhecimento dos vários diplomas em vigor, e as diversas alterações legislativas ocorridas na sequência da pandemia que se vivia, designadamente o Decreto-Lei n.º 119-B/2021, de 23 de dezembro.
A arguida é um dos maiores grupos económicos do país, dotada de uma estrutura interna sofisticada que lhe permite conhecer e implementar todas as obrigações legais atinentes à sua atividade económica, sabendo que, para mitigar a propagação do vírus estava vinculada ao cumprimento de deveres especiais, nomeadamente os enunciados no art.º 2.º do suprarreferido Decreto-Lei n.º 28-B/2020, de 26 de junho.
Assim, a arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
b) Factos não provados (…)
c) Motivação:
Os factos assentes resultam da conjugação dos documentos juntos aos autos, naquilo que contém de objetivo, ou seja, auto de contraordenação lavrado pela ASAE (fl. 2), notificação de infração e aplicação de medidas cautelares de polícia (fls. 3 a 6), registo fotográfico (fls. 7 a 14), folheto publicitário (fls. 15 a 34) e defesa escrita e documentos anexos (fls. 36 a 61), conjugados com as regras da experiência comum.
Como já vertido na al. a) deste ponto, a arguida é um dos maiores grupos económicos instalados no mercado português, com mais de 25.000 trabalhadores e lojas distribuídas por todo o país, dotada de uma estrutura interna que lhe permite o acompanhamento e implementação das normas legais aplicáveis à sua atividade económica, bem como das várias alterações legislativas. Por isso, não se compreende o motivo pelo qual, naquela loja, se encontrava a publicitar a venda com redução de preços numa vasta e diversificada gama de produtos, frontalmente desafiando a lei que visava evitar grandes aglomerados de pessoas e, consequentemente, a propagação do vírus.
A arguida sabia que o país atravessava um período de grande transmissão do vírus SARS-Cov2, não só em resultado do conhecimento geral sobre o assunto (face à elevada informação veiculada nos media), como também pela sua estrutura e posição no mercado português, com várias lojas, milhares de colaboradores e um contacto permanente com o público.
Dá-se, assim, como provado que a arguida sabia que, naquela data, não podia publicitar a prática de redução de preços, violando com a sua conduta esta obrigação legal.
(…).
VI. Da determinação da medida da pena
(…).
2. Da culpa do agente
A culpa do agente é aferida pelos factos e circunstâncias de tempo, de modo e lugar e que envolveram a prática da infração, bem como pelas suas consequências nos termos em que resultaram provados, atenta a natureza jurídica dos deveres que a lei pretende impor ao agente.
Nos termos do art.º 8.º do RJCE: «As contraordenações económicas são puníveis a título de dolo e, nos casos expressamente previstos, a título de negligência»
Como já supra vertido no ponto 1.c), a arguida é um dos maiores retalhistas no mercado nacional, com várias lojas espalhadas pelo país e a sua atividade pressupõe um vasto conhecimento e implementação de diversos diplomas legislativos, nomeadamente as normas atinentes à venda com redução de preços.
À data dos factos, Portugal encontrava-se numa situação de calamidade, no âmbito da pandemia da doença Covid-19, que obrigou à implementação das várias medidas excecionais para a sua mitigação. Sucede que, à medida que a doença avançava ou recuava, as medidas também eram atualizadas, o que acarretou a redação de vários diplomas legislativos.
Ora, a arguida “A...” é uma grande empresa, com um elevado grau organizacional e com uma posição influente no mercado português, dotada de diversas lojas com contacto diário e permanente com o público, nas quais é propício a ocorrência de grandes aglomerados de pessoas e, consequentemente, um elevado grau de risco de transmissão do vírus.
Assim, esta arguida tinha o dever especial de cumprir todas as medidas temporárias e excecionais em vigor, o que não acautelou, colocando em risco a segurança e saúde pública, pelo que entendemos que a sua conduta é altamente censurável.
Face ao exposto, é forçoso concluir que a arguida sabia que não podia publicitar a venda de produtos com redução de preço, agindo livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era ilícita.
(…).
VII. Decisão:
1. Face à prova produzida, e considerando que a arguida é um dos maiores grupos económicos instalados no mercado português, com mais de cerca de 25.000,00 trabalhadores e lojas distribuídas por todo o país, sendo notório que no exercício da sua atividade movimenta milhares de milhões de euros, conjugando tais factos com os princípios da adequação e proporcionalidade, decide-se condenar a arguida A..., S.A., a título de dolo, pela prática da infração de publicitar a venda com redução de preços, no pagamento de uma coima no valor de €8.000,00 (oito mil euros);
(…).”
4) Notificada da decisão administrativa, a arguida apresentou, o que foi recebido a 10.01.2022, impugnação judicial, ao abrigo do disposto nos art.ºs. 59.º e seguintes do DL 433/82, de 27.10 (cf. fls. 74 a 79).

Fundamentos do recurso:
Questões a decidir no recurso:
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (cf. art.º 412.º e 417.º do Cód. Proc. Penal e, entre outros, Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5.ª Secção).

Questão que cumpre apreciar:
- se, verificando-se a nulidade da decisão administrativa, por preterição do dever de fundamentação nos termos do art.º 58.º, n.º 1, do RGCO, pode tal nulidade ser sanada pela autoridade administrativa ou, ao contrário, determinar o arquivamento dos autos por se tratar de uma nulidade insanável.

Vejamos.
A decisão recorrida sufragou o entendimento que, ao declarar-se a nulidade da decisão administrativa por preterição do dever de fundamentação nos termos do art.º 58.º, n.º 1, do RGCO, deverá determinar-se o arquivamento dos autos por se tratar de uma nulidade insanável.
O recorrente, pelo contrário, defende que o Tribunal a quo, ao declarar a nulidade da decisão administrativa, deveria, como consequência, remeter os autos à autoridade administrativa para sanação daquela nulidade.
O art.º 1.º do Regime Geral das Contraordenações (RGCO) – DL nº 433/82, de 27.10, define contraordenação como todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima e nos termos do n.º 1 do art.º 8.º só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.
Considerando as normas legais acima citadas não poderemos deixar de concluir que um dos princípios basilares do direito contraordenacional é o princípio da culpa. E para que exista culpabilidade do agente no cometimento do facto é necessário que o mesmo lhe possa ser imputado a título de dolo ou negligência, “consistindo o dolo no propósito de praticar o facto descrito na lei contraordenacional e a negligência na falta de cuidado devido, que tem como consequência a realização do facto proibido por lei” (cf. Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, Contraordenações – Anotações ao Regime Geral, 2007, 4ª edição, pág.139).
Conforme o preceituado no n.º 1 do art.º 58.º do RGCO, a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: a) a identificação dos arguidos; b) a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas; c) a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; d) a coima e as sanções acessórias.
O RGCO não contém qualquer disposição que preveja a consequência jurídica para a preterição de algum desses requisitos.
É controvertida a questão de saber a consequência processual resultante da omissão destes requisitos.
Há quem defenda que consubstancia uma nulidade, por aplicação subsidiária dos preceitos do processo criminal relativos às decisões condenatórias, em consonância com o preceituado no artigo 41.º do RGCO, nomeadamente, o regime previsto nos artigos 374.º, n.ºs 2 e 3 e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal – neste sentido, cf. Manuel Sima Santos e Jorge Lopes de Sousa, “Contraordenações, Anotações ao Regime Geral”, 2.ª edição, dezembro de 2002, Vislis Editores, págs. 334 e 335, anot. 4.
Por outro lado, há quem defenda que consubstancia uma mera irregularidade (aplicando-se o regime previsto no artigo 123.º do Código de Processo Penal) – neste sentido, cf. António Beça Pereira, “Regime Geral das Contraordenações e Coimas Anotado”, 6.ª edição, Almedina, março de 2005, pág. 109, anot. 2.
No âmbito da primeira das posições enunciadas – aplicação do regime das nulidades da sentença – defendem os Ilustres Comentadores referidos que, além do mais, se trata de vício de conhecimento oficioso, por entenderem que, se o artigo 380.º do Código de Processo Penal ao estabelecer que o regime das irregularidades da sentença, de menor importância, compreende o conhecimento oficioso, deverá concluir-se que também valerá este conhecimento oficioso para as nulidades previstas no artigo 379.º, “pois seria incongruente um regime legal em que houvesse a preocupação de correção oficiosa de irregularidades de menor importância e não se possibilitasse ao tribunal corrigir as de maior gravidade” (cfr. ob. loc. cit.).
Entendemos que, tendo em conta que a decisão administrativa proferida em processo contraordenacional segue a estrutura da sentença em processo penal (cf. art.º 374.º do Código de Processo Penal), ainda que de forma simplificada e proporcionada à fase administrativa daquele processo, colocada a necessidade de fundamentação e radicando a mesma num incontornável direito a conhecer as razões do sancionamento, é evidente que o mesmo é comum aos dois tipos de processo, afigurando-se-nos que o incumprimento dos requisitos enumerados no n.º 1 do art.º 58.º do RGCO implica a existência de uma nulidade, nos termos do art.º 379.º do Código de Processo Penal, tal como entendeu o Tribunal “a quo”.
Estando assente, por não ter sido posto em causa pelo recorrente, que a decisão administrativa recorrida não preenche os requisitos enunciados no artigo 58.º do RGCO, por inexistirem em tal decisão quaisquer factos que suportem o elemento subjetivo da contraordenação sob a forma de dolo, vejamos, pois, qual a consequência processual dessa omissão.
De relevo para a presente decisão, haverá de ter presente a jurisprudência fixada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015 de 27 de Janeiro (in DR, 1ª Série, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015): - «[a] falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e da vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art.º 358.º do Código de Processo Penal».
Este Tribunal perfilha o entendimento segundo o qual «[a]jurisprudência fixada [pelo dito] Acórdão Uniformizador nº1/2015 não tem exclusivamente por objeto a falta absoluta, na acusação, da descrição do tipo subjetivo do crime imputado. (…)
O Acórdão Uniformizador nº 1/2015 veio fixar o sentido oposto a tal entendimento [recurso ao mecanismo do art.º 358.º, n.º 1 do Código Processo Penal], impedindo o recurso ao dito mecanismo para integrar também a deficiente descrição, por omissão narrativa, do tipo subjetivo do crime imputado, (…) e determinando, consequentemente, que a deficiente ou incompleta definição do tipo subjetivo de ilícito conduza, necessariamente, à absolvição» (aqui, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02.03.2016, no processo 2572/10.2TALRA.C2, Vasques Osório).
Deixamos aqui exarado que se concorda com o acórdão de fixação de jurisprudência acima referido, e mais entendemos que o mesmo não pode deixar de se aplicar também às contraordenações.
De facto, dispõe o art.º 58.º do RGCO que a «decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: a) [a] descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas», havendo de considerar-se tais exigências (…) satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos.
De facto, os ditos requisitos visam, precisamente, a salvaguarda da possibilidade de exercício efetivo dos seus direitos de defesa de consagração constitucional (cf. artigo 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa), que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão (Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, Contraordenações – Anotações ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas, 2.ª edição de Janeiro de 2003, Vislis Editores, p.334; assim como o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.01.2007, processo n.º 06P3202, Henriques Gaspar).
Por isso, e pese embora não se preveja no diploma legal sob análise a consequência derivada da ausência da menção dos elementos indicados, a aplicação subsidiária dos preceitos do processo criminal (ex vi artigo 41.º do referido regime) haverá de determinar a nulidade da decisão, de harmonia com o disposto no artigo 379.°, n.º 1, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal.
Em síntese «decisão administrativa que não contenha os requisitos do artigo 58.º, do referido Diploma, está ferida de nulidade, sendo-lhe aplicável a disposição do artigo 379.º, n.º 1, al. b) e c), do C.P.P., sendo estas, incontestavelmente de conhecimento oficioso pelo Tribunal» (acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.07.2011, processo n.º 990/10.5T2OBR.C1; bem como, inter alia, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.11.2009, processo n.º 686/08.8TTOAZ.P1).
Deste modo, e sem descurar que à «decisão administrativa não é exigível o rigor formal que deve informar uma decisão criminal, havendo apenas que acatar o disposto no artigo 58.º do RGCO», devendo «as exigências de fundamentação da decisão da autoridade administrativa (…) ser menos profundas do que as exigidas para os processos criminais» (acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09.07.2009, processo n.º2761/08-1) - sendo que a natureza tendencialmente mais simplificada e menos formal do procedimento contraordenacional não pode constituir justificação para a não descrição de modo compreensível do elemento subjetivo da contraordenação,–, é na própria definição do que seja uma contraordenação que se deteta tratar-se de «todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima» (artigo 1.º do R.G.C.O.), acrescentando-se que só «é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência» (artigo 8.º do mesmo diploma legal).
De facto, e como acima já deixámos expresso, «dos princípios basilares do direito contraordenacional é o princípio da culpa», sendo «necessário que [o facto] possa ser imputado a título de dolo ou negligência, consistindo o dolo no propósito de praticar o facto descrito na lei contraordenacional e a negligência na falta do cuidado devido, que tem como consequência a realização do facto proibido por lei» (acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.03.2009, processo n.º529/08.2TBTMR.C1, por apelo aos ensinamentos de Jorge Figueiredo dias, in “O Movimento da Descriminalização”, em Jornadas de Direito Criminal.
Por outras palavras, bem mais elucidativas, a «imputação de factos tem de ser precisa e não genérica, concreta e não conclusiva, recortando com nitidez os factos que são relevantes para caracterizarem o comportamento contraordenacional, incluindo as circunstâncias de tempo e de lugar», e deve, «além disso, (…) conter os elementos do tipo subjetivo do ilícito contraordenacional» (acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 06.11.2008, processo n.º 08P2804).
No caso dos presentes autos, falta, entre o indicado como provado na decisão administrativa, a narração de factualidade concretizadora do tipo subjetivo da contraordenação que é imputada, falta essa que, à luz da jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, não pode ser integrada em julgamento, ou neste caso no recurso de contraordenação interposto para o Tribunal de 1.ª instância e logo na sua decisão final, mesmo com recurso ao disposto no art.º 358.º do Código Processo Penal.
A questão da consequência da nulidade da decisão administrativa, designadamente por omissão dos factos que perfetibilizam o ilícito contraordenacional, sendo que na situação concreta está em causa a omissão do elemento subjetivo, também não se tem apresentado pacífica.
De um lado os que sustentam que a nulidade resultante da violação da alínea b), do n.º 1 do artigo 58.º do RGCOC, enquanto não contém uma descrição completa dos factos imputados, deve ser suprida pela autoridade administrativa - cf. v.g. os acórdãos do STJ de 06.11.2008 (proc. n.º 08P2804), do TRL de 28.04.2004 (proc. n.º 1947/2004-3), de 19.02.2013 (proc. n.º 854/11.5TAPDL.L1-5), do TRE de 25.09.2012 (proc. n.º 82/10.7TBORQ.E1); do outro a corrente que defende a absolvição do arguido (cf. v.g. os acórdãos do STJ de 29.01.2007 (proc. n.º 06P3202), do TRG de 19.05.2016 (proc. n.º 4302/15.3T8VCT.G1), do TRL de 31.10.2019 (proc. n.º 344/19.8T9MFR.L1-9).
Como refere o acórdão do TRL de 19.02.2013 (proc. n.º 854/11.5TAPDL.L1-5, “Se bem que a propósito do artigo 79.º do RGIT (preceito que, no que para o caso interessa, é idêntico ao artigo 58.º do RGCO), Simas Santos e Lopes de Sousa (“Contraordenações – Anotações ao Regime Geral”, Áreas Editora, 6.ª ed., 2011, págs. 431-432), defendem que “na sequência da declaração de nulidade por falta de requisitos legais de aplicação da coima (…) o processo não é necessariamente distinto, devendo ser praticados os atos necessários para que ela deixe de existir, não impedindo que venha a ser proferida nova decisão, em substituição da anterior (…), desde que a nulidade que afetava a primeira possa ser sanada na nova decisão. O desaparecimento jurídico do ato nulo e dos atos que dele dependam com repetição do ato anulado (se ele não estiver sujeito a prazo que tenha expirado) é a regra generalizada do nosso ordenamento jurídico, como pode ver-se pelos artigos 201.º, n.º 2, e 208.º do Código Processo Civil, e artigo 122.º, n.ºs 1 e 2, do C.P. Penal. Assim, se a nulidade, referente à parte administrativa do processo contraordenacional, é constatada em recurso judicial da decisão de aplicação de coima, não deve ser decidida a absolvição da instância, mas sim a remessa do processo à autoridade administrativa para eventual sanação.”
No mesmo sentido, escreve Pinto de Albuquerque: “O tribunal pode, no exercício dos seus poderes de controlo da legalidade, ainda declarar a nulidade da decisão administrativa recorrida e ordenar a remessa dos autos à autoridade administrativa competente para a sanação do vício” – [cf. “Comentário do Regime Geral das Contraordenações”, Universidade Católica Editora, 2011, pág. 263].
Com todo o respeito pela posição em contrário e sem nos afastarmos da corrente que vê a violação do artigo 58.º, n.º 1 do RGCC (maioritariamente por aplicação do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, ex vi do artigo 41.º do RGCO) como originando a nulidade da decisão administrativa, afigura-se-nos que a consequência há de ser a absolvição (caso estejamos em sede de julgamento).
Assim o entendeu o acórdão do STJ de 29.01.2007 (proc. n.º 06P3202) ao referir: “A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do artigo 58.º, n.º 1 do RGCOC constitui, também, elemento fundamental para garantia do direito de defesa do arguido, que só poderá ser efetivo com o adequado conhecimento dos factos imputados, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem.
A consequência da falta dos elementos essenciais que constituem a centralidade da própria decisão – sem o que nem pode ser considerada decisão em sentido processual e material – tem de ser encontrada no sistema de normas aplicável, se não direta quando não exista norma que especificamente se lhe refira, por remissão ou aplicação supletiva; é o que dispõe o artigo 41.º do RGCOC sobre “direito subsidiário”, que manda aplicar, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.
Deste modo, a decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima (ou outra sanção prevista para uma contraordenação), e que não contenha os elementos que a lei impõe, é nula por aplicação do disposto no artigo 374.º, n.º 1, alínea a) do CPP para as decisões condenatórias.
(…)
Não estando integrados os elementos da tipicidade da contraordenação referida pela decisão administrativa, a consequência terá de ser a absolvição.”
Seguindo o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido a 11.11.2020, no âmbito do processo n.º 351/19.0T8MBR.C1, que sufragamos, “Se quisermos estabelecer o paralelo com o que sucede ao nível do processo criminal, equivalendo a decisão administrativa, quando judicialmente impugnada, à acusação, então temos de reconhecer que uma acusação manifestamente infundada, por omissa quanto à narração (completa) dos factos e que não obstante ultrapasse o crivo do artigo 311.º do CPP, mais tarde, realizado o julgamento, só pode conduzir à absolvição. Na verdade, sempre entendemos não ser possível na falta de descrição de todos os elementos do ilícito típico o tribunal socorrer-se dos institutos prevenidos nos artigos 358.º/359.º do CPP para transformar em crime aquilo que, à luz da acusação/pronúncia, o não era; pensamento este que resultou ainda mais fortalecido com a jurisprudência fixada no Acórdão Uniformizador n.º 1/2015”.
Dada a natureza sancionatória do processo por contraordenação, não se vislumbra motivo válido para que semelhante orientação não seja seguida no âmbito do mesmo, sendo certo que a questão não pode, ao nível das consequências ser encarada como o que se passa com os vícios, designadamente da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Trata-se de problemática que se coloca a montante do vício, produzindo um efeito /consequência) muito mais definitivo, no caso a absolvição.
Em boa verdade, a equivalência da decisão administrativa, se judicialmente impugnada, à acusação transporta-nos para a disciplina do artigo 283.º do Código Processo Penal enquanto comina de nulidade a acusação que não contiver a narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança; patologia esta, que, respeitando à ausência de descrição completa dos elementos constitutivos do crime, não pode vir em momento processual subsequente a ser colmatada, não se vendo razão para que o mesmo não seja aplicável ao ilícito contraordenacional.
Assim, tal como se decidiu no acórdão da Relação de Guimarães de 19-05-2016, que sufragamos:
«1 - A decisão da autoridade administrativa é suscetível de impugnação judicial, impugnação essa que, apresentada, embora, àquela, é enviada para o Ministério Público que, se a tornar presente ao juiz, vale como acusação.
2 - Valendo, em face da lei, após apresentação judicial, como acusação, se tal decisão for omissa quanto a factos, não se lhe deve aplicar o regime legal supletivo vigente para a sentença que omita a fundamentação.
3 - Nessa medida, considerando-se a decisão administrativa/acusação manifestamente infundada, se o juiz não decidir o arquivamento por despacho, na sentença proferida após julgamento, deverá absolver o arguido da prática da contraordenação que lhe foi imputada.».
Aplicando esse entendimento ao caso dos autos, e porque nos encontramos em sede de decisão por simples despacho, a declaração de nulidade da decisão administrativa determina o arquivamento dos autos.
Assim, e por força do que se deixa expresso, a decisão recorrida deverá manter-se, julgando-se, por isso, improcedente o recurso apresentado.

III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.

Sem custas.


Porto, 8 de novembro de 2023
(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)
Paula Natércia Rocha
Maria Joana Grácio
José Quaresma