CONTRATO-PROMESSA
RESOLUÇÃO
ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS
COVID-19
EXISTÊNCIA DE SINAL
Sumário

1.–As sanções previstas no art. 442º do CC (antes ou depois da redação dada pelo DL. 379/86 de 11.11) só se aplicam no caso de incumprimento definitivo e não no caso de simples mora.

2.–A possibilidade de resolver o contrato por alteração das circunstâncias representa um desvio ao princípio do cumprimento pontual dos contratos estabelecido no art. 406º, nº 1, do CC, daqui decorrendo que compete à parte que queira prevalecer-se de uma alteração das circunstâncias a alegação e prova dos elementos constitutivos da respetiva previsão.

3.–A crise COVID-19 configura uma alteração anormal das circunstâncias, tornando-se necessário que a parte que pretenda valer-se do instituto em causa demonstre que a situação pandémica causou uma alteração anormal e imprevisível das circunstâncias, provocando-lhe um dano grave, de tal modo que, a exigência a essa parte, do cumprimento das obrigações assumidas, contraria gravemente a boa-fé.

4.–Apenas quando verificado o preenchimento dos mencionados pressupostos, terá a parte lesada direito à resolução (ou à modificação) do contrato segundo juízos de equidade, e desde que não se encontre em mora no momento em que a alteração das circunstâncias ocorreu.

5.–Tendo o sinal natureza real, só existe quando se tenha efetuado a sua entrega, exceto se, convencionalmente, as partes acordarem expressamente que o quantitativo prometido (originariamente ou em aditamento àquele que já tiver sido prestado) se destina a fixar, independentemente da sua entrega, o montante da indemnização ou o preço da desistência do contrato.

6.–Não havendo sinal passado, a indemnização a pagar ao contraente não faltoso apura-se de harmonia com as regras gerais da responsabilidade civil e tende a cobrir os danos efetivos causados pelo incumprimento do contrato.

7.–Embora o art. 5º, nº 3, do CPC, estabeleça que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, só o pode fazer tendo em conta a factualidade alegada e provada, e dentro dos limites do efeito prático jurídico pretendido pelas partes.

Texto Integral

Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


RELATÓRIO


Em 16.9.2020, R intentou contra JJ e VI, ação declarativa de condenação sob a forma comum, pedindo que a ação seja julgada procedente, e, consequentemente: a) seja declarado resolvido o Contrato Promessa de Compra e Venda celebrado entre o A. e os RR., em resultado do incumprimento culposo imputável aos RR.; b) sejam condenados os RR. a pagarem ao A. as quantias acordadas a título de sinal e princípio de pagamento e de reforço de sinal, no valor total de € 43.500,00 (quarenta e três mil e quinhentos euros); c) sejam condenados os RR. a pagarem ao A. juros de mora à taxa legal, a contar do dia da constituição em mora até efetivo e integral pagamento.

A fundamentar o peticionado, alegou, em síntese:
Em 20.2.2020, o A. e o R. celebraram um contrato promessa de compra e venda, em que aquele prometeu vender e este prometeu comprar a fração autónoma destinada a habitação, designada pela letra “AAS” correspondente ao 5.º andar C, no Bloco Três, com um estacionamento na terceira cave com o n.º 65 e uma arrecadação na mesma cave com o n.º 67, do prédio sito na Avenida xxx, em Cascais, descrita na CRP de Cascais, sob o n.º xxx, pelo preço de €435.000,00.
Conforme clausulado, o R. devia pagar ao A. a quantia de €32.625,00, no dia 20.2.2020, a título de sinal e princípio de pagamento,  e a quantia de €10.875,00, em 20.3.2020, a título de reforço de sinal, ficando de pagar a restante parte do preço, no valor de €391.500,00, na data de realização da escritura, que se deveria ter realizado até ao dia 06.5.2020, ficando a sua marcação a cargo do R.
No dia da outorga do cpcv, 20.2.2020, o R. transmitiu que iria fazer o pagamento relativo ao valor do sinal por transferência bancária, uma vez que não tinha na sua posse qualquer cheque para o efeito, mas não o fez nesse dia nem em qualquer outro, tal como não pagou o reforço de sinal acordado, não obstante instado para o efeito várias vezes, nem marcou a escritura até à data aprazada.
O A., que habitava com a família no imóvel prometido vender, após a assinatura do cpcv, arrendou um apartamento no Monte Estoril, pela renda mensal de €1.200,00, para o qual se pretendia mudar no dia 1.4.2020, tendo pago a quantia de €3.600,00, relativa à 1ª renda e caução, desmontou móveis, desarrumou objetos e roupas e embalou tudo em caixas, com a finalidade de desocupar o imóvel prometido vender e proceder à mudança de casa.
Perante a passividade do R., no dia 26.6.2020, o A. enviou uma comunicação aos RR. interpelando-os e dando-lhes prazo para procederem à marcação da escritura, respondendo-lhe o R., 8.7.2020, comunicando a resolução do cpcv com fundamento na situação de pandemia provocada pelo Covid 19.
O A. não aceita o fundamento invocado pelo R., pois podiam os RR. ter comunicado atempadamente ao A. as suas alegadas dificuldades financeiras para concretizar o negócio ou quaisquer outras preocupações nesse sentido, tanto mais que são vizinhos, pois residem no mesmo prédio.
O R. constituiu-se em mora ao não entregar o sinal e reforço do mesmo, e ao não marcar a escritura, tendo-se a mesma convertido em incumprimento definitivo com a interpelação admonitória feita pelo A.
Com o seu incumprimento, os RR. provocaram prejuízos ao A., que pagou rendas do apartamento que arrendou, desmontou e embalou todo o recheio do imóvel, tendo retirado o imóvel do mercado com a outorga do cpcv, ficando assim privado da possibilidade de encontrar outro comprador.
Os valores convencionados a título de sinal e reforço de sinal, correspondentes à quantia global de € 43.500,00, apesar de não terem sido entregues pelo R. ao A., balizam necessariamente a medida encontrada pelas partes para efeitos do montante indemnizatório devido pelo incumprimento.
Citados, os RR. contestaram, por exceção, invocando a ilegitimidade da R., e por impugnação, e, subsidiariamente, as exceções de abuso de direito e de nulidade do negócio, e terminam pugnando pela improcedência da ação, absolvendo-se os RR. do pedido, sendo, desde logo, conhecida a exceção dilatória de ilegitimidade e absolvida a 1ª R. da instância, e, em qualquer caso, e caso assim não entenda, julgadas procedentes as exceções perentórias deduzidas, absolvendo-se os RR. do pedido.
Convidado a pronunciar-se sobre as exceções deduzidas, o A. pronunciou-se no sentido da sua improcedência.
Foi proferido despacho saneador, que julgou improcedente a invocada exceção de ilegitimidade da R., e dispensou a identificação do objeto do litígio e dos temas da prova, atenta a simplicidade da causa.
Procedeu-se a audiência de julgamento, e em 19.4.2023, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, por não provada, e, em consequência, absolveu os RR. do pedido.
Inconformado com a decisão, apelou o A., formulando, no final das respectivas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
1.– Salvo o devido respeito, a Sentença ora impugnada incorreu em erro na apreciação da prova e na aplicação do direito, quando decidiu julgar a ação improcedente, por não provada, e, em consequência absolver os Réus do pedido, com o fundamento de que “(…) Os factos provados configuram que entre o A. e o 1º R. foi celebrado um contrato de promessa de compra e venda de imóvel (artº 410º do CC), sem tradição da coisa, e sem entrega de qualquer valor a título de sinal. (sublinhado nosso).
2.– O Tribunal a quo incorreu em erro na apreciação da matéria de facto, desde logo, porque dos factos provados resulta que entre Autor e Réu, respetivamente Recorrente e Recorrido, foi celebrado um Contrato Promessa de Compra e Venda (CPCV), que previa o pagamento de uma verba a título de sinal e princípio de pagamento e de uma outra a título de reforço desse mesmo sinal.
3.– In casu, além dos factos provados 1 a 4, elencados na Sentença, resulta claro que a 20/02/2020, aquando da assinatura do CPCV, o Réu/ Recorrido assinou o contrato em causa e “(…) transmitiu que iria fazer o pagamento relativo ao valor do sinal por transferência bancária, uma vez que não tinha na sua posse qualquer cheque para o efeito, cfr. facto provado 7. (sublinhado nosso).
4.Assim, o Réu/Recorrido não disse que não pagaria o sinal, mas sim que o faria por transferência bancária.
5.Convencido de que o Réu/Recorrido se pautava por princípios de boa fé, o Autor/Recorrente iniciou contactos com vista a encontrar um apartamento para arrendar, já que a sua casa morada de família era o objeto do CPCV, acabando por celebrar Contrato de Arrendamento a 26/02/2020, seis dias após a assinatura do CPCV, cfr. facto provado 11.
6.Sendo que o Autor/Recorrente pagou de imediato as rendas dos meses de abril e maio e a caução, tudo no valor de €3.600,00 (três mil e seiscentos euros), cfr. factos provados 11 e 12.;
7.E embalou alguns dos seus bens em caixas, preparando a sua saída do imóvel prometido vender.” (cfr. facto provado 13), sempre na expetativa do cabal cumprimento do CPCV por parte do Réu/Recorrido.
8.Sucede que nem no dia da assinatura do CPCV, nem em qualquer outro momento, o Réu/Recorrido fez a prometida transferência bancária para o Autor/Recorrente, cfr. facto provado 8;
9.E que apesar de instado para proceder ao pagamento dos valores correspondentes ao sinal e respetivo reforço, o Réu/Recorrido nunca o fez, (cfr. facto provado 9).
10.Também não procedeu à marcação da escritura de compra e venda do imóvel prometido vender, que deveria ter sido marcada pelo Réu/Recorrente até 06/05/2020, (cfr. factos provados 6 e 10).
11.Saliente-se que in casu, o Réu/Recorrido assumiu que iria proceder ao pagamento do sinal por transferência bancária, o que não se verificou, assim como também não se verificou o pagamento do reforço do sinal e a marcação da escritura de compra e venda (cfr. factos provados 9 e 10), constituindo fundamento bastante para que o Autor/Recorrente tivesse invocado a resolução do CPCV com base em incumprimento imputável ao Réu/Recorrido.
12.O Tribunal a quo desvalorizou a questão do tempo que mediou a assinatura do CPCV em 20/02/2020, dia em que o Réu/Recorrido, não tendo cheques, garantiu que pagaria o sinal por transferência bancária e a comunicação, em 08/07/2020, da resolução do CPCV com fundamento em dificuldades económicas provocadas pela pandemia Covid 19, em resposta à comunicação que o Autor/Recorrente enviou a 26/06/2020.
13.Considerados provados os factos supra identificados, deveria o Tribunal a quo ter declarado resolvido o CPCV, em resultado do incumprimento culposo imputável ao Réu/Recorrido e condená-lo no pagamento das quantias acordadas a título de sinal e de reforço de sinal, no valor total de €43.500,00 (quarenta e três mil e quinhentos euros) ou, caso assim se não considere, pelo menos no montante correspondente aos gastos em que o Autor/ Recorrente incorreu, e que resultam do facto provado 12.
14.O Tribunal a quo não relevou a questão relativa à confirmação pelo Réu/Recorrido de que iria proceder ao pagamento do sinal e princípio de pagamento.
15.Violou assim o artigo 608.º, n.º 2, do CPC, ferindo a Sentença ora impugnada de nulidade por omissão de pronúncia, prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC.
16.Não podia o Tribunal a quo ter-se furtado à apreciação da questão, porquanto a reiteração do pagamento do sinal por outro meio de pagamento assumiu autonomia alegatória em termos de invocação plurima de causas de pedirnas palavras de Abílio Neto 1.
17. Nos termos do artigo 405.º, n.º 1, do CC, são efetivamente as partes livres de celebrar ou não os contratos que bem entenderem, desde que cumpram com o artigo 227.º, n.º 1 do CC: Quem negoceia com outrem para a conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte.
18.Resulta dos factos provados que o CPCV previa o pagamento de sinal, e que, embora não tivesse sido pago aquando da sua assinatura, foi reiterada a intenção de pagamento pelo Réu/Recorrido.
19.Apesar de A simples entrada em negociações não pode[r] ser tida como idónea para criar na outra parte uma convicção séria e fundada de conclusão do contrato”, Diferente é a situação quando no decurso das negociações preliminares uma das partes assumiu um comportamento que razoavelmente criou na outra parte a convicção de que o contrato se formaria, assim a predispondo a ações ou omissões que não teria adotado se não tivesse aquela conclusão como certa.”, salienta o STJ 2.
20.Não tendo o Tribunal a quo apreciado se o Réu incorreu em responsabilidade pré-contratual, violou, desde logo, o artigo 227º, nº 1 do CC, e o artigo 608º, nº 2, do CPC, que dispõe que cabe ao juiz resolver todas as questões colocadas pelas partes.
21.Sendo que a Sentença considerou provados os factos 7 a 9 (compromisso assumido pelo Réu de que faria o pagamento do sinal por transferência bancária), 6, 10, 14 e 15 (cronologia temporal dos acontecimentos, que retrata a mora do Réu) e os factos 11 a 13 (gastos efetuados pelo Autor com o Contrato de Arrendamento que foi obrigado a celebrar), deveria ter apreciado a culpa in contrahendo do Réu.
22.Não o tendo feito, e limitando-se a concluir que “(…) o A. Não tem direito a fazer seu o sinal, por o mesmo não existir nem de pedir qualquer outra indemnização.”, a Sentença que ora se impugna está ferida de nulidade, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), porquanto violou o artigo 608º, nº 2, do CPC e o artigo 227º, nº 1 do CC.
23.Contrariamente ao decidido na Sentença em crise, o Réu/Recorrido não podia resolver o CPCV com fundamento em alteração substancial das circunstâncias.
24.Desde logo, porque estando o Réu em mora quanto ao solicitado sinal e reforço do  sinal, a resolução por alegada alteração anormal das circunstâncias lhe estava vedada.
25.Acresce que face à passividade do Réu, a quem competida a marcação da escritura, é o Autor que em 26/06/2020 enviou uma comunicação ao Réu, interpelando-o e dando-lhe prazo para o efeito (cfr. facto provado 14), sendo que apenas aquando da resposta a esta comunicação é que o Réu, por carta datada de 08/07/2020, alega alteração significativa das circunstâncias e resolve o CPCV.
26.Embora a Sentença ora colocada em crise tenha dado como provados os factos 14 e 15, não apreciou a questão relativa à obrigação do Réu/Recorrido de marcar a escritura definitiva até 06/05/2020, nem apurou das eventuais dificuldades económicas originadas pelo Covid 19, assim como também não se pronunciou sobre a circunstância de o Réu ter invocado esse fundamento que alegadamente sustentou a resolução concretizada na resposta à comunicação efetuada pelo Autor, apenas em 08/07/2020.
27.Embora a crise económica resultante da pandemia originada pelo Covid 19 possa ter provocado desequilíbrios económicos suscetíveis de provocarem alterações anormais das circunstâncias, da Sentença ora impugnada não resulta a indispensável correlação direta e demonstrada factualmente entre a crise económica e a situação concreta do Réu.
28.Até porque até ser interpelado para o cumprimento do CPCV, nunca o Réu/Recorrido invocou quaisquer dificuldades na obtenção de crédito bancário para a aquisição do apartamento ou quaisquer outras razões relacionadas com a situação gerada pelo Covid 19, isto apesar da Organização Mundial de Saúde ter declarado, logo no dia 30 de janeiro de 2020, o surto como caso de emergência de saúde pública internacional e, no dia 11 de março de 2020, como pandemia.
29.Assim, não resultando provado que a degradação da capacidade económica do Réu se tenha ficado a dever à crise económica, não está configurada a previsão do nº 1 do artigo 437º do CC, pelo que deve a Sentença ser revogada relativamente a esta questão.
30.Caso se entenda que os argumentos esgrimidos supra carecem de fundamento, sempre se dirá que se impunha equacionar o direito à indemnização nos termos gerais, nos termos do disposto no artigo 801º, nº 2, do CC.
31.Pelo que conclui que esteve mal o Tribunal a quo quando decidiu que Não tendo sido pago qualquer sinal o A. não tem direito a fazer seu o sinal, por o mesmo não existir nem de pedir qualquer outra indemnização por tal não ter sido convencionado.”, cfr. a fls. 6. (sublinhado nosso).
32.Configurando o Tribunal a quo a situação sub judice como não tendo havido lugar a perda de sinal, por se considerar não ter existido entrega de qualquer valor a título de sinal”, não deveria ter sido aplicada a limitação prescrita no artigo 442º, nº 4, do CC, impondo-se antes equacionar o direito à indemnização peticionada pelo Autor/Recorrente, nos termos gerais.
33.Neste sentido aponta atualmente a maioria da doutrina e jurisprudência, salientando-se Romano Martinez3 e Menezes Cordeiro4, sintetizando este último que Perante o moderno Direito das obrigações, não é possível vir afirmar que a resolução destrói retroativamente o contrato, suprimindo todas as obrigações dele derivadas.
34.A resolução apenas visa suprimir o dever de prestar principal do contraente fiel, perante o incumprimento definitivo do dever de prestar principal a cargo do contraente faltoso (…). Quer dizer que a resolução apenas põe termo aos deveres de prestação principais. Todos os demais deveres envolvidos, secundários e acessórios se mantêm.”, conclui Menezes Cordeiro.
35.Tendo em conta que nos presentes autos resultaram provados (cfr. factos 11 e 12) os danos resultantes do incumprimento definitivo por parte do Réu/Recorrido, o Tribunal a quo deveria ter optado pela tese da admissibilidade da cumulação da resolução com a indemnização, na medida em que é esta que melhor corresponde ao primado da responsabilidade civil contratual e da sua função na reintegração dos interesses da parte lesada pela frustração das negociações.
36.Pelo que se conclui que a Sentença impugnada deve ser revogada, devendo julgar-se totalmente procedente os pedidos do Autor/Recorrente.
Termina pedindo que a decisão recorrida seja alterada.

O R. contra-alegou pugnando pela improcedência da apelação, e manutenção da decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões, que se reproduzem:
A.Os fundamentos do recurso que o recorrente intitula de factos provados não cumprem o ónus de alegação que cabe ao recorrente, quer nos termos do artigo 639º quer nos termos do artigo 640º do CPC.
B.Não compete a esta Veneranda Instância apreciar novas convicções que não resultem diretamente da matéria provada, sem prejuízo do direito de a impugnar que não foi, pelo menos em termos bastantes, exercido.
C.Pelo que o douto recurso deverá, salvo melhor entendimento, ser, nesta parte, indeferido.
D.Por outro lado, é certo que foi celebrado um contrato promessa sem tradição da coisa nem entrega de valor a título de sinal – apesar de o ora recorrente se insurgir contra tal julgamento tal resulta inequívoco da própria factualidade assente.
E.Na verdade, parece-nos certo – e não se trata de factualidade nova, por resultar do conhecimento comum – que o não pagamento do sinal tem normalmente efeito resolutivo no contrato promessa, sendo uma legítima expetativa das partes,
F.Como, aliás, não seria em absoluto normal, face a um padrão comum, que o A. não recebendo o sinal nada fizesse e deixasse o contrato perdurar,
G.Mas também que ainda que assim não se entendesse, ou se as partes pretendessem atribuir efeito cominatório diverso o contrato deveriam dispor nesse sentido,
H.Ora, o artigo 442º do C.C. é claro na sua redação, designadamente no seu nº 2: “se quem constituir o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue”
I.Também a cláusula sétima do contrato junto com a P.I. como doc. 1, no seu nº 2 é clara – o único direito que assiste ao A. é de fazer seus os valores que lhe foram entregues pelo R.,
J.Não tendo sido entregues quaisquer valores e não prevendo a lei nem o contrato quaisquer consequências adicionais, não deverá haver lugar ao pagamento de qualquer indemnização.
K.Por outro lado, da factualidade genericamente referida a título de prejuízos nada se consegue inferir que permita uma ligação minimamente sólida dos factos à conduta do ora recorrido, sendo que tal circunstância se afere pela P.I., pelo que cairia qualquer nexo de causalidade, não se verificando, aliás qualquer dos pressupostos da responsabilidade civil.
L.Nem sequer vindo nada peticionado a tal propósito, pelo que também por esta via não poderia proceder qualquer pedido, M. Sem conceder, o ora recorrido criou a convicção legítima de que o contrato havia cessado, bem como os seus efeitos.
N.Agindo em manifesto abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium,
O.Encontrando-se os requisitos preenchidos, visto que a A. criou uma relação de confiança levando a R. a investir na mesma.
P.Tendo sempre agido de determinada forma, para depois, sem que nada o fizesse prever veio, inesperadamente e em contradição com o comportamento assumido anteriormente,
Q.E também sempre se lembre que considerado o facto provado 16 crê-se., modestamente, que a questão da subsistência do contrato e da aplicação da cominação indemnizatória que o ora recorrente pretende também ficaria, irremediavelmente, prejudicada.
R.Por fim, o douto acórdão também não poderá, salvo melhor entendimento desta Veneranda Instância, apreciar novos pedidos, pelo que os pontos 2 e 4 dos fundamentos do recurso – e as respetivas conclusões a propósito - não deverão, salvo o devido respeito, ser admitidos,
S.E no que toca ao ponto 3, resulta prejudicado, como explica a douta sentença,
T.Mas que ainda assim resulta da factualidade constante dos autos, a alteração manifestamente anormal, imprevisível e não contemplada nos riscos normais do negócio.
U.Pelo que se encontram preenchidos os requisitos do artigo 437º do C.C.

QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões do recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC) as questões a decidir são:
a)- do incumprimento contratual do R. e do direito do A. a resolver o cpcv – consequências;
b)- da culpa in contrahendo e da nulidade da sentença recorrida;
c)- da não verificação da alteração substancial das circunstâncias;
d)- subsidiariamente, do direito à indemnização nos termos gerais.

Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos. 
    
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos, que não são objeto de impugnação:
1O Autor e o Réu celebraram um documento escrito que denominaram de Contrato Promessa de Compra e Venda, em que o primeiro prometeu vender e o segundo prometeu comprar a fração autónoma destinada a habitação, designada pela letra “AAS” correspondente a um apartamento destinado a habitação – 5.º andar C – no Bloco Três, com um estacionamento na terceira cave com o n.º 65 e uma arrecadação na mesma cave com o n.º 67, do prédio designado por lote 19/20, sito na Avenida xxx, em Cascais, que se encontra descrita na Conservatória do Registo Predial de Cascais, sob o n.º xxx e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo xxx, AAS, da União de Freguesias de Cascais e Estoril, com a licença de utilização n.º xxx, emitida pela Câmara de Cascais em 13 de agosto de 1994.
2Com a celebração do referido documento escrito, no dia 20 de Fevereiro de 2020, o Réu prometeu comprar ao Autor o imóvel supra descrito pelo preço de €435.000,00 (quatrocentos e trinta e cinco mil euros).
3Por conta desse preço, acordaram que o Réu pagaria ao Autor a quantia de €32.625,00 (trinta e dois mil seiscentos e vinte e cinco euros) no dia 20 de Fevereiro de 2020, a título de sinal e princípio de pagamento.
4E a título de reforço de sinal e princípio de pagamento o Réu pagaria ao Autor, no dia 20 de Março de 2020, a quantia de €10.875,00 (dez mil oitocentos e setenta e cinco euros), a título de reforço de sinal e princípio de pagamento.
5Ficando o Réu de pagar ao Autor a restante parte do preço, no valor de €391.500,00 (trezentos e noventa e um mil e quinhentos euros), na data da realização da escritura pública de compra e venda.
6Escritura essa que se deveria ter realizado até ao dia 06 de Maio de 2020, sendo que a sua marcação ficou a cargo do Réu, ficando estipulado que para o efeito deveria notificar o Autor “do dia, hora e Cartório Notarial em que a mesma terá lugar, mediante carta registada com a antecedência mínima de 8 (oito) dias.”.
7No dia 20 de Fevereiro de 2020, aquando da assinatura do acordo escrito celebrado entre A. e R., o Réu, transmitiu que iria fazer o pagamento relativo ao valor do sinal por transferência bancária, uma vez que não tinha na sua posse qualquer cheque para o efeito.
8–Porém, nem no dia da assinatura do referido acordo escrito, nem em qualquer outro momento, o Réu fez a prometida transferência bancária para o Autor.
9Instado para proceder ao pagamento dos valores de €32.625,00 (trinta e dois mil seiscentos e vinte e cinco euros) e de €10.875,00 (dez mil oitocentos e setenta e cinco euros), correspondentes ao sinal e respetivo reforço, o Réu nunca o fez.
10O Réu também não procedeu à marcação da escritura de compra e venda do imóvel prometido vender, que deveria ter sido realizada até ao dia 06 de Maio de 2020.
11O Autor, que habitava com a família no imóvel prometido vender, após a assinatura do Acordo escrito celebrado com o Réu, celebrou um acordo escrito denominado de contrato de arrendamento de um apartamento no Monte Estoril, pela renda mensal de €1.200,00 (mil e duzentos euros).
12–Resulta de tal acordo escrito (de arrendamento) que o celebrou no dia 26 de Fevereiro de 2020, que o Autor pagaria a quantia de €3.600,00 (três mil e seiscentos euros) relativa à primeira renda e caução, valor que transferiu para o IBAN que consta do acordo escrito denominado de contrato de arrendamento.
13–O A. embalou alguns dos seus bens em caixas, preparando a sua saída do imóvel prometido vender.
14Perante a passividade do Réu, a quem competia a marcação da escritura de compra e venda do imóvel em causa, o Autor, no dia 26 de Junho de 2020, enviou uma comunicação aos Réus interpelando-os e dando-lhes prazo para o efeito.
15O Réu respondeu a 08 de Julho de 2020, comunicando a resolução do Contrato Promessa de Compra e Venda com fundamento na situação de pandemia provocada pelo Covid 19.
16Ficou consignada no contrato a essencialidade da obtenção de financiamento bancário, que o R. não obteve uma vez que os pressupostos para o pedir ficaram afetados pela situação pandémica (Covid 19).
*

E considerou como não provados os seguintes factos:
1– O A. pretendesse mudar-se para o apartamento referido em 11 dos factos provados no dia 01 de Abril de 2020.
2 O Autor tenha desmontou móveis e embalados tudo em caixas, com a finalidade de desocupar o imóvel prometido vender e proceder à mudança de casa.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Nos presentes autos, o A. peticiona a resolução do cpcv celebrado com o R., invocando incumprimento definitivo e culposo dos RR., e a condenação destes a pagarem-lhe as quantias acordadas a título de sinal e reforço de sinal que nunca pagaram, sustentando carecer de fundamento a resolução efetuada pelos RR.
O tribunal recorrido julgou improcedente a pretensão do A., com os seguintes fundamentos jurídicos: “Nos termos do disposto no artº 342º do Código Civil, àquele que invocar um direito cabe a prova dos factos constitutivos do direito alegado, enquanto que a prova dos factos modificativos ou extintivos do direito invocado competem àquele contra quem a invocação é feita. Resulta do disposto no artº 405º nº1 do Cód. Civil que “Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver” . Os factos provados configuram que entre o A. e o 1º R. foi celebrado um contrato de promessa de compra e venda de imóvel (artº 410º do C.C.), sem tradição da coisa, e sem entrega de qualquer valor a título de sinal. O R. resolveu o contrato de promessa de compra e venda, sendo que o promitente vendedor (A.) poderia fazer seu o sinal entregue, se este tivesse sido entregue pelo comprador (R.) (artº 442º nº2 do CC), não havendo lugar a qualquer outra indemnização, uma vez que tal não foi convencionado (cfr. artº 442º nº4 do CC) e, assim sendo, o A. teria direito a pedir a resolução do contrato se o mesmo não tivesse já sido resolvido pelo R., o que torna o pedido de resolução do contrato inútil. Não tendo sido pago qualquer sinal a A. não tem direito a fazer seu o sinal, por o mesmo não existir nem de pedir qualquer outra indemnização por tal não ter sido convencionado.”.
Insurge-se o apelante contra o decidido, sustentando:
- no cpcv celebrado entre as partes, foi convencionado o pagamento de sinal, e o R. assumiu que o ia pagar por transferência bancária, o que não se verificou, como também não se verificou o pagamento do reforço do sinal, e a marcação da escritura, constituindo fundamento bastante para a resolução do contrato invocada pelo A.;
- o tribunal recorrido ignorou o tempo mediado entre a assinatura do cpcv (20.2.2020), e a comunicação de resolução do cpcv (8.7.2020) com fundamento na situação de pandemia pelo Covid 19, em resposta à comunicação que o A. enviou em 26.6.2020;
- devia o tribunal recorrido ter declarado resolvido o cpcv por incumprimento do R. e condená-lo ao pagamento das quantias que se obrigou a pagar, ou, pelo menos, nos gastos em que o A. incorreu;
- o tribunal recorrido não relevou a questão relativa à confirmação pelo R. de que iria proceder ao pagamento do sinal e princípio de pagamento, e ao deixar de se pronunciar sobre essa questão, padece a sentença recorrida de nulidade por omissão de pronúncia;
- dos factos 7 a 9 dados como provados resulta que o R. incorreu em responsabilidade pré-contratual;
- o R. resolveu o cpcv por alteração substancial das circunstâncias sem fundamento para o efeito, quer porque se encontrava em mora, estando-lhe, por isso, vedada a utilização de tal instrumento, quer porque não se mostram preenchidos os respetivos pressupostos, pelo que a resolução é ilícita;
- mesmo que não procedam os anteriores fundamentos, sempre se impunha que o tribunal equacionasse o direito à indemnização nos termos gerais, tendo resultado provados (nos factos 11 e 12) os danos resultantes do incumprimento definitivo do R.
Apreciemos.
1. Conforme resulta da factualidade provada, em 20.2.2020, entre o A. e o R. foi celebrado um contrato promessa de compra e venda (art. 410º, nº 1, do CC), nos termos do qual o A. prometeu vender e o R. prometeu comprar a fração autónoma destinada a habitação, designada pela letra “AAS” correspondente a um apartamento destinado a habitação – 5.º andar C – no Bloco Três, com um estacionamento na terceira cave com o n.º 65 e uma arrecadação na mesma cave com o n.º 67, do prédio designado por lote 19/20, sito na Avenida xxx, em Cascais, descrita na CRP de Cascais sob o n.º xxx e inscrita na matriz predial urbana sob o art. xxx, AAS, da União de Freguesias de Cascais e Estoril, pelo preço de €435.000,00.
No mencionado contrato ficou convencionado que, por conta do preço, o R. pagaria ao A., no dia 20.2.2020 (data da outorga do cpcv), a quantia de €32.625,00, a título de sinal e princípio de pagamento, e, no dia 20.3.2020, a quantia de €10.875,00, a título de reforço de sinal e princípio de pagamento, ficando de pagar a restante parte do preço, no valor de €391.500,00, na data da realização da escritura pública de compra e venda, que se deveria realizar até ao dia 6.5.2020, tendo ficado a cargo do R. a sua marcação.
Sucede que o R. não efetuou o pagamento do sinal (não obstante se tenha comprometido a fazê-lo através de transferência bancária), nem do reforço do sinal, nem marcou a escritura até à data acordada.
Dispõe o art. 440º do CC que Se, ao celebrar-se o contrato ou em momento posterior, um dos contraentes entregar ao outro coisa que coincida, no todo ou em parte, com a prestação a que fica adstrito, é a entrega havida como antecipação total ou parcial do cumprimento, salvo se as partes quiserem atribuir à coisa entregue o carácter de sinal[1].
Por seu turno, estabelece o art. 441º do mesmo diploma legal que No contrato promessa de compra e venda presume-se que tem caráter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente comprador ao promitente vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço.
No caso, a presunção estabelecida neste último preceito legal não é afastada, na medida em que da cláusula 7ª do cpcv resulta que as partes quiseram atribuir às quantias entregues a natureza de sinal.
De facto, ficou estabelecido na referida cláusula que “1. Se o Primeiro Contraente faltar culposamente ao cumprimento da obrigação de celebrar a Escritura Pública de Compra e Venda, assistirá ao Segundo Contraente o direito de resolução do presente Contrato Promessa, cabendo-lhe a restituição em dobro do valor entregue ao Primeiro Contraente. 2. De igual forma, o incumprimento definitivo imputável ao Segundo Contraente confere ao Primeiro Contraente o direito de resolver o presente Contrato Promessa, fazendo seus os valores que lhes foram entregues pelo Segundo Contraente. …”.
Nesta conformidade, os valores previstos pagar em 20.2.2020 e 20.3.2020 respeitavam ao sinal e ao reforço do sinal estabelecidos no cpcv, e com a omissão do seu pagamento, o R. constituiu-se em mora quanto ao pagamento daqueles nos termos fixados no contrato.
E também se constituiu em mora ao não marcar a escritura de compra e venda até ao dia 6.5.2020, conforme acordado.
Perante tal omissão, o A., no dia 26.6.2020, enviou uma comunicação aos RR. interpelando-os e dando-lhes prazo para o efeito, mais concretamente, escreveu-se nesta que “serve a presente comunicação para fixar um prazo suplementar de 30 (trinta) dias para que V. Exas procedam à marcação da escritura de compra e venda, findo este prazo sem que tal se verifique considerarei o contrato promessa definitivamente incumprido por parte V. Exas.”.
A esta comunicação respondeu o R., a 8.7.2020, comunicando a resolução do cpcv com fundamento na situação de pandemia provocada pelo Covid 19.
A simples mora apenas constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor – art. 804º, n.º 1 do CC -, não levando, só por si, à resolução do contrato e respetivas consequências, o que só se verifica em caso de não cumprimento ou incumprimento definitivo.
Como vem sendo maioritariamente entendido na jurisprudência, as sanções previstas no art. 442º do CC (antes ou depois da redação dada pelo DL. 379/86 de 11.11) só se aplicam no caso de incumprimento definitivo e não no caso de simples mora (cfr., entre muitos outros, o Ac. do STJ de 6.10.11, P. 2434/08.3TBSTS.P1.S1, rel. Cons. Lopes do Rego, in www.dgsi.pt), em igual sentido se tendo acordado no cpcv (cláusula 7ª).
O incumprimento definitivo do contrato pode revelar-se por diversos meios, a saber:
- pela impossibilidade da prestação, por destruição da coisa ou pela sua alienação a terceiro, sem qualquer reserva (art. 801º do CC);
- pela perda do interesse do credor na prestação, em consequência de mora do devedor ou a sua inexecução dentro do prazo razoável que lhe for fixado por aquele (interpelação admonitória - art. 808º do CC);
- pelo decurso de prazo fixado contratualmente como absoluto ou improrrogável, o que equivale àquela perda de interesse; ou,
- pela recusa perentória do devedor em cumprir, comunicada ao credor, não se justificando então a necessidade de nova interpelação ou de fixação de prazo suplementar [2].
Não tendo o R. marcado a escritura no prazo que lhe foi fixado pelo A., e demonstrando não pretender mais fazê-lo (ao resolver o cpcv), a mora converteu-se em incumprimento definitivo, a fundamentar a resolução do cpcv pretendido pelo A. com a presente ação.
A questão que se coloca é a de saber se o cpcv ainda subsistia à data da propositura da ação, caso em que ao A. assiste o direito de o resolver, ou já não subsistia por força da resolução extrajudicial operada pelo R. com a comunicação de 8.7.2020, como entendeu o tribunal recorrido.
A resolução do contrato só é admissível se se fundar na lei ou em convenção (art. 432º, nº 1 do CC), e pode fazer-se por declaração à outra parte (art. 436º, nº 1, do CC) [3].
Como esclarecem Pires de Lima e Antunes Varela, na ob. cit., pág. 362, “Esta declaração tem interesse, porque marca o momento de resolução, mesmo que haja necessidade, posteriormente, de obter a declaração judicial de que o ato foi legalmente resolvido”.
No cpcv previram as partes a possibilidade de resolução do mesmo por incumprimento culposo de alguma delas, como resulta da cláusula 7ª supra reproduzida, mas o R. resolveu o contrato com fundamento na lei, ou seja, invocando a alteração de circunstâncias.
Dispõe o nº 1 do art. 437º do CC que Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afete gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.
A possibilidade de resolver o contrato por alteração das circunstâncias representa um desvio ao princípio do cumprimento pontual dos contratos estabelecido no art. 406º, nº 1, do CC, daqui decorrendo que compete à parte que queira prevalecer-se de uma alteração das circunstâncias a alegação e prova dos elementos constitutivos da respetiva previsão.
No caso, incumbia ao R. alegar e provar que ocorreu uma alteração anormal das circunstâncias, a justificar a resolução contratual que comunicou ao A.
Henrique Sousa Antunes, no Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das obrigações em geral, UCE, pág. 148, em anotação ao artigo 436º do CC, dá-nos nota que “Em alguns casos, porém, a lei exige ou faculta que a resolução seja decretada pelo tribunal. Isso mesmo acontece, por exemplo, nos artigos 437º, 966º, 1047º, 1084º, nº 1, e 2248º, sendo certo que quanto à alteração superveniente das circunstâncias subsistem algumas divergências no que diz respeito à obrigatoriedade de intervenção de um juiz”. E em anotação ao art. 437º, escreve, na pág. 159, que “O exercício das faculdades é judicial (…). Sem prejuízo do disposto no regime geral da resolução (artigo 436º, nº 1), a complexidade da análise dos requisitos sobre a alteração das circunstâncias, a referência ao requerimento da resolução (art. 437º, nº 2) e a chamada da equidade a critério de modificação do contrato (artigo 437º, nº 1) argumentam naquele sentido.”.
No mesmo sentido se pronuncia Almeida Costa, em Direito das Obrigações, 12ª ed. rev. e atualiz., pág. 347, nota (3).
E em sentido contrário pronunciam-se Galvão Teles, em Manual dos Contratos em Geral, pág. 345, nota 314, Calvão da Silva, nos Estudos de Direito Civil e Processo Civil, 1996, pág. 181, e Menezes Leitão, em Direito das Obrigações, pág. 143.
Não vemos, porém, razões para que a resolução do contrato por alteração anormal das circunstâncias implique regime diverso do da resolução com outros fundamentos, neste sentido se pronunciando Mariana Fontes da Costa, em Covid-19 e Alteração superveniente das circunstâncias, na ROA, I/II 2021, pág. 372 [4].
O que resulta inquestionável é que tendo a parte resolvido o contrato por alteração das circunstâncias por declaração extrajudicial à outra parte, não aceitando esta tal resolução, tem aquela de demonstrar, por ação ou exceção, a invocada alteração anormal das circunstâncias.
E tal não se basta, obviamente, com a prova da declaração feita (facto provado 15), mas com a alegação e prova dos factos invocados naquela, concretamente no caso, a ocorrência da pandemia por covid-19 (facto notório), a suspensão do crédito bancário solicitado pelo R. por força daquela [5], e a falta de recursos próprios para fazer face à totalidade do preço.
Nuno Pinto Oliveira, em A alteração das circunstâncias 55 anos depois, na Revista Julgar, nº 44, maio-agosto de 2021, pág. 165 e ss., ao analisar os requisitos da aplicação do instituto, escreve que “O direito civil português faz depender a modificação ou a resolução do contrato previstas nos artºs 437º e 438º de que as circunstâncias alteradas, constituam a base ou o fundamento do negócio, de que a alteração das circunstâncias seja anormal, imprevista e imprevisível e de que a alteração (anormal, imprevista e imprevisível) seja exterior à parte prejudicada.”, concretizando serem requisitos positivos que as circunstâncias alteradas constituam a base ou o fundamento do contrato, que as alteração das circunstâncias seja anormal ou extraordinária, imprevista e imprevisível, seja exterior à parte prejudicada, seja a causa de uma lesão, e que a lesão seja grave, sendo requisitos negativos que a alteração não seja posterior à constituição em mora da parte lesada, que a alteração das circunstâncias ou a lesão decorrente da alteração não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato, ou que a alteração das circunstâncias ou a lesão decorrente da alteração, não esteja prevista e regulada por disposições legais ou contratuais específicas [6].
Como se escreve no Ac. do STJ de 11.5.2023, P. 1455/21.5YLPRT.L1.S1 (Catarina Serra), em www.dgsi.pt, “Costuma pensar-se nas grandes alterações de circunstâncias como sendo natureza política, social ou económica […]. Ora, a crise COVID-19 foi, em primeiro lugar, multidimensional, afetando todas, simultaneamente, estas e outras dimensões do ser humano (físicas, psicológicas, culturais). Superou, pois, neste sentido, a “grande depressão” de 1929 e a crise global de 2008. Depois, ela alastrou-se, de forma mais ou menos simétrica e de forma mais ou menos sincrónica, a todo o globo. Diversamente de uma guerra, e até diversamente de uma guerra mundial, não existem lugares absolutamente seguros ou não contaminados. Por fim, os seus efeitos produziram-se – produzem-se ainda – por muito tempo, o que é apenas lógico, dado o seu extraordinário alcance. Em suma: a crise COVID-19 configura uma “modificação brusca das condicionantes estruturais da coexistência social”, isto é, uma “grande alteração das circunstâncias” […] – e uma em grau superlativo, que escapa às categorias dogmáticas habituais. Por isso, mais do que consentir intervenções pontuais, por iniciativa das partes, no domínio dos contratos, ela exige uma verdadeira reconformação do quadro em que se desenvolve a generalidade das relações jurídicas de carácter patrimonial. Esta reconformação é – ou deve ser –, antes de mais, legislativa […]. Mas quando não haja diploma específico há sempre regras e princípios de carácter geral – o artigo 437.º do CC) e, em especial, o princípio da boa fé. … Sem pretender proceder a uma análise minuciosa da norma – porque impraticável e inoportuno –, é evidente que a crise COVID-19 configura uma alteração anormal das circunstâncias, portanto, se reconduz à hipótese regulada na norma.”.
Torna-se, porém, necessário que a parte demonstre que a situação pandémica causou uma alteração anormal e imprevisível das circunstâncias, provocando-lhe um dano grave, de tal modo que, a exigência a essa parte, do cumprimento das obrigações assumidas, contraria gravemente a boa-fé.
Apenas verificado o preenchimento dos mencionados pressupostos, terá a parte lesada direito à resolução (ou à modificação) do contrato segundo juízos de equidade, e desde que não se encontre em mora no momento em que a alteração das circunstâncias ocorreu.
Mariana Fontes da Costa, em Covid-19 e Alteração superveniente das circunstâncias, na ROA, I/II 2021, pág. 362/363, fornece-nos um método de trabalho, ao escrever que “À semelhança da técnica legislativa utilizada no art. 2187.º, n.º 1 do Código Civil, respeitante à interpretação do testamento, julgamos defensável admitir que o art. 437.º, n.º 1 consagra uma remissão implícita para a vontade hipotética das partes. Contudo, essa vontade hipotética é, neste contexto, chamada a desempenhar uma função sindicante e não uma função integradora: a alteração superveniente das circunstâncias afetará a força vinculativa do contrato apenas na medida em que resulte que o mesmo não teria sido concluído nos termos adotados se as partes tivessem representado a possibilidade daquela alteração (…). Tendo presente esta premissa, a natureza bilateral (ou plurilateral) do contrato impõe um juízo dúplice (ou plúrimo) na aferição da vontade hipotética das partes em contexto de base do negócio. Por conseguinte, e colhendo influências diretas de Manuel de Andrade (…), quanto à parte lesada deve aferir-se se esta teria recusado a celebração do contrato nos termos originais, caso tivesse representado possível a ocorrência da perturbação. Diferentemente, o juízo relativo à vontade da contraparte tem como função inquirir se esta conhecia ou devia conhecer a essencialidade daquelas circunstâncias para a parte lesada e se haveria concordado com um condicionamento do contrato à não ocorrência da alteração. A resposta negativa a qualquer uma destas questões implica o não preenchimento da exigência respeitante à essencialidade das circunstâncias afetadas pela alteração superveniente, afastando, deste modo, a aplicação do instituto ao caso concreto.”.
Ponderada a factualidade provada, essencialmente o teor do contrato celebrado, afigura-se-nos que estava afastada a aplicabilidade do art. 437º do CC.
Da factualidade provada resulta que em 20.2.2020, A. e R. celebraram o cpcv objeto dos autos, tendo o preço acordado sido fixado em €435.000, prevendo-se o pagamento da quantia de €32.625,00, no dia 20.2.2020, a título de sinal e princípio de pagamento, da quantia de €10.875,00, no dia 20.3.2020, a título de reforço de sinal e princípio de pagamento devendo a restante parte do preço, no valor de €391.500,00, ser paga na data da realização da escritura pública de compra e venda, a realizar até ao dia 6.5.2020, mediante marcação pelo R.
Mais ficou consignado que o R. declarou que, para pagamento do preço acordado pretende recorrer a financiamento bancário, no montante correspondente a 60% do preço acordado [7].
Por último resultou provado que o R. não obteve financiamento bancário uma vez que os pressupostos para o pedir ficaram afetados pela situação pandémica (Covid 19).
Como refere o apelante, à data em que foi outorgado o cpcv (20.2.2020) eram conhecidos vários casos de pessoas afetadas por Covid-19 em vários países à escala mundial, que determinaram a OMS  a declarar que o surto do novo coronavírus (2019-nCoV) constituía uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, não obstante só em 11.3.2020 o tenha declarado como pandemia.
Embora a declaração de pandemia pudesse ser previsível, não era, necessariamente, previsível que podia vir a determinar a alteração das circunstâncias do contrato [8], ao contrário do que pretende o apelante.
Contudo, resulta dos termos contratuais, a essencialidade da obtenção de financiamento bancário pelo R. para a conclusão do contrato prometido, podendo concluir-se que ambas as partes assentaram a base do negócio nessa circunstância (na possibilidade de obtenção de crédito pelo R. para a concretização da compra), assumindo o correspondente risco de o contrato definitivo não se poder vir a celebrar em virtude de não ser possível a obtenção do empréstimo.
Atente-se que as partes não condicionaram a realização do contrato prometido à obtenção do mencionado empréstimo bancário pelo R., ou seja, as partes não outorgaram o cpcv condicionado à verificação daquela circunstância (obtenção do crédito), e previram, até, as consequências derivadas dum incumprimento definitivo por não verificação da referida circunstância (Cláusula Sétima, nºs 2. “De igual forma, o incumprimento definitivo imputável ao Segundo Contraente [ora R.] confere ao Primeiro Contraente [ora A.] o direito de resolver o Contrato Promessa, fazendo seus os valores que lhes foram entregues pelo Segundo Contraente.” e 3. “Sem prejuízo do disposto no número anterior, as Partes acordam expressamente que não poderá haver lugar a execução específica do presente Contrato caso o incumprimento do Segundo Contraente se deva à não obtenção do financiamento referido no número 3 da Cláusula Terceira”).
Por outro lado, logo na data de outorga do contrato, em 20.2.2020, o R. entrou em mora, relativamente ao pagamento do sinal estipulado no cpcv, tal como se constituiu em mora em 20.3.2020, relativamente ao reforço do sinal, e em 6.5.2020, relativamente à obrigação de marcação e realização da escritura de compra e venda, conforme estipulado no cpcv.
Desconhece-se em que data “ficou suspenso” o crédito solicitado pelo R. por força da situação da pandemia Covid-19, incumbindo-lhe alegar e provar que tal ocorreu em momento anterior à verificação da mora, de cada um dos momentos em que se constituiu em mora [9].
Como escreve Henrique Sousa Antunes, na ob. cit., pág. 161, “Constituindo a ausência de mora no momento em que a alteração das circunstâncias se produziu um requisito da resolução ou modificação do contrato, a falta de demonstração daquele momento, havendo mora do devedor, impede o efeito pretendido (neste sentido, o Ac. RC de 03.05.2016: “Não estando alegado e esclarecido o momento da alteração anormal das circunstâncias, a verificada mora dos devedores afasta a utilização deste direito”)” [10].
Não se mostram, pois, preenchidos os requisitos da aplicação do instituto previsto no art. 437º do CC, carecendo a resolução efetuada pelo R. de fundamento, sendo ineficaz.
A ineficácia da declaração resolutiva implica a manutenção do cpcv.
Nessa conformidade, ao A. assiste o direito a ver declarada a resolução do cpcv celebrado com o R., peticionada na presente ação.
Não procede, porém, o pedido de condenação formulado, com base na referida resolução.
O inadimplemento do contrato-promessa que derive de qualquer das supra mencionadas causas, encontra-se submetido ao regime geral do não cumprimento das obrigações (art. 798º do CC).
Existindo sinal, se o contraente faltoso é o que prestou o sinal, perde o sinal passado, se o contraente faltoso é o que recebeu o sinal, deve prestar o dobro do que recebeu (art. 442º, nº 2, do CC).
Se o incumprimento não é imputável a nenhuma das partes, havendo sinal passado, é o mesmo restituído, e se é imputável a ambas as partes (art. 570º do CC), e as culpas forem iguais, há lugar à restituição do sinal, se forem diferentes, a restituição será feita de acordo com o grau da culpa.
Como escreve Ana Afonso, no Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, UCE, pág. 163, em anotação ao art. 440º, “O sinal é uma cláusula contratual real quoad constitutionem, isto é, só existe sinal quando se tenha efetuado a entrega da coisa”.
No mesmo sentido se pronuncia Ana Prata, em O contrato promessa e seu regime civil, págs. 823/824, esclarecendo que “Nos contratos promessas, em particular nos de compra e venda, são muitas vezes incluídas convenções pelas quais uma das partes se obriga a constituir um sinal ou, até mais frequentemente, a reforçar o sinal já passado. Estar-se-á, em tais casos, perante promessas de constituição ou de reforço do sinal, só podendo ter-se este por estabelecido, dada a sua natureza real, no momento em que tais promessas forem cumpridas. Assim, se, antes de tal constituição ou reforço, se verificar o definitivo incumprimento do contrato promessa, não haverá lugar a fazer funcionar, indemnizatória ou penitencialmente, o sinal que não exista, ou funcionará, a qualquer daqueles títulos, o montante já entregue, o único sinal que já existe. Este regime só será de excluir se as partes tiverem, convencionalmente, significado que o quantitativo prometido (originariamente ou em aditamento àquele que já tiver sido prestado) se destina a fixar, independentemente da sua entrega, o montante da indemnização ou o preço da desistência do contrato.” (sublinhados nossos) [11].
No caso em apreço, o R. não entregou os valores estipulados do sinal e respetivo reforço, pelo que não houve pagamento de sinal.
Nem no cpcv se convencionou que tais valores estipulados se destinavam a fixar o montante da indemnização, como sustenta o apelante, pelo que improcede, necessariamente o pedido de condenação dos RR. a pagarem ao A. as mencionadas quantias.
Sustenta, subsidiariamente, o apelante que, pelo menos, deve o R. ser condenado a pagar-lhe os gastos em que incorreu e que resultaram provados (facto 12).
Não havendo sinal passado, a indemnização a pagar ao contraente não faltoso apura-se de harmonia com as regras gerais da responsabilidade civil e tende a cobrir os danos efetivos causados pelo incumprimento do contrato.
Resulta da factualidade provada que, o A., que habitava com a família no imóvel prometido vender, após a assinatura do cpcv celebrado com o Réu, celebrou, em 26.2.2020, um acordo escrito denominado de contrato de arrendamento de um apartamento no Monte Estoril, pela renda mensal de €1.200,00, tendo transferido para o IBAN que consta desse acordo  a quantia de €3.600,00,  relativa à 1ª renda e caução, conforme acordado (factos 11 e 12).
Salvo melhor opinião, os mencionados gastos em que incorreu o A. não resultam do incumprimento contratual do R. (arts. 562º a 564º, do CC), inexistindo um nexo causal entre estes e aquele.
De acordo com o disposto no art. 563º do CC,  responsabilidade depende da existência de um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
No caso, o alegado dano resultou da celebração do cpcv, e de uma opção do A. na perspetiva de celebração do contrato definitivo.
Improcede, pois, a pretensão do A. também nesta parte.
2.- Sustenta o apelante que o tribunal recorrido devia ter relevado a questão relativa à confirmação do R. de que iria proceder ao pagamento do sinal por transferência bancária (factos 7 a 9), o que não fez, incorrendo em responsabilidade pré-contratual.
Não tendo o tribunal recorrido apreciado essa questão, padece a sentença recorrida de nulidade, nos termos do disposto no art. 615º, nº 1, al. d), do CPC.
Dispõe o art. 615º, nº 1, do CPC, que é nula a sentença quando: … d) o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ….
A nulidade referida está em correspondência direta com a primeira parte do nº 2 do artigo 608º, onde se impõe ao juiz o dever de resolver todas as questões que as partes tiverem submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, resultando a nulidade em causa da infração do referido dever.
Como refere Antunes Varela, na RLJ, ano 122, pág. 112, “Não pode confundir-se de modo nenhum, na boa interpretação da alínea d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil [12], as questões que os litigantes submetem à apreciação e decisão do tribunal com as razões (de facto e de direito), os argumentos,os pressupostos em que a parte funda a sua posição na questão”.
Também Alberto dos Reis, no CPC Anotado, Vol. V, pág. 143, ensinava que “São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.
Como se escreve no Ac. do STJ de 06.05.2004, P. 04B1409 (Araújo de Barros), em www.dgsi.pt, “ ... terá o julgador que identificar, caso a caso, quais as questões que lhe foram postas e que deverá decidir. .... E se, eventualmente, o juiz, ao decidir das questões suscitadas, tem por assentes factos controvertidos ou vice-versa, qualifica juridicamente mal uma determinada questão, aplica uma lei inapropriada ou interpreta mal a lei que devia aplicar, haverá erro de julgamento, mas não nulidade por omissão de pronúncia.”.
E de forma clara, explica-se no Ac. do STJ de 18.9.2018, P. 108/13.2TBPNH.C1.S1 (José Rainho), em www.dgsi.pt, que “I - Não há que confundir entre nulidades de decisão e erros de julgamento (seja em matéria substantiva, seja em matéria processual). As primeiras (errores in procedendo) são vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão, isto é, trata-se de vícios que afetam a regularidade do silogismo judiciário) da peça processual que é a decisão, nada tendo a ver com erros de julgamento (errores in iudicando), seja em matéria de facto seja em matéria de direito.”.
As questões que foram colocadas ao tribunal recorrido foram a resolução do cpcv celebrado entre A. e R., por incumprimento definitivo culposo deste, a falta de fundamento da resolução efetuada pelo R., e a indemnização devida ao A. (PI); a ilegitimidade da R., a resolução por alteração das circunstâncias, e o abuso de direito (contestação).
Em momento algum foi colocada ao tribunal a questão da responsabilidade pré-contratual do R.
Nesta conformidade, o tribunal recorrido não omitiu pronúncia sobre aquela questão, improcedendo a invocada nulidade da sentença.
Questão diferente é saber se ocorreu erro de julgamento, porquanto, alegadamente, da factualidade provada resulta ter o R. incorrido em responsabilidade pré-contratual.
O art. 3º do CPC consagra o princípio do dispositivo, nos termos do qual O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada a deduzir oposição.
A lei estabelece que o A. deve, na PI, expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação (art. 552º, nº 1, al. d), do CPC) e formular o pedido (art. 552º, nº 1, al. e), do CPC).
Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, no CPC Anotado, Vol. I, 3ª ed., pág. 19, em anotação ao art. 3º, escrevem que o princípio do dispositivo “estende-se à configuração do objeto do processo, através da formulação do pedido e da alegação da matéria de facto que serve de fundamento à ação ou à defesa (art. 5º, nº 1). … A formulação do pedido (art. 552º, nº 1, al. e)), que vai determinar o objeto da instância e que circunscreve o âmbito da decisão final, é uma necessidade que resulta, além do mais, da consagração plena do princípio do dispositivo, que faz recair sobre os interessados que recorrem às instâncias judiciais o ónus de conformação do objeto do processo (art. 3º) com repercussão nos limites da sentença (art. 609º, nº 1). …”.
Nos dizeres de Abrantes Geraldes, em Temas da reforma do processo civil, Vol. I, 2ª ed. rev. e ampliada, pág. 50, “O princípio em causa, além de fazer impender sobre os interessados o ónus de iniciativa processual, estende-se à conformação do objeto do processo integrado não só pela formulação do pedido como ainda pela alegação da matéria de facto que lhe sirva de fundamento.”.
Embora o art. 5º, nº 3, do CPC, estabeleça que O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”, só o pode fazer tendo em conta a factualidade alegada e provada, e dentro dos limites do efeito prático jurídico pretendido pelas partes.
Isso mesmo se entendeu no Ac. do STJ de 19.1.2017, P. 873/10.9T2AVR.P1.S1 (Tomé Gomes), em www.dgsi.pt, no qual se sumariou que “I. A realização da justiça no caso concreto deve ser conseguida no quadro dos princípios estruturantes do processo civil, como são os princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz, traves-mestras do princípio fundamental do processo equitativo proclamado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República. II. A decisão judicial, enquanto prestação do dever de julgar, deve conter-se dentro do perímetro objetivo e subjetivo da pretensão deduzida pelo autor, em função do qual se afere também o exercício do contraditório por parte do réu, não sendo lícito ao tribunal desviar-se desse âmbito ou desvirtuá-lo. III. Incumbe ao tribunal proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, mas dentro da fronteira da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido, sendo-lhe vedado enveredar pela decretação de uma medida de tutela que extravase aquele limite, ainda que pudesse, porventura, ser congeminada por extrapolação da factualidade apurada. …”.
O efeito prático jurídico pretendido pelo A. era a resolução do cpcv celebrado com o A. e a condenação deste a indemnizá-lo pelo incumprimento daquele, em momento algum, tendo equacionado a responsabilidade pré-contratual do R. e o ressarcimento dos danos resultantes desse comportamento.
A questão não é de conhecimento oficioso, nem está em causa uma mera convolação jurídica da pretensão formulada pelo A., mas antes uma pretensão qualitativamente diversa daquela, que não foi deduzida pelo A., pelo que não ocorre o alegado erro de julgamento.
Como escreve M. Teixeira de Sousa, no CPC Online (art.º 5.º) versão 2023/10, “A liberdade de qualificação pelo tribunal dos factos alegados pelas partes não deve ser confundida com a dispensa da vinculação do tribunal aos pedidos formulados das partes; o tribunal pode qualificar como entender os factos alegados pelas partes, mas, dentro da qualificação que atribui a esses factos, só pode pronunciar-se sobre os pedidos formulados pelas partes (art. 3.º, n.º 1, e 608.º, n.º 2, 2.ª parte) (STJ 5/4/2018 (1223/10)”.

Improcede a apelação, também nesta parte.

3.A questão relativa à “indemnização nos termos gerais” já ficou supra analisada.
Em conclusão, procede parcialmente a apelação, devendo alterar-se a sentença recorrida, substituindo-a por outra a julgar parcialmente procedente a ação, declarando-se resolvido o Contrato Promessa de Compra e Venda celebrado entre o A. e o R., em resultado do incumprimento culposo deste, e parcialmente improcedente, mantendo-se o demais decidido, ou seja, a absolvição dos RR. do demais peticionado.
As custas da ação e da apelação (estas na modalidade de custas de parte) [13], ficam a cargo do A. e RR., em partes iguais – art. 527º, nºs 1 e 2 do CPC.

DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação, alterando-se a sentença recorrida, substituindo-a por outra a julgar parcialmente procedente a ação, declarando-se resolvido o Contrato Promessa de Compra e Venda celebrado entre o A. e o R., por incumprimento culposo deste, e parcialmente improcedente, mantendo-se o demais decidido (a absolvição dos RR. do demais peticionado).
Custas pelo apelante e apelados, nos termos referidos.
*


Lisboa, 2023.11.21


Cristina Coelho
Paulo Ramos de Faria
Ana Mónica Mendonça Pavão


[1]Em anotação a este artigo, escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, em CC Anotado, Vol. I, 2ª ed. rev e atualiz., págs. 366/376, que “A doutrina deste artigo é inaplicável aos contratos-promessa, pois não pode supor-se um começo de cumprimento na entrega de qualquer coisa por um dos promitentes ao outro. A obrigação emergente do contrato-promessa tem por objeto a realização dum negócio jurídico e não pode haver nele entrega de coisa que coincida com a prestação a que se fica adstrito. O que se pode ter em vista é o cumprimento de um contrato futuro – o prometido – mas não o cumprimento do contrato-promessa, pois este só se cumpre pela celebração do negócio jurídico. De resto, é expresso o artigo em exigir que a coisa seja entregue no momento da celebração do contrato, ou posteriormente, e, no caso do contrato-promessa, o que pode fazer-se é um cumprimento antecipado, visto o contrato prometido só se celebrar depois. A distinção entre os casos de constituição de sinal e os de mera antecipação de cumprimento envolve, pois, um problema de pura interpretação da vontade dos contraentes. … Os elementos de que o julgador pode socorrer-se para qualificar ou desvendar a intenção das partes, assume especial relevo o que se tiver convencionado acerca das consequências da falta de cumprimento por parte de alguma das partes, dado o disposto nos nºs 2 e 3 do art. 442” (atuais nºs 2 e 4 do referido artigo, na redação introduzida pelo DL. nº 236/80, de 18.07).
[2]Cfr. Antunes Varela, in RLJ, ano 121º, pág. 223 e Ac. do STJ de 24.10.1995, CJASTJ, Tomo III, pág. 78.
[3]Tal como se pode fazer por acordo, ainda que o direito tenha sido concedido apenas a uma das partes, ou judicialmente.
[4]Neste sentido, ver, ainda, o Ac. da RL de 8.4.2021, P. 19222/20.1T8LSB.L1-6 (Maria de Deus Correia), em www.dgsi.pt.
[5]Ver Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, em O Direito dos contratos privados face à presente crise pandémica.  Alguns problemas, em especial, a impossibilidade económica temporária, na Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Ano LXI, 2020, nº 1, pág. 699, onde aborda o problema da “suspensão da concessão de crédito bancário a investidores estrangeiros que celebraram igualmente promessas de compra de habitação, no início de 2020, contando com financiamento para viabilizar a celebração dos contratos definitivos.”.
[6]Henrique Sousa Antunes, na ob. cit., págs. 155/156, esquematiza os requisitos, cumulativos, da aplicação do instituto previsto no art. 437º do CC, nos seguintes termos: “a) uma alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar. Em geral, a doutrina e a jurisprudência associam este requisito ao acolhimento da teoria da base do negócio. Trata-se de factos que, respeitando a uma ou ambas as partes, determinaram, de modo essencial, a vontade negocial e, assim, condicionam o efeito vinculativo das declarações emitidas. … b) a alteração foi anormal. Sem prejuízo dos termos em que o requisito foi redigido, a imprevisibilidade parece sugerida pela exigência da subtração da alteração aos riscos próprios do contrato. … c) a alteração causou uma lesão. São atendíveis as repercussões patrimoniais e não patrimoniais da alteração das circunstâncias. … d) a manutenção do contrato afeta gravemente as exigências do princípio da boa fé. … e) a alteração verificada diverge das flutuações associadas aos riscos próprios do contrato. … f) o lesado não pode estar em mora no momento da alteração das circunstâncias (art. 438º)”.
[7]O facto provado em causa – “16 – Ficou consignado no contrato a essencialidade da obtenção de financiamento bancário, …” – tem natureza conclusiva, antes se tendo atendido ao que consta do cpcv.
[8]Sandra dos Reis Luís, em A alteração anormal das circunstâncias: o artigo 437.º do Código Civil e a situação pandémica: reflexos contratuais, na Revista Julgar on line, julho de 2020, pág. 5, recorda que “…, no presente século já assistimos a outros crises epidémicas, mas que ficaram geograficamente circunscritas, não foram tão graves como a presente, pense-se na gripe das aves ou na gripe suína, o que nos poderia levar a equacionar, num primeiro momento, como aliás foi equacionado pela Sra. Diretora Geral de Saúde, que a epidemia não se viria a transformar numa pandemia, ou seja que que esta epidemia se manteria geograficamente circunscrita …”.
[9]Pires de Lima e Antunes Varela, na ob. cit., pág. 365, em anotação ao art. 438º do CC, escrevem que “É uma consequência dos princípios em que assenta o direito conferido pelo artigo anterior. A alteração das circunstâncias supõe, na verdade, uma modificação verificada entre o momento do contrato e o momento em que as obrigações dele emergentes devem ser cumpridas (cfr. Prof. Vaz Serra, est. e loc. cit). De resto, quem se coloca em mora não pode aspirar a qualquer proteção resultante de factos supervenientes”.
[10]Em sentido contrário, Nuno Pinto Oliveira, ob. cit., pág. 193, entendendo que é à parte não prejudicada que incumbe a prova da anterioridade da mora da parte prejudicada, por se tratar de facto impeditivo do seu direito.
[11]Ver, ainda, João Calvão da Silva, em Sinal e contrato promessa, 12ª ed., rev. e atualiz., pág. 150/151.
[12]De redação idêntica.
[13]Como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, no CPC, Vol. I, 3ª ed., pág. 627, “…, quando o acórdão do tribunal superior revogar total ou parcial da decisão recorrida, justificar-se-á que seja redefinida a responsabilidade global pelas custas nas diversas instâncias, de acordo com as regras gerais (STJ 20-12-21,
2104/12, STJ 17-10-19, 2458/15).”