HABEAS CORPUS
PENA DE PRISÃO
CUMPRIMENTO DE PENA
PRISÃO ILEGAL
INDEFERIMENTO
Sumário


É manifestamente improcedente o pedido de habeas corpus, feito por terceira pessoa em favor de recluso, pedindo a sua libertação com base na alegação genérica de ter sido condenado por decisão transitada em julgado, motivada por falsas declarações de intervenientes processuais, bem como por padecer aquele de doença crónica do foro cardíaco, dado não integrar nenhum dos fundamentos do n.º 2 do art. 222.º do CPP.

Texto Integral



Processo Comum Coletivo n.º 2592/08.7PAPTM - Tribunal Judicial da Comarca de Faro - Juízo Central Criminal de .../J... . – Tribunal da Relação de Évora/1.ª Secção Criminal


Habeas Corpus


Acordam em audiência na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório


I.1. Em mensagem de correio eletrónico, remetida do endereço AA ...em 07-10-2023, para os serviços do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal de Justiça, que a reencaminhou para o processo supra identificado – e que deu origem ao presente processo –, veio pessoa que se identifica como sendo “AA”, expor, alegadamente em favor do cidadão BB, atualmente em cumprimento de pena à ordem do Processo Comum Coletivo n.º 2592/08.7PAPTM - Tribunal Judicial da Comarca de Faro - Juízo Central Criminal de .../J... . – Tribunal da Relação de Évora/1.ª Secção Criminal, a seguinte factualidade,:

«CC, da Rua ..., ..., residente em ..., ..., mentiu quando acusou meu companheiro BB de agredi-lo. CC mentiu em seu depoimento Autos nº ........0017 Carta Precatória ao Juiz DD e EE - Advogada. Mentiu novamente para a procuradora-geral FF, procuradora da República, que justamente o questionou, pois, seus olhos pareciam bons. Ministério Público Federal Faculdade de Direito de Harvard ... BRASIL em 3 de abril de 2019, onze anos após o suposto incidente. Os procuradores durante o julgamento de BB impediram-no de ter qualquer defesa que fosse ilegal. Os promotores precisavam dessas declarações, pois BB ganhou seu recurso e o bloquearam com essas declarações. A família GGque gere os tribunais de ... está a encobrir os erros de HH. Solicito que CC seja entrevistado sobre as mentiras em suas declarações. Caso BB é habeas corpus e precisa de investigação BB está muito doente com cardiomiopatia e é necessária a libertação URGENTE da prisão. Por favor, dê a este assunto a sua atenção

URGENTE.»

Juntamente a tal mensagem, foram anexas duas outras, em língua inglesa, bem como um documento digitalizado de um auto de declarações, também em língua inglesa, aparentemente produzidas pelo arguido BB, em 14-06-2023, perante o... Magistrates Court.


I.2. A Ex.ma Senhora juíza de Direito competente exarou a informação a que alude o artigo 223.º, n.º 1, do CPP, nos termos seguintes:

«Instrua apenso de Habeas Corpus com certidão:

• Do acórdão proferido nos presentes autos, de 30/09/2019;

• Do recurso interposto;

• Do despacho que admitiu o recurso; e

• Do despacho que ordenou a subida dos autos;

• Do acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora;

• Da promoção e despacho homologatório de liquidação da pena de prisão;

• Da informação de 12/09/2023 (ref.ª Citius ......41);

• Da informação de fls. 1390-1400;

• Dos elementos juntos pelo arguido e pela cidadã AA com a petição de habeas corpus, e que constam destes autos.

Após, envie imediatamente ao Excelentíssimo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça – cfr. artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

Remeta informação de que o arguido se mantém preso à ordem dos presentes autos, em cumprimento da pena de 4 anos e 8 meses de prisão a que foi condenado

*

Excelentíssimo Senhor Juiz Conselheiro, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça,

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 223.º do Código de Processo Penal, informo Vossa Excelência do seguinte:

1. BB foi condenado nos presentes autos, por acórdão transitado em julgado em 28/06/2021, na pena de 4 anos e 8 meses de prisão, pela prática de um crime de roubo, p. e p. pelo art. 210º, nº 1 do Código Penal e um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelo art. 144º al. b) do Código Penal.

2. O condenado está em cumprimento de pena à ordem destes autos desde o dia 1.8.2023.

3. Foi capturado pelas Autoridades do Reino Unido a 18.5.2022, a cobro do Mandado de Detenção Europeu emitido no âmbito destes autos, mantendo-se ininterruptamente privado da liberdade.

4. Foi proferido despacho homologatório de liquidação da pena de prisão, com termo de cumprimento da pena fixado em 18.1.2027.

Porém, quanto à questão suscitada, esse Colendo Tribunal melhor decidirá.»

*

I.3. Os autos foram instruídos com cópias dos seguintes elementos:


- a mensagem de correio eletrónico de 07-10-2023 – que constitui a “petição” dos presentes autos –, em que a exponente alude a uma situação de detenção irregular do cidadão BB, a que foram juntas outras duas mensagens de correio eletrónico em língua inglesa, e um auto de declarações, também em língua inglesa, aparentemente produzidas pelo arguido BB, em 14-06-2023, perante o ... Magistrates Court;


- acórdão condenatório do extinto ... Juízo Criminal da comarca de ..., de 30-09-2019;


- requerimento de interposição de recurso do arguido BB e respetiva motivação, relativos ao acórdão supra mencionado;


- despacho de admissão de recurso, de 07-11-2019, do Juízo Central Criminal de ... - J... . (Ref.ª Citius .......48);


- acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25-05-2021;


- cópias dos mandados de detenção do arguido, com certificação do respetivo cumprimento em 01-08-2023 (através de entrega pelas autoridades judiciárias do Reino Unido), pelo Estabelecimento Prisional Regional instalado na Polícia Judiciária ...;


- promoção do Ministério Público e despacho da Senhora juíza de Direito, no sentido de ser prestada informação, nos termos seguintes: «Com vista à liquidação da pena única de 4 anos e 8 meses de prisão em que BB, nascido a........1972, foi condenado pela prática a 16.11.2008, de um crime de roubo, p. e p. pelo art. 210º, nº 1 do C.P. e um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelo art. 144º al. b) do C.P. (não sendo de chamar à colação o regime do perdão de penas, previsto na Lei nº 38-A/2023 de 2.8, porquanto, à data dos factos, o condenado tinha 35 anos de idade (cf. art.2º, nº1), sendo ainda certo que a aplicação do perdão aos crimes em apreço é expressamente afastada, nos termos das disposições conjugadas dos arts.7º, nº1 al. a) iii) e al. g) da citada Lei, e art. 1º al. l) e 67º-A, nº1 al. b) e 3, ambos do C.P.P.), e atento o teor de fls. 1416, 1417 e 1420-1422, antes de mais, promovo se oficie, com carácter de urgência, ao G.N.I., solicitando que nos informem em que data foi dado cumprimento ao MDE e qual o período de detenção sofrido pelo condenado à ordem do mencionado MDE.»;


- informação das autoridades do Reino Unido (Joint International Crime Centre – JICC – Extradition Unit National Crime Agency), transmitida ao processo através da autoridade nacional competente, esclarecendo que o arguido BB foi detido em 18-05-2022 e entregue às autoridades portuguesas em 01-08-2023, sendo que durante tal período o mesmo permaneceu sob custódia daquelas autoridades;


- promoção do Ministério Público de liquidação da pena aplicada ao arguido BB (Ref.ª Citius .......87);


- despacho judicial de homologação da liquidação da pena aplicada ao arguido BB (Ref.ª Citius .......86);


- mensagem da Direção do E.P. junto da Polícia Judiciária ..., em que se informa que o arguido BB ali deu entrada em 01-08-2023, solicitando o envio urgente da cópia do acórdão, bem como liquidação da pena para registo informático e atualização do processo individual do recluso.


***


Convocada a Secção Criminal e notificado o Ministério Público e o Defensor, teve lugar a audiência, tendo a Secção reunido para deliberação.


Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação


II.1. Pensamos justificar-se uma consideração preambular, no que respeita à (inexistente) segurança sobre a identificação da “requerente” da presente providência, considerando a falta de certificação, ainda que mínima, da mesma, alegadamente cidadã estrangeira, da qual dispomos, apenas, de um endereço de correio eletrónico, o que, além do mais, poderá inviabilizar a comunicação de atos e decisões processuais, bem como a eventual efetivação de responsabilidade tributária a seu cargo, que venha a ter lugar.


No entanto, considerando a natureza expedita da presente providência, e podendo ainda vir a ser regularizado aquele conjunto de aspetos, não deixaremos, por isso, de apreciar a pretensão da “requerente”, no pressuposto de que a identidade fornecida (um nome próprio e um apelido) corresponda efetivamente a uma concreta pessoa, ainda que eventualmente não nacional.


II.2. Dos elementos documentais juntos e informações prestadas, resultam demonstrados os seguintes factos:

1. O arguido BB foi condenado, por acórdão de 30-09-2019, do ex ..º Juízo Criminal de ..., pela prática de um crime de roubo agravado p. e p. no art. 210.º, n.º 2, al. a) do Cód. Penal, na pena de cinco anos de prisão.

2. Mediante recurso de tal decisão, interposto pelo arguido, o Tribunal da Relação de Évora/1.ª Secção Criminal, por acórdão de 25-05-2021, transitado em julgado em 28-06-2021, decidiu julgar o mesmo procedente, revogando a decisão recorrida de 1.ª instância, julgando verificada a nulidade prevista nos termos dos artigos 379.º, n.º 1, al. a) e 374.º, n.º 2 do CPP, mas declarando a mesma suprida, nos termos do n.º 3 do art. 379.º do CPP.

3. Mais determinou a alteração da matéria de facto provada e não provada, absolvendo o arguido do crime pelo qual fora condenado em 1.ª instância, condenando-o, porém, por um crime de roubo simples, p. p. no art. 210.º, n.º 1 do Cód. Penal, na pena de dois (2) anos de prisão, e por um crime de ofensa à integridade física grave, p. p. no art. 144.º, al. b) do Cód. Penal, na pena de quatro (4) anos de prisão. Em cúmulo jurídico das penas parcelares, foi-lhe aplicada a pena única de 4 anos e oito meses de prisão.

4. Em virtude da sua ausência e posterior localização no território do Reino Unido, foi emitido um Mandado de Detenção Europeu, que foi cumprido, logrando-se a localização e detenção do arguido naquele País em 18-05-2022.

5. O arguido ficou sob custódia das autoridades competentes do Reino Unido entre essa data e 01-08-2023, data em que foi entregue às autoridades portuguesas e deu entrada no E.P. junto da P.J. ....

6. Na promoção, judicialmente homologada, de liquidação da pena, considerou-se que, tendo estado o condenado em cumprimento de pena à ordem destes autos desde o dia 01-08-2023 – sendo detido pelas Autoridades do Reino Unido em 18-05-2022, a cobro do MDE emitido no âmbito destes autos, e mantendo-se ininterruptamente privado da liberdade –, foi descontado o período supra indicado no cumprimento da pena única, nos termos do preceituado no art. 80.º, n.º 1 do Código Penal. Em consequência, o condenado alcançará o meio da pena em 18-09-2024, completa os 2/3 da pena em 28-06-2025 e termina o cumprimento da pena em 18-01-2027.


Sabendo que para a apreciação e decisão da providência do habeas corpus podem ser obtidos todos os elementos informativos e documentais necessários, afigura-se-nos, todavia, serem suficientes os que estão disponíveis nos autos.


II.3. Apreciando


A providência de habeas corpus constitui uma garantia constitucional do direito à liberdade individual, prevista no artigo 31.º da Constituição da República Portuguesa, que estabelece:

1 – Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

2 – A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.

3 – O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória.

O texto do n.º 1 foi alterado e revisto pela Lei Constitucional n.º 1/97, que introduziu a Quarta revisão constitucional (DR I-A Série, n.º 218/97, de 20 de setembro de 1997) e que, pelo artigo 14.º, alterou a redação do n.º 1 do artigo 31.º da Constituição, de modo a que nesse preceito a expressão “a interpor perante o tribunal judicial ou militar consoante os casos” fosse substituída pela expressão “a requerer perante o tribunal competente”, assim afastando a referência a tribunais militares. Mas, como assinala Faria Costa, a revisão constitucional de 1997 não veio, nem de longe nem de perto, restringir o âmbito de aplicação da norma («Habeas Corpus: ou a análise de um longo e ininterrupto “diálogo” entre o poder e a liberdade», BFDUC, volume 75, Coimbra, Coimbra Ed., 1999, p. 549).


Como referem, por outro lado, Gomes Canotilho e Vital Moreira, o n.º 2 do artigo 31.º da CRP reconhece uma espécie de ação popular de habeas corpus (cfr. art. 52.º, n.º 1), pois, além do interessado, qualquer cidadão no gozo de seus direitos políticos tem o direito de recorrer à providência em favor do detido ou preso. Além de materializar o objetivo de dar sentido útil ao habeas corpus, quando o detido não possa pessoalmente desencadeá-lo, essa ação popular sublinha o valor constitucional objetivo do direito à liberdade (Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, Coimbra, Coimbra Ed., 4.ª edição revista, 2007, p. 509).


A providência em causa é, assim, uma garantia fundamental privilegiada, no sentido em que se trata de um direito subjetivo, «direito-garantia» reconhecido para a tutela do direito à liberdade pessoal (neste sentido, cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Lisboa, Verbo Ed., 2011, p. 296).


O instituto processual penal de habeas corpus traduz, pois, uma das mais emblemáticas concretizações do direito constitucional aplicado.


O instituto de habeas corpus é historicamente uma instituição de origem britânica, remontando ao direito anglo-saxónico, mais propriamente ao Habeas Corpus Amendment Act, promulgado em 1679, passando o instituto do direito inglês para a Declaração de Direitos do Congresso de Filadélfia, de 1774, consagrado pouco depois na Declaração de Direitos proclamada pela Assembleia Legislativa Francesa em 1789, sendo acolhido pela generalidade das Constituições posteriores e introduzido entre nós pela Constituição de 1911 (artigo 3.º- 31), tendo como fonte a Constituição Republicana Brasileira de 1891, muito influenciada pelo direito constitucional norte-americano.


A Constituição de 1933 (artigo 8.º, § 4.º) consagrou igualmente o instituto, que só veio a ser regulamentado pelo Dec.-Lei n.º 35.043, de 20 de outubro de 1945, cujas disposições vieram a ser integradas no Código de Processo Penal de 1929 pelo Decreto-Lei n.º 185/72, de 31 de maio, sendo que no pós 25 de Abril de 1974 teve a regulamentação constante do Decreto-Lei n.º 744/74, de 27 de dezembro de 1974 e do Decreto-Lei n.º 320/76, de 4 de maio de 1976.


A Lei n.º 43/86, de 26-09 – lei de autorização legislativa em matéria de processo penal, ao abrigo da qual foi elaborado o Código de Processo Penal vigente – estabeleceu a garantia no artigo 2.º, n.º 2, alínea 39: «(…) garantia do habeas corpus, a requerer ao Supremo Tribunal de Justiça em petição apresentada perante a autoridade à ordem da qual o interessado se mantenha preso, enviando-se a petição, de imediato, com a informação que no caso couber, ao Supremo Tribunal de Justiça, que deliberará no prazo de oito dias».


Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, o habeas corpus traduz a relevância constitucional do direito à liberdade.


Recortando-se o direito à liberdade como um direito fundamental – artigo 27.º, n.º 1, da CRP – e podendo ocorrer a privação da mesma, «pelo tempo e nas condições que a lei determinar» apenas nos casos elencados no n.º 3 do mesmo preceito, a providência em causa constitui um instrumento de reação e garantia dirigido ao abuso de poder em virtude de prisão ou detenção ilegal, utilizando a expressão de Faria Costa, atenta a sua natureza, trata-se de um «instituto frenador do exercício ilegítimo do poder» (apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-10-2001, in CJSTJ 2001, t. 3, p. 202).


Corresponde, assim, a uma característica essencial do instituto de habeas corpus, que tal providência assume natureza de remédio excecional e urgente para proteger a liberdade individual, com a finalidade de pôr termo a situações de injustificada privação de liberdade, decorrentes de ilegalidade de detenção ou de prisão, taxativamente enunciadas na lei: um primeiro núcleo previsto nas quatro alíneas do n.º 1 do art. 220.º do CPP e um segundo elenco nos casos de abuso de poder ou erro grosseiro, patente e grave, na aplicação do direito, descritos nas três alíneas do n.º 2 do art. 222.º do CPP (cfr. Acs. STJ de de18-10-2007 e de 13-02-2008), entendimento consolidadamente reiterado pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça.


Sendo a prisão efetiva e atual o pressuposto de facto da providência e a ilegalidade da prisão o seu fundamento jurídico, esta providência extraordinária com a natureza de ação autónoma com fim cautelar há de fundar-se, como decorre do artigo 222.º, n.º 2, do CPP, em ilegalidade da prisão prevista no elenco exclusivo das suas três alíneas – 1) incompetência, 2) facto que não permite a prisão e 3) excesso de prazos legais ou judiciais (assim, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II volume, Lisboa, Verbo Ed., p. 297) –, encontrando-se a competência para a respetiva apreciação atribuída ao STJ, por:

a. Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b. Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c. Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.


Não obstante o seu lugar sistemático no Código de Processo Penal, a providência de habeas corpus não constitui um verdadeiro modo de impugnação, visto que o seu objeto se prende com a situação de objetiva ilegalidade e não com a decisão que lhe deu causa (cfr., neste sentido, ac. STJ de 07-03-2019 - proc. 72/15.3GAAVZ-K.S1 – 5.ª Sec.; Maia Costa, «Habeas Corpus, passado, presente e futuro», Julgar, N.º 29, 2016, p. 240).


A providência em causa não se destina, porém, a apreciar erros, de facto ou de direito, nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade (cfr., v.g., o ac. STJ de 04-01-2017, no processo n.º 109/16.9GBMDR-B. S1, e jurisprudência nele citada, in www.dgsi.pt).


Como não se substitui, nem pode substituir-se, aos recursos ordinários, o habeas corpus não é o meio adequado a pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão, porquanto está reservado para os casos indiscutíveis de ilegalidade que impõem e permitem uma decisão tomada com a celeridade e com os pressupostos legalmente definidos. O habeas corpus não é pois, meio adequado para sindicar as decisões processuais ou arguir nulidades e irregularidades processuais, que deverão de ser oportuna e tempestivamente impugnadas através dos meios próprios (cfr. ac. STJ de 16-03-2015).


O habeas corpus não colide, apesar disso, com o direito ao recurso, pois que «(…) visa, reagir, de modo imediato e urgente – com uma celeridade incompatível com a prévia exaustação dos recursos ordinários e com a sua própria tramitação contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal, decorrente de abuso de poder concretizado em atentado ilegítimo à liberdade individual “grave, grosseiro e rapidamente verificável” integrando uma das hipóteses enunciadas no n.º 2 do art. 222.º do Código de Processo Penal» (cfr., entre outros, ac. STJ de 12-12-2007).


A providência de habeas corpus não se destina, assim, a formular juízos de mérito sobre a decisão judicial de privação de liberdade ou a sindicar eventuais nulidades ou irregularidades, cometidas na condução do processo. Para esses fins servem os recursos, os requerimentos e os incidentes próprios, na sede e momento apropriados. Nesta sede cabe apenas verificar, de forma expedita, se os pressupostos de qualquer prisão constituem patologia desviante enquadrável na previsão de alguma das alíneas do n.º 2 do art. 222.º do CPP. Esta é a norma delimitadora do âmbito de admissibilidade do procedimento em virtude de prisão ilegal, do objeto idóneo da providência, nela se contendo os pressupostos nominados e em numerus clausus, que podem fundamentar o exercício da garantia em causa (ac. STJ de 09-11-2011).


Relativamente a outras vicissitudes terá de se recorrer a distintas formas de reação designadamente de índole processual, como a arguição de invalidade, reclamação ou recurso, sendo a providência de habeas corpus um instituto de natureza extraordinária (assim, Tiago Caiado Milheiro, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, AA. VV., t. III, Coimbra, Almedina, 2022, p. 547, § 13, 14 e 16).


A apreciação de habeas corpus pelo STJ coloca-se, assim, em patamar supra processual e a apreciação de indícios, ou sua insuficiência, para aplicar ou manter, por exemplo, uma medida de coação não lhe pode servir de fundamento (ibidem, Comentário …, cit., § 26; também assim, ac. STJ de 09-06-2020 - Helena Moniz), bem assim como não será ser de apurar se a prova foi ou não válida, se houve nulidades processuais (v.g. do auto de interrogatório ou outras, erro de valoração de prova ou outras - cfr. acs. STJ de 31-01-2018 - M. Matos, e de 03-01-2018 - Raúl Borges).


Assim, enquanto o Dec.-Lei n.º 35.043, de 20-10-1945, concebia o habeas corpus como «(…) um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não houvesse qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade», após as alterações de 2007, com o aditamento do n.º 2 ao art. 219.º do CPP, o instituto não deixou de ser um remédio, mas coexiste com os meios judiciais comuns, nomeadamente com o recurso (cfr. ac. STJ de 19-11-2020 - A. Gama), não existindo relação de litispendência ou de caso julgado entre o recurso previsto no n.º 1 do preceito e a providência de habeas corpus, independentemente dos respetivos fundamentos. Além do mais, os fundamentos do habeas corpus são, apenas, aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos suscetíveis de colocarem em causa a regularidade ou a legalidade da prisão (cfr. Ac. STJ de 19-05-2010, CJ - ACSTJ, 2010, t. 2, p.196).


Sendo este, em traços esquemáticos, o enquadramento jurídico-normativo do instituto de habeas corpus, cumpre procurar aplicá-lo ao caso vertente.


A petição da presente providência reveste um carácter informal, encerrando, todavia, a narração de circunstâncias que não são idóneas a concluir que a (atual) situação de privação de liberdade do arguido BB seja ilegal, por ter sido determinada por autoridade incompetente, por se dever a facto que a não admite ou por terem decorrido os prazos legais ou fixados por decisão judicial.


Relembrando o teor da “petição” da exponente, C. Donnelly – e descontando algum grau de ininteligibilidade porventura decorrente da dificuldade de domínio da língua portuguesa –, esta reporta factos que indiciariam um propósito incriminatório por parte do ofendido no processo em apreço, CC, de acordo com o qual teria prestado declarações falsas sobre as consequências dos factos de que foi vítima, cometidos pelo arguido e por outro indivíduo, também arguido e condenado nos autos.


Adita circunstâncias que integrariam obstrução à justiça, por parte de «procuradores» que o impediram de «ter qualquer defesa que fosse ilegal» [sic].


Conclui, ainda que, «Os promotores precisavam dessas declarações, pois BB ganhou seu recurso e o bloquearam com essas declarações. A família GG que gere os tribunais de ... está a encobrir os erros de HH. Solicito que CC seja entrevistado sobre as mentiras em suas declarações. Caso BB é habeas corpus e precisa de investigação BB está muito doente com cardiomiopatia e é necessária a libertação URGENTE da prisão.», pretendendo, eventualmente, sugerir haver pessoas de uma família (que identifica por um apelido) que dominaria o funcionamento do tribunal de ... e teria prejudicado, de forma não esclarecida, a posição processual do BB.


Comunica, por fim, uma situação clínica (cardiomiopatia) que afetará o BB, pelo que se imporia a sua libertação.


Há aspetos na dita petição que, apesar de pouco explícitos, pretenderão informar de algum tipo de injustiça, ou mesmo “perseguição”, de que teria sido vítima o BB.


Porém, face à ambiguidade e laconismo que caracteriza tal petição, nenhuma conclusão segura é possível extrair a esse respeito de tais menções.


O que importa, aqui, é apurar se tais alegações podem integrar fundamento para o deferimento da providência de habeas corpus.


Conforme se disse supra, cumpre averiguar se se verifica algum dos motivos consagrados no n.º 2 do art. 222.º do CPP, ou seja, se há ilegalidade na situação de privação de liberdade do arguido BB por ter sido a) efetuada ou ordenada por entidade incompetente; b) motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) se mantém para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.


O arguido BB encontra-se em cumprimento de pena, inicialmente aplicada em 1.ª instância (ex 1.º Juízo Criminal de ...), de 5 anos de prisão, mas alterada em sede de recurso pelo Tribunal da Relação de Évora, para a pena única, de 4 anos e 8 meses de prisão.


Assim, os tribunais que impuseram tal(ais) pena(s) são autoridades judiciárias competentes para decidir as causas penais, julgar crimes, responsabilizar os seus agentes e aplicar e fazer cumprir penas de prisão – artigos 202.º, 203.º, 210.º e 211.º, n.º 1, da CRP, e 67.º, n.º 3, 73.º, 118.º e 130.º da Lei n.º 62/2013, de 26-08 (LOSJ) e 8.º, 12.º e 14.º do CPP.


Todo o iter processual que acompanhou a situação processual do arguido foi empreendido, acompanhado e supervisionado por tribunais judiciais, de 1.ª e de 2.ª instância, com competência criminal, que aplicaram a pena e providenciaram pela sua execução.


Inverificada se mostra, assim, a causa de deferimento da providência de habeas corpus prevista no art. 222.º, n.º 2, al. a) do CPP.


Por seu turno, o arguido acha-se em cumprimento de pena de prisão, na sequência do trânsito em julgado do acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 25-05-2021, em que se procedeu à modificação da matéria de facto provada e não provada, absolvendo o arguido do crime (de roubo agravado) pelo qual fora condenado em 1.ª instância, condenando-o por um crime de roubo simples, p. p. no art. 210.º, n.º 1, do Cód. Penal, na pena de dois (2) anos de prisão, e num crime de ofensa à integridade física grave, p. p. no art. 144.º, al. b), do Cód. Penal, na pena de quatro (4) anos de prisão. Em cúmulo jurídico das penas parcelares, foi-lhe aplicada a pena única de quatro (4) anos e oito (8) meses de prisão.


A situação prisional do arguido é, portanto, derivada da sua condenação numa pena (única) por factos que, em cúmulo jurídico, integram tipos de crime puníveis com penas de prisão de 1 a 8 anos de prisão (roubo) e de 2 a 10 anos de prisão (ofensa à integridade física grave).


Improcede, por isso, a arguição da circunstância de a privação da liberdade do arguido BB ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite.


Por fim, o cumprimento da pena em que o arguido BB foi condenado iniciou-se em 1 de agosto de 2023.


Liquidada a mesma, foi descontado o período decorrido entre 18-05-2022 e 01-08-2023, em que esteve sob custódia das autoridades judiciárias do Reino Unido até ser entregue às autoridades portuguesas.


Nessa conformidade, o condenado BB só em 18-09-2024 alcançará o meio da pena; só em 28-06-2025 completará os 2/3 da pena e só em 18-01-2027 terminará o cumprimento da pena, datas ainda a alguma distância de ocorrer.


Falecem, assim, também, os motivos plasmados nas alíneas b) e c) do n.º 2 do art. 222.º do CPP.


Em conclusão, dos dados emergentes dos autos resulta que o arguido BB se encontra preso em cumprimento de pena de prisão (ainda distanciada dos seus limites), determinada por entidade competente e por factos ilícitos, típicos e culposos, que a lei prevê e pune com penas de prisão.


Nenhum vício ou anomalia afeta, pois, mediante os elementos disponíveis e apreciados, a situação de reclusão em que se encontra o arguido


Não se verifica, pois, qualquer fundamento para o deferimento do presente pedido de habeas corpus.


Por fim, na petição é referida uma circunstância – respeitante a uma condição clínica do arguido (cardiomiopatia) – que não pode produzir qualquer efeito ao nível da alteração da sua atual situação prisional, mas cuja sinalização importará representar, para os devidos efeitos, às autoridades prisionais, salvaguardando a eventualidade de tal não ser do seu conhecimento.

III. Decisão


Pelo exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em:


- indeferir, por manifestamente infundada, a providência de habeas corpus requerida por AA, no interesse de BB, e


- comunicar ao Ex.mo Senhor Diretor Geral da Reinserção e Serviços Prisionais, para os fins tidos por convenientes, a informação de carácter clínico mencionada na petição, e respeitante ao arguido BB.


Fixa-se a taxa de justiça em três (3) UC, a cargo da requerente, nos termos do art. 8.º, n.º 9 e da Tabela III do RCP.


Nos termos do art. 223.º, n.º 6 do CPP, dada a manifesta falta de fundamento da providência e a relativa simplicidade da decisão, vai condenada, ainda, na soma de 6 UC a acrescer àquela.

Lisboa, 19 de outubro de 2023

[Texto elaborado e informaticamente editado, integralmente revisto pelo Relator (art. 94.º, n.º 2 do CPP), sendo assinado pelo próprio e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos e pela Senhora Juíza Conselheira Presidente da Secção].

Os juízes Conselheiros

Jorge dos Reis Bravo (relator)

João Rato (1.º adjunto)

Jorge Gonçalves (2.º adjunto)

Helena Moniz (Presidente de Secção)