I- Verificando-se uma cumulação de várias ações conexas que podiam ter sido propostas individualmente por cada trabalhador, o valor da causa a atender para efeitos de alçada é o de cada uma das ações coligadas e não a soma do valor de todas elas.
II- Abrangendo o caso julgado os fundamentos lógico-jurídicos que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva da decisão, é de admitir o chamado caso julgado implícito quando a afirmação que faz caso julgado impõe, como consequência necessária, outra a que o caso julgado se alarga.
Proc. nº 11839/20.0T8LSB.L1-A.S1 (reclamação - Arts. 643.º, n.º 3, e 652º, nº 3, do CPC)
MBM/RP/JG
Acordam, em conferência, na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça
I.
Ré/reclamante: TRANSPORTES AÉREOS PORTUGUESES, S.A.
Autores: AA e outros.
X X X
1. A ação foi intentada por vários Autores.
2. No despacho saneador, o valor da causa foi fixado em 157.363,76 €.
3. Interposto recurso de revista do acórdão proferido nos autos pelo Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), o mesmo não foi admitido pela Senhora Desembargadora Relatora, em virtude de o valor correspondente ao pedido deduzido por cada um dos autores ser inferior à alçada da Relação.
4. Notificada da decisão do relator que neste Supremo Tribunal indeferiu a reclamação, veio a Ré reclamar para a conferência, ao abrigo dos arts. 643º, nº 4, e 652º, nº 3, dizendo, essencialmente:
– No despacho saneador o valor da ação foi fixado em 157.363,76 €, sem que qualquer referência tenha sido feita aos valores individuais concretamente fixados a cada ação coligada, despacho que transitou em julgado.
– O despacho reclamado viola o direito da R. à defesa e ao contraditório e representa uma grave e insustentável obliteração da segurança jurídica.
– Não é certo ser manifesto, em face de mera operação aritmética, quais os valores parcelares que foram considerados no despacho que fixou o valor (global) da causa.
– De entre os pedidos deduzidos pelos Autores, o único que o Tribunal da Relação considerou no Despacho de rejeição do recurso da R. para concluir pela ausência de alçada foi o pedido de condenação da R. no pagamento a cada Autor, a título de diferenças devidas ao nível de salários base, dos valores de 7.924,00 € (no caso dos Autores AA e BB), 8.879,80 € (no caso dos Autores CC, DD, EE, FF e GG), e 7.790,40 € (no caso da Autora HH).
– A tais valores acrescem (devem acrescer) os valores de todos os demais pedidos, a saber: (i) os valores peticionados pelos Autores a título de “retribuições, incluindo subsídios de Natal e de férias; (ii) os valores peticionados a título de ajudas de custo complementares”; (iii) os valores correspondentes às diferenças salariais devidas a título de ajuda de custo complementar; (iv) os valores peticionados pelos Autores a título de indemnização por danos não patrimoniais; (v) e o valor dos pedidos de declaração de nulidade do termo, declaração da ilicitude do despedimento e reintegração dos Autores.
– A utilidade económica de cada ação é, assim, superior a 30.000,00 €.
– A deduzida reclamação é especialmente complexa, pelo que a taxa de justiça deve ser fixada em uma unidade de conta.
5. Os reclamados não responderam.
Cumpre decidir.
II.
6. Com interesse para a decisão, há ainda a considerar:
6.1. Na petição inicial, os AA. formularam os seguintes pedidos:
a. Ser considerada nula a justificação aposta ao contrato de trabalho dos Autores, e serem os mesmos considerados como contratos de trabalho sem termo, nos termos do artigo 147º/1, a), b) e c) do CT;
b. Ser declarado ilícito o despedimento de cada um dos Autores, conforme artigo 381º, c) e ss. do CT, por não ter sido precedido de processo disciplinar, nem integrar qualquer uma das formas lícitas de resolução do contrato e, em consequência ser a Ré condenada a:
I- Reintegrar os Autores no seu posto de trabalho com a categoria de CAB I e antiguidade nessa categoria reportada a de Abril de 2018, ou categoria mais elevada se lhes couber à data da decisão do Tribunal, conforme nºs 1 e 3 da cláusula 4ª e nºs 1 e 2 da cláusula 5ª do Regulamento da carreira profissional de tripulante de cabina e nos termos do artigo 393º/2, b), do CT;
II -A pagar aos Autores as retribuições, incluindo subsídios de Natal e de férias, que estes deixaram de auferir desde a data do seu despedimento até ao trânsito em julgado, com exclusão das remunerações relativas ao período que decorreu entre o despedimento e trinta dias antes da propositura da ação nos termos do artigo 393º, n.º 2, a) do CT;
III- A pagar aos Autores a ajuda de custo complementar, que é parte integrante do seu salário base (Cl. 1ª e 4ª, RRRGS), que estes deixaram de auferir desde a data do seu despedimento até ao trânsito em julgado, com exclusão das remunerações relativas ao período que decorreu entre o despedimento e trinta dias antes da propositura da ação nos termos do artigo 393º, do CT, e que deverá ser calculada de acordo com a Cláusula 5ª do RRRGS;
IV Seja a Ré condenada a pagar aos Autores as diferenças salariais devidas a título de salário base, verificadas em virtude da sua errada integração nas categorias de CAB Início e CAB 0, ao invés da categoria de CAB 1, a contar desde o início dos seus contratos de trabalho, nos termos do artigo 389º/1, a) do CPC que, sem prejuízo da necessidade de recorrer a incidente de liquidação que se possa revelar necessário, são as seguintes, acrescidas de juros desde a data de citação:
a) Ao Autor AA o valor de 7.924,00 (sete mil novecentos e vinte e quatro euros) ilíquidos;
b) Ao Autor BB o valor de 7.924,00 (sete mil novecentos e vinte e quatro euros) ilíquidos;
c) À Autora CC o valor de 8.879,80 (oito mil oitocentos e setenta e nove euros e oitenta cêntimos) ilíquidos.
d) À Autora DD o valor de 8.879,80 (oito mil oitocentos e setenta e nove euros e oitenta cêntimos) ilíquidos.
e) Ao Autor EE o valor de 8.879,80 (oito mil oitocentos e setenta e nove euros e oitenta cêntimos) ilíquidos.
f) Ao Autor FF o valor de 8.879,80 (oito mil oitocentos e setenta e nove euros e oitenta cêntimos) ilíquidos.
g) À Autora GG o valor de 8.879,80 (oito mil oitocentos e setenta e nove euros e oitenta cêntimos) ilíquidos.
h) À Autora HH o valor de 7.790,40 (sete mil setecentos e noventa euros e quarenta cêntimos) ilíquidos.
V - Seja a Ré condenada a pagar aos Autores as diferenças salariais devidas a título de ajuda de custo complementar, que os Autores deixaram de auferir fruto da sua errada integração nas categorias de CAB Início e CAB 0, ao invés da categoria de CAB 1, a contar desde o início dos seus contratos de trabalho e até ao final da relação laboral, nos termos do artigo 389º/1, a) do CPC, e por isso, sem prejuízo de eventual incidente de liquidação quanto aos montantes vincendos aos Autores que respeite, são as seguintes, acrescidas de juros desde a data de citação:
a) Ao Autor AA o valor de 12.374,11 (doze mil trezentos e setenta e quatro euros e onze cêntimos) ilíquidos;
b) Ao Autor BB o valor de 13.360,75 (treze mil trezentos e sessenta euros e setenta e cinco cêntimos) ilíquidos;
c) À Autora CC o valor de 12.867,43 (doze mil oitocentos e sessenta e sete euros e quarenta e três cêntimos) ilíquidos.
d) À Autora DD o valor de 8.818,52 (oito mil oitocentos e dezoito euros e cinquenta e dois cêntimos) ilíquidos.
e) Ao Autor EE o valor de 12.168,56 (doze mil cento e sessenta e oito euros e cinquenta e seis cêntimos) ilíquidos.
f) Ao Autor FF o valor de 11.428,58 (onze mil quatrocentos e vinte e oito euros e cinquenta e oito cêntimos) ilíquidos.
g) À Autora GG o valor de 12.867,43 (doze mil oitocentos e sessenta e sete euros e quarenta e três cêntimos) ilíquidos.
h) À Autora HH o valor de 11.716,35 (onze mil setecentos e dezasseis euros e trinta e cinco cêntimos) ilíquidos.
VI Seja a Ré condenada a pagar aos Autores indemnização por danos não patrimoniais, em valor a arbitrar pelo tribunal, mas nunca inferior a 2.000,00 €, acrescidos de juros de mora desde a data da citação da Ré;
VII Em ligação ao ponto anterior, seja a Ré condenada a pagar ao Autor AA indemnização por danos patrimoniais em valor a arbitrar pelo tribunal, mas nunca inferior a 3.000,00 €, atenta a sua situação concreta […], acrescidos de mora desde a data da citação da Ré.
6.2. Do despacho reclamado consta a seguinte fundamentação:
«(…)
6. A admissibilidade do recurso de revista exige a verificação dos respetivos pressupostos gerais previstos no artigo 629º, n º 1, do C.P.C., sem prejuízo das decisões que admitem recurso independentemente do valor da causa e da sucumbência, nos termos do artigo n.º 2 deste artigo.
Vale por dizer que se impõe o preenchimento dos condicionalismos respeitantes à natureza ou conteúdo da decisão (artigo 671º, nº1 do C.P.C.), ao valor da causa, ao valor da sucumbência (artigo 629º, nº1 do C.P.C.) e ao pressuposto processual da legitimidade (artigo 631º do C.P.C.).
No despacho saneador, o valor da causa foi fixado em 157.363,76 €.
Todavia, a ação foi intentada por vários Autores, configurando-se in casu uma situação de coligação ativa (concretamente, uma cumulação de tantas ações quantos os Autores), as quais poderiam ter sido propostas individualmente por cada um dos trabalhadores.
Nestas circunstâncias, como é jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal, deve atender-se ao valor de cada uma das ações, separadamente.
7. É manifesto, em face de mera operação aritmética, quais os valores parcelares que foram considerados no despacho que fixou o valor (global) da causa, valores que são todos inferiores à alçada da Relação, como se refere no despacho reclamado.
Alega a ora reclamante que “os valores indicados pelos autores na respetiva Petição Inicial e pelo Tribunal da Relação de Lisboa no Despacho reclamado em nada refletem a utilidade económica de cada ação coligada”.
Acontece que a R. não reagiu oportunamente, como se lhe impunha, no tocante aos termos em que o valor da causa foi fixado (bem como, implicitamente, o valor de cada uma das ações coligadas), não tendo sequer suscitado tal questão no recurso de apelação [cfr. art. 629º, nº 2, b), do C.P.C.], pelo que a discussão de matéria se encontra precludida.
Acresce, como se julgou no Ac. do STJ de 05.05.2016, Proc. nº 1571/05.0TJPRT-C.P1.S1 (2ª Secção), que, “não tendo a recorrente […] questionado o valor da ação no recurso de apelação que interpôs para a Relação, mas antes tão só e apenas o entendimento [critério] da 1ª instância […], não pode o STJ tomar conhecimento daquela primeira questão (valor da causa) que, agora, ex novo, a recorrente levantou”.
Improcede, pois, a reclamação.
(…)»
III.
7. Embora por manifesto erro de cálculo se tenha escrito no despacho saneador1 157.363,76 €, em vez de 163.639,13 €, é patente que o valor da causa aí globalmente fixado corresponde ao conjunto dos valores expressos nos pedidos constantes dos itens b. IV e b. V, da petição inicial (cfr. supra nº 6.2.)
Vale por dizer que o valor global atribuído à causa corresponde à totalidade dos valores que nesse despacho foram tomados em consideração relativamente a cada uma das ações coligadas, sendo que, em consequência, também foram implicitamente fixados os valores parcelares concernentes a cada uma destas, valores que são todos inferiores à alçada da Relação, não sendo por isso admissível o recurso de revista, nos termos do art. 629º, nº 1, do C.P.C
Com efeito, abrangendo o caso julgado os fundamentos lógico-jurídicos que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva da decisão, é de admitir o chamado caso julgado implícito quando a afirmação que faz caso julgado impõe, como consequência necessária, outra a que o caso julgado se alarga, como v.g. julgou o Ac. de 14.05.2014 desta Secção Social do STJ, Proc. nº 120/13.1TTGRD-A.C1S1.
Como refere Miguel Teixeira de Sousa, “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão. (…) [E]ssa eficácia do caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada”2.
8. Como consta do despacho reclamado, a R. não reagiu oportunamente, como se lhe impunha, no tocante aos termos em que o valor da causa foi fixado (bem como, implicitamente, o valor de cada uma das ações coligadas), não tendo sequer suscitado tal questão no recurso de apelação [cfr. art. 629º, nº 2, b), do C.P.C.], pelo que a discussão de matéria se encontra precludida.
Consequentemente, também não pode a reclamante vir agora questionar os critérios subjacentes ao despacho que fixou o valor da causa, mormente na parte em que apenas teve em conta os pedidos constantes dos itens b. IV e b. V, da petição inicial.
9. Teve oportunidade de impugnar aquele despacho, mas não o fez, por razões/opções que são da sua inteira responsabilidade.
Teve oportunidade de reclamar, como reclamou, do despacho que na Relação não admitiu a revista.
Por fim, também exerceu o seu direito de reclamar para a conferência do despacho do relator que manteve o despacho proferido no TRL.
Neste contexto, é patente que não se mostram minimamente beliscados os direitos da reclamante à defesa e ao contraditório (cfr., v.g., o disposto na parte final do art. 3º, nº 3, do C.P.C.), nem os imperativos de segurança jurídica, tanto mais que o despacho reclamado se encontra alinhado com a jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal sobre a matéria em apreço3.
10. Por fim, quanto à taxa de justiça fixada no despacho reclamado.
O montante fixado (3 UCs) situa-se dentro do intervalo correspondente à “taxa de justiça normal” (coluna A do Anexo II, do Regulamento das Custas Judicias), sem que tenha sido aplicado o preceituado no nº 7 do art. 7º, do mesmo diploma, que prevê o pagamento de um valor superior nos casos que revistam especial complexidade.
Por outro lado, o valor fixado encontra-se de acordo com o grau de complexidade do incidente de reclamação, tendo em conta, nomeadamente, que o mesmo se reporta a várias ações coligadas.
Deste modo, improcede totalmente a pretensão da reclamante.
IV.
11. Nestes termos, indeferindo a presente reclamação para a conferência, acorda-se em confirmar despacho proferido pelo relator.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.
Lisboa, 23 de Novembro de 2023
Mário Belo Morgado (Relator)
Ramalho Pinto
Júlio Manuel Vieira Gomes
________________________________________________
1. Cfr. supra nº 2.↩︎
2. Estudos sobre o Novo Processo Civil, pp. 578 - 579.↩︎
3. V.g. Acs. de 07.07.2023, Proc. nº 4/21.0T8LSB-Q.L1.S1 e Proc. nº 4267/21.2T8MAI.P1-A.S1, e de 14.07.2022, Proc. nº 130/19.5T8BRR.L1.S1.↩︎