REVISTA EXCECIONAL
INTERESSES DE PARTICULAR RELEVÂNCIA SOCIAL
Sumário


A simples divergência interpretativa quanto ao clausulado de uma convenção coletiva não é necessariamente uma questão de complexidade jurídica ou relevância social que justifique uma revista excecional.

Texto Integral



Processo 16800/21.5T8PRT.P1.S2


Revista Excepcional


126/23


Acordam na Formação a que se refere o nº 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Hotelaria, Turismo, Restauração e similares do Norte intentou acção declarativa comum contra Congregação das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição.


Sustenta, em suma, que desde 2 de Janeiro de 2015, a Ré deixou de proceder ao pagamento do trabalho prestado em dia feriado nos termos em que tal é imposto pela cláusula 40ª do CCT celebrado entre a APHP (Associação Portuguesa de Hospitalização Privada) e a FESAHT (Federação dos Sindicatos da Agricultura, Alimentação, Bebidas, Hotelaria e Turismo de Portugal), onde se encontra filiada a associação sindical do Autor, publicado no BTE, 1.ª série, n.º 43, de 22.11.2000 e a partir de 2010 o CCT publicado no BTE, 1.ª série, n.º 15, de 22.04.2010, e respectivas portarias de Extensão e actualizações salariais.


Conclui, peticionando o seguinte:


1 - Reconhecer que aos trabalhadores ao seu serviço e associados do Sindicato retro, após 2 de Janeiro de 2015, no pagamento da retribuição por trabalho prestado em dia feriado se aplica o disposto nas cláusulas 40.ª do CCT celebrado entre a APHP -Associação Portuguesa da Hospitalização Privada, publicado no BTE n.º 15, de 22 de abril de 2010 e a FESAHT – Federação dos Sindicatos da Hotelaria e Turismo de Portugal publicado no BTE n.º 15, de 22 de abril de 2010 e posteriores alterações e respetivas PE’s isto é, com o acréscimo de 100% sobre a retribuição pelo trabalho prestado nesse dia, nos termos da seguinte fórmula:


RM × 12): (52 × n) × 2


sendo:


RM = retribuição mensal;


N = período normal de trabalho semanal.


2 - Condenar a R. Congregação das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição no pagamento a todos os trabalhadores associados do A. as diferenças PE’s., ou seja, com o acréscimo de 100% sobre a retribuição pelo trabalho prestado nesse dia, nos termos da seguinte fórmula:


RM × 12): (52 × n) × 2 sendo:


RM = retribuição mensal;


N = período normal de trabalho semanal


3 – Condenar a R. ao pagamento a esse título aos associados do A. infra melhor identificados as quantias abaixo indicadas:


AA - € 1.447,43


BB - € 826,69


CC - € 322,85


DD - € 2.264,96


EE - € 921,17


FF - € 1.857,85


GG - € 572,50


HH - € 1.423,72


II - € 2.019,86


JJ - € 797,62


KK - € 1.510,55


LL - € 1.869.53


MM - € 809,34


NN - € 1.536.01


OO C. Castro - € 1.420,42


PP - € 2.150,79


QQ - € 1.237,51


A Ré contestou defendendo-se por excepção de prescrição, de caso julgado e por impugnação.


No despacho saneador-sentença proferido em 07.11.2022 foi apreciada a excepção de prescrição invocada pela Ré nos seguintes termos:


Assim, julgo procedente a invocada excepção, declarando prescrito o direito das trabalhadoras BB, CC, DD, FF, HH, RR, II, KK, LL, MM e QQ aos créditos aqui reclamados pelo sindicato autor e, consequentemente, nesta parte, absolvo a ré do pedido (artigo 576.º, n.º 3 do CPC).”.


Ainda no saneador-sentença, o Tribunal decidiu de imediato o mérito da causa, considerando improcedente a acção.


O Autor interpôs recurso de apelação.


O Tribunal da Relação do Porto considerou a acção totalmente improcedente por acórdão de 08.05.2023.


O Autor interpôs recurso de revista excepcional.


No despacho liminar, considerou-se estarem verificados os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso.


x


O processo foi distribuído a esta Formação, para se indagar se estão preenchidos os pressupostos para a admissibilidade da revista excepcional referidos na alínea b) do nº 1 do artº 672º do Código de Processo Civil.


O Autor invocou, com vista a essa admissibilidade, nas conclusões, o seguinte:


- Prescreve o artigo 672º, n.º 1, alínea b), do CPC, aqui aplicável por força do disposto no artigo 81º n.º 5, do CPT, que “excecionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no n.º 3 do artigo anterior quando: […] b) estejam em causa interesses de particular relevância social.”;


- Está aqui em causa a interpretação da convenção coletiva que regula o sector da hospitalização privada;


- Face ao número de empregadores e trabalhadores envolvidos, os quais ficam ou podem vir a ficar afetos pela interpretação que se vier a fixar trara-se de um assunto de grande interesse e relevância social;


- Como consta do contrato coletivo de trabalho celebrado entre a Associação Portuguesa de Hospitalização Privada – APHP e a FESAHT - Federação dos Sindicatos da Agricultura, Alimentação, Bebidas, Hotelaria e Turismo de Portugal e outro, publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 15, Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 9, 8/3/2022 de 22 de abril de 2010 e posteriores alterações consolidadas no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 20, de 29 de maio de 2019, com as alterações introduzidas pelo Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 11, de 22 de março de 2020, e na sua redacção actual com as alterações introduzidas pelo Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 9, 8/3/2022 o número de empresas abrangidas por este CCT é de 75 e o número de trabalhadores é de 19 100;


- Este número de trabalhadores e empresas aumenta exponencialmente uma vez que o IRCT em apreço foi objecto de portarias de extensão que alargaram o seu âmbito de aplicação a todas as relações de trabalho entre empregadores do setor da hospitalização privada, explorando unidades de saúde com ou sem internamento, com ou sem bloco operatório, destinado à administração de terapêuticas médicas, e trabalhadores ao seu serviço, uns e outros representados pelas associações outorgantes tendo a última PE sido publicada no BTE Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 26, 15/7/2022;


- Estas empregadoras são casas de saúde e hospitais que estão legalmente dispensadas de suspender o trabalho em dia feriado;


- A interpretação a dar à cláusula relativa ao cálculo do pagamento pelo trabalho prestado pelos respectivos trabalhadores nesses dias de feriado e, o peso que assumirá ao nível financeiro e estrutural nas diversas entidades patronais é algo que fará a diferença e como tal com relevância social suficiente para ser objeto de ponderação e reflexão por este Venerando Tribunal.


- Estamos no âmbito da interpretação de uma convenção coletiva em que temos direitos e interesses importantes de uma determinada comunidade (hospitalização privada) que estão manifestamente em colisão — direito dos trabalhadores e entidade patronal – e cuja sua resolução tem um impacto significativo naquela comunidade.


- Não há margem para dúvidas que estamos diante de uma questão de interesse social que legitima a interposição do presente recurso de revista.


x


Cumpre apreciar e decidir:


A revista excepcional é um verdadeiro recurso de revista concebido para as situações em que ocorra uma situação de dupla conforme, nos termos do artigo 671º, nº 3, do Código de Processo Civil.


A admissão do recurso de revista, pela via da revista excepcional, não tem por fim a resolução do litígio entre as partes, visando antes salvaguardar a estabilidade do sistema jurídico globalmente considerado e a normalidade do processo de aplicação do Direito.


De outra banda, a revista excepcional, como o seu próprio nome indica, deve ser isso mesmo- excepcional .


O Recorrente invoca como fundamento da admissão do recurso o disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 672º do Código de Processo Civil, que refere o seguinte:


“1 - Excecionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no n.º 3 do artigo anterior quando:


(...)


b) Estejam em causa interesses de particular relevância social”.


No que concerne a esta excepção à regra da irrecorribilidade em situações de dupla conforme, prevista na referida alínea b), Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís F. P. Sousa (CPC Anotado, Almedina Vol. I, 2018), referem que “Na segunda exceção, por estarem em causa interesses de particular relevo social, serão de incluir ações cujo objeto respeite, designadamente, a interesses importantes da comunidade, à estrutura familiar, aos direitos dos consumidores, ao ambiente, à ecologia, à qualidade de vida, à saúde ou ao património histórico e cultural, valores que naturalmente se sobrepõem também ao mero interesse subjetivo da parte da admissibilidade do terceiro grau de jurisdição”.


O Recorrente entende que a interpretação a dar à cláusula relativa ao cálculo do pagamento pelo trabalho prestado pelos respectivos trabalhadores nos dias de feriado, e o peso que assumirá ao nível financeiro e estrutural nas diversas entidades patronais, é algo que fará a diferença e como tal com relevância social suficiente para ser objeto de ponderação e reflexão pelo STJ. E que estão manifestamente em colisão direitos dos trabalhadores e entidade patronal, cuja sua resolução tem um impacto significativo na comunidade da hospitalização privada.


Sendo certo que “não é de admitir a revista excecional quando as razões invocadas para a sua admissão se limitam às consequências e impacto negativo da condenação na situação financeira da recorrente” (Ac. do STJ de 17/03/2022, proc. 28602/15.3T8LSB.L2.S2), não se olvida que se está perante matéria- interpretação de convenção colectiva- de particular importância e impacto em um número alargado de trabalhadores. Mas isso também acontece com a interpretação de diversas normas legais e convencionais e em muitos aspectos da realidade jurídico-laboral. E sob pena de banalizar a revista excepcional, tal só por si não é suficiente para se considerar que estamos perante os legalmente exigidos “interesses de particular relevo social”.


Não se vê que estejam em causa “aspetos fulcrais para a vida em sociedade” (Ac. do STJ de 13.04.2021, P. 1677/20.6T8PTM-A.E1.S2) ou que “exista um interesse comunitário significativo que transcenda a dimensão inter partes (Ac. do STJ de 29.09.2021, P. n.º 686/18.0T8PTG-A.E1.S2), sendo certo que nesta matéria “não basta o mero interesse subjetivo do recorrente” (Ac. do STJ de 11.05.2021, P. 3690/19.7T8VNG.P1.S2).


E este STJ, pelo recente acórdão de 27/09/2023, proc. 5222/21.8T8CBR.C1.S2, pronunciou-se expressamente no sentido de a “circunstância de se tratar da aplicação de uma convenção coletiva não implica, por si só, que se deva considerar estarem em jogo “interesses de particular relevância social”, sob pena de o recurso de revista excecional se tornar em algo de inteiramente normal na área da contratação coletiva. (...). A decisão tomada pelo Tribunal recorrido não provoca qualquer alarme social, nem qualquer colisão com valores sociais dominantes”.


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Decisão:


Pelo exposto, acorda-se em indeferir a admissão da revista excepcional, interposta pelo Autor / recorrente, do acórdão do Tribunal da Relação.


Sem custas, por delas estar isento o Recorrente.


Lisboa, 23/11/2023


Ramalho Pinto (Relator)


Júlio Gomes


Mário Belo Morgado





Sumário (da responsabilidade do Relator).