CRIME DE INJÚRIA
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
FACTOS INTEGRADORES DA CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
Sumário


I – A acusação particular tem de constar todos os elementos objetivos e subjetivos que são imputados ao arguido, sob pena de a mesma dever ser rejeitada por ser manifestamente infundada ao não conter a descrição de todos os factos penalmente relevantes.

II – É assim de rejeitar uma acusação particular deduzida pelo assistente, quando não contém na mesma os factos integradores da consciência da ilicitude do arguido, porquanto esta consubstancia um elemento subjetivo do tipo, dela dependendo a verificação e punibilidade do comportamento constante da norma incriminadora.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes que integram a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I - Relatório

Decisão recorrida

No âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) nº 785/21...., do Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Local Criminal ..., foi proferido no dia 13 de março de 2023, o seguinte despacho que se transcreve:
“Em 13/01/2023, veio a assistente AA deduzir acusação particular contra o arguido BB, imputando-lhe a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, do Código Penal.

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O Ministério Público acompanhou a acusação particular.
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Nos termos do disposto na al. a), do n.º 2, do art.º 311.º, do Código de Processo Penal, “Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:

a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;” Esclarecendo as als. b) e d, do n.º 3, do mesmo artigo, que se considera a acusação manifestamente infundada quando não contenha a narração dos factos ou se os factos não constituírem crime.
No que respeita à narração dos factos, preceitua a al. b), do n.º 3, do artigo 283.º, do Código de Processo Penal, que a acusação deve conter a “narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;”.
Para que se preencha o requisito da narração dos factos, é necessário que a acusação contenha a “descrição dos factos imputados”, e acrescenta-se, “todos” os factos imputados, uma vez que o artigo 13.º, do Código Penal, dispõe que “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”, sendo que a acusação tem de descrever os factos provados relativos ao elemento subjectivo. Isto porque não se pode presumir que o agente agiu nem com dolo, nem com negligência.
O que atrás fica dito é corroborado pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores. De facto, a título de exemplo pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17/06/2003 (processo 10164/02-5, publicado no sítio www.dgsi.pt), que, “sendo a decisão omissa de factualidade provada quanto ao elemento subjectivo do ilícito contra-ordenacional imputado à ora recorrente, não poderia esta ter sido sancionada, impondo-se a respectiva absolvição”.
A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do art. 283.º, n.º 3, do Código Penal, constitui, também, elemento fundamental para garantia do direito de defesa do arguido, que só poderá ser efetivo com o adequado conhecimento dos factos imputados, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem.
A indicação dos factos imputados com menção das provas obtidas é uma exigência em tributo aos mais elementares princípios que devem reger um direito de carácter sancionatório e que têm a ver sobretudo com garantias mínimas relacionadas desde logo com o direito de defesa, consagrado na Constituição da República Portuguesa – cfr. art.º 32.°.
Entre essas garantias mínimas de defesa, avulta, a de “serem conhecidos os factos que são imputados ao arguido, pois sem que os mesmos estejam estabelecidos não é possível avaliar a justiça da condenação, fica inviabilizado o direito ao recurso e não há salvaguarda do ne bis in idem” - cf. Ac. deste STJ de 21-09-2006, Proc. n.º 3200/06 - 5.ª.
Descendo ao caso dos presentes autos, verifica-se que a acusação particular não contém a descrição de todos os factos no que concerne ao elemento subjetivo do ilícito.
De facto, analisada a mesma à luz dos considerandos supra expostos, verifica-se que não indica todos os factos que se exigiria para que se possa concluir pelo preenchimento do dolo.
Num crime doloso, da acusação há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua ação), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade - o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objetivos do tipo). O dolo como elemento subjetivo - enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objetivas - constitutivo do tipo legal, será, então, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283.º, n.º 3, do C.P.Penal, impõe que seja incluído na acusação.
No que se refere ao seu elemento subjetivo, o crime de injúria é um crime doloso.

Ora, analisados os factos vertidos na acusação, o tribunal entende não se poder concluir pela verificação do elemento subjetivo do tipo de crime de injúria, dado que, para existir dolo, necessário é que o arguido tenha conhecimento da ilicitude da sua conduta e, ao longo dos factos vertidos na acusação, em lado algum se faz menção ao elemento intelectual do dolo, não se podendo entender tal como implícito – cfr., a título de exemplo, o teor do ac. proferido pelo T.R.C., pr. n.º 189/14.1PFCBR.lC1, 07/03/2018, disponível in www.dgsi.pt :

“O comportamento só é pressuposto da sanção quando nele se integra também a consciência do significado jurídico desse mesmo comportamento; não basta a ilicitude objetiva, importa também a culpabilidade e para esta é necessária a consciência da ilicitude dos factos objetivamente ilícitos. A deficiente descrição dos factos integradores do elemento subjetivo do tipo de burla (e é de deficiente e insuficiente descrição do tipo subjetivo que se trata no caso sub judice e não de omissão integral de descrição do tipo subjetivo), não é susceptível de ser integrada, em julgamento.”.
Com efeito, como afirma o Ac. da RG, in CJ nº 165, II, 2003, “não existem presunções de dolo; e, por isso, não é possível afirmar a sua existência simplesmente a partir das circunstâncias externas da ação concreta.
Embora, processualmente, o dolo seja apreciado de forma indireta, através de atos de natureza externa, é sempre necessário comprovar a existência dos diversos elementos constitutivos e relacioná-los com as pertinentes circunstâncias típicas de cada ilícito.
Não se pode pois ter como implícita ou subentendida a descrição do dolo. Não há lugar à existência de "factos implícitos", mas apenas a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena.
Desta forma, não se poderá concluir pela existência de um ilícito penal.
Por fim, cumpre referir que não é admissível ao juiz ordenar qualquer convite ao aperfeiçoamento ou correção de uma acusação, formal ou substancialmente deficiente (neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa, de 10/10/2002, Col. de Jur., ano XXVII, tomo IV, pág. 132).
Pelo exposto, e ao abrigo do disposto no artigo 311º, nº2, alínea a) e nº3, alínea b), considero a acusação particular apresentada pela assistente manifestamente infundada e, consequentemente, rejeito a mesma.
Custas pela assistente (artigo 515º, nº 1, alínea f) do Código de Processo Penal), com taxa de justiça fixada em 1 UC (art.º 8.º, n.º 9, do R.C.P. e tabela III).
Notifique.
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Recurso apresentado

Inconformado com tal decisão, a assistente veio interpor o presente recurso e após o motivar, apresentou as seguintes conclusões e petitório, que se reproduzem:

1.ª A Assistente deduziu acusação particular contra o arguido imputando-lhe a prática de um crime de injúrias p. e p. pelo artigo 181.º do Código Penal, acusação que o Ministério Público acompanhou.
2.ª Contudo, a acusação particular foi liminarmente rejeitada por despacho que, por «não se poder concluir pela verificação do elemento subjetivo», a considerou insanavelmente omissiva quanto a factualidade sobre o «elemento intelectual do dolo», por não ter sido alegado que o arguido «tenha conhecimento da ilicitude da sua conduta».
3.ª Nos chamados “crimes em si” do direito penal clássico, o conhecimento ou a consciência da ilicitude não integra o elemento subjectivo do tipo, não respeita ao dolo, mas sim à culpa e, como tal, enquanto facto psicológico de conteúdo positivo, não tem de ser alegado na acusação nem cumpre fazer prova da sua verificação positiva em cada caso, ainda que indirecta, por estar a mesma
implícita no preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito.
4.ª. O crime de injúria é um “delicta in se” do direito penal clássico, que tutela a honra (a qual se traduz num conjunto de valores éticos que cada pessoa possui, tais como a lealdade, a probidade, a rectidão) e a consideração (a qual se concretiza no merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, o bom-nome, o crédito, a confiança, a estima a reputação, ou seja, a dignidade objetiva ou seja, a dignidade de cada um), de harmonia com a protecção constitucional do direito ao bom nome, à reputação e à imagem (artigo 26.°, n.º 1, da CRP) e com a tutela geral da personalidade (artigo 70.º, n.º 1 do Código Civil).
5.ª Quanto ao elemento subjectivo do crime de injúria, está consolidado o entendimento de que para o seu preenchimento basta o dolo genérico, em qualquer uma das suas modalidades, não se exigindo o dolo específico ou especial traduzido no propósito de ofender (animus injuriandi vel diffamandi), bastando a consciência por parte do agente de que as expressões ou palavras que utiliza são susceptíveis de ofender a honra ou consideração da pessoa visada.
6.ª Não se torna necessário que o agente apregoe ou deixe anunciada a sua vontade de ofender alguém, mas tão só que dos factos por ele praticados resulte que qualquer pessoa que agisse do modo concretamente evidenciado não poderia, de acordo com padrões de normalidade e de compreensão da maioria das pessoas, querer outra coisa senão ofender aquela concreta pessoa.
7.ª Dando por reproduzido o teor da acusação particular, transcrito no ponto 1 dos factos provados supra (em particular os artigos 15 a 33), parafraseamos o enunciado do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 05.03.2013, perfilhado pelo Acórdão da mesma Relação de 06.02.2018 e pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28.10.2020, para sublinhar que a Assistente se queixa de que o Arguido lhe chamou determinados nomes («ordinária», «ladra», «és uma ladra») e lhe dirigiu certas expressões («tu não és ninguém», «paga o que deves», «anda a roubar a mãe») vulgarmente tidos por injuriosos, não estando simplesmente a fazer uma narração dos factos mas, explicitamente (e o bastaria que o fosse implicitamente), a dizer que tais nomes ou expressões foram praticados com a intenção correspondente ao seu significado objectivo e que, por isso, o Arguido cometeu um crime de injúria.
8.ª E, parafraseando os Acórdãos da Relação de Évora, de 05.03.2013 e 06.02.2018, basta, pois, que, grosso modo, o Arguido BB admita o teor ofensivo das imputações e juízos formulados e tenha actuado conformando-se com ele (dolo eventual), para que se tenha por preenchido o elemento subjectivo do tipo, sem prejuízo, obviamente, de ter praticado o facto com dolo necessário, ou seja, conhecendo o teor ofensivo, a idoneidade das imputações e juízos para lesar a honra da Assistente, e actuando em conformidade ou mesmo com dolo directo, agindo com o propósito deliberado, com o intuito ou intenção de atingir a Assistente na sua honra e consideração.
9.ª É que, parafraseando os Acórdãos da Relação de Évora, de 05.03.2013 e 06.02.2018, na verdade, a afirmação de que o Arguido BB quis ofender a Assistente, pressupõe que o Arguido tinha conhecimento do caráter ofensivo das palavras que proferiu, pois quem pretende deliberadamente ofender outrem na sua honra com determinadas palavras conhece e pressupõe necessariamente o carácter ofensivo dessas mesmas palavras, afirmação que se contém, assim, no significado gramatical da locução “o Arguido desbaratou deliberada e intencionalmente a honra e consideração da Assistente, com palavras que lhe dirigiu (com imputações e afirmações feitas de modo explícito e que são desprimorosas, aviltantes, torpes, oprobriosas, infamantes e desonrosas) e se mostram objectiva e subjectivamente aptas a lesarem, como lesaram, essa honra e consideração”.
10.ª Prosseguindo a paráfrase, ao alegar na sua acusação que, ao dirigir-lhe as palavras «tu não és ninguém», «ordinária», «ladra», «és uma ladra», «paga o que deves» e «andas a roubar a mãe», o Arguido quis deliberada e intencionalmente ofender a honra e consideração da Assistente, o que conseguiu – foi articulada suficientemente a factualidade relativa ao dolo, contrariamente ao que entendeu o doutíssimo despacho recorrido.
11.ª Na acusação particular ficou alegado, expressa e superabundantemente, que ao agir como descrito (em 8 a 13 e 15 a 33), «o Arguido desbaratou a honra e consideração da Assistente, livremente, voluntariamente, deliberadamente, intencionalmente e conscientemente (artigo 34), pelo que «as palavras que lhe dirigiu se mostram objectiva e subjectivamente aptas a lesarem, como lesaram, a honra e a consideração da Assistente» (artigo 35).
12.ª Parafraseando o ponto único do sumário do Acórdão da Relação do Porto de 28.10.2020, a alegação pela Assistente na acusação de que o Arguido lhe chamou «ordinária», «ladra», «és uma ladra» e lhe disse «tu não és ninguém», «paga o que deves» e «andas a roubar a mãe», e ainda que «ao agir como descrito, o Arguido desbaratou a honra e consideração da Assistente, livre, voluntária, deliberada, intencional e conscientemente», pois «as palavras que lhe dirigiu se mostram objectiva e subjectivamente aptas a lesarem, como lesaram, a honra e a consideração da Assistente», corresponde ao elemento intelectual ou cognitivo do dolo de injúria, na medida em que se afirma o conhecimento, por parte do Arguido, de que as imputações formuladas têm carácter ofensivo da honra e bom nome da ofendida e contêm ainda o respetivo elemento emocional ou volitivo por afirmarem a vontade do Arguido de agir em conformidade com tal conhecimento, ou seja, querendo a imputação ou a formulação de juízo correspondente.
13.ª Avulta incontroverso que a acusação particular contém a narração da factualidade que preenche o elemento subjectivo (tanto o elemento intelectual como o elemento emocional do dolo) do crime de injúria, mesmo que até se considerasse que a consciência da ilicitude integra tal elemento (do que discordamos, conclusões 3.ª a 6.ª).
14.ª Todavia, o muitíssimo douto despacho recorrido decidiu rejeitá-la por considerar que não continha factos que permitissem concluir pela verificação desse elemento subjectivo, o que, sem desprimor nem desdouro e mantendo intocável a reverência devida ao mesmo, veicula uma interpretação legalmente desconforme à preceituação do artigo 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do CPP, e dos artigos 14.º e 181.º, n.º 1 do Código Penal, impondo-se a sua revogação e substituição por decisão judicial que determine o recebimento da acusação particular, que o Ministério Público acompanhou, com o que, menos pelo argumentário expendido do que pelo que os VENERANDOS DESEMBARGADORES aprimoradamente lhe saberão suprir, como é de Vosso mister e apanágio, com a sobriedade desejada e a sabença reconhecida, no provimento do presente recurso, exercerão V. Ex.ªs a mais acostumada, lídima, criteriosa, vítrea, filigrânica, serena e sã JUSTIÇA”.
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Resposta ao recurso por parte do Ministério Público.

Na primeira instância, o Ministério Público, apresentou resposta pugnando pela procedência do recurso.

Apresenta as seguintes conclusões, que se reproduzem:
“1. Nos presentes autos a assistente AA deduziu acusação particular contra o arguido BB imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, nº 1, do Código Penal, que foi acompanhada pelo Ministério Público.
2. Sucede que, por despacho proferido no dia 13 de Março de 2023, o Tribunal a quo decidiu rejeitar a sobredita acusação particular por a considerar manifestamente infundada, por não conter a descrição de todos os factos no que concerne ao elemento subjectivo do ilícito, considerando não se poder concluir pela verificação do elemento subjectivo do tipo de crime de injúria, por não ser feita menção ao elemento intelectual do dolo.
3. Com efeito, o Tribunal a quo considerou que a ausência da expressão “sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei”, ou outra, equivalente, se reporta a falta de elemento subjectivo, que determina, na sua visão, a descrição de uma conduta atípica.
4. Conforme se pode ler no AUJ 1/2015, do STJ, quanto ao dolo emocional a sua descrição nem sempre carece de constar na acusação, indicando os casos dos crimes de homicídio, ofensas corporais, furto, injúrias. Dando como exemplo concreto o do Acórdão do STJ de 7.10.1992 relativo a um crime de homicídio onde, embora não constasse qualquer referência na matéria de facto ao conhecimento que o arguido teria ou não da proibição legal, foi considerado que  “tendo o arguido agido livre e conscientemente com o intuito de tirar a vida ao filho, não podia deixar de desconhecer o desvalor da sua conduta”.
5. Concluindo-se depois que apenas no direito contraordenacional ou penal secundário ou quando se esteja perante novas incriminações não suficientemente solidificadas na comunidade é de exigir o “conhecimento da proibição legal” por parte do agente e consequentemente é obrigatória a narração na acusação desse elemento como forma de realização do dolo do tipo.
6. Plasmou-se em tal aresto, que “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do CPP », aí se explicitando que “O conhecimento da proibição legal, que não é exatamente equivalente a “consciência da ilicitude” será de exigir em certos casos em que a relevância axiológica de certos comportamentos é muito pouco significativa ou não está enraizada nas práticas sociais e em que, portanto, o conhecimento dos elementos do tipo e a sua realização voluntária e consciente não é suficiente para orientar o agente de acordo com o desvalor comportado pelo tipo de ilícito.
A necessidade de tal exigência faz-se sentir sobretudo a nível do direito contraordenacional, do direito penal secundário, relativamente a certas incriminações de menor relevância axiológica, mas também a nível de algumas incriminações dodireito penal de justiça, principalmente no que toca à proteção de bens jurídicos cuja consciência se não encontra ainda suficientemente solidificada na comunidade social. Então, faz sentido exigir o conhecimento da proibição como forma de realização do dolo do tipo (…). Na generalidade dos casos, porém, o sentido ou significado da ilicitude do facto promana da realização pelo agente da factualidade típica, agindo com o dolo requerido pelo tipo. Na verdade, em crimes como o de homicídio, ofensa à integridade física, furto, injúrias, pôr a questão de saber se o agente, que atuou conscientemente, representando todas as circunstâncias do facto, e querendo, mesmo assim, a sua realização, atuou ou não com conhecimento da proibição legal, se sabia que matar, agredir fisicamente uma pessoa, subtrair coisa alheia para dela se apropriar, ofender a honra de alguém, era proibido legalmente, seria o mesmo que questionar se ele efetivamente vivia neste mundo ou se não seria uma extraterrestre acabado de aterrar neste planeta, como no filme de Steven Spielberg”.
7. Ora, a situação dos autos é, claramente, um caso em que o próprio Acórdão de Fixação de Jurisprudência reconhece que o conhecimento da ilicitude provém da realização do próprio facto, dada a relevância axiológica do acto ser significativa e estar enraizada nas práticas sociais, sendo desnecessária a prova do conhecimento da proibição para se saber que o acto é ilícito.
8. No caso em apreço, foi imputada ao arguido a prática como autor material e na forma consumada de um crime de injúria, cujo bem jurídico é a honra.
9. Ora, resulta da acusação particular em apreço que o arguido “desbaratou a honra e consideração da Assistente, livremente, voluntariamente, deliberadamente, intencionalmente e conscientemente (artigo 34), pelo que “as palavras que lhe dirigiu se mostram objectiva e subjectivamente aptas a lesarem, como lesaram, a honra e a consideração da Assistente.”.
10. Pelo que, ainda que a acusação seja omissa em relação ao elemento emocional do dolo, da mesma constam os elementos intelectual e volitivo.
11. Atendendo ao crime imputado ao arguido, entende-se que a locução “o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punível por lei” não constitui facto que deva ser autonomamente narrado na acusação, uma vez que estamos perante um crime do direito penal clássico.
12. Nestes casos, a consciência de o agente ter agido bem sabendo tratar-se a sua conduta proibida por lei decorre do preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico (dolo do tipo: elemento intelectual e volitivo).
13. Factos que urge apurar em sede de audiência de discussão e julgamento.
14. A protecção do bem jurídico protegido (a honra) está suficientemente solidificada na consciência da comunidade. Qualquer homem médio que insulta outrem sabe que pratica um crime, ou seja, que tal comportamento é ilícito, não sendo, por isso, necessários especiais conhecimentos legais ou outros para alcançar o desvalor de tal ação: não é um comportamento axiologicamente neutro.
15. Pelo que a omissão da fórmula estereotipada da acusação “atuou sabendo que a sua conduta era proibida por lei” não pode justificar a rejeição da acusação particular apresentada pela assistente.
16. Nesta senda, urge concluir que os factos descritos no libelo acusatório em questão preenchem os elementos objectivos e subjectivos do crime de injúria, impondo-se o seu recebimento e a realização de audiência de discussão e julgamento a fim de comprovar judicialmente se o arguido incorreu na prática do sobredito ilícito criminal.
17. Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 9 de Janeiro de 2017, proferido no âmbito do Processo nº 207/14.3T9VNF.G1, disponível in www.dgsi.pt.
18. Por outro lado, existe ainda uma corrente jurisprudencial que entende que a consciência da ilicitude não é sequer elemento integrante do elemento subjectivo do tipo penal, relevando apenas em termos de culpa, nos termos do artigo 17.º do Código Penal.
19. Veja-se, a propósito, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 26 de Junho de 2018, proferido no âmbito do Processo nº 8001/15.8TDLSB.E1.
20. E o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 19 de Dezembro de 2019, proferido no âmbito do Processo nº 219/18.8GCCSLV.E1,
21. E o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 13 de Junho de 2018, proferido no âmbito do Processo nº 333/16.4T9VFR.P2.
22. E o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 12 de Março de 2019, proferido no âmbito do Processo nº 251/15.3GESTB.E1, todos disponível in www.dgsi.pt
23. Pelo que, face à divergência dos Tribunais superiores, deveria a Mma. Juiz a quo ter optado pelo recebimento da acusação particular e a realização da audiência de discussão e julgamento viabilizando o prosseguimento dos termos do processo, a fim de aferir da matéria de facto dada como provada e não provada e permitir ulterior debate sobre a vertente jurídica da causa.
24. Nesta senda, urge concluir que o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 14º, 17º, 181º, todos do Código Penal, nos artigos 122º, 283º, nº 3, alínea b) e 358º, todos do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e, concludentemente, ser a mesma substituída por outra que considere descritos na acusação particular factos que integram, em abstracto, a prática de um crime de injúria e, em consequência, receba a acusação particular formulada pela assistente e determine o prosseguimento dos autos, nos termos do disposto no artigo 311º-A, do Código de Processo Penal.
Não obstante, caso assim não se entenda, deverá a assistente, querendo, deduzir nova acusação, em que repare a omissão apontada, na esteira do que foi defendido no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 246/2017, publicado no DR, II Série, de 25/7/2017, que assim decidiu: “Em face do exposto, na improcedência do recurso, decide-se não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes.”.
Vossas Excelências, no entanto, decidirão como for de JUSTIÇA”.
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Tramitação subsequente

Neste Tribunal da Relação de Guimarães, o processo foi com vista ao Ministério Público, tendo o Exmº. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido parecer no sentido da procedência do recurso devendo o despacho recorrido ser substituído por outro que receba a acusação particular deduzida e determine o prosseguimento dos autos.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º nº2 do CPP não tendo sido apresentada resposta.
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Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
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II – Fundamentação.

Cumpre apreciar o objeto do recurso.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas essas questões, as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso.
A questão que se coloca à apreciação deste tribunal é a de saber se a acusação particular deduzida pela assistente contém também o elemento subjetivo, na vertente do conhecimento da ilicitude da conduta, relativo ao imputado crime de injúria.
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A acusação particular deduzida pela assistente AA ao arguido BB, que foi acompanhada pelo Ministério Público na 1ª instância, tem o seguinte teor, que se reproduz:

“A) - FACTICIDADE.
- Antecedentes: -
1. O Arguido andava desavindo com a Assistente, sua irmã germana, devido a desinteligências respeitantes à mãe CC (entretanto falecida em .../.../2022 com 85 anos).
2. Foi a Assistente quem, desde a morte do pai, sempre cuidou da mãe e, quando se tornou impossível continuar a fazê-lo, foi ela quem, com êxito, tomou a iniciativa de lhe providenciar um Lar de 3 a idade (Centro Paroquial ...), contactando previamente, por escrito, todos os seus irmãos para repartirem entre si o custo, que teve de adiantar do seu bolso.
3. Os irmãos descontentes da Assistente, à revelia desta, diligenciaram junto do Ministério Público para dar entrada a uma acção de acompanhamento de maior da mãe AA, que tramitou no Juiz ... do Juízo Local Cível do Tribunal Judicial da Comarca ... sob o processo n 0 4397/20...., no qual foi sugerido o nome do Arguido para acompanhante e requerida a administração total dos bens da mãe e a representação desta junto das entidades bancárias .com plenos poderes para movimentar a conta bancária);
4. a Assistente não impulsionou esse processo, limitando-se a prestar declarações quando foi notificada para o efeito, mas, no fim de todas as diligências probatórias, o Tribunal nomeou-a como acompanhante em vez do arguido - cfr. cópia da sentença, de ...21 , junta como-, o que o deixou (ainda mais) furioso.
5. Tanto assim que, não satisfeito, logo a seguir à sentença, entupiu o Tribunal com requerimentos a exigir ser associado à conta bancária da mãe e a acusar a Assistente do incumprimento das suas funções para tentar a sua destituição do cargo de acompanhante, ao que esta respondeu (cfr. dois requerimentos juntos no inquérito, a fls. . dos autos), tendo o Tribunal decidido não dar provimento a nenhum dos requerimentos do aqui Arguido.
6. Aliás, desde que foi nomeada acompanhante até ao falecimento da mãe, a aqui Assistente prestou contas discriminando e documentando todas as receitas e despesas, enviando essas contas para os vogais do conselho de família, de que o Arguido era vogal.
7. O Arguido, sem ter por onde pegar e vencido nos seus propósitos, lembrou-se de marcar uma reunião de irmãos para o dia 26 de Dezembro de 2021 , na casa da mãe, notificando a Assistente por carta (!) e sem antes procurar conciliar com ela a data: a Assistente não pôde comparecer porque não quis deixar a mãe consoar no Lar e foi lá buscá-la para consoar em sua casa, onde se encontrava com ela no dia e hora da reunião de irmãos.
- Ocorrência do dia 29 de Dezembro de 2021 : -
8. Mesmo após a mãe AA ter deixado de viver em sua casa (indo morar primeiro para a casa da Assistente, depois para o Lar), o cão dela (o "...") aí continuou a viver e ainda vive aos dias de hoje, sendo a Assistente quem, desde então até agora, dele cuida sozinha.
9. Na manhã do dia 29 de Dezembro de 2021, a Assistente, acompanhada do seu companheiro DD e da mãe AA, deslocou-se de carro à casa desta (sita na Rua ..., ..., freguesia ..., ..., em ...), para tratar do "...".
10. Quando lá chegou, encontrando o Arguido a abrir a porta de casa (a porta da cozinha), questionou-o sobre os bens da mãe que andavam a desaparecer de casa desta, na sequência de o ter questionado por e-mail de 15.09.2021 - cfr. comprovativo do envio desse e-mail, da conta de correio electrónico da Assistente (...) para a do Arguido (...), coligido como documento n....2, que, na parte final, alude ao desaparecimento de bens -, a que o Arguido nunca respondeu.
11. Visivelmente irritado, o Arguido partiu para os insultos, do seguinte jaez:
- «não tens nada a ver com isso»
- «tu não és ninguém»
- «ordinária»
- «ladra»
- «comigo vais falar em Tribunal»
- «estás fodida comigo»
12. O arguido saiu daquela zona da casa, aos brados, e já ao pé da oficina, encontrando-se a Assistente junto ao quintal, continuou, numa berraria:
- «és uma ladra»
- «paga o que deves»
- «andas a roubar a mãe»
- «comigo só falas em Tribunal»
- «um dia destes fodo-te o focinho»
13. A Assistente, nascida a .../.../1971 , tinha 50 anos feitos aquando desta ocorrência.

B) - JURISDICIDADE.
14. Estatui o Código Penal no seu
Artigo 181º
Injúria
1 - Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a fona de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.
15. Dizer-se a alguém que «não é ninguém», sobretudo tratando-se de irmãos, é humilhá-lo, rebaixá-lo, fazê-lo sentir-se insignificante, imprestável, um zero à esquerda, um zé-ninguém.
16. A Assistente sentiu-se sobremaneira ofendida e injustiçada com essa expressão, até porque sempre fez tudo em prol da família, sempre se dedicou de corpo e alma aos pais, aos irmãos e aos filhos destes, incluindo os filhos do Arguido, hoje adultos (o DD e a EE, que ajudou a criar, tomando conta deles, dormindo com eles, com uma relação tão intensa que a EE tratava a Assistente como mãe), pelo que levou tal dito à conta de ultrajante e cruel ingratidão.
17. 0 doesto «ordinária» quer dizer: indecente, obscena; de má índole; sem carácter; mau, reles, ruim ("Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa", Temas e Debates, Lisboa, 2005, Tomo XIII, pág. 5946).
18. A Assistente pautou sempre a sua vida pessoal, profissional, social, familiar e afectiva pelo decoro, pela moralidade, pela decência, pela lisura, pela correcção, pelo respeito, pelo civismo.
19. Ser tratada como uma vulgar "ordinária", ainda por cima pelo seu irmão, mexeu com o seu pundonor, ofendeu-a gravemente.
20. Mandar alguém «pagar o que deve» é acusá-lo de não pagar a quem deve, ou seja, tratá-lo de caloteiro.
21. Ora, a Assistente nunca, em toda a sua vida, ficou a dever de seu um tostão a ninguém, pelo contrário sempre ajudou financeiramente quem precisava, tantas vezes com sacrifício pessoal, como o Arguido bem sabe.
22. Preza muito a sua seriedade financeira, a sua honradez patrimonial, preferia passar fome a não honrar os seus compromissos, pelo que ouvir isso transtornou-a profundamente.
23. Além disso, foi acusada de «ladra», isto é, de roubar.
24. A Assistente nunca tirou nada a ninguém, nunca furtou/roubou nada, é impensável para ela semelhante comportamento e é-lhe insuportável ser acoimada nesses termos.
25. Ainda por cima pelo seu próprio irmão, repetidamente.
26. Pior, o Arguido relacionou directamente essa alegada ladroagem da Assistente com a relação desta com a mãe («andas a roubar a mãe»), a pessoa no mundo que ela mais estimava, idolatrava e amava.
27. Não há nada mais blasfemo, de mais afrontoso para a Assistente do que pôr em causa a sua relação com a mãe, sobretudo, sob a acusação explícita de que a andava a roubar.
28. A Assistente preferia pôr termo aos seus dias do que roubar a sua mãe e só ter de se justificar dessa hedionda imputação deixa-a completamente abalada, só ter de evocar a memória da mãe para afirmar ao mundo que nunca a roubou é, para ela, penoso e destrutivo, pois bule com essa memória e com o respeito que lhe é devido.
29. Se nada disto ofende a honra e consideração da Assistente, então mais vale revogar o artigo 181º nº 1 do Código Penal: assim todos se sujeitariam a ser alvo deste tipo de ataques verbais, mas todos teriam o direito de lhes replicar na mesma moeda sem se preocuparem com as consequências criminais dessa resposta.
30. É para isso que há Tribunais num Estado de Direito: para condenar quem agravou; para proteger e reparar a honra de quem foi agravado.
31. Ademais, as expressões do artigo 12 foram ouvidas pelo companheiro da Assistente, o que a envergonhou e revoltou ainda mais.
32. Todas as imputações e afirmações do Arguido são inteira e deploravelmente falsas,
33. foram feitas de modo explícito (bastando à relevância criminal que o tivessem sido implicitamente) e são desprimorosas, aviltantes, torpes, oprobriosas, infamantes e desonrosas.
34. Ao agir como descrito, o Arguido desbaratou a honra e consideração da Assistente, livre, voluntária, deliberada, intencional e conscientemente.
35. Porque as palavras que lhe dirigiu se mostram objectiva e subjectivamente aptas a lesarem, como lesaram, a honra e a consideração da Assistente, incorreu o Arguido na prática, com dolo directo, de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181 do Código Penal,
36. com as circunstâncias agravantes, a relevar para a determinação da medida concreta da pena, em cúmulo jurídico, que exsudam da materialidade retro (artigo 71º nº 2  alíneas a), b) e c) do Código Penal)”.
*
O crime de injúria encontra-se previsto no artigo 181º nº 1 do Código Penal, com a seguinte redação:
“Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias”.
Ensina o Professor Beleza dos Santos, [1] que a honra consubstancia-se “naquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale” e a consideração é “aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa (…) ao desprezo público. (…). A honra refere-se ao apreço de cada um por si, à auto-avaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral. A consideração ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social ou ao menos de não o julgar um valor negativo”.
Sublinha por sua vez o Professor Faria e Costa, [2] a noção de facto traduz-se «naquilo que é ou acontece, na medida em que se considera como um dado real da experiência», assumindo-se, por conseguinte, como «um juízo de afirmação sobre a realidade exterior, como um juízo de existência». O conceito de juízo, por seu turno, «deve ser percebido, neste contexto, não como apreciação relativa à existência de uma ideia ou de uma coisa, mas ao seu valor», devendo «ser entendido relativamente ao grau de consecução dessa ideia, coisa ou facto, se valorados em função do fim prosseguido».
Não é elemento do tipo, a efetiva lesão do sentimento de honra ou da consideração, bastando, para se verificar a consumação do crime, o perigo de que aquele dano possa verificar-se, segundo parâmetros de normalidade, de homem médio, que a ação fosse potencialmente adequada a lesar o sentimento de honra ou consideração do visado pela conduta do agente.
No que concerne especificamente ao elemento subjetivo, basta o dolo genérico em qualquer das suas formas previstas no artigo 14º do Código Penal, não sendo assim, como é hoje pacífico na doutrina e na jurisprudência, necessário a existência de um dolo específico, ou animus injuriandi; isto é, não é exigível uma especial intenção por parte do agente, designadamente o propósito de ofender a honra e consideração da pessoa visada, bastando a consciência por parte do agente de que a sua conduta é adequada a produzir a ofensa da honra e consideração de alguém e que a sua atuação é proibida por lei.
No caso em apreço, a acusação particular foi rejeitada dado o tribunal “a quo” ter considerado “não se poder concluir pela verificação do elemento subjetivo do tipo de crime de injúria, dado que, para existir dolo, necessário é que o arguido tenha conhecimento da ilicitude da sua conduta e, ao longo dos factos vertidos na acusação, em lado algum se faz menção ao elemento intelectual do dolo, não se podendo entender tal como implícito”.
Efetivamente não resulta do libelo acusatório que o arguido sabia que a sua conduta estava prevista e era punida por lei.
Conforme resulta expresso do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nº 1/2015 [3] “a acusação deve conter com a máxima precisão a descrição dos factos da vida real, os que configuram o acontecimento histórico que teve lugar e que correspondem aos elementos constitutivos do tipo legal de crime, tanto os do tipo objetivo do ilícito, como os do tipo subjectivo. (…), acrescentando-se ainda que “a exigida narração dos factos é a de todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objectivo do ilícito, sejam ao tipo subjectivo e ainda, naturalmente, na sequência do que temos vindo a expor, os elementos referentes ao tipo de culpa. A factualidade relevante, como factualidade típica, portadora de um sentido de ilicitude específico”.
Salienta e bem o acórdão desta Relação de Guimarães de 19 de junho de 2017 [4] que “da fundamentação desse aresto uniformizador parece resultar claro que sendo a consciência da ilicitude, como já referimos, uma exigência da atuação dolosa do agente na realização do facto típico, acrescendo, como elemento emocional, ao conhecimento e vontade de realizar o facto típico (elementos do dolo do tipo), traduzindo-se na indiferença ou oposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma (tipo de culpa doloso), não pode deixar de constar da acusação.
Assim, diferentemente do sustentado pela recorrente, a alegação de que a arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal não é inócua e desnecessária, não passando de um protocolo ou fórmula pré-determinada acolhida pela prática judiciária, sem qualquer valor funcional. Contrariamente, a alegação da consciência da ilicitude, seja com a utilização daquela fórmula ou através da descrição mais objetiva desse facto da vida interior, corresponde à necessidade de descrever um dos elementos do tipo subjetivo, traduzido no dolo da culpa, o qual, segundo as modernas conceções dogmáticas da teoria do crime, defendidas entre nós por Figueiredo Dias, constitui uma categoria autónoma, relativamente ao dolo do tipo, ao passo que na conceção tradicional não se distinguia entre os elementos do tipo subjetivo e os elementos do tipo de culpa”, adiantando-se ainda nesse aresto, numa situação análoga à dos presentes autos, em que também tinha sido rejeitada uma acusação particular relativa a um crime de injúria, que em relação aos elementos integrantes da consciência da ilicitude (elemento emocional), enquanto tipo de culpa que supra ficou caracterizado, habitualmente traduzida pela expressão de que “o arguido atuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal”, ou por qualquer outra que comporte o respetivo conteúdo, a acusação omite toda e qualquer referência, o que, como vimos, não pode suceder”.[5]
Também assim, o acórdão da Relação de Guimarães de 6 de Novembro de 2017 [6] onde claramente se reafirma que “a consciência da ilicitude é uma exigência da atuação dolosa do agente na realização do facto típico. Ela acresce, como elemento emocional, ao conhecimento e vontade de realizar o facto típico (elementos do dolo do tipo), traduzindo-se na indiferença ou oposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma (tipo de culpa doloso). Logo, teria de constar da acusação, mas não consta”.
Mais recentemente e no mesmo sentido o acórdão também desta Relação de Guimarães de 9 de janeiro de 2023 [7], em que o presente relator foi aí adjunto, no qual se realça que “independentemente da opção que se assuma relativamente à integração do denominado elemento emocional do dolo no tipo de culpa doloso, que se nos afigura a mais correta, ou no tipo de ilícito, ao nível da consciência da ilicitude, urge concluir que a consciência por parte do agente da contrariedade da sua conduta ao ordenamento jurídico há de constar do libelo acusatório porquanto se trata de um elemento subjetivo do crime, dela dependendo a verificação e punibilidade do comportamento constante da norma incriminadora”.
Face à ausência de alegação na acusação particular que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, alegação essa que não pode ser suprida por convite ao aperfeiçoamento daquele articulado, bem andou assim a Mmª Juíza “a quo” ao rejeitar a acusação particular por falta de elemento subjetivo, atento o disposto no artigo 311º nº 2 al. a) e nº 3 al. b) do Código de Processo Penal, do qual resulta que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacho no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada, por não conter a narração dos factos, o que, como se referiu inclui quer os elementos objetivos, quer os elementos subjetivos, incluindo a consciência da ilicitude, enquanto elemento constitutivo do dolo.
Improcede deste modo o recurso da assistente.
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III – Decisão.

Face ao exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pela assistente, mantendo-se assim integralmente a decisão recorrida.
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Custas pela recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça - artigos 513.º, n.ºs. 1 e 3, do C.P.P. e 8.º, n.º 9, do R.C.P. e Tabela III anexa.
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Notifique.
Guimarães, 14 de novembro de 2023.
(Decisão elaborada pelo relator com recurso a meios informáticos e integralmente revista pelos subscritores, que assinam digitalmente).
                                               
Pedro Freitas Pinto (Juiz Desembargador Relator)
Bráulio Martins (Juiz Desembargador 1º Adjunto)
António Teixeira (Juiz Desembargadora 2º Adjunto)  



[1] “Algumas Considerações Jurídicas sobre Crimes de Difamação e de Injúria”, RLJ ano 92, nº 3152,
[2] in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, anotação § 20 ao art. 180º, p. 609,
[3] Relator: RODRIGUES DA COSTA, publicado no Diário da República, 1ª série, n.º 18, de 27.01.2015.
[4] Relator: JORGE BISPO, procº 430/15.3GEGMR, consultável como os demais citados, in www.dgsi.pt.
[5] Também nesta esteira o Ac. da Relação de Lisboa de 10 de março de 2022, procº 8467/19.7T9LSB.
[6] Relator: ARMANDO AZEVEDO, procº nº 86/16.6GDGMR
[7] Relator: PAULO CORREIA SERAFIM, procº nº 1714/20.4T9VNF.