AFERIÇÃO DA COMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL
RELAÇÃO LABORAL DE DIREITO PRIVADO COMO FUNDAMENTAÇÃO DA AÇÃO
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário

I – A competência material do tribunal, sendo um pressuposto processual, deve ser aferida em função da pretensão deduzida, tanto na vertente objetiva, englobando o pedido e a causa de pedir, como na vertente subjetiva, respeitante às partes, tomando-se como base a relação material controvertida tal como vem configurada pelo autor.
II – Se o fundamento da ação for uma relação laboral de direito privado, na qual a autora filia os direitos que invoca contra a ré (fundação pública - instituição de ensino superior pública de natureza fundacional), deve a causa ser conhecida pelos tribunais judiciais da jurisdição comum, concretamente os juízos do trabalho.

Texto Integral

Apelação/Processo nº 1472/23.0T8AVR.-A.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo do Trabalho de Aveiro, Juiz 1

Relatora: Germana Ferreira Lopes
1ª Adjunta: Eugénia Pedro
2ª Adjunta: Paula Leal de Carvalho




Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:


I - RELATÓRIO

Recorrente: Universidade ...
Recorrida: AA

AA (Autora) instaurou contra Universidade ... (Ré), a presente ação, com processo comum, pedindo a condenação da Ré a:
a) reconhecer a existência de contrato de trabalho entre ambas com efeitos reportados a 02 de novembro de 2017;
b) reconhecer que a antiguidade da Autora se reporta a 02 de novembro de 2017;
c) fixar a retribuição base da Autora em € 1.320,15 sem prejuízo da progressão salarial que possa vir a ter;
d) pagar à Autora a diferença entre a retribuição base mensal que lhe pagou entre novembro de 2017 e fevereiro de 2023 e a que lhe devia ter pago, diferencial esse que quantifica em €13.953,99;
e) pagar à Autora a diferença entre a retribuição base mensal que lhe vier a pagar e aquela que deveria pagar, até ao momento em que fixar a retribuição base desta em €1.320,15;
f) pagar à Autora o montante global de € 2.171,30, a título de subsídio de férias e natal referente aos anos 2018, 2019, 2020, 2021 e 2022;
g) pagar à Autora os respetivos juros legais.
Fundamentou tais pedidos, em substância, na invocação da relação laboral que mantém com a Ré sob a alçada da gestão privada, com apelo aos contratos de trabalho celebrados entre as partes ao abrigo do Código do Trabalho e ao Regulamento Interno de Carreiras, Retribuições e Contratação de Pessoal não docente e não investigador da Universidade ... e, bem assim, do princípio da igualdade de tratamento a nível retributivo, ínsito, nomeadamente, nos artigos 23º e 31º do Código do Trabalho, para defender que o seu posicionamento remuneratório na categoria de Técnico Superior deve ser equiparado aos trabalhadores em regime de contrato de trabalho em funções públicas.
Veio a Ré em sede de contestação suscitar a excepção da incompetência do tribunal em razão da matéria. Aí defendeu, em substância, que a Autora pretende discutir na ação a legalidade dos atos administrativos praticados em procedimentos administrativos que estiveram na génese da celebração dos invocados contratos de trabalho de 2017 e 2020, cabendo à jurisdição administrativa dirimir o litígio, já que mesmo que se considere que o contrato presentemente em vigor é regulado por normas de direito privado, o procedimento em que o mesmo foi formado não deixa de ser administrativo, pelo que a discussão pretendida pela Autora está sempre sujeita ao âmbito da jurisdição administrativa, nos termos do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (“ETAF”).
O Mmo. Juiz a quo proferiu despacho saneador no âmbito do qual apreciou a exceção em referência tendo concluído pela respetiva improcedência.
Inconformada com tal despacho na parte em que foi julgada improcedente a exceção da incompetência material, a Ré interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes CONCLUSÕES, que se transcrevem:
A. O presente recurso é interposto do despacho saneador que decidiu a exceção de incompetência material suscitada pela Recorrente na sua contestação, mostrando-se legalmente admissível por via da presente apelação autónoma, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 644.º/2/b) do CPC.
B. Compulsada a douta petição inicial, constata-se que a Autora vem a juízo essencialmente com o propósito de obter a condenação da Ré no pagamento dos valores que entende que lhe serão devidos em resultado de um posicionamento remuneratório que, segundo alega na petição inicial, lhe deve ser aplicável tal qual o é, aos trabalhadores com vínculo de emprego público.
C. A norma fundamental em que a Autora estriba este seu pedido é o artigo 38.º/7 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas e segundo a qual se estipula a posição remuneratória de ingresso na carreira de Técnico Superior.
D. A Autora pugna assim nestes autos, em termos inequívocos, por uma aplicação de normas jurídicas cujo âmbito abrange as relações jurídicas de emprego público.
E. Por assim ser, a causa petendi da Autora não está, pois e ao contrário do que conclui o Tribunal a quo, exclusivamente, assente no contrato de trabalho. A causa de pedir da Autora nestes autos deve interpretar-se num sentido mais concreto e específico, conquanto os factos jurídicos concretos de onde emerge o direito da Autora prendem-se com uma relação contratual que, segundo a narrativa da própria Autora, reclama por uma aplicação do estatuto legalmente aplicável aos vínculos de emprego público.
F. Assim e porque a Autora pugna pela aplicação de normas aplicáveis aos vínculos de emprego público, deve concluir-se que o despacho recorrido violou a regra constante do artigo 4.º, n.º 4, alínea b) do ETAF e segundo a qual se deve concluir que quando o litígio se centre na aplicação de disposições reguladoras do emprego público, por razões materiais, deve considerar-se competente a jurisdição administrativa.
G. Ao antedito soma-se, com relevância para a determinação da jurisdição competente, a interpretação que parte da jurisprudência tem vindo a fazer do artigo 4.º do ETAF, destacando tal corrente a relevância do procedimento de formação pré-contratual que esteja na génese do contrato do qual possa derivar a causa de pedir.
H. Os nossos tribunais superiores, mesmo na presença de contratos de trabalho disciplinados substantivamente pelo Código de Trabalho, têm destacado que a circunstância de o procedimento formativo dos contratos ser regulado por normas de direito público, pode e deve influenciar decisivamente a competência do Tribunal por força do disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea e) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
I. Acentua tal corrente jurisprudencial a regra segundo a qual a competência se determina com abstração pela natureza das normas que materialmente regulam o contrato, bastando que a lei preveja a possibilidade da sua submissão a um procedimento pré-contratual de direito público.
J. No caso vertente, elegem os presentes autos com clareza meridiana que, apesar de os contratos de trabalho celebrados entre a Autora e a Ré serem regulados pelo Código do Trabalho, é também inegável que a natureza da aqui Recorrente, enquanto universidade fundação, lhe impõe a formação de procedimentos regulados primordialmente por normas de direito público.
K. O que sucedeu no caso vertente, como se crê cabalmente demonstrado nestes autos, pelas evidências dos respetivos procedimentos concursais juntas com a contestação.
L. Face ao que antecede e ao declarar-se competente em razão da matéria, deve também concluir-se que o Tribunal a quo violou o artigo 4.º, n.º 1, alíneas e) do ETAF.
Nestes termos e nos mais de Direito, deve o presente recurso de apelação ser admitido, julgado procedente e, em consequência, determinar-se a incompetência material do Tribunal para a decisão da presente ação.”
A Recorrida apresentou resposta, defendendo, em substância, que o tribunal a quo interpretou e aplicou devidamente as regras de competência atribuída aos tribunais administrativos e fiscais, concretamente o artigo 4.º do ETAF, e pugnando pela improcedência do recurso. Argumenta que a única interpretação que se poderá extrair da letra do referido normativo é que não cabe aos tribunais administrativos e fiscais dirimir litígios decorrentes de contratos de trabalho, salvo quando estejamos perante contratos em funções públicas, o que manifestamente não é o caso.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.
O Exmº Srº Procurador-Geral-Adjunto, neste Tribunal da Relação, teve vista do processo, exarando posição no sentido de estar vedado ao Ministério Público a possibilidade de emitir parecer, por inaplicabilidade do artigo 87.º, n.º 3, do Código de Processo do Trabalho.
Procedeu-se a exame preliminar, foram colhidos os vistos, após o que o processo foi submetido à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II - OBJECTO DO RECURSO
Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões da Recorrente (artigos 635.º, n.º 4, 637.º n.º 2, 1ª parte e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicáveis por força do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho), coloca-se à apreciação deste Tribunal da Relação uma única questão que consiste em apurar da competência material do Juízo do Trabalho para conhecer da ação de processo comum intentada pela Apelada contra a Apelante.

III – FUNDAMENTAÇÃO
Em termos fácticos, haverá que ter em conta o enquadramento constante do relatório que antecede.
A Recorrente insurge-se quanto ao facto do tribunal a quo ter julgado improcedente a exceção de incompetência material por si suscitada, reconhecendo assim que o juízo do trabalho é competente em razão da matéria para apreciar e decidir o litígio. Pugna pela incompetência material do juízo do trabalho para decidir a ação, sustentando a competência da jurisdição administrativa.
Defende que o tribunal a quo, ao declarar-se competente em razão da matéria, violou a regra constante do artigo 4.º, n.º 4, alínea b), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), na medida em que a Autora pugna pela aplicação de normas aplicáveis aos vínculos de emprego público e segundo tal normativo quando o litígio se centre na aplicação de disposições reguladoras do emprego público, por razões materiais, deve considerar-se competente a jurisdição administrativa. Mais defende que foi também violado o artigo 4.º, n.º 1, alínea e), desse mesmo diploma, atenta a corrente jurisprudencial que acentua a regra segundo a qual a competência se determina com abstração pela natureza das normas que materialmente regulam o contrato, bastando que a lei preveja a possibilidade da sua submissão a um procedimento pré-contratual de direito público, sendo que no caso vertente apesar dos contratos de trabalho celebrados entre as partes serem regulados pelo Código do Trabalho a natureza da Ré enquanto universidade fundação impõe-lhe a formação de procedimentos regulados primordialmente por normas de direito público.
Vejamos.
Importa ter presente que a competência material constitui um pressuposto processual que se afere em função, quer do pedido, quer da causa de pedir, padronizada pelos termos em que a relação jurídica material é configurada pelo autor.
De facto, segundo doutrina e jurisprudência pacíficas, a competência material deve ser aferida em função da pretensão deduzida, tanto na vertente objetiva, englobando o pedido e a causa de pedir, quer na vertente subjetiva, respeitante às partes, tomando-se, pois, por base a relação material controvertida tal como é configurada pelo autor [cfr. - na doutrina: Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, ed. 1979, pág. 91; na jurisprudência: Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - de 30-03-2011 (processo nº 492/09.2TTPRT.P1.S1), de 12-09-2013 (processo nº 204/11.0TTVRL.P1), de 16-06-2015 (processo nº 117/14.4TTLMG.C1.S1) e de 15-12-2022 (processo nº 7760/21.7T8PRT-A.P1.S1); Acórdãos do Tribunal de Conflitos de 29-03-2011 (processo nº 025/10), de 1-10-2015 (processo nº 8/14) e de 8-11-2018 (processo nº 020/18) – todos disponíveis em www.dgsi.pt].
Para a resolução da questão da competência em razão da matéria não importa, pois, averiguar quais deveriam ser os correctos termos da pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável.
Como se expõe no citado Acórdão do STJ de 15-12-2022, “[a] competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da ação. Trata-se de questão a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (considerando aí os respetivos fundamentos), não importando indagar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão.
Deste modo, atendendo a lei na definição da competência em razão da matéria ao objeto da causa, encarado sob um ponto de vista qualitativo - o da natureza da relação substancial preceituada -, a estruturação da causa apresentada pelo autor é que fixa o único tema decisivo para o efeito dessa modalidade da competência dos tribunais.
A determinação do tribunal materialmente competente para o conhecimento de determinada pretensão deve partir do teor dessa pretensão e dos fundamentos que a justificam, sendo irrelevantes, para este efeito, as qualificações jurídicas desta pretensão efetuadas pelo autor, bem como o juízo de prognose que se possa fazer relativamente à viabilidade da mesma, por se tartar de questão atinente ao mérito da causa (…)”.
A competência interna dos diversos tribunais portugueses, nomeadamente no que respeita à matéria é regulada pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas normas processuais respectivas, sendo certo que serão da competência dos tribunais judiciais (comuns) todas as causas que não sejam atribuídas a qualquer outra ordem jurisdicional [cfr. artigos 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, 60.º e 64.º do Código de Processo Civil e artigo 40.º, n.º 1, da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário, na sua versão atualizada – adiante designada por LOSJ)].
Tal como vem sendo entendido, aos tribunais judiciais assiste uma competência genérica e residual, pois são competentes para «todas as causas» que «não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».
Acresce que nos próprios tribunais judiciais vigora a regra da especialização em função da natureza das questões, atribuindo-se competência própria a juízos especializados sendo atribuída aos juízos cíveis com uma competência residual nas situações em que a competência não couber aos juízos especializados (artigos 60.º, 65.º do Código de Processo Civil e 33.º, 37.º n.º 1, 40.º, 80.º e 81.º da LSOJ).
Estabelece o artigo 126.º, n.º 1, da LSOJ:
1 - Compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível:
a) Das questões relativas à anulação e interpretação dos instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho que não revistam natureza administrativa;
b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho;
c) Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais;
d) Das questões de enfermagem ou hospitalares, de fornecimento de medicamentos emergentes da prestação de serviços clínicos, de aparelhos de prótese e ortopedia ou de quaisquer outros serviços ou prestações efetuados ou pagos em benefício de vítimas de acidentes de trabalho ou doenças profissionais;
e) Das ações destinadas a anular os atos e contratos celebrados por quaisquer entidades responsáveis com o fim de se eximirem ao cumprimento de obrigações resultantes da aplicação da legislação sindical ou do trabalho;
f) Das questões emergentes de contratos equiparados por lei aos de trabalho;
g) Das questões emergentes de contratos de aprendizagem e de tirocínio;
h) Das questões entre trabalhadores ao serviço da mesma entidade, a respeito de direitos e obrigações que resultem de atos praticados em comum na execução das suas relações de trabalho ou que resultem de ato ilícito praticado por um deles na execução do serviço e por motivo deste, ressalvada a competência dos tribunais criminais quanto à responsabilidade civil conexa com a criminal;
i) Das questões entre instituições de previdência ou de abono de família e seus beneficiários, quando respeitem a direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutárias de umas ou outros, sem prejuízo da competência própria dos tribunais administrativos e fiscais;
j) Das questões entre associações sindicais e sócios ou pessoas por eles representados, ou afetados por decisões suas, quando respeitem a direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutárias de uns ou de outros;
k) Dos processos destinados à liquidação e partilha de bens de instituições de previdência ou de associações sindicais, quando não haja disposição legal em contrário;
l) Das questões entre instituições de previdência ou entre associações sindicais, a respeito da existência, extensão ou qualidade de poderes ou deveres legais, regulamentares ou estatutários de um deles que afete o outro;
m) Das execuções fundadas nas suas decisões ou noutros títulos executivos, ressalvada a competência atribuída a outros tribunais;
n) Das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja diretamente competente;
o) Das questões reconvencionais que com a ação tenham as relações de conexão referidas na alínea anterior, salvo no caso de compensação, em que é dispensada a conexão;
p) Das questões cíveis relativas à greve;
q) Das questões entre comissões de trabalhadores e as respetivas comissões coordenadoras, a empresa ou trabalhadores desta;
r) De todas questões relativas ao controlo da legalidade da constituição, dos estatutos e respetivas alterações, do funcionamento e da extinção das associações sindicais, associações de empregadores e comissões de trabalhadores;
s) Das demais questões que por lei lhes sejam atribuídas.” [negrito nosso].
Os juízos de trabalho têm, pois, competência especializada, competindo-lhes dirimir conflitos relacionados com a jurisdição laboral, nomeadamente os resultantes de contratos de trabalho, acidentes de trabalho, doenças profissionais, interpretação de instrumentos de regulamentação coletiva, etc.
Os tribunais administrativos e fiscais têm uma competência limitada às causas que lhe são especialmente atribuídas.
Com efeito, estabelece o artigo 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações administrativas e fiscais» [cfr. ainda artigos 144.º, n.º 1, da LOSJ e 1º, n.º 1, da Lei nº 13/2002, de 19 de fevereiro (Lei que prevê o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na sua versão atualizada – adiante designado por ETAF)].
Nos termos do artigo 1.º, n.º 1, do ETAF, os tribunais da jurisdição administrativa são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º desse Estatuto.
Assim, o artigo 4.º do ETAF concretiza o âmbito da jurisdição, estabelecendo o seguinte:
1 – Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a:
a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;
g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;
i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;
j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;
k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;
l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;
o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.
2 - Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.
3 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de:
a) Atos praticados no exercício da função política e legislativa;
b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;
c) Atos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões.
4 - Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
a) A apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso;
b) A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público;
c) A apreciação de atos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e seu Presidente;
d) A fiscalização de atos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça;
e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.”
Da análise deste preceito decorre inequivocamente que os n.ºs 1 e 2 concretizam as questões que devem ser julgadas pelos tribunais administrativos e fiscais, enquanto que os n.ºs 3 e 4 versam sobre as situações que estão excluídas do âmbito da jurisdição daqueles tribunais.
Como refere Maria Helena Barbosa Ferreira Canelas [“A amplitude da competência material dos tribunais administrativos em sede de acções relativas a responsabilidade civil contratual”, in Revista Julgar, n.º 15, 2011, pág. 108], «à luz do artigo 212.º da CRP e do artigo 1.º do ETAF o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal é definido em função da qualificação dos litígios como emergentes de relações jurídicas administrativas, que constitui assim a regra geral para a delimitação da competência jurisdicional dos tribunais administrativos com os demais tribunais, detendo por força dela os Tribunais Administrativos competência para dirimir os litígios emergentes de relação jurídicas administrativas, excepto nos casos em que, pontualmente, o legislador atribua competência a outra jurisdição, como os desde logo previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 4.º do ETAF 6 , mas também os que são ou venham a ser contemplados em legislação avulsa.» - a referência aos nºs 2 e 3 do artigo 4.º é transponível para os atuais n.ºs 3 e 4 do mesmo artigo na versão atualizada do ETAF.
Tal como resulta da conjugação do artigo 4.º, n.º 1, alínea o), do ETAF com o artigo 12.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (Lei n.º 35/2014, de 20 de junho) são da competência dos tribunais administrativos e fiscais os litígios emergentes do vínculo de emprego público.
O ETAF prescreve no n.º 4, al. b) do citado art. 4.º que está excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público.
Ora, apelando às regras da interpretação e aplicação da lei, e sendo clara e evidente a letra da lei, a única interpretação que se pode extrair é que não cabe aos tribunais administrativos e fiscais dirimir litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, exceto quando estão em causa litígios emergentes do vínculo de emprego público porque nessa situação a competência está reservada aos tribunais administrativos e fiscais. Os litígios emergentes dos contratos individuais de trabalho em regime de direito privado estão, pois, expressamente excluídos da competência da jurisdição administrativa e fiscal.
No caso em apreço, a Autora pede a condenação da Ré: a) A reconhecer a existência de contrato de trabalho entre ambas com efeitos reportados a 02 de novembro de 2017; b) A reconhecer que a antiguidade da Autora se reporta a 02 de novembro de 2017; c) A fixar a retribuição base da Autora em €1.320,15 sem prejuízo da progressão salarial que possa vir a ter; d) A pagar-lhe a diferença (que quantifica em €13.953,99) entre a retribuição base mensal que lhe pagou entre novembro de 2017 e fevereiro de 2023 e a que lhe devia ter pago; e) A pagar-lhe a diferença entre a retribuição base mensal que lhe vier a pagar e aquela que deveria pagar, até ao momento em que fixar a retribuição base em €1.320,15; f) A pagar-lhe o montante global de €2.171,30, a título de subsídio de férias e natal referente aos anos 2018, 2019, 2020, 2021 e 2022; g) A pagar-lhe os respetivos juros legais.
Para fundamentar tais pedidos, a Autora invocou os contratos de trabalho que celebrou com a Ré ao abrigo do Código do Trabalho e o Regulamento Interno de Carreiras, Retribuições e Contratação de Pessoal não docente e não investigador da Universidade ..., bem como o princípio da igualdade de tratamento a nível retributivo, ínsito, nomeadamente, nos artigos 23.º e 31.º do Código do Trabalho, com consequências no posicionamento remuneratório na categoria de Técnico Superior (que defende dever ser equiparado aos trabalhadores em regime de contrato de trabalho em funções públicas).
A Recorrente, Universidade ..., é uma fundação pública (uma instituição de ensino superior pública de natureza fundacional) com regime de direito privado, instituída pelo Decreto-Lei nº 97/2009, de 27 de abril, que, nos termos do artigo 4.º, n.º 5, desse diploma, se rege pelo direito privado, nomeadamente no que respeita à sua gestão financeira, patrimonial e de pessoal, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do mesmo preceito (cfr. artigos 1.º, n.º 1, e 2.º do identificado Decreto-Lei).
Na ação não está em crise que os contratos celebrados entre as partes o foram ao abrigo do Código do Trabalho e com apelo ao Regulamento Interno da Universidade ..., quanto à definição de carreiras, de retribuição e de contratação de pessoal não docente e não investigador, em regime de contrato de trabalho celebrado ao abrigo do Código do Trabalho (cfr. Regulamento nº 449/2009, publicado no DR 2ª Série, nº 223, de 17 de novembro de 2009 e Regulamento nº 740/2020, publicado no DR 2ª Série, nº 173, de 4 de setembro de 2020).
Por outro lado, a Autora não coloca em causa os atos e procedimentos concursais que culminaram na celebração daqueles contratos de trabalho.
No presente caso, estamos perante um litígio emergente de uma relação contratual existente, decorrente de contrato de trabalho celebrado ao abrigo do direito privado, do Código de Trabalho, e não perante um litígio emergente de vínculo de emprego público.
Os pedidos formulados pela Autora, bem como a factualidade que constitui a causa de pedir, assenta no reconhecimento da existência do contrato de trabalho subordinado de direito privado, sujeito às regras estabelecidas para as relações laborais privadas, fundando sem margem para quaisquer dúvidas as suas pretensões na existência desse vínculo de natureza privada. A Autora invoca o princípio da igualdade de tratamento a nível retributivo previsto em disposições do Código do Trabalho e apela às disposições dos Regulamentos Internos da Ré que definem e regulam o regime de carreiras, de retribuições e de contratação de pessoal não docente e não investigador da Universidade ..., em regime de contrato de trabalho, celebrado ao abrigo do Código do Trabalho, para sustentar que o seu posicionamento remuneratório na categoria de Técnico Superior deve ser equiparado aos trabalhadores em regime de contrato de trabalho em funções públicas.
Refira-se que, ao contrário do que sustenta a Recorrente, o facto de a Autora invocar uma norma da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas em sede da pretendida equiparação ao nível do posicionamento remuneratório na sobredita categoria, não confere competência à jurisdição administrativa nos termos da parte final da alínea b) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF.
A ressalva contida na parte final desse normativo, respeita apenas aos litígios emergentes do vínculo de emprego público, ou seja, às situações em que o litígio está configurado pelo demandante como sendo emergente de um vínculo de emprego público, porque esses litígios estão reservados à jurisdição administrativa, conforme se referiu supra [conjugação do artigo 4.º, n.º 1, alínea o), do ETAF com o artigo 12.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (Lei n.º 35/2014, de 20 de junho)].
Não é esse manifestamente o caso dos autos.
As questões colocadas no presente litígio decorrem, tal como estão configuradas pela Autora, de uma relação de trabalho subordinado existente, sujeita à disciplina do Código do Trabalho, valendo assim a exclusão da jurisdição administrativa e fiscal constante da alínea b) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF.
A decisão recorrida não violou, pois, a regra constante do artigo 4.º, n.º 4, alínea b), do ETAF.
Por outro lado, e ao contrário do que defende a Recorrente, a decisão recorrida também não violou o artigo 4.º, n.º 1, alínea e), do ETAF.
Não desconhece este tribunal a jurisprudência citada pela Recorrente, que se debruça sobre a interpretação deste último normativo, com apelo ao procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público para justificar a competência dos tribunais administrativos [máxime os invocados Acórdãos - da Relação de Évora de 9-11-2017 (processo n.º 78380/13.3YIPRT.E1); do Tribunal de Conflitos de 11-03-2010 (processo n.º 028/09), de 6-12-2018 (processo n.º 021/18), de 19-04-2022 (processo n.º 03880/21.2T8VFR.S1) e de 11-01-2017 (processo nº 020/14); e do Supremo Tribunal de Justiça de 22-10-2015 (processo nº 678/11.0T8BABT.E1.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt].
Sucede que tal jurisprudência, salvo o devido respeito por opinião divergente, não permite de modo algum sustentar o recurso apresentado pela Recorrente.
Os citados Acórdãos de 9-11-2017, 11-03-2020, 6-12-2018 e 22-10-2015, não se reportam a um enquadramento semelhante àquele em discussão nos autos, nomeadamente, não se referem a uma causa de pedir e pedido emergentes de contrato de trabalho celebrado ao abrigo do direito privado, do Código de Trabalho, pelo que não se colocava a questão da exclusão prevista no artigo 4.º, n.º 4, alínea b) do ETAF. Os referidos Acórdãos referem-se a situações de contratos de prestação de serviços e contrato de empreitada.
Já os citados Acórdãos de 19-04-2022 e 11-01-2017, como, aliás, também o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 13-10-2021 (processo n.º 02140/21.3T8PRT.S1, disponível em www.dgsi.pt), reportam-se a litígios relativos à validade de atos pré-contratuais inseridos em procedimentos administrativos. Tais Acórdãos não versaram, pois, sobre litígios decorrentes de contratos individuais de trabalho em regime de direito privado, de relações contratuais de contrato de trabalho existentes, mas sim sobre lígitios relativos à validade de atos pré-contratuais inseridos em procedimentos administrativos.
Sublinhe-se que uma leitura atenta destes últimos Acórdãos do Tribunal de Conflitos, permite verificar que nos mesmos se salvaguarda o facto de não se tratar de um litígio que decorra de um contrato de trabalho, mas ao invés um litígio respeitante ao seu procedimento de formação.
Assim, pode ler-se no identificado Acórdão do Tribunal de Conflitos de 11-01-2017, o seguinte:
«(…) Efectivamente, pelo que respeita às normas competenciais, o fulcro do presente conflito negativo de jurisdição reside na diferente interpretação e conjugação de duas normas deste art.º 4.º:
- a norma da al. e) do n.º 1 que inclui no âmbito da jurisdição os litígios respeitantes a “questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação e validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público”;
- a norma da al. d) do n.º 3 (na redacção conferida pela Lei n.º 59/2008, de 11/9) que excluía do âmbito da jurisdição administrativa “a apreciação de litígios emergentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas” (actualmente constitui a al. b) do n.º 4 do art.º 4.º).
E isto porque o acto ou actos cuja validade se pretende sindicar respeita a um procedimento pré-contratual destinado ao recrutamento para um posto de trabalho relativamente ao qual não há divergência das partes nem dos tribunais em conflito que a vinculação seria estabelecida mediante um contrato individual de trabalho, sujeito ao regime do Código do Trabalho e demais legislação laboral. Com efeito, segundo os termos do anúncio que o desencadeou, estamos perante um procedimento de “concurso de reserva de recrutamento para especialistas de ortopedia, para eventual contratação em contrato de trabalho”. De facto, nos termos do art.º 14.º do Dec. Lei n.º 233/2005, de 29 de Dezembro, na red. do Dec. Lei n.º 176/79, de 4 de Agosto, aplicável aos HUC-EPE designadamente em matéria de recursos humanos por força do Dec. Lei n.º 180/2008, de 26 de Agosto, sem prejuízo da salvaguarda de regimes transitórios, a regra é a de que os trabalhadores dos hospitais constituídos como entidades públicas empresariais (E.P.E.) estão sujeitos ao regime do contrato de trabalho, nos termos do Código de Trabalho, bem como ao regime disposto em diplomas que definam o regime legal da carreira de profissões de saúde, demais legislação laboral, normas imperativas sobre títulos profissionais, instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho e regulamentos internos.
Seguramente que não estamos perante um litígio emergente de uma relação contratual existente, hipótese para a qual a al. d) do n.º 3 do art.º 4.º do ETAF forneceria resposta imediata, mas perante um litígio respeitante ao seu procedimento de formação. (…)».
Do mesmo passo, no citado Acórdão do Tribunal de Conflitos de 13-10-2021 escreve-se o seguinte:
«(…) Como se viu, o artigo 4.º, n.º 4, alínea b), do ETAF, vigente já à data da propositura da ação, excluiu do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público”. O Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto considerou este preceito relevante para o efeito de a competência dos tribunais administrativos e fiscais – “(…) em face do que este Tribunal é materialmente incompetente para conhecer do presente litígio, desde logo, por efeito da alínea b), n.º 4, do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais”, afirmação da qual discordou o Juízo do Trabalho do Porto, por entender que a situação em causa se reconduz a uma “relação de natureza jurídico-administrativa, e por isso da competência dos tribunais administrativos e fiscais – cfr. art.º 11º da Constituição e artigos 1.º e 4.º, n.º 1, al. a) do ETAF".
Acresce que, nos termos do citado art. 4.º, n.º 1, alínea e), compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a “validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes”. Conforme explica José Carlos Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 109), esta alínea e), que veio alargar o ”âmbito da jurisdição administrativa relativamente à cláusula geral de definição substancial” desse âmbito – apreciação de litígios emergentes das relações jurídicas administrativas (op. cit., pág. 106 e segs.) –, relativamente a contratos.
4. A Universidade do Porto é uma fundação pública com regime de direito privado (art. 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 96/2009, de 27 de Abril).
(…)
5. O pedido de anulação formulado nesta acção tem como causas de pedir vícios que o autor atribui ao procedimento de concurso e à decisão o respectivo júri; o pedido de condenação à prática de acto administrativo devido assenta nessa anulação.
Não se trata, portanto, de um litígio entre o autor e a ré que decorra de um contrato de trabalho, não valendo assim a exclusão da jurisdição administrativa e fiscal constante da al. b) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
(…)
Como se recordou já, também aqui está em causa a impugnação do procedimento de concurso e da deliberação do júri e não um conflito emergente de contrato de trabalho.».
O citado Acórdão do Tribunal de Conflitos de 19-04-2022, cita os referidos Acórdãos de 11-07-2017 e 13-10-2021, pondo o ênfase no facto de estar em causa um litígio relativo à “validade de actos pré-contratuais inseridos em procedimentos administrativos”, para afirmar a competência da jurisdição administrativa.
No caso dos autos, como se referiu supra, a Autora não coloca em causa os atos e procedimentos concursais que culminaram na celebração dos contratos de trabalho que invoca, sendo certo que não se trata de um litígio atinente ao procedimento de formação da relação contratual em referência (o que, desde logo, torna desnecessária a indagação sobre a natureza do procedimento de formação dos contratos).
Não colhe, pois, a argumentação da Recorrente ao apelar ao procedimento formativo dos contratos para justificar a sua integração na alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, na medida em que no caso estamos no âmbito do n.º 4, alínea b) do ETAF que exclui expressamente os litígios decorrentes de contratos individuais de trabalho de natureza privada da jurisdição administrativa e fiscal.
Em suma, estamos perante um litígio que emerge de uma relação contratual existente, decorrente de uma relação de trabalho de natureza privada, pelo que é competente para conhecer da respetiva ação o Tribunal Judicial de competência especializada (Juízo do Trabalho) e não o Tribunal Administrativo.
Termos em que, resta concluir pela total improcedência do recurso e pela confirmação da decisão recorrida.

*

IV – DECISÃO
Em face do exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

As custas do recurso em separado ficam a cargo da Recorrente.

Notifique.


(texto processado e revisto pela relatora, assinado eletronicamente)

Porto, 30 de outubro de 2023
Germana Ferreira Lopes
Eugénia Pedro
Paula Leal de Carvalho