RECONHECIMENTO DE DIREITO DE PROPRIEDADE
CONDOMÍNIO
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
CAPACIDADE JUDICIÁRIA
LEGITIMIDADE PASSIVA
Sumário

I–Nos termos do disposto no artigo 12º, alínea e) do Código de Processo Civil, o condomínio resultante da propriedade horizontal apenas tem personalidade judiciária quanto a acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador, ou seja, uma acção por ele proposta contra o administrador por motivos relacionados com o exercício ou o não exercício dos seus poderes ou do administrador contra o condomínio, com fundamento no exercício desses mesmos poderes.

II–Por isso, não pode ser concedida personalidade judiciária ao condomínio quanto a acções que nada têm que ver com as relações entre esse condomínio e o administrador, como sucede com as acções em que um condómino ou um terceiro pretende o reconhecimento do seu direito de propriedade exclusivo sobre coisa comum.

III–Nos casos referidos em II, a legitimidade passiva exige a intervenção de todos os interessados – todos os condóminos comproprietários -, para que a acção, pela própria natureza da relação jurídica, produza o seu efeito útil normal.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I–RELATÓRIO

A [ MANUEL …], residente à Rua dos ....., Nº..., - 2...-... B_____, NIF 1.......3 intentou contra CONDOMÍNIO DO PRÉDIO SITO NA RUA ..... ....., N.ºS ..., ...-A, ...-B e ...-C, freguesia de São ..... de ....., concelho de Lisboa, NIF 9.......1 a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, formulando os seguintes pedidos:

a)-A declaração de que o autor é o titular do direito de propriedade sobre o imóvel identificado na petição inicial, por via da usucapião, com todas as legais consequências;

b)- A condenação do réu a reconhecer a propriedade do autor sobre o imóvel objecto destes autos;

c)- O averbamento no registo predial do direito de propriedade do autor.

Alegou, para tanto, na sua petição inicial o seguinte (cf. Ref. Elect. 33208960):

  • O autor é proprietário e possuidor da fracção autónoma designada pela letra “Q” do prédio sito na Rua ..... ....., n.ºs ..., ...-A, ...-B e ...-C, freguesia de São ..... de ....., concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob a descrição 2..0/2......8, freguesia de São ..... de ....., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1..6-Q da freguesia de A____, Lisboa;
  • Tal prédio veio à sua posse por permuta com a sociedade comercial Construções V____ Limitada, em 31-12-1966, não dispondo, porém, de momento, da escritura pública;
  • Desde essa data, o autor está na detenção, gozo e fruição do imóvel, nele residindo, dormindo e recebendo os amigos e a correspondência; paga os respectivos impostos e encargos e arrenda-o ou comodata-o, assim como tem efectuado obras de beneficiação, decoração e manutenção; tem também pagado a energia eléctrica, gaz, telefone e saneamento;
  • Fazendo tudo isto de modo público, contínuo e ininterrupto, à vista de toda a gente, de forma pacífica e de boa fé, convencido que não prejudica os interesses de ninguém;
  • A fracção está inscrita em seu nome, desde a aquisição e até hoje, nos Serviços de Finanças de Lisboa
  • No dia 1 de Novembro de 2021, o autor teve conhecimento que o réu, por requerimento atravessado na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, requereu a extinção da fracção, o que fez em Abril de 2019, com base numa sentença proferida em 20-10-1970, quando sabe que é o autor quem detém a propriedade daquele prédio.

O réu deduziu contestação, invocando, as seguintes excepções (cf. Ref. Elect. 34518273):
– Falta de capacidade e personalidade judiciária para ser accionado pelo autor com o intuito de fazer valer qualquer alegada pretensão ou reivindicação de propriedade, pois que goza de personalidade judiciária, nos termos a alínea e) do art.º 12.º do Código de Processo Civil[1], apenas relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador, o que não é o caso, sendo que ao condomínio, na pessoa do seu administrador, cabe administrar as partes comuns e não discutir a propriedade de uma parte comum; não havendo relativamente ao condomínio norma que resolva a questão da capacidade judiciária quanto a questões de propriedade relativamente às partes comuns devem aplicar-se as normas relativas à compropriedade, pelo que a acção, configurando-se como uma acção de reivindicação, deve ser proposta contra todos os condóminos, como comproprietários das partes comuns;
– Ilegitimidade passiva, porquanto numa acção em que se discute um direito de propriedade deve figurar quem alega ser proprietário, não o condomínio; a legitimidade passiva cabe aos proprietários das fracções autónomas que constituem a propriedade horizontal do prédio, que têm interesse directo em contradizer a demanda;
– Caso julgado, porque correu termos o processo n.º 6797/69 na 1ª Secção da 1ª Vara Cível de Lisboa, em que eram partes, como autor, Rogério……, na qualidade de administrador do condomínio sito na Rua ..... ....., nº ..., ...-A, ...-B e ...-C (o ora réu) e como réus, C_____ – Construções V____ Lda., Maria…… e Manuel…… (agora autor), onde se pediu que se declarasse como parte comum do referido prédio em propriedade horizontal a fracção descrita como letra “Q” – casa destinada a porteira, sita no 1º andar frente e o cancelamento da inscrição de transmissão a favor de Manuel…… por vício do título de constituição e ainda se declarasse nula a escritura de venda da fracção “Q” celebrada em 21/03/1968; foi proferida sentença, transitada em julgado a 20 de Outubro de 1970, que declarou que o local ou parte designada pela letra “Q” constitui uma parte comum do prédio urbano sito em Lisboa, na Rua ..... ....., nº ... e, como tal, pertence em compropriedade aos condóminos das quinze fracções autónomas e declarou nula a compra e venda do local, condenando os réus a reconhecer ao autor (condóminos) o direito de compropriedade sobre esse local da letra “Q”, como parte comum do prédio;
– Mais impugnou os factos, alegando que o prédio sito foi adquirido em 1966 pela empresa C____ – Construções V____ Lda. e nesse ano foi constituída a propriedade horizontal, mas, em desrespeito pela vistoria camarária, foram registadas 16 fracções e não 15, como havia sido aprovado;
– O autor e a mulher adquiriram à empresa C____, Lda. a referida fracção “Q”, bem sabendo, já na altura, que esta não havia sido objecto de aprovação pela Câmara Municipal, constituindo parte comum do prédio e como tal pertencia aos condóminos;
– Por essa razão a compra e venda foi declarada nula, pela sentença transitada em julgado, que ordenou o cancelamento da inscrição da fracção “Q”, que não existe enquanto fracção autónoma;
– O autor não tem, nem nunca teve, a posse da casa da porteira, aqui em questão, que está devoluta desde a saída desta até hoje;
– A alegação da usucapião, para além de não corresponder à realidade, assume contornos de litigância de má fé, porque o autor sabe que não é proprietário do imóvel em questão e que nunca o ocupou a qualquer título, pelo que deverá ser condenado como litigante de má fé, no pagamento de uma indemnização nunca inferior a três mil euros.

Pugna pela procedência de todas as excepções dilatórias invocadas ou, assim se não entendendo, pela absolvição do réu do pedido e condenação do autor como litigante de má-fé, no pagamento de uma multa e de uma indemnização.

Em 8 de Fevereiro de 2023, o autor veio apresentar resposta sustentando que o réu é o sujeito processual para figurar nesta acção nessa qualidade, que foi quem requereu a extinção da fracção autónoma, tendo todo o interesse em contradizer; mais reiterou que tem a posse do imóvel e agiu sempre como proprietário do espaço, sendo a sua uma posse titulada; apesar da sentença, desde 1970 o réu nunca exerceu qualquer acto de posse sobre o imóvel. Reitera o que afirmou na petição inicial e conclui pela improcedência das excepções e do pedido de condenação como litigante de má fé (cf. Ref. Elect. 35009622).

Em 7 de Junho de 2023 foi proferida decisão que julgou procedente a excepção dilatória de falta de capacidade e personalidade judiciárias do réu Condomínio e o absolveu da instância, nos termos do disposto nos art.ºs 576º, n.ºs 1 e 2, 577º, c) e 278º, n.º 1, c) e e) do CPC (cf. Ref. Elect. 426490029).

Inconformado com esta decisão, dela veio o autor interpor o presente recurso, cujas alegações conclui do seguinte modo (cf. Ref. Elect. 36550582):

1.–Foi demandado ao Réu, por parte do Autor, precisamente porque foi o Réu, quem se quis, de forma ilegal e irregular se apropriar de um bem imóvel de pertença única e exclusiva do Autor.

2.–Foi o Réu, conforme alegado na Petição Inicial, que requereu a extinção da fracção autónoma do Autor.

3.–Como tal, tem o Réu todo o interesse em contradizer a presente acção.

4.–Bem como tem o Autor o direito de demandar o Réu, para que este não se aproprie da fração que é propriedade do Autor.

5.–Foi o Réu (Condomínio) quem requereu a extinção da fração que aqui se discute.

6.–Não se verifica qualquer excepção dilatória de ilegitimidade do Réu na presente acção.

7.–O art. 26º, do CPC dispõe que o condomínio é representado em juízo pelo seu administrador.

8.–Até em termos substantivos a administração das partes comuns do edifício compete à assembleia de condóminos e a um administrador, sendo que aquela é um órgão colegial, composto por todos os condóminos, ao qual cabe deliberar acerca da administração das partes comuns do edifício e que reúne, em regra, uma vez por ano.

9.–O administrador é o órgão executivo permanente da administração das partes comuns do edifício e que deve executar as deliberações da assembleia de condóminos (art. 1435.º/1 do Código Civil).

10.–Logo, para além da sua competência própria constante do art. 1437, do CC representa o mesmo, nos termos do art. 26º, do CPC os condóminos na parte passiva da presente acção.

11.–Esta é a posição, que actualmente parece ser dominante da nossa jurisprudência.(Cfr.: AC da RP Processo: 54/21.6T8PFR.P; Ac da RP de 13.2.2017 n.º 232/16.0T8MTS.P1;Ac da RC de 23.2.2021, nº 146/19.1T8NZR.C1;Ac da RL de 11.7.2019, nº 9441.17.3T8LSB.L1-2,Ac da RG de 23.10.2020, nº 1068/18.9T8VCT.G2; Ac do STJ de 24/11/2020, revista n.º 23992/18.9T8LSB.L1.S1, 6.ª Secção);

12.– Por outro lado, a redacção da lei substantiva foi alterada e passou a dispor que: “A representação judiciária dos condóminos contra quem são propostas as acções compete ao administrador ou à pessoa que a assembleia designar para esse efeito” (art. 1433º, nº6, do CC).

13.–Conforme ensina Miguel Mesquita: “A solução para o problema passa, precisamente, em nosso entender, pela interpretação actualista do art. 1433.º, n.º 6, do CC. Vejamos porquê. Esta norma – cuja redacção deriva do DL n.º 267/94, de 25/10 – foi redigida numa época em que o condomínio não gozava de personalidade judiciária, ou seja, não podia, enquanto tal, ser parte activa ou passiva num processo cível. A causa dizia respeito ao condomínio? Pois bem, tornava-se indispensável a intervenção, do lado activo ou do lado passivo, de todos os condóminos”.

14.–E acrescenta ainda o mesmo Autor que: «Quanto ao nosso problema, a necessidade de identificar todos os condóminos pode ser "diabólica", por duas razões: por causa do elevado número de condóminos de certos edifícios sujeitos ao regime da propriedade horizontal; por causa, também, da impossibilidade prática, na esmagadora maioria das vezes, de identificar, na acta da assembleia, os condóminos que votaram a favor da deliberação inválida. Na realidade, a lei não exige que sejam mencionados os condóminos que votaram a favor de uma deliberação. O art. 1.º do DL n.º 268/94, de 25/10, exige apenas que as actas das assembleias de condóminos sejam "assinadas por quem nelas tenha servido de presidente e subscritas por todos os condóminos que nelas hajam participado" (4º). Estas duas razões de fundo levam-nos a pensar que a tese negatória da personalidade judiciária do condomínio, ao rejeitar a interpretação actualista do art. 1433.º, n.º 6, do CC, constitui uma solução pouco prática e, até, espinhosa».

15.–Deveria o “Tribunal a quo” ter efectuado uma leitura actualista do art. 1433º, nº6, do CC nos termos do qual a presente acção deveria ter sido intentada contra o condomínio representado pelo seu administrador.

16.–Tanto mais que, após a entrada em vigor da lei 8/22 de 10.1. A “nova “ lei do condomínio, nos termos da qual foi alterada a redação da lei por forma a conceder legitimidade ao administrador para representar o condomínio, nesta situação, de acordo com a discussão desse diploma, “com vista a adequar o texto legal ao que se vem tornando pacífico na jurisprudência”.

17.–Este diploma dispõe no actual art. 1437º, do CC que :“Representação do condomínio em juízo 1- O condomínio é sempre representado em juízo pelo seu administrador, devendo demandar e ser demandado em nome daquele. 2- O administrador age em juízo no exercício das funções que lhe competem, como representante da universalidade dos condóminos ou quando expressamente mandatado pela assembleia de condóminos. 3- A apresentação pelo administrador de queixas-crime relacionadas com as partes comuns não carece de autorização da assembleia de condóminos.» Ou seja, o legislador tomou posição expressa adoptando a posição jurisprudencial referida e por nós também defendida.”

18.–Esta norma esclarece de forma definitiva a querela doutrinal e jurisprudencial sobre esta questão, assumindo assim natureza de lei interpretativa nos termos previstos no art. 13º, nº1, do CC.

19.–O art. 8º, desse diploma (lei nº 8/2022, de 10.1. dispõe que “A alteração ao artigo 1437.º do Código Civil é imediatamente aplicável aos processos judiciais em que seja discutida a regularidade da representação do condomínio, devendo ser encetados os procedimentos necessários para que esta seja assegurada pelo respectivo administrador”.

20.–Esta norma, segundo o legislador, assume natureza processual (daí a regra de ser imediatamente aplicável), e é de aplicação imediata, oficiosamente.

21.–Ou seja, a expressão “devendo” indica que estamos perante um poder dever do tribunal e não perante uma simples faculdade deste, o qual pode assim ser enquadrado no âmbito do art. 6º, nº2, do CPC no âmbito do dever de sanação dos pressupostos processuais.

22.–Todavia, a Decisão recorrida não procedeu a uma correcta interpretação dos factos e das normas legais aplicáveis ao caso em concreto.

23.–E como tal, deverá ser revogada.

24.–A sentença recorrida viola o disposto no artigo 154º e 615º do C.P.C., porque além de fazer uma errada interpretação e aplicação das normas enunciadas na mesma, não está fundamentada de facto e de direito, como impõem estas normas legais. 25.A sentença recorrida viola os artigos: art. 13º, nº1, do CC; art. 1435.º/1 do Código Civil; art. 1437, do CC; art. 26º, do CPC; art. 1433º, nº6, do CC.

Termina pedindo a revogação da decisão recorrida.

O réu/recorrido apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso (cf. Ref. Elect. 37184862).

*

II–OBJECTO DO RECURSO

Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não podendo o tribunal ad quem pronunciar-se sobre questões novas - cf. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª Edição Atualizada, 2022, pág. 139.

Assim, perante as conclusões da alegação do autor/apelante, o objecto do presente recurso consiste na apreciação das seguintes questões:
a.-Nulidade da decisão;
b.-Da verificação da falta de personalidade e capacidade judiciárias do réu.

Colhidos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

*

III–FUNDAMENTAÇÃO

3.1.– FUNDAMENTOS DE FACTO

Com interesse para a decisão relevam as ocorrências processuais que se evidenciam do relatório supra.

*

3.2.– APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO

3.2.1.- Da nulidade da decisão recorrida

Do conteúdo da motivação e, em concreto, do teor da conclusão 24ª, o recorrente parece imputar à decisão recorrida o vício de falta de fundamentação, de facto e de direito, para além de referir que ali se faz uma errada interpretação e aplicação das normas que nela são enunciadas.

As decisões judiciais podem estar feridas na sua eficácia ou validade por duas ordens de razões: por erro de julgamento dos factos e do direito; por violação das regras próprias da sua elaboração e estruturação ou das que delimitam o respectivo conteúdo e limites, que determinam a sua nulidade, nos termos do art. 615.º do CPC.

Dispõe o art. 615º, n.º 1 do CPC o seguinte:

1- É nula a sentença quando:

a)- Não contenha a assinatura do juiz;

b)- Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c)- Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d)-O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e)- O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”

Para a correcta interpretação deste preceito importa distinguir entre nulidades de processo e nulidades de julgamento, sendo que apenas a estas últimas se aplica o normativo em referência.

Conforme impõe o n.º 3 do art.º 607º do CPC, o juiz deve especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão, observando o disposto quer nesse normativo, quer no respectivo n.º 4, ou seja, o juiz deve discriminar os factos que julga provados e os que julga não provados, analisando criticamente as provas, o que fará em conformidade com a sua livre apreciação (princípio da liberdade de julgamento – cf. n.º 5 do art. 607º do CPC).

É usual verificar-se alguma confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou até entre a omissão de pronúncia (quanto a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento de entre os que são convocados pelas partes – cf. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 737.

A nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do art. 615º do CPC é reconduzida à falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito ou a sua ininteligibilidade, o que tem sido uniformemente entendido pela jurisprudência como abrangendo apenas a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente ou o desacerto da decisão.

Veja-se, neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2-06-2016, processo n.º 781/11.6TBMTJ.L1.S1[2]:

“As causas de nulidade tipificadas nas alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 615º […] ocorrem quando não se especifiquem os fundamentos de facto e de direito em que se funda a decisão (al. b)) ou quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou se verifique alguma ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível (c)). O dever de fundamentar as decisões tem consagração expressa no artigo 154º do Código de Processo Civil e impõe-se por razões de ordem substancial, cumprindo ao juiz demonstrar que da norma geral e abstracta soube extrair a disciplina ajustada ao caso concreto, e de ordem prática, posto que as partes precisam de conhecer os motivos da decisão, em particular a parte vencida, a fim de, sendo admissível o recurso, poder impugnar o respectivo fundamento ou fundamentos […] Não pode, porém, confundir-se a falta absoluta de fundamentação com a fundamentação insuficiente, errada ou medíocre, sendo que só a falta absoluta de motivação constitui a causa de nulidade prevista na al. b) do nº 1 do artigo 668º citado, como dão nota A. Varela, M. Bezerra e S. Nora (Manual de Processo Civil, 2ª ed., 1985, p. 670/672), ao escreverem “Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”. Só a total omissão dos fundamentos, a completa ausência de motivação da decisão pode conduzir à nulidade suscitada.”

A figura da nulidade da sentença por falta de fundamentação constitui, assim, uma figura de muito difícil verificação, dado que a doutrina e a jurisprudência têm salientado que tal só se verifica em situações de falta absoluta de indicação das razões de facto e de direito que justificam a decisão e não também quando tais razões constem da sentença, mas de tal forma que pela sua insuficiência ou laconismo, se deve considerar a fundamentação deficiente.

Já o Professor José Alberto dos Reis esclarecia que «Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.» - cf. Código de Processo Civil Anotado, V Volume, 3ª Edição, Coimbra Editora, pág. 140.

Significa isto que o vício da nulidade da sentença por falta de fundamentação não ocorre em situações de escassez, deficiência, ou implausibilidade das razões de facto e/ou direito indicadas para justificar a decisão, mas apenas quando se verifique uma total falta de motivação que impossibilite o escrutínio das razões que conduziram à decisão proferida a final – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12-2011, processo n.º 2/08.9TTLMG.P1.

Na situação presente constata-se, de modo claro, que a decisão recorrida se encontra fundamentada de facto (por referência aos elementos factuais vertidos nos articulados e de que partiu para apreciar as excepções suscitadas) e de direito, sendo perceptíveis as razões que determinaram o Tribunal a quo a proferir a decisão com o sentido apontado, ou seja, a procedência da invocada falta de capacidade judiciária do réu para figurar na acção, pelo lado passivo.

O eventual acerto ou desacerto da decisão não corresponde ao vício apontado, pois que contende já com a apreciação da questão que importava resolver, ou seja, a verificação ou não da excepção deduzida, pelo que, no último caso, estar-se-á perante um erro de julgamento, mas não face a um vício que afecte a validade da decisão.

Improcede, assim, a suscitada nulidade da decisão.

*

3.2.2.- Da personalidade e capacidade judiciárias do Condomínio

O réu defendeu-se em sede de contestação invocando, entre o mais, que apenas goza de personalidade judiciária relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador, o que não é o caso, pois que ao condomínio, na pessoa do seu administrador, cabe administrar as partes comuns e não discutir a propriedade de uma parte comum, daí que às acções em que se discuta a propriedade relativamente às partes comuns devem aplicar-se as normas relativas à compropriedade e a acção deve ser proposta contra todos os condóminos, como comproprietários das partes comuns.

O Tribunal recorrido apreciou esta questão nos seguintes termos:

“[…] o artigo 12.º, alínea e) do Código de Processo Civil consigna que os condomínios têm personalidade judiciária, “resultante da propriedade horizontal, relativamente às ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrador”.

Com a premissa legal acima explicitada, o legislador criou uma ficção atinente à personalidade judiciária do condomínio para as ações inseridas no âmbito dos poderes do administrador do condomínio, de onde se retira que este pressuposto processual (em relação ao condomínio) não é absoluto, mas sim relativo, dependendo do objeto da causa.

De harmonia com tal solução legal, para aferir da legitimidade do condomínio é necessário verificar se o mesmo se encontra patente no âmbito dos artigos 1436.º e 1437.º do Código Civil (CC).

Ora, o n.º 1 do artigo 1437.º do Código Civil consigna que “O condomínio é sempre representado em juízo pelo seu administrador, devendo demandar e ser demandado em nome daquele”, aludindo este normativo à legitimidade ad processum, isto é, a capacidade processual (capacidade judiciária, que se traduz na suscetibilidade de estar, por si, em juízo) e não à legitimidade propriamente dita (a chamada legitimidade ad causam).

A autora Sandra Passinhas (A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, 2ª ed., p. 338), concretizando o que se intui da leitura do artigo 12.º, alínea e) do CPC, refere que “fora do âmbito dos poderes do administrador, o condomínio não tem personalidade judiciária e, portanto, os condóminos agirão em juízo em nome próprio”.

Por seu turno, Rosendo Dias José (A Propriedade Horizontal, p. 133) vinca a tese corporizado no facto de o artigo 1437.º do CC satisfazer a necessidade prática de, no âmbito das funções de administração que lhe pertencem ou que lhe sejam permitidas mediante deliberação da assembleia de condóminos, fazer representar a propriedade horizontal (condomínio) em juízo sem chamar todos os condóminos à ação.

Destarte, a representação judiciária do condomínio (conjunto dos condóminos) por parte do administrador só tem lugar quando a demanda se refere a poderes de administração legalmente deferidos ao administrador (neste caso existe uma representação judiciária por direito próprio) ou a poderes conferidos pela assembleia (neste caso o administrador assegura aos condóminos a inerente representação judiciária), sendo que, por consequência, em todas as matérias que extravasem o âmbito dos poderes conferidos ao administrador, a personalidade judiciária (suscetibilidade de ser parte) recai em exclusivo sobre os próprios condóminos individualmente considerados, os quais consubstanciam os efetivos sujeitos dos interesses substantivos em crise, desconsiderando-se, nesse caso, a personalidade judiciária (ficcionada) do condomínio (e a capacidade judiciária atribuída ao respetivo representante orgânico, o administrador) - neste sentido, vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Maio de 2021, processo n.º 90/19.2T8LLE.E1.S1.

Analisando os poderes atribuídos ao administrador e estabelecidos no referido artigo 1436.º do CC, ilaciona-se que o objeto dos autos não é passível de ser abarcado pelas funções conferidas àquele, esclarecendo-se, em complemento, que “regular o uso das partes comuns” (alínea h) não se confunde com discutir a propriedade das mesmas.

Com efeito, a questão controvertida nestes autos não respeita, pelo menos diretamente, à atividade própria do condomínio, mas, sim, ao direito de propriedade de cada condómino sobre as partes comuns – designadamente, aquela de que o Autor se arroga proprietário. […]

Estando fora de dúvidas, portanto, que o objeto da ação extravasa o âmbito da atividade do condomínio, pelo menos stricto sensu, deve concluir-se que a mesma deve correr contra os condóminos de per si, os interessados diretos na discussão do direito de propriedade, de todos e cada um.

Desta feita, em jeito de conclusão, por não estarmos perante um litígio que se insira no âmbito dos poderes do administrador, não se aplica, in casu, a premissa legal que confere personalidade judiciária (ficcionada) ao condomínio ou capacidade judiciária ao condomínio ou respetivo representante orgânico (o administrador), devendo a ação visar os respetivos condóminos, os quais consubstanciam os titulares dos interesses subjacentes à problemática em causa.”

O recorrente insurge-se contra o assim decidido pela seguinte ordem de razões:

  • O réu foi demandado porque foi quem quis se apropriar de um bem imóvel que pertence ao autor, requerendo a extinção da fracção autónoma, pelo que é ele quem tem interesse em contradizer a acção;
  • De acordo com o art.º 26º do CPC, o condomínio é representado em juízo pelo seu administrador, pelo que representa os condóminos para além da sua competência própria prevista no art.º 1437º do Código Civil, o que constitui a jurisprudência actual dominante;
  • A redacção actual (?) do art.º 1433º, n.º 6 do Código Civil ou uma sua interpretação actualista é no sentido de que a acção deve ser intentada contra o condomínio representado pelo seu administrador;
  • A Lei n.º 8/2022, de 10 de Janeiro e a redacção conferida ao art.º 1437º do Código Civil esclareceram de modo definitivo a questão.

O apelado sustentou, por sua vez, que fora do âmbito dos poderes e funções do administrador o condomínio não tem personalidade judiciária, sendo que tais funções se reportam à prática de actos de gestão administrativa, de modo que todos os assuntos que saiam desse âmbito, como sucede com o direito de propriedade sobre uma parte comum, compete aos condóminos, o que é confirmado pela redacção dos n.ºs 1 e 2 do art.º 1437º do Código Civil.

A decisão recorrida começou por abordar a atribuição de personalidade judiciária ao condomínio resultante da propriedade horizontal quanto às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador, para depois se debruçar sobre a legitimidade do condomínio para figurar na acção, que deveria ser aferida nos termos dos art.ºs 1436º e 1437º do Código Civil, concluindo, contudo, que este último normativo legal não se reporta à legitimidade ad causam, mas à legitimidade ad processum, ou seja, à capacidade processual (susceptibilidade para estar, por si, em juízo), referindo que ocorre a representação judiciária do condomínio pelo administrador, apenas quando a demanda se refere aos poderes de administração que lhe são legal ou voluntariamente (pela assembleia de condóminos) conferidos.

A final, o Tribunal recorrido concluiu pela falta de capacidade e personalidade judiciárias do réu.

Como é sabido, a atribuição de personalidade judiciária à pessoa singular ou à pessoa colectiva que seja detentora de personalidade jurídica é automática – cf. art.º 11º do CPC.

Tal como resulta do disposto no art.º 1420º, n.º 1 do Código Civil o direito de propriedade horizontal integra dois direitos: o direito de propriedade plena exclusivo de cada condómino sobre a fracção que lhe pertence e, simultaneamente, o direito de compropriedade de todos os condóminos sobre as partes comuns do prédio.

Para efeitos dessa distinção, o art.º 1418.º, n.º 1 do Código Civil enuncia as informações que devem constar no título constitutivo da propriedade horizontal onde, necessariamente, devem ser especificadas as partes do edifício correspondentes às várias fracções e a fixação do valor relativo a cada uma delas, expresso em percentagem ou permilagem do valor total do prédio, sendo que dele podem ainda constar outras especificações, como o fim a que se destina cada fracção ou parte comum e o regulamento do condomínio que disciplina o uso, fruição e conservação, quer das partes comuns, quer das fracções autónomas – cf. n.º 2 do referido normativo legal.

Por sua vez, o art.º 1421.º do Código Civil, na redacção dada pelo DL n.º 267/94, de 25-10, elenca, no seu n.º 1, as partes do edifício que se têm por imperativamente comuns e, no n.º 2, aquelas que se presumem comuns (presunção ilidível), sendo que, de acordo com o n.º 3 daquela norma, o título constitutivo pode afectar ao uso exclusivo de um dos condóminos certas zonas das partes comuns.

Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume III, 2ª Edição Revista e Actualizada, pp. 397-398 esclarecem:

“O que verdadeiramente caracteriza a propriedade horizontal é, pois, a fruição de um edifício por parcelas ou fracções independentes, mediante a utilização de partes ou elementos afectados ao serviço do todo. Trata-se, em suma, da coexistência, num mesmo edifício, de propriedades distintas, perfeitamente individualizadas, ao lado da compropriedade de certos elementos, forçadamente comuns. […] no entanto […] esta figura é mais do que a mera justaposição daqueles dois direitos: trata-se de um direito real novo […]

O condomínio é, assim, a figura definidora da situação em que uma coisa materialmente indivisa ou com estrutura unitária pertence a vários contitulares, mas tendo cada um deles direitos privativos ou exclusivos de natureza dominial - daí a expressão condomínio - sobre fracções determinadas”.

Este direito novo, o direito de propriedade horizontal, composto pelo conjunto incindível de dois direitos[3] – a propriedade exclusiva da fracção e a compropriedade das partes comuns do edifício - tem, assim, de característico, a interdependência estrutural entre as várias fracções, sendo que cada fracção é inseparável das partes comuns do edifício que lhe correspondem, pelo que o direito de propriedade exclusiva sobre a fracção não pode ser alienado sem o direito de compropriedade correspondente sobre as coisas comuns e vice-versa.

O condomínio, enquanto entidade socialmente organizada dotada de órgãos e de um património (cf. art.º 4º do DL n.º 268/94, de 25 de Outubro) não é uma pessoa colectiva e, em princípio, não dispõe de personalidade judiciária. Embora a lei não atribua personalidade jurídica ao condomínio, admite, contudo, que este seja sujeito de relações jurídicas, enquanto forma orgânica de desenvolvimento da vida do colectivo dos condóminos – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-09-2021, processo n.º 4337/21. 7T8LSB.L1-7.

O art.º 12º do CPC estende a personalidade judiciária a determinadas entidades, entre elas, o condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrador – cf. respectiva alínea e).

Tem-se entendido que essa concessão permite ao condomínio urbano intervir como autor ou como réu em determinadas acções em que estejam em discussão questões que importam ao condomínio e que se inscrevem no âmbito dos poderes do administrador. No entanto, não é suficiente que essas acções respeitem ao prédio constituído em regime de propriedade horizontal, sendo necessário conexioná-las com as normas substantivas para aferir em quais, de entre elas, o condomínio pode ou não ser parte processual activa ou passiva, sob representação do administrador – cf. neste sentido, António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pp. 43-44.

Sustentam os mencionados autores, que quando o condomínio deva intervir, activa ou passivamente, a representação pertence ao administrador, o que sucederá quanto às acções que respeitem às partes comuns, com ressalva daquelas em que se discuta a propriedade ou a posse destas, casos em que a intervenção do administrador deve ser precedida da atribuição de poderes especiais por parte da assembleia (cuja comprovação constitui pressuposto da capacidade judiciária lato sensu) – cf. art.ºs 26º e 29º do CPC; cf. op. cit., pág. 55.

Todavia, como referem João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, parte é quem o é, não quem o devia ou podia ser, esclarecendo que estando a parte representada, parte é o representado, e não o representante – cf. Manual de Direito Processual Civil, Volume I, 2022, pág. 286.

A personalidade judiciária só produz efeitos dentro do processo. Por essa razão, existem entidades dotadas de personalidade judiciária, mas não de personalidade jurídica – cf. art.º 12º e 13º do CPC.

A personalidade judiciária é, por isso, um conceito processual, apenas eventualmente coincidente com o de personalidade jurídica e nunca dependente de qualquer capacidade de gozo. Mas constitui pressuposto dos restantes pressupostos processuais subjectivos relativos às partes (a legitimidade ou a capacidade judiciária são atributos das partes) – cf. op. cit., pág. 292.

O condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador, detém, pois, personalidade judiciária (art.º 12.º, al. e)). Entre as acções relativas aos poderes do administrador figuram também aquelas que são propostas pelo condomínio contra o administrador, o que, no seu entender, não afasta a função de substituto processual que é atribuída ao administrador pelo art.º 1437º, n.º 1 do Código Civil – cf. op. cit., pág. 295.

Porém, o art.º 1437º do Código Civil, na redacção anterior à vigência da Lei n.º 8/2022, de 10 de Janeiro[4], concedia ao administrador legitimidade para agir em juízo no desempenho das funções que lhe pertencem, ou quando autorizado pela assembleia de condóminos, ou seja, o legislador entendeu, na mencionada alínea e) do art.º 12º do CPC, que lhe era de atribuir tal veste relativamente às acções em que intervenha o administrador dentro da competência funcional que a lei lhe reconhece – cf. Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Volume I, 3ª Edição revista e actualizada, pág. 57.

É conhecida a divergência doutrinária e jurisprudencial sobre a natureza da matéria regulada no art.º 1437º do Código Civil, na redaçcão anterior à Lei n.º 8/2022, de 10 de Janeiro, sendo que a própria epígrafe da norma aludia a legitimidade do administrador e atenta a forma como estava redigido parecia regular a acção em juízo do administrador em substituição do condomínio, ou seja, a possibilidade de aquele ser parte num processo judicial. Regular-se-ia, assim, a legitimidade activa, tanto para demandar condóminos como terceiros (n.º 1), e passiva, no que respeita às acções respeitantes a partes comuns (n.º 2).

Apesar dessa divergência, a jurisprudência veio a assumir, de modo algo pacífico, que aquilo que se encontrava regulado no art.º 1437º do Código Civil não era a legitimidade substancial do administrador, tal como emerge do disposto no art.º 30º e seguintes do CPC, mas sim a legitimidade processual/formal, no sentido de capacidade de representação, enquanto forma de suprimento da incapacidade judiciária do condomínio.

Do art.º 1430º, n.º 1 do Código Civil decorre que a administração das partes comuns do edifício compete à assembleia de condóminos e a um administrador, com o que se pretende obter uma vontade própria e única e um sistema de gestão e funcionamento eficaz relativamente às partes comuns do edifício.

A assembleia é um órgão colegial, composto pela totalidade dos condóminos que delibera sobre questões da administração das partes comuns do edifício, sendo o administrador o órgão executivo da administração das partes comuns do edifício e das deliberações da assembleia de condóminos, sendo eleito e exonerado por ela – cf. art.º 1435º, n.º 1 do Código Civil.

As funções específicas do cargo de administrador estão enunciadas no art.º 1436º do Código Civil, podendo desempenhar outras que lhe sejam conferidas pela assembleia de condóminos ou previstas em disposições legais.

Assim, quanto à presença em juízo, Sandra Passinhas refere que o poder de representação processual do administrador previsto no art.º 1437º do Código Civil acompanha necessariamente os seus poderes de gestão no que ao condomínio diz respeito. Enquanto órgão, o administrador tem representação orgânica e representa ex necessario o condomínio. Daí que a representação em juízo do condomínio respeite, inderrogavelmente, no sentido do artigo 1437º, ao administrador eleito pela assembleia dos condóminos, no que respeita às lides compreendidas no âmbito das funções do administrador ou dos maiores poderes que lhe forem atribuídos pelo regulamento ou pela assembleia – cf. A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, pp. 339-340[5].

Portanto, o que se vinha entendendo é que na previsão do art.º 1437º do Código Civil não estava em causa a legitimidade enquanto pressuposto processual (interesse na procedência ou na improcedência da acção), questão que nem se poderia colocar em relação ao administrador, porquanto este age em juízo por conta do condomínio, enquanto respectivo órgão executivo, logo, necessariamente no interesse dos representados, os condóminos.

Disso se dá conta no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22-02-2022, processo n.º 3077/20.9T8MAI.P1:

“Com efeito, o condomínio é que é parte nas relações jurídicas relativas às partes comuns e não o administrador, sendo em relação àquele e não a este que deve ser aferido o preenchimento do pressuposto da legitimidade tal como configurada nos arts. 30º e segs. do Cód. de Proc. Civil, isto é, o interesse na procedência (caso seja o autor) ou na improcedência (caso seja réu) da ação. […]

Continuando, dir-se-á ainda que o regime do art. 1437º do Cód. Civil encontrava a sua razão de ser na realização de uma evidente exigência de simplificação nas relações entre o condomínio e terceiros, ou até algum dos condóminos, em que uma das partes pretenda fazer valer em juízo pretensões respeitantes às partes comuns, de que aqueles são comproprietários.”

Neste aresto, após se fazer alusão a acórdãos que situaram a matéria regulada no art.º 1437º do Código Civil no campo do pressuposto processual da personalidade judiciária (por extensão legal) e na exigência legal de representação dos patrimónios autónomos pelos seus administradores, concluiu-se que à luz da redacção anterior do art.º 1437º do Código Civil, o pressuposto da legitimidade substantiva deve ser referenciado ao Condomínio e que o seu administrador intervém nos autos não em nome próprio, mas sim apenas nessa qualidade de administrador e enquanto órgão daquele.

A Lei n.º 8/2022, de 10 de Janeiro alterou a redação do art.º 1437º do Código Civil, modificando, desde logo, a sua epígrafe, que era “legitimidade do administrador”, para “representação do condomínio em juízo”, dela passando a constar o seguinte:

1.- O condomínio é sempre representado em juízo pelo seu administrador, devendo demandar e ser demandado em nome daquele.

2.- O administrador age em juízo no exercício das funções que lhe competem, como representante da universalidade dos condóminos ou quando expressamente mandatado pela assembleia de condóminos.

3.- A apresentação pelo administrador de queixas-crime relacionadas com as partes comuns não carece de autorização da assembleia de condóminos.”

Com esta nova redacção, tem-se afirmando que, face à anterior, teria ficado esclarecido que parte legítima é o Condomínio e que a sua representação em juízo cabe ao respetivo administrador.

Deste entendimento discorda o Professor Miguel Teixeira de Sousa que, embora referindo que o actual art.º 1437º do Código Civil tem a vantagem de esclarecer que o administrador intervém em juízo sempre que esteja no exercício das suas funções (donde, não há que discutir sobre os casos em que se pode verificar essa sua intervenção em juízo), sustenta que nele se incorre numa confusão de conceitos, pois quem é demandante ou demandado não pode ser, ao mesmo tempo, representante (se o administrador é a parte e se intervém como representante, então representa quem?).

Daí que proponha o seguinte sentido para esta nova redacção do art.º 1437º do Código Civil[6]:

4.- Procurando dar um sentido útil ao disposto nos n.º 1 e 2 do novo art. 1437.º CC não pode deixar de se dizer o mesmo que já se devia dizer a propósito da anterior redacção do preceito. Em concreto:

-- Os n.º 1 e 2 do art. 1437.º CC atribuem legitimidade activa ou passiva ao administrador do condomínio; quando se diz que alguém pode ou deve demandar ou pode ou deve ser demandado está-se necessariamente a referir a legitimidade processual; […] falar neste contexto da capacidade judiciária do administrador é fonte das maiores perplexidades e confusões;

-- Os n.º 1 e 2 do art. 1437.º CC atribuem ao administrador do condomínio -- ou seja, a esse administrador como parte processual -- a qualidade de substituto processual do condomínio; mais até:

-- Dado que o administrador não está em juízo defendendo interesses próprios, mas antes os interesses alheios do condomínio, o que se consagra nos referidos preceitos é o que em termos doutrinários se qualifica como substituição processual representativa (como também se verifica, por exemplo, quanto ao administrador de insolvência);

-- Porque o n.º 2 do novo art. 1437.º CC permite que o administrador do condomínio seja "mandatado pela assembleia de condóminos", este preceito consagra, nesta parte, um caso de substituição processual voluntária.”

A decisão recorrida convocou a aplicação do disposto no art.º 1437º do Código Civil e conferiu-lhe o sentido da definição de uma legitimidade formal, isto é, tal norma aludiria à capacidade judiciária do condomínio, em que a intervenção do administrador, em representação do condomínio, se contém nos limites dos seus poderes de administração.

Dir-se-ia, pois, que independentemente do alcance do actual art.º 1437º do Código Civil, a personalidade judiciária do condomínio resultante da propriedade horizontal se limitaria às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador e só em relação a essas – cf. art.º 12º, e) do CPC.

Contudo, Miguel Teixeira de Sousa esclarece, em anotação ao art.º 12º, in CPC Online -art. 1.º a 129.º Versão de 2023/06[7], que o condomínio resultante da propriedade horizontal apenas tem personalidade judiciária quanto a acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador, ou seja, uma acção por ele proposta contra o administrador por motivos relacionados com o exercício ou o não exercício dos seus poderes ou do administrador contra o condomínio com fundamento no exercício desses mesmos poderes. Significa isto, para o aludido Professor, que não pode ser concedida personalidade judiciária ao condomínio quanto a acções que nada têm que ver com as relações entre esse condomínio e o administrador:

“Trata-se de uma personalidade judiciária que é atribuída em função do objecto da causa, que, como resulta do preceito, só pode ser uma acção proposta pelo condomínio contra o administrador por motivos relacionados com o exercício ou o não exercício dos seus poderes ou do administrador contra o condomínio com fundamento no exercício desses mesmos poderes (dif., p. ex., RP 24/1/2017 (7496/07)). A aferição da personalidade judiciária em função do objecto da acção permite concluir que também se afere, ao mesmo tempo, a legitimidade processual do condomínio. […]

(b) Do disposto na al. e) decorre que: (i) está excluído que possa ser concedida personalidade judiciária ao condomínio quanto a acções que nada têm a ver com as relações entre esse condomínio e o administrador”.

A decisão impugnada concluiu pela falta de personalidade e capacidade judiciárias do réu, por entender, face à causa de pedir invocada na petição inicial, que aquilo que se discute nestes autos nada tem que ver com os poderes de administração legalmente conferidos ao administrador ou que lhe tenham sido atribuídos pela assembleia de condóminos, tal como emergem do estatuído no art.º 1436º do Código Civil.

Não obstante a amplificação ou melhor concretização das funções do administrador tal como emergem da actual redacção do art.º 1436º do Código Civil e apesar de o art.º 1437º ter deixado de efectuar uma ressalva expressa quanto às acções atinentes a questões de propriedade sobre bens comuns, não se pode deixar de entender que esta matéria está excluída do âmbito das funções do administrador, não lhe cabendo por disposição legal discutir, no confronto com um qualquer dos condóminos ou com terceiro, o direito de propriedade incidente sobre parte comum do edifício constituído em propriedade horizontal – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2ª Edição Revista e actualizada, pág. 456 – “A intervenção do administrador, como o próprio nome desse órgão dá desde logo a entender, só se justifica em relação aos actos de conservação e de fruição das coisas comuns, aos actos conservatórios dos respectivos direitos ou à prestação dos serviços comuns. Logo que se entra no domínio das questões de propriedade ou de posse dos bens comuns, está ultrapassado o círculo dentro do qual se contêm os actos do administrador. Ressalva-se, entretanto, a hipótese de a assembleia conferir poderes especiais ao administrador para representar os condóminos em juízo.”; cf. Sandra Passinhas, op. cit., p. 338 – “[…] fora do âmbito dos poderes do administrador, o condomínio não tem personalidade judiciária e, portanto, os condóminos agirão em juízo em nome próprio. […] Em tudo aquilo que exorbite o âmbito dos poderes legais do administrador, a personalidade judiciária (suscetibilidade de ser parte) recai exclusivamente sobre os sujeitos dos interesses substantivos em jogo, e estes são os próprios condóminos individualmente considerados.”

Por outro lado, também não está em causa qualquer questão atinente às relações estabelecidas entre o condomínio e o administrador no campo do exercício das funções deste, sequer qualquer questão que tenha que ver com actos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns ou com a regulação do seu uso (alíneas g) e h) do n.º 1 do art.º 1436º do Código Civil), sendo que os primeiros são aqueles que visam evitar a deterioração ou destruição dos bens, podendo ter natureza material ou judicial, ou seja, actos que nada resolvem em definitivo e que não comprometem o futuro – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., pág. 454.

Não havendo relativamente ao condomínio norma que resolva a questão da personalidade e da capacidade judiciária quanto a questões de propriedade relativamente às partes comuns devem aplicar-se as normas relativas à compropriedade, pois que se está perante um litígio entre um terceiro (ou um potencial condómino) e os demais condóminos, atinente a parte alegadamente comum de prédio constituído em propriedade horizontal.

Nos termos do disposto no art.º 1403 do Código Civil existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa.

Conforme decorre do estatuído no art.º 1405º do Código Civil, os comproprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular.

A acção proposta pelo recorrente configura-se como uma acção de reivindicação que deve ser proposta contra todos os condóminos como comproprietários das partes comuns – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-05-2018, processo n.º 278/16.8T8MFR.L1-8.

Com efeito, o art.º 1405º, n.º 2 do Código Civil, ao dispor que cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum, sem que a este lhe seja lícito opor-lhe que ela lhe não pertence por inteiro, consagrou a legitimidade de cada comproprietário para a acção de revindicação, numa situação de litisconsórcio voluntário activo.

Contudo, nas demais situações, como sucede no caso dos autos, em que terceiro pretende o reconhecimento do seu direito de propriedade exclusivo sobre coisa comum, exige-se a intervenção de todos os interessados, no lado passivo, pois que a acção deduzida apenas contra um ou alguns dos comproprietários não produziria o seu efeito útil normal, pela própria natureza da relação jurídica, sendo necessária a intervenção plural de todos os comproprietários - cf. art.º 33º do CPC; cf. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, op. cit., pág. 85 – “Já quando qualquer dos condóminos ou terceiro reclame a propriedade ou a posse sobre uma parte comum, para que a acção possa produzir o efeito útil normal, nos termos do art. 33º, n.º 2, devem ser demandados todos os condóminos […]”.

Como se viu, o condomínio não tem personalidade judiciária em acções quanto a questões relacionadas com a propriedade das partes comuns do edifício e, por via disso, falha-lhe também a capacidade judiciária e, por consequência, a própria legitimidade para ser demandado na presente acção (sendo certo que, neste caso, em momento algum foi alegado ou demonstrado que os condóminos tenham concedido poderes ao administrador para os representar na acção).

Em face do atrás expendido, contra tal afirmação não procede a argumentação do recorrente no sentido de que o condomínio deveria ser demandado (por si ou através do administrador enquanto seu representante) por ter sido este quem se aprestou a solicitar a extinção da fracção autónoma, pois que, como se explanou, a legitimidade processual acaba por ser aferida em função da personalidade judiciária que é determinada por referência ao objecto da causa, que, neste caso, extravasa o âmbito dos poderes do administrador.

De igual modo, não colhe aqui aplicação a norma do art.º 1433º, n.º 6 do Código Civil, que prescreve sobre o caso específico da representação dos condóminos no âmbito das acções para impugnação de deliberações da assembleia de condóminos, tanto mais que a acção não foi dirigida contra os condóminos, mas sim contra o condomínio, pelo que nem se poderia entender que aqueles seriam representados pelo administrador (sendo que todos os arestos mencionados pelo recorrente nas suas alegações reportam-se a esta situação específica, que não a acção de reivindicação de parte comum do prédio) – cf. neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, CPC Online, anotação ao art.º 12º.

Nos termos do art.º 577, alínea c) do CPC a falta de personalidade ou de capacidade judiciária de alguma das partes constitui excepção dilatória, que é de conhecimento oficioso, insusceptível de sanação ou suprimento[8] e obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância – cf. art.º 278º, n.ºs 1, c) e 2 do CPC.

Consequentemente, tendo a acção sido proposta contra o condomínio e porque este não tem personalidade ou capacidade judiciária atento o objecto da causa, impunha-se a sua absolvição da instância.

Improcede, assim, a presente apelação, devendo manter-se inalterada a decisão recorrida.

*

Das Custas

De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.

Nos termos do art.º 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.

O recorrente decai em toda a extensão quanto à pretensão que trouxe a juízo, pelo que as custas (na vertente de custas de parte) ficam a seu cargo.

*

IV–DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.

As custas ficam a cargo do apelante.

*

Lisboa, 21 de Novembro de 2023


Micaela Marisa da Silva Sousa
Diogo Ravara
Carlos Oliveira



[1]Adiante designado pela sigla CPC.
[2]Acessível na Base de Dados do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem.
[3]Cf. Art.º 1420º, n.º 2 do Código Civil – “O conjunto dos dois direitos é incindível; nenhum deles pode ser alienado separadamente, nem é lícito renunciar à parte comum como meio de o condómino se desonerar das despesas necessárias à sua conservação ou fruição.”
[4]“1. O administrador tem legitimidade para agir em juízo, quer contra qualquer dos condóminos, quer contra terceiro, na execução das funções que lhe pertencem ou quando autorizado pela assembleia.
2. O administrador pode também ser demandado nas acções respeitantes às partes comuns do edifício.
3. Exceptuam-se as acções relativas a questões de propriedade ou posse dos bens comuns, salvo se a assembleia atribuir para o efeito poderes especiais ao administrador.”
[5] Acessível em http://www.centrodedireitodafamilia.org/sites/cdb-dru7-ph5.dd/files/A_Assembleia_de_condominos.pdf.
[6]Blog IPPC, entrada de 11/01/2022, A posição em juízo do administrador do condomínio: et tu, Legislator?, acessível em https://blogippc.blogspot.com/
[7] Blog IPPC em https://blogippc.blogspot.com.
[8]Cf. acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 28-05-2020, processo n.º 35/14.6BECTB; do Tribunal da Relação de Coimbra de 5-07-2005, processo n.º 1238/05 e do Tribunal da Relação de Évora de
24-05-2018, processo n.º 614/17.0T8SSB.E1.