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CONTRATO-PROMESSA
RESOLUÇÃO
DECLARAÇÃO ASSERTIVA
REVOGAÇÃO
REFORMATIO IN PEJUS
Sumário
I–A resolução do contrato-promessa com fundamento no incumprimento da parte contrária pressupõe não só uma alusão clara ao incumprimento definitivo do contrato, como uma inequívoca declaração no sentido de pôr fim à sua vigência.
II–Não pode ser qualificada como resolução, a comunicação escrita dirigida por um dos contraentes aos demais, no sentido de que caso não observem determinado comportamento no prazo de 10 dias, considerará que estes incorrem em incumprimento definitivo, sem qualquer alusão às consequências que atribui a esse incumprimento.
III–Não pode a ré pretender que o Tribunal da Relação considere, em sede de recurso de apelação, uma resolução extrajudicial do contrato-promessa que sustenta ter levado a cabo, se a factualidade provada na sentença apelada não lhe faz qualquer menção e a mesma ré não impugnou a decisão sobre matéria de facto.
IV–O distrate do contrato-promessa, ou seja, a revogação do contrato por mútuo acordo produz efeitos ex nunc, exceto se as partes convencionarem efeitos ex tunc.
V–Tendo o Tribunal a quo reconhecido ao distrate efeitos retroativos não ajustados entre as partes, em termos favoráveis à apelante, não pode o Tribunal da Relação alterar a decisão apelada, nesta parte, sob pena de reformatio in peius, que lhe está vedada - art. 635º, nº 5 do CPC.
Texto Integral
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1.–Relatório
A [Gina …] e Cesaltina intentaram a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra B, Júlio, e Lina, pedindo a condenação solidária dos réus a pagar-lhes “a quantia de € 73.000,00 nos termos do disposto no art.º 442º, 2 do Código Civil, julgando-se, igualmente, o contrato-promessa de compra e venda e suas adendas resolvido por incumprimento das obrigações assumidas pelos Réus e pela A., já não estar interessada na celebração do contrato definitivo”.
Para tal alegaram que: a)-No dia 02-04-2013 os RR. Júlio e Susete celebraram com a A. Gina um contrato-promessa de compra e venda do prédio urbano composto de prédio de rés-do- chão anexos com a área de 70, 30 m2, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de S____ sob o n° 4..6 da freguesia de S..... M..... e S..... M....., e inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia sob o art. 1..7°. b)-Tal prédio não dispunha de licença de utilização. c)-O preço acordado entre as partes para a venda do imóvel foi de € 44.000,00. d)-O contrato definitivo só seria realizado após a obtenção de “declaração” de que o prédio havia sido construído anteriormente à data da entrada em vigor do RGEU. e)-A A. Cesaltina outorgou o referido contrato-promessa na qualidade de arrendatária, renunciando ao exercício do direito de preferência, tendo o pagamento da renda sido suspenso. f)-Em virtude de nunca ter sido obtida a “declaração”, no dia 21-02-2014 procedeu-se à primeira adenda ao contrato-promessa. g)-A 3ª R. é neta do 1ª R. e filha da 2ª R.. h)-Não tendo os RR. não logrado obter a referida declaração, a A. Gina propôs-se instaurar um projeto de legalização do imóvel junto da Câmara Municipal de S____ de forma a obter a respetiva licença de utilização, considerando-se então somente em dívida a quantia de € 7.500,00 que seria paga no ato da celebração do contrato de compra e venda. i)-A A. Gina deu entrada do processo de legalização do imóvel junto da Câmara Municipal de S____, Processo n° OB/97/2014. j)-No dia 13-09-2014 foi outorgada entre as partes nova adenda ao contrato-promessa de compra e venda. k)-Os RR. nunca entregaram junto da Câmara Municipal de S____ a declaração para a cedência a domínio público da área que constitui o arruamento que dá acesso ao imóvel prometido, tendo o mesmo sido indeferido por comunicação efetuada pela CMS à 1ª A. em 26-09-2016. l)-Desde o final de 2016 que a 1ª A. não consegue contactar os RR., que não atendem o telefone nem respondem aos emails que aquela lhes envia. m)-No dia 29-05-2018 o mandatário das AA. notificou a 3ª R. para que viabilizasse a assinatura do documento de cedência a titulo de domínio público no prazo de 10 dias após a receção da carta enviada para o domicílio profissional da 3ª Ré e que foi rececionada no dia 01-06-2018, nunca tendo a 3ª R. contactado as AA.. n)-No final do ano de 2018 a A. Gina encontrou casualmente a R. Lina, tendo esta referido que queria resolver o assunto, contudo, deixou de atender o telefone e não mais contactou. o)-A A. Gina pagou aos Réus Júlio e Susete, a título de sinal, a quantia de € 35.000,00. p)-A A. Gina deixou de ter interesse na celebração do contrato definitivo.
Citadas as rés, as mesmas contestaram: i.-Por exceção, invocando a ilegitimidade passiva da ré Lina, por não ter outorgado qualquer contrato, tendo intervindo apenas na qualidade de procuradora, bem como a ilegitimidade ativa da autora Cesaltina por ter intervindo no contrato apenas como arrendatária; ii.-Por impugnação, sustentando não terem recebido a carta de resolução invocada pelos autores; iii.-Informando do decesso do R. Júlio no decurso do ano de 2017.
Tendo as autoras deduzido incidente de habilitação, veio a ré Susete a ser julgada habilitada para prosseguir a ação igualmente no lugar do falecido.
As autoras responderam às exceções invocadas na contestação, pugnando pela sua improcedência.
Foi dispensada a realização de audiência prévia e proferido despacho saneador, julgando a exceção de ilegitimidade passiva procedente e em consequência absolvendo a ré Lina da instância, e a exceção de ilegitimidade ativa improcedente.
Na mesma ocasião foi proferida decisão delimitando o objeto do litígio, enunciando os temas da prova, e apreciando os requerimentos probatórios apresentados pelas partes.
As autoras deduziram articulado superveniente sustentando que em 22-08-2022, a A. Gina recebeu carta da ré na qual esta, invocando a cláusula 8ª do contrato dos autos, declara resolver o mesmo.
Posteriormente realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Face ao exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente por parcialmente provada e, consequentemente: A)-Declaro distratado o contrato-promessa celebrado entre as partes. B)-Condeno a R. B a pagar à A. A, a quantia a liquidar em incidente, correspondente a 35.000,00€ (trinta e cinco mil euros) menos as rendas do prédio vencidas nos meses de Abril de 2013 a Maio de 2018. C)-No mais vai a R. absolvida.”
Inconformada, a ré interpôs o presente recurso de apelação, cuja motivação sintetizou nas seguintes conclusões: 1.ª-Atento o versado nos pontos 1 a 5 deverá ser alterado o parágrafo 5 da pág. 4 da douta sentença, passando a ter s seguinte redacção: As AA. deduziram articulado superveniente invocando o seguinte facto superveniente: em 22-8-2022, a A. Gina recebeu carta da R. que refere resolver o contrato promessa de compra e venda celebrado em 2013 alegando que as AA. se encontram, em situação de incumprimento definitivo do contrato.
Atento o disposto nos pontos 6 a 33: 2.ª-Deverá ser revogada a douta sentença na conclusão que encerra segunda a qual o contrato foi declarado distratado pelas partes, devendo tal decisão decair sendo retiradas as consequências legais decorrentes e que são: o contrato foi revogado unilateralmente pela Recorrente com base em incumprimento definitivo da Recorrida A, tendo as partes acordado somente quanto à data em que tal resolução operou. 3.ª-Ser reconhecido que à data da revogação promovida pela Recorrente o contrato se encontrava válido pelo que o mesmo podia ser revogado unilateralmente à margem da presente ação judicial. 4.ª-Ser revogada a alínea B) da Decisão da douta sentença na parte em que condena a Recorrente a pagar à Recorrida A a quantia de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros). 5.ª-Atento o disposto nos pontos 33 a 61, deverá ser alterada a alínea B) da Decisão, não devendo a Recorrente ser condenada a restituir valor superior a € 5.000,00 (cinco mil euros), sem prejuízo da dedução das rendas do imóvel vencidas nos meses de Abril de 2013 a Maio de 2018.
Os autores não apresentaram contra-alegações.
Admitido o recurso, remetidos os autos a este Tribunal da Relação, e nada obstando ao conhecimento do mérito daquele, foram colhidos os vistos.
2.– Objeto do recurso
Conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[1]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, excetuadas as questões de conhecimento oficioso, não pode este Tribunal conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[2].
Assim, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
-A retificação da sentença apelada;
-O incumprimento definitivo do contrato-promessa dos autos por parte dos autores e a subsequente resolução do mesmo por iniciativa da ré;
-O montante da quantia que a apelante deve restituir aos apelados.
3.–Fundamentação
3.1.- Os factos
O Tribunal a quo considerou a factualidade:
3.1.1.- Factos provados 1.–Por escrito, datado de 02-04-2013, Júlio L...... e a R. e Susete, primeiros contraentes, na qualidade de titulares da herança aberta por óbito de Judite ……, e Júlio ……, por si próprio, prometeram vender à A. Gina, como segunda[3] contraente, que prometeu comprar, o prédio inscrito na matriz predial urbana sob o art. 1..7°, da freguesia de S..... M..... e S...... M..... do concelho de S____, sito na Rua ..... à ..... da ....., S/n°, em L....., 2...-...- S____, então omisso no registo predial, arrendado à A. Cesaltina, terceira contraente. 2.–Em tal escrito, as partes acordaram: 2.1.-Na cláusula 3ª: 1.–O preço acordado para a prometida venda é de € 44.000,00 (quarenta e quatro mil euros), do seguinte modo: a)-Com a assinatura do presente contrato-promessa, a SEGUNDA CONTRAENTE entrega aos PRIMEIROS CONTRAENTES, por conta daquele preço, a título de sinal e de princípio de pagamento, a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros) de que é dada integral quitação com o presente documento; b)-Até ao dia 15 de Abril de 2013 a SEGUNDA CONTRAENTE entregará aos PRIMEIROS CONTRAENTES, por conta daquele preço, a título de sinal e de princípio de pagamento, a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros) de que será dada quitação; c)-O remanescente do preço, no valor de € 9.000,00 (nove mil euros) será pago no acto da escritura definitiva de compra e venda do prédio urbano indicado na Cláusula 1a. 2.2.-Na cláusula 4ª: 1.–Os PRIMEIROS CONTRAENTES declaram que o imóvel objeto do presente contrato não tem Licença de Utilização, sendo que a sua construção é anterior a 01 de Abril de 1962, data da entrada em vigor do Regulamentos Geral das Edificações Urbanas fora da sede do Concelho de S____. 2.3.-Na cláusula 5ª: 1.–A TERCEIRA CONTRAENTE declara ter total conhecimento dos termos do presente contrato, prescindindo do exercício do direito de preferência na sua aquisição que a lei lhe confere. 2.4.- Na cláusula 6ª: 1.–A escritura pública da compra e venda do imóvel identificado na Cláusula 1ª será outorgada no prazo máximo de 30 (trinta) dias, após a obtenção por parte dos PRIMEIROS CONTRAENTES da necessária documentação à sua celebração, em data a acordar entre aqueles e a Segunda Contraente. 2.5.-Na cláusula 7ª:
Os Contraentes acordam que a obrigação da TERCEIRA CONTRAENTE de proceder ao pagamento da renda de casa fica suspenso a partir de Abril do corrente ano, sem que, contudo, se ponha termo ao contrato de arrendamento existente, que estará vigente até à data da assinatura de escritura de compra e venda do imóvel. 2.6.-Na cláusula 8ª: 1.–Os contraentes declaram ser condição resolutiva do presente contrato a não obtenção pelos PRIMEIROS CONTRAENTES da documentação necessária à realização da escritura do contrato de compra e venda, designadamente a declaração de que a construção é anterior a 01 de Abril de 1962 e desde que aqueles tenham procedido às diligências adequadas à sua obtenção.
(...) 3.–PRIMEIROS e SEGUNDA contraentes declaram que a não obtenção da documentação necessária à realização da escritura, designadamente da declaração de que a construção é anterior a 01 de Abril de 1962, não pode ser imputável aos PRIMEIROS CONTRAENTES, pelo que apenas têm de proceder à devolução em singelo da quantia nos termos da alínea a) do nº 2 da cláusula 3ª.
(...) 5.–Com a resolução do presente contrato termina a suspensão da obrigação da TERCEIRA CONTRAENTE de proceder ao pagamento da renda de casa, a qual será retomada no mês seguinte ao da ocorrência da resolução, sem que, contudo, tenha que repor qualquer renda pelo tempo decorrido entre a celebração do presente contrato e a sua resolução. 2.7.-Na cláusula 11ª: 1.–Todas as comunicações e notificações previstas no presente contrato-promessa devem ser efectuadas para as moradas dos CONTRAENTES, devidamente identificadas no intróito do contrato. 2.–Os CONTRAENTES comprometem-se a notificar, por escrito, qualquer alteração que se verifique no decurso da vigência deste contrato-promessa quanto às moradas a que se refere o número anterior. 3.–A A Gina pagou aos RR. a quantia total de 35.000,00€ (trinta e cinco mil euros). 4.–Por escrito, datado de 21-02-2014, em aditamento ao referido contrato promessa, as partes acordaram: 4.1.-Na cláusula primeira: 2.–O processo de legalização será da inteira responsabilidade da Segunda Contraente, a quem caberá a realização das diligências necessárias, designadamente obtenção de projecto de arquitectura e projectos de especialidades, descrição e registo predial do imóvel e obtenção do certificado energético e ainda realização, a expensas suas, de quaisquer obras para as quais seja notificada pela Câmara Municipal de S____; no âmbito do processo de legalização que vai promover. 3.–Para tanto, os Primeiros Contraentes comprometem-se a assinar tudo o que necessário for aos fins acima indicados, directamente ou por intermédio de procurador, a quem conferem os necessários poderes para tratar de todos os assuntos relacionados com o processo de legalização da construção do imóvel objecto do contrato-promessa, para tanto podendo a procuradora submeter projectos, requerer quaisquer actos de registo, provisórios ou definitivos, cancelamentos ou averbamentos e praticar todas e quaisquer formalidades junto da Câmara Municipal de S____; Repartições de Finanças, Conservatórias e demais Repartições Públicas, aí assinando, requerendo e praticando tudo o mais que se mostre necessário para a prossecução do indicado fim bem como para a obtenção de todos os documentos necessários à outorga da compra e venda do referido imóvel, designadamente a obtenção do certificado energético, bem como o anúncio legal para a preferência, como se os interessados presentes fossem. 4.–No que tange às despesas originadas pelos anteriormente referidos procedimentos, e pelos demais que vierem a ser necessários e/ou realizados, os Primeiros Contraentes procedem ao abatimento de 1.500 € (mil e quinhentos euros) no remanescente do preço previsto na alínea c) da cláusula 3ª do CPCV, sendo o pagamento de todas as despesas da exclusiva responsabilidade da Segunda Contraente. 4.2.-Na cláusula segunda:
Em cumprimento do acordado no ponto 4 da cláusula precedente, a alínea c) da cláusula 3ª do contrato-promessa passa a ter a seguinte redacção: “O remanescente do preço, no valor de 7.500 € (sete mil e quinhentos euros) será pago no ato da escritura definitiva de compra e venda do prédio urbano indicado na cláusula 1ª.” 4.3.-Na cláusula terceira:
Revoga-se a cláusula 6ª do contrato-promessa a qual passa a ter a seguinte redacção: “A outorga do contrato prometido será realizada nо prazo máximo de trinta dias após a obtenção pela Segunda Contraente da documentação necessária para a sua celebração e será marcada pelos Primeiros Contraentes por solicitação da Segunda Contraente os quais deverão comunicar por qualquer meio idóneo e expedito a data, hora e local da realização da outorga do contrato definitivo, com uma antecedência nunca inferior a dez dias. 4.4.-Na cláusula quarta:
«Revoga-se a cláusula 8ª do CPCV, que passa a ter a seguinte redacção: 1.–Os Contraentes declaram ser condição resolutiva do presente contrato a não obtenção pela Segunda Contraente. no prazo de um ano contado da dala de assinatura do presente acordo, da documentação necessária à realização da escritura de compra e venda, desde que os Primeiros Contraentes assinem de forma expedita o que necessário se verifique para a legalização da construção do imóvel, obtenção do certificado energético e descrição e registo na Conservatória do Registo Predial, quando tal lhes for solicitado pela Segunda Contraente.
(…) 3.–Em caso de resolução, que poderá ser promovida por qualquer dos contraentes, após decorrido o prazo indicado nos pontos precedentes, os Primeiros Contraentes apenas têm que proceder à devolução em singelo da quantia recebida nos termos da alínea a) do n.° 2 da Cláusula 3ª.
(…) 5.–Com a resolução do presente contrato termina a suspensão da obrigação da TERCEIRA CONTRAENTE de proceder ao pagamento da renda de casa, a qual será retomada no mês seguinte ao da ocorrência da resolução, sem que, contudo, tenha que repor qualquer renda pelo tempo decorrido entre a celebração do presente contrato e sua resolução.» 4.5.-Na cláusula quinta:
É revogado o número dois da cláusula 9.ª do CPCV. 5.–Em 26-03-2014, a A. Gina deu entrada de requerimento de licenciamento de obras de edificação - Apreciação de projeto de arquitetura, com vista à legalização do prédio na Câmara Municipal de S____, que veio a ser tramitado como Proc. n° OB/ 97/ 2014. 6.–Pela Ap. 2223 de 11-09-2014, foi inscrito tal prédio a favor dos RR. Júlio e Susete, em comum e sem determinação de parte ou direito, por dissolução da comunhão conjugal e por sucessão hereditária de Judite, com o n° 4..6, da freguesia de S..... M..... e S...... M..... . 7.–Por escrito, datado de 12-09-2014, em aditamento ao referido contrato promessa, as partes acordaram: 7.1.-Na cláusula segunda:
Muito embora o processo de legalização a decorrer junto da Câmara Municipal de S____ esteja a aguardar pareceres de entidades externas - pelo que a sua tramitação se encontra pendente da junção dessas pronúncias – fica acordado que os prazos previstos nos pontos 1 e 2 da cláusula 8ª do contrato que ora se adita (e cláusula 4ª da primeira adenda) se prorrogam até dois meses, atenta a data de realização do registo a que se aludiu na cláusula anterior, caso esse prazo se verifique necessário á conclusão do processo camarário de legalização do edifício. 7.3.-Na cláusula terceira:
Pelo mesmo motivo os contraentes acordam que, em caso de ocorrência da prorrogação prevista na cláusula anterior, será prorrogado por igual período o prazo previsto na cláusula sétima da Adenda referida no Considerando 2) (primeira adenda ao contrato). 8.–Em 20-01-2015, a A. Gina foi notificada pela Câmara Municipal de S____ de que foi efetuada a seguinte conclusão da apreciação do projeto de arquitetura por si apresentado:
“Relativamente à questão do arruamento de acesso ao prédio objeto do presente pedido ser ou não público, as diligências junto da DGM para averiguar Se seria público foram inconclusivas. Considerando que esta questão surgiu de dúvidas baseadas das plantas do cadastro geométrico de 1953, reconhecidamente desatualizado; que a descrição do prédio no registo predial conforme consta da certidão apresentada este prédio com fruta a norte com a rolamento; uma vez que a exigência regulamentar dizer ser servido por a rolamento não Determina que este pertence ao domínio público, importante sobre tudo garantir acessibilidade aos prédios servidos; verificando-se que o arruamento em causa não serve apenas o prédio objeto do presente pedido mas outros prédios vizinhos, cujo utilização é manifestamente pública, prevalece no entanto a questão de se tratar ainda propriedade privada, desconhecendo a que proprietário/s pertence assim como a sua concordância e com a utilização de acesso aos prédios servidos, considerando-se, s.m.o. não estar garantida a legitimidade da proposta a licenciar. Deverá regularizar esta situação previamente a licenciamento/ legalização da construção do seu terreno, demonstrando o efetuando a cedência ao domínio público da área afeta o arruamento, ou apresentar autorização do /s se/s atual/is proprietário/s a utilizar o arruamento em causa.” 9.–Em 13-09-2016, não tendo a A. Gina alegado ou entregue outros elementos que alterassem a proposta de indeferimento, foi indeferido o predito processo pelo Presidente da Câmara Municipal de S____. 10.–O espaço localizado em zona transversal e adjacente à artéria com a designação toponímica Travessa da ....., na Localidade de L....., da extinta freguesia de S..... M...... e S...... M....., atual União das freguesias de S____ (S..... M...... e S..... M....., S..... M..... e S..... P..... de P.....), referido na apreciação do projeto de arquitetura aludido no ponto 8., não pertence nem ao domínio público, nem ao domínio privado do Estado Português. 11.–Em 29-05-2018, as AA., através do seu mandatário nos presentes autos, remeteram à mandatária dos RR. nos presentes autos, que a recebeu, comunicação com o seguinte teor:
“Em 2 de Abril de 2013 outorgaram V. Exª e seu pai (já falecido) um contrato promessa de compra e venda, referente ao prédio urbano sito na Rua ..... à ..... da P..... (sem número de policia) em L..... e inscrito na matriz sob o art.5 ....5 da freguesia de S..... M..... e S..... M..... .
Uma vez que foi necessário instaurar processo de legalização junto da C.M.S. tendo nós suportado todos os encargos faltando pagar somente a quantia de € 7.500,00 referente ao preço acordado.
O processo camarário de legalização foi, entretanto, arquivado uma vez que a sua filha e procuradora nunca nos entregou uma declaração para cedência a domínio público da área que constitui o arruamento que dá acesso ao imóvel prometido vender, o que aconteceu em 26 de Setembro de 2016.
Uma vez que é negada a possibilidade de poder legalizar a construção a fim de se poder obter a licença de habitação necessária para a outorga da escritura e que constitui obrigação de V. Ex? proceder a todas as diligências necessárias para obtenção da documentação necessária para tal efeito e, pelo facto, de não ser viabilizada tal situação, venho notificá-la que, se no prazo de 10 dias após à receção da presente carta, não for viabilizaria toda a documentação necessária à obtenção da licença de utilização, perderemos o interesse definitivo na realização do negócio e estará V. Exª em incumprimento definitivo uma vez que não cumpriu, como era de sua responsabilidade o estatuído na cláusula primeira, número três, da adenda ao contrato- promessa de compra e venda outorgado em 21 de Fevereiro de 2014.” 12.–Júlio …... e a R. não entregaram junto da Câmara Municipal de S____ declaração para a cedência a domínio público da área que constitui o arruamento que dá acesso ao prédio prometido vender. 13.–As partes acordaram pôr fim ao contrato com efeitos a 01-06-2018. 3.1.2.- Factos não provados a)-Desde o final do ano de 2016 que a A. Gina não consegue contactar com a mandatária da R., com esta e com Júlio …..., os quais não atendem o telefone nem respondem aos emails que a A. Gina lhes envia para resolver a situação. b)-No final do ano de 2018, a A. Gina encontrou casualmente a mandatária dos RR., tendo esta referido que queria resolver o assunto, contudo, deixou de atender o telefone e não mais contactou a A. Gina. 3.2.-Os factos e o direito
3.2.1.-Da retificação da sentença apelada
Pretende a apelante, em primeiro lugar, que este Tribunal “altere o parágrafo 5 da pág. 4 da douta sentença”.
O referido parágrafo integra o relatório da sentença.
A esta parte da sentença alude a primeira parte do nº 2 do art. 607º do CPC, da qual resulta que o mesmo se destina a “identificar as partes e o objeto do litígio”.
A questão suscitada não se prende, pois, com a análise do mérito da presente ação, pelo que apenas poderá estar em causa a correção de um lapso de escrita, nos termos previstos no art. 614º, nº 2 e 617º, nº 1 do CPC. Vejamos então.
O mencionado parágrafo da sentença apelada tem a seguinte redação:
“As AA. deduziram articulado superveniente invocando o seguinte facto superveniente: Em 22-08-2022, a A. Gina recebeu carta da R. que refere resolver o contrato promessa de compra e venda celebrado em 2013 invocando a cláusula 8ª.”
A apelante pretende a sua alteração, de modo a que o mesmo passe a ter a seguinte redação:
“As AA. deduziram articulado superveniente invocando o seguinte facto superveniente: Em 22-08-2022, a A. Gina recebeu carta da R. que refere resolver o contrato promessa de compra e venda celebrado em 2013, alegando que as AA. se encontram em situação de incumprimento definitivo do contrato.”
O parágrafo da sentença que a apelante pretende seja alterado visa apenas resumir aquilo que as autoras alegaram no articulado superveniente.
Ora, os arts. 1º e 2º do referido articulado[4] têm o seguinte teor:
“1º
Em data de 22 de Agosto veio a A. Gina a receber a carta que se encontra junta aos Autos e que aqui se dá por reproduzida para todos os devidos e legais efeitos,
2º
Em que data alega em síntese, que pretende a resolução do contrato promessa de compra e venda celebrado, inicialmente em 2013 e, sucessivamente prorrogado com novas adendas, invocando a cláusula resolutiva do seu art.º 8º.”
Como resulta da transcrição supra, o parágrafo da sentença que a apelante pretende seja retificado não enferma de qualquer erro, antes traduz aquilo que as apeladas alegaram no articulado superveniente.
Termos em que, sem necessidade de quaisquer outras considerações, se conclui pela improcedência da pretendida alteração da redação do parágrafo 5 da página 4 da sentença apelada.
3.2.2.-Do contrato-promessa
Resulta da factualidade provada, e constitui questão pacífica entre as partes que as autoras, a ré Susete, e o seu falecido celebraram entre si um contrato-promessa de compra e venda de imóvel[5].
O contrato-promessa é definido no art. 410º, nº 1 do CC como “a convenção segundo a qual alguém se obriga a celebrar certo contrato”.
Trata-se, portanto, de um contrato mediante o qual um ou ambos os contraentes (art. 411º do CC) se obriga(m) a celebrar determinado contrato: o contrato prometido.
No caso vertente, o contrato prometido era um contrato de compra-e-venda de uma fração autónoma destinada a habitação, tendo as partes convencionado sinal, no valor de € 35.000,00, que na qualidade de promitente-compradora, a autora Gina entregou aos promitentes vendedores[6].
Mais resultou provado que o contrato-promessa previa a necessidade de se obter uma licença de utilização do imóvel prometido vender, tendo as partes inicialmente ajustado que a sua obtenção constituiria encargo dos promitentes-vendedores para, num momento subsequente, mediante adenda ao contrato-promessa, virem a acordar que seriam a promitente-compradora a fazê-lo.[7]
3.2.3.-Da não outorga do contrato prometido, da resolução do contrato-promessa, do distrate, e do sinal
3.2.3.1.-Considerações gerais
O conceito de sinal pode buscar-se no art. 440º do CC que estipula que “Se, ao celebrar-se o contrato ou em momento posterior, um dos contraentes entregar ao outro coisa que coincida, no todo ou em parte, com a prestação a que fica adstrito, é a entrega havida como antecipação total ou parcial do cumprimento, salvo se as partes quiserem atribuir à coisa entregue o carácter de sinal.”.
No domínio específico do contrato-promessa de compra e venda dispõe o art. 441º do CC que se presume ter “caráter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço.”
Esta função de antecipação (total ou parcial) do cumprimento é reafirmada no art. 442º, nº 1 do CC que dispõe que “Quando haja sinal, a coisa entregue deve ser imputada na prestação devida, ou restituída quando a imputação não for possível.”
Porém, o sinal pode igualmente desempenhar uma função indemnizatória. Tal é o que resulta desde logo do nº 2 do art. 442º do CC que estatui que “Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou, ou, se houve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o seu valor, ou o do direito a transmitir ou a constituir sobre ela, determinado objetivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago.”
E acrescenta o nº 4 do mesmo preceito que “Na ausência de estipulação em contrário, não há lugar, pelo não cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização, nos casos de perda do sinal ou de pagamento do dobro deste, ou do aumento do valor da coisa ou do direito à data do não cumprimento.”
Finalmente, diz-nos o nº 3 do mesmo artigo que “Em qualquer dos casos previstos no número anterior, o contraente não faltoso pode, em alternativa, requerer a execução específica do contrato, nos termos do artigo 830.º; se o contraente não faltoso optar pelo aumento do valor da coisa ou do direito, como se estabelece no número anterior, pode a outra parte opor-se ao exercício dessa faculdade, oferecendo-se para cumprir a promessa, salvo o disposto no artigo 808.º”
Interpretando estas normas, e alicerçada, sobretudo, na interpretação da ressalva final constante do nº 3, a maioria da doutrina tem sustentado que o “esquema indemnizatório” do sinal pode ser acionado em caso de simples mora, não sendo necessário que se verifique incumprimento definitivo da obrigação de outorga do contrato prometido.[8]
Já a jurisprudência tem entendido, maioritariamente, que mesmo no caso de ter sido convencionado sinal, a resolução do contrato-promessa e o acionamento do correspondente mecanismo indemnizatório pressupõem o incumprimento definitivo do contrato promessa e a declaração resolutória com invocação deste fundamento[9].
Aderindo este coletivo, resolutamente, à tese sufragada pela jurisprudência dominante, cumpre aferir se no caso a ré e o seu falecido marido incorreram em incumprimento definitivo do contrato-promessa que outorgou com as autoras ou se, como sustenta a ré, o incumprimento é imputável a estes.
Para tanto, cumpre recordar que o incumprimento definitivo de um contrato-promessa de compra e venda de imóvel pode ocorrer numa das seguintes situações: a)-se em consequência da mora do promitente faltoso, o promitente fiel perder o interesse na celebração do contrato prometido – art. 808º, nº 1 do CC; b)-se, em consequência da mora, a outorga do contrato prometido se tornar impossível – art. 801º do CC; c)-se, na sequência da mora, o promitente fiel interpelar o promitente faltoso, atribuindo-lhe um prazo razoável para a celebração do contrato prometido, e este não o outorgar – art. 808º, nº 1 do CC; d)-se o promitente faltoso declarar, expressa ou tacitamente (embora de forma clara, inequívoca e perentória), que não quer celebrar o contrato prometido – art. 808º, nº 1 do CC por interpretação extensiva[10].
Quanto à perda do interesse, rege o nº 2 do art. 808º do CC que dispõe que “a perda do interesse na prestação é apreciada oficiosamente”.
A este propósito, ensina ANTUNES VARELA[11]:
“(…) a lei não se contenta com a simples perda (subjectiva) de interesse do credor na prestação em mora, para decretar a resolubilidade do contrato (…), exigindo, “apertis verbis” no nº 2 do art. 808º do Código Civil que a perda do interesse na prestação seja apreciada objectivamente.
(…).
É necessário que a perda – a perda e não a simples diminuição – do interesse seja apreciada à luz de circunstâncias objectivas.
(…).
A formulação da lei – “a perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente – inculca desde logo, antes mesmo de serem conhecidas as raízes históricas do preceito, duas conclusões importantes.
A primeira é de que a perda do interesse na prestação não pode filiar-se numa simples mudança de vontade do credor, desacompanhada de qualquer circunstância além da mora. O credor não pode alegar, noutros termos, como fundamento da resolução, o facto de, não tendo o devedor cumprido a obrigação na altura própria, o negócio não ser já do seu agrado.
A apreciação objectiva da situação, prescrita na lei, exige algo mais do que esse puro elemento subjectivo, que é a alteração da vontade do credor, apoiada na mora da outra parte.
A segunda conclusão é que também não basta, para fundamentar a resolução, qualquer circunstância que justifique a extinção do contrato aos olhos do credor. Se a situação é apreciada objectivamente, por imperativo expresso da lei, é porque não basta para o efeito o critério subjectivo do titular da prestação.
A perda do interesse há-de ser justificada segundo o critério de razoabilidade, próprio do comum das pessoas.
(…).
O § 326 do Código alemão também começa por conceder ao credor, no caso de o devedor incorrer em mora no cumprimento da obrigação que o contrato bilateral lhe impõe, a faculdade de fixar a este um prazo adequado (…) para a realização da prestação, com a declaração de que a não aceitará depois de findo esse prazo.
Mas no nº 2 do mesmo parágrafo, a propósito da perda de interesse, acrescenta-se o seguinte: “Se o cumprimento do contrato, em consequência da mora, não tiver nenhum interesse (…) para a outra parte, competirão a esta os direitos a que se refere o número anterior (indemnização pelo não cumprimento ou resolução do contrato), sem necessidade de fixação do prazo”.
E são realmente de perda absoluta, completa, do interesse na prestação – e não de mera diminuição ou redução de tal interesse – traduzida por via da regra no desaparecimento da necessidade que a prestação visava satisfazer[12], os casos com que os autores ilustram a aplicação prática desse preceito fundamental da lei civil alemã. Insiste-se, além disso, na nota de que a perda do interesse tem que resultar da mora no cumprimento e não de qualquer outra circunstância. Exigência que tem pleno cabimento em face do nosso direito, visto não ser outro o sentido imputável à expressão introdutória do art. 808º do Código Civil: “Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação …”
No mesmo sentido sublinha o ac. STJ 07-06-2011 (Fernando Bento), p. 7005/06.6TBMAI.P1.S1: “Não basta, pois, uma perda subjectiva de interesse na prestação; é necessário que essa perda de interesse transpareça numa apreciação objectiva da situação.
A perda do interesse não se verifica porque o credor a alega nem porque, em juízo meramente subjectivo, entende que a prestação já não lhe aproveita – o que pode decorrer de mero capricho seu.
O interesse é uma relação entre a pessoa e os bens – id quod inter est – fundada na aptidão destes para satisfazer necessidades daqueles.
Mas a subsistência ou desaparecimento de tal relação é aferida, não em função do juízo do respectivo sujeito – ninguém é (bom) juiz em causa própria… - mas em função do juízo que, numa ponderação global do caso (na qual, entre outras, avulta o fim do credor ao celebrar o contrato), efectuaria um homem de bom senso e razoável, suposto pela ordem jurídica.
Com efeito, a satisfação do interesse do credor é o fim principal da prestação, podendo afirmar-se que, sendo a relação obrigacional um processo (isto é, um conjunto de actos encadeados entre si) tendente ao cumprimento, este só se realiza de acordo com esse processo quando o credor vê realizado o interesse que pretendia com aquela relação obrigacional, na dupla vertente de prestação-acção (conduta devida) e de prestação-resultado (fim da prestação), pois, “muito embora o interesse do credor, cuja satisfação é o fim e razão de ser da obrigação, seja um elemento extrínseco à sua estrutura, a decomposição ou cisão da prestação em acção de prestar (conduta) e resultado útil a prestar acaba por estar subjacente ao regime jurídico do cumprimento e não cumprimento” (cfr. Calvão da Silva, Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, Coimbra, 1987, p. 82).”
Na síntese feliz do ac STJ 18-12-2003 (Araújo Barros), p. 03B3697“não basta o juízo valorativo arbitrário do próprio credor antes aquela (falta de interesse) há de ser apreciada objectivamente, com base em elementos susceptíveis de serem valorados por qualquer pessoa (designadamente pelo próprio devedor ou pelo juiz).”
Finalmente, como salienta Baptista Machado[13], não valem casos de escassa importância para não sujeitar o devedor ao capricho ou até ao arbítrio do credor.
Relativamente à impossibilidade da prestaçãotemos por desnecessário expender quaisquer considerações explicativas, na medida em que esta causa de incumprimento definitivo não foi invocada por qualquer das partes, nem se afigura aplicável ao caso dos autos, atentos os factos provados.
No tocante à interpelação admonitória, diz ANTUNES VARELA[14]:
“a interpelação admonitória não surge neste artigo 808º como um simples pressuposto da resolução do contrato, à semelhança do que sucede no Código italiano, mas antes como uma ponte obrigatória de passagem da tal ocorrência transitória da mora para o cumprimento da obrigação ou para a situação mais firme e mais esclarecedora do não cumprimento (definitivo) da obrigação. E não reveste sequer textualmente a forma de um puro direito (ou faculdade) concedido ao credor, precisamente porque, como ponte obrigatória de passagem de uma situação jurídica para outra, a intimação do credor funciona substancialmente no interesse de uma e outra das partes
Por um lado, o credor tem a possibilidade de impor à outra parte um prazo para cumprir, como meio de obter a realização efetiva da prestação a que tem direito ou de lançar mão das providências com que a lei castiga o não cumprimento definitivo da obrigação, entre as quais se conta a de resolver o contrato, donde nasceu a obrigação que também a ele vincula.
Por outro lado, o devedor tem a garantia de que a contraparte (o credor) não goza ainda da possibilidade de desencadear contra ele nenhuma das sanções ou providências correspondentes ao não cumprimento ... enquanto lhe não der uma nova e derradeira chance de corrigir o seu descuido, de emendar a sua negligência, de superar a mora em que incorreu.
E têm os autores entendido - e bem! -, em face do espírito e do próprio texto da lei, que, para o devedor em mora ficar nessa situação de faltoso em definitivo, se torna necessário mesmo que na interpelação feita pelo credor, ao abrigo do disposto no artigo 808º, se inclua expressamente a advertência de que, não cumprindo o devedor dentro do prazo suplementar fixado, a obrigação se terá para todos os efeitos por não cumprida.”
Finalmente, e no que concerne à recusa de cumprimento, afigura-se que uma tal causa de incumprimento definitivo pressupõe uma declaração absoluta e inequívoca de repudiar o contrato, isto é, uma declaração séria, categórica, que traduza, sem qualquer margem para dúvidas, a intenção e propósito de não outorgar o contrato prometido.
Sobre esta causa de incumprimento definitivo, refere o ac. STJ 05-12_2006 (Sebastião Póvoas), p. 06A3914:
«A recusa de cumprimento (ou "riffiuto di adimpiere") é o incumprimento típico.
Mas tem de ser expressa por "uma declaração absoluta e inequívoca" de "repudiar o contrato". (cf. Dr. Brandão Proença, in "Do incumprimento do Contrato-Promessa Bilateral", 91 e "inter alia" os Acórdãos do STJ de 7/3/91 - BMJ 405-456, de 28/3/2006 - Pº 327/06-1ª e de 18 de Abril de 2006 - Pº 844/06).
Impõe-se que o renitente emita uma declaração séria, categórica e que não deixe que subsistam quaisquer dúvidas sobre a sua vontade (e propósito) de não outorgar o contrato prometido.
Ainda assim, certa doutrina entende ser necessária uma interpelação admonitória da parte do promitente fiel (cf. Doutor Pessoa Jorge - "Direito das Obrigações", 296-298) o que se pensa ser desnecessário (na esteira do ensinado pelos Profs. Galvão Telles - "Direito das Obrigações", 5ª ed., 224-225 - e Almeida Costa, in "Direito das Obrigações", 6ª ed., 921) já que a declaração inequívoca e peremptória da intenção de não cumprir equivale à interpelação antecipada.
Neste sentido vem julgando este STJ (Acórdãos de 15 de Março de 1983 - BMJ 325-561, de 15 de Fevereiro de 1990 - Act. Jur. 2ª -6-10 e de 7 de Janeiro de 1993 - C.J./STJ I-1,15 - "inter alia") e assim será face a toda a dogmática da recusa antecipada.
Mas, o que o direito da "common law" chama de "anticipatory breach of contract" ou "repudiation of a contract" terá de ser expresso - e nunca é demais repeti-lo, por forma a entender-se ser "a clear and absolute refusal to perform" e que "the party is unwilling".
Não pode, por outro lado, interpretar-se como recusa o atraso na prestação, ainda que reiterado.»
3.2.3.2.- O caso dos autos
No caso em apreço, verifica-se que a outorga do contrato prometido dependia da obtenção de licença de utilização, dado que o imóvel prometido vender não dispunha da mesma – Vd. cláusula 4ª do contrato promessa, transcrita no ponto 2.2. dos factos provados.
E porventura cientes das dificuldades que poderiam ser encontradas na obtenção de tal licença, os outorgantes declararam ser condição resolutiva do contrato-promessa a não obtenção de licença de utilização, desde que os primeiros contraentes, isto é, os promitentes-vendedores tivessem procedido a diligências adequadas no sentido de obter aquela licença e que, caso tal situação sobreviesse, apenas teriam que proceder à devolução do sinal em singelo – cláusula 8ª do mesmo contrato, transcrita no ponto 2.6. dos factos provados.
Posteriormente, foi celebrado um primeiro aditamento ao contrato-promessa, nos termos do qual a obtenção da licença de utilização do imóvel prometido vender passou a ser encargo da segunda contraente, ou seja, da promitente compradora e ora apelada Gina, obrigando-se os primeiros contraentes, ou seja, os promitentes-vendedores a subscrever os documentos e requerimentos necessários à obtenção de tal desiderato – Vd. cláusula 1ª do aditamento, transcrita no ponto 4.1. dos factos provados.
A mesma adenda alterou também a redação da cláusula 8ª, embora mantendo-se os traços gerais do inicialmente acordado, consistindo a alteração da redação nas menções relativas à parte que assumia o encargo de obter a licença de utilização do imóvel prometido vender – Vd. cláusula 4ª da adenda, transcrita no ponto 4.4.dos factos provados.
Na sequência do ajustado nesta adenda contratual, a autora Gina apresentou na Câmara Municipal um requerimento de licenciamento, com vista à legalização do prédio[15], porém essa pretensão veio a ser indeferida, por decisão proferida em 13-09-2016, nomeadamente por não ter apresentado declaração de “cedência ao domínio público de área afeta ao arruamento” ou “autorização dos seus atuais proprietários a utilizar o arruamento em causa”.[16]
Mais se provou que a ré e o seu falecido marido não entregaram na Câmara Municipal de S____ declaração para a cedência do domínio público da área que constitui o arruamento que dá acesso ao prédio prometido vender.[17]
Ora, em 29-05-2018 as autoras, através do seu ilustre mandatário, remeteram à ré e ao seu falecido marido uma carta interpelando-os para entregarem “toda a documentação necessária à obtenção da licença de utilização”, sob pena de perderem o interesse no negócio e de os interpelados se considerarem “em incumprimento definitivo” do contrato-promessa.
Analisando estes factos, o Tribunal a quo concluiu que a carta de 29-02-2018 consubstancia uma resolução do contrato-promessa dos autos.
Não subscrevemos esse entendimento.
Com efeito, em passo algum da referida carta as autoras declaram resolver o contrato-promessa, ou utilizam qualquer outra expressão equivalente, apenas afirmando que caso não seja facultada a documentação solicitada, no prazo de 10 dias, consideram os promitentes vendedores em situação de incumprimento definitivo.
Não sendo a resolução do contrato-promessa uma consequência necessária do incumprimento definitivo, na medida em que perante este o promitente fiel mantém o direito ao cumprimento do mesmo, não vemos como possa interpretar-se aquela declaração como comunicação implícita de resolução do contrato-promessa.
Nessa medida e ao contrário do sustentado pelas autoras e considerado pelo Tribunal a quo, não cremos que possa considerar-se que mediante tal comunicação as autoras resolveram o contrato-promessa dos autos.
Contrapõe a ré e ora apelante que em agosto de 2022 procedeu ela mesma à resolução do contrato-promessa, com fundamento em incumprimento definitivo do mesmo imputável às autoras e que, por tal razão não está obrigada a devolver o sinal.
Sucede, contudo, que o elenco de factos provados não contém nenhuma referência a tal resolução, sendo certo que a apelante não impugnou a decisão sobre matéria de facto.
Assim sendo, como é, não pode este Tribunal considerar qualquer resolução do contrato por iniciativa unilateral da ré, soçobrando por isso, desde já, tal argumento.
Contudo, resultou provado que as partes acordaram por fim ao contrato com efeitos a 01-06-2018 – Ponto 13 dos factos provados.
Este ponto de facto não foi impugnado, embora a apelante sustente que “as partes apenas acordaram - em sede de audiência de julgamento e no seguimento do que a Ré já manifestara nas cartas (…) quanto à data da resolução do contrato: 01-06-2018”.
Não acompanhamos esse entendimento.
Com efeito, não tendo a apelante impugnado a decisão sobre matéria de facto, não pode, para apreciação do mérito da causa e do recurso, ser considerada a carta de 22-08-2022 a que a mesma se reporta.
Por outro lado, lida a ata da sessão da audiência final que teve lugar em 12-12-2022, o que ali consta é que as partes declararam “estarem de acordo quanto à data em que se operou a resolução do contrato: 01-06-2018”.
À falta de outros elementos interpretativos que inequivocamente apontem em sentido diverso, tal declaração só podia ser interpretada no sentido que lhe atribuiu o Tribunal a quo: o de que as partes acordaram por fim à vigência do contrato-promessa dos autos com efeitos reportados àquela data de 01-06-2018.
Os efeitos e consequências de tal acordo foram equacionados pelo Tribunal a quo nos seguintes termos:
«Questão diferente é a circunstância de as partes terem acordado em pôr fim ao contrato e de reportarem tal resolução a 01-06-2018.
Este acordo foi efectuado ao abrigo da liberdade contratual das partes e da circunstância de nenhuma delas ter já interesse na celebração do contrato.
Trata-se da “destruição voluntária da relação contratual, pelos próprios autores do contrato, mas assenta no acordo dos contraentes posterior à celebração do contrato, com sinal oposto do primitivo (no contrario consensus)”[18].
Estamos perante distrate, porquanto é de distrate o contrato mediante o qual as partes revogam um contrato anterior, com ou sem eficácia retroactiva, consoante o que as partes estipulem.[19]
O distrate é, em regra, um contrato puramente consensual, atento o disposto no artigo 219° do CC que dispõe que “A validade da declaração negocial não depende da observância de forma especial, salvo quando a lei a exigir”.
Além disto, o distrate, o mútuo dissenso, pode resultar de meros comportamentos das partes que com toda a probabilidade o revelam - art. 217° do CCIV.
Se o contrato que é extinto estava legalmente sujeito a documento, a posterior estipulação revogatória só está sujeita a essa forma se as razões daquela exigência lhe foram aplicáveis; se o contrato que é extinto não estava legalmente sujeito a documento, mas esta forma tiver sido adoptada pelas partes, a estipulação revogatória é válida, excepto se, para o efeito, a lei exigir forma escrita" - arts. 221°, n° 2, 222°, n° 2, do CC.
Temos assim que o distrate é válido.
Os distratantes acordaram que os efeitos seriam reportados a 01-06-2018.
Assim, A. Gina tem direito receber da R. o sinal em singelo, deduzido do valor das rendas vencidas até tal data, ou seja, correspondente aos meses de Abril de 2013 a Maio de 2018, a liquidar em incidente de liquidação.»
Como bem aponta o Tribunal a quo, a restituição da quantia recebida a título de sinal constitui uma consequência natural do distrate do contrato-promessa, razão pela qual, distratado o contrato, fica a ré Susete obrigada a restituir o sinal.
Já a dedução das rendas vencidas desde abril de 2013 a maio de 2018 nos parece mais problemática.
Com efeito, e em primeiro lugar, porque a arrendatária do imóvel é a autora Cesaltina, que apenas outorgou o contrato-promessa dos autos na qualidade de arrendatária, para prescindir do direito de preferência na aquisição do imóvel[20], sendo que a promitente compradora é a autora Gina, tendo sido esta quem pagou o sinal[21]. Assim, a titularidade do crédito relativo à restituição do sinal é da autora Gina e a devedora das rendas é a autora Cesaltina, razão pela qual não descortinamos motivo suficiente para proceder ao mencionado desconto, tanto mais que não consta da decisão sobre matéria de facto que as partes tenham acordado efetuá-lo.
Em segundo lugar, há que ter presente que, como salienta PEDRO ROMANO MARTINEZ[22], o distrate ou revogação do contrato por mútuo acordo tem em princípio efeitos ex nunc, salvo se as partes convencionarem o efeito ex tunc.
E com efeito já GALVÃO TELLES[23] apontava nesse sentido:
«A revogação consiste na livre destruição dos efeitos de um acto jurídico por vontade do seu ou seus autores, com ou sem retroactividade. É um acto discricionário, porque não depende de funcionamento especial. Resulta do livre querer dos sujeitos, que, assim deram vida ao acto no exercício da sua autonomia, assim também lha tiram, no exercício da mesma autonomia. Por definição, não está subordinada a justa causa, nem requerer, em caso algum, a intervenção do tribunal. A revogação pode ser bilateral ou unilateral: a primeira dá-se quando o contrato se extingue por mútuo consentimento dos contraentes, que de acordo o desfazem, só para o futuro ou também no pretérito (contrarius consensus): Cód. Civil, art. 461.º, n.º 1; a segunda verifica-se quando, excepcionalmente, é reconhecida a uma das partes a faculdade de, por si, dar sem efeito o contrato igualmente com ou sem retroactividade (…).»
Também MENEZES LEITÃO[24] subscreve o mesmo entendimento:
«A revogação consiste na extinção do negócio jurídico por virtude de uma manifestação da autonomia privada em sentido oposto àquela que o constituiu. Consequentemente, se estiver em causa um contrato, a revogação – que nestes casos é também denominada distrate – é necessariamente bilateral, assentando no mútuo consenso dos contraentes em relação à extinção do contrato que tinham celebrado (cfr. art. 406.º, n.º 1)
(…)
Sendo baseada numa autonomia privada, a revogação é de exercício livre, ficando os seus efeitos na disponibilidade das partes que podem inclusivamente estipular ou não a sua retroatividade.»
No mesmo sentido se pronunciou ANA PRATA:
«Com salvaguarda de eventuais direitos de terceiros, o acordo revogatório terá os efeitos que as próprias partes lhe atribuirem e, mais vulgarmente, terá efeitos ex nunc».»
No caso vertente, o contrato-promessa foi distratado por acordo manifestado já no decurso da presente causa, mas com efeitos reportados a 01-06-2018.[25] Daqui decorre, em nosso entender, que as partes atribuíram a este acordo um efeito retroativo preciso, reportado a esta data, que não legitima a extrapolação para outras consequências, como a obrigação de pagar rendas referentes ao período de abril de 2013 a maio de 2018, por se tratar de um período claramente anterior a este.
Aliás, o próprio teor do contrato-promessa parece apontar para a conclusão inversa, na medida em que na cláusula 7ª, nº 1, as partes haviam acordado que “(…) a obrigação da TERCEIRA CONTRAENTE de proceder ao pagamento da renda de casa fica suspensa a partir de Abril do corrente ano, sem que contudo se ponha termo ao contrato de arrendamento existente, que estará vigente até à data da assinatura de escritura de compra e venda do imóvel”[26] e que, no nº 5 da cláusula 8ª na redação resultante da primeira adenda ajustaram que “com a resolução do presente contrato termina a suspensão da obrigação da TERCEIRA CONTRAENTE de proceder ao pagamento da renda de casa, a qual será retomada no mês seguinte ao da ocorrência da resolução, sem que contudo tenha que repor qualquer renda pelo tempo decorrido entre a celebração do presente contrato e a sua resolução”.[27]
Ainda que esta última cláusula se reporte à resolução do contrato-promessa, cremos que deve ser interpretada no sentido de se aplicar a outras formas de cessação da vigência do mesmo contrato, pelo que a mesma constitui um elemento interpretativo do acordo de distrate. Assim, não se apurando que aquando do distrate as partes tenham ajustado a obrigação de pagar rendas relativas a período temporal anterior a 01-06-2018, não descortinamos fundamento suficiente para as considerar devidas.
Não obstante, ainda que discordemos do Tribunal a quo no tocante ao “abatimento” na quantia que a ré deve restituir à autora Gina a título de restituição do sinal de montante equivalente ao valor das rendas de abril de 2013 a maio de 2018, o que é certo é que nesta parte não pode este Tribunal alterar a sentença apelada.
Com efeito, no Direito Processual Civil Português vigoram os princípios da proibição da reformatio in peius[28] e da reformatio in melius, dos quais decorre que os Tribunais da Relação e o Supremo Tribunal de Justiça não podem, em sede de recurso, conceder ao recorrente mais do que este pede, nem menos do que lhe foi concedido na decisão recorrida.
Este princípio acha-se consagrado no art. 635º, nº 5 do CPC, que estipula que “os efeitos do caso julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo”.
Na síntese feliz de RUI PINTO[29], o princípio da proibição da reformatio in peius pode traduzir-se da seguinte forma: “os efeitos da decisão, transitada em julgado, do recurso não podem ser piores para o recorrente que os efeitos que se produziriam no caso de não ter recorrido”. Quanto à reformatio in melius refere o mesmo autor que “Em consequência desta vinculação do tribunal ad quem ao pedido do recorrente, o tribunal de recurso não pode dar ao recorrente mais do que ele pediu ou, o mesmo é dizer, uma vantagem que ele não requereu (…) É o requerente que determina a vantagem que quer, mesmo que outra maior ou melhor pudesse ser decidida oficiosamente pelo tribunal de recurso”[30].
Como referem LUÍS CORREIA DE MENDONÇA E HENRIQUE ANTUNES[31], “A proibição da reformatio in peius impede uma decisão do tribunal ad quem em prejuízo do recorrente; a proibição da reformatio in melius obsta à atribuição ao impugnante por aquele tribunal de um benefício quantitativa ou qualitativamente maior do que aquele que ele pede no recurso”.
Este entendimento tem sido acolhido, de forma pacífica, na jurisprudência – vd., por todos, acs. STJ 18-12-2013 (Abrantes Geraldes), p. 1801/10.7TBOER.L1.S1, STJ 03-03-2021 (Manuel Capelo), p. 1310/11.7TBALQ.L2.S1, e STJ 21-03-2023 (Nuno Pinto de Oliveira), p. 1069/09.8TVLSB.S1.
No caso vertente, não tendo as autoras recorrido da sentença proferida pelo Tribunal a quo, e sendo aquela sentença, na parte em que determina o “desconto” do valor correspondente às rendas relativas ao período de abril de 2013 a maio de 2018 favorável à ré ora apelante, não pode este Tribunal alterar a sentença apelada, na parte em que determinou tal desconto, sob pena de estar a incorrer em reformatio in peius.
Assim sendo, e por esta razão, deverá a sentença apelada ser mantida também quanto ao apontado desconto.
3.2.4.- Síntese conclusiva
Face às considerações vertidas nos pontos antecedentes, conclui-se pela total improcedência da presente apelação e consequentemente, pela confirmação da decisão recorrida.
3.2.5.-Das custas
Nos termos do disposto no art. 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
A interpretação desta disposição legal, no contexto dos recursos, deve atender ao elemento sistemático da interpretação.
Com efeito, o conceito de custas comporta um sentido amplo e um sentido restrito.
No sentido amplo, tal conceito inclui a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cf. arts. 529º, nº1, do CPC e 3º, nº1, do RCP).
Já em sentido restrito, as custas são sinónimo de taxa de justiça, sendo esta devida pelo impulso do processo, seja em que instância for (arts. 529º, nº 2 e 642º, do CPC e 1º, nº 1, e 6º, nºs 2, 5 e 6 do RCP).
O pagamento da taxa de justiça não se correlaciona com o decaimento da parte, mas sim com o impulso do processo (vd. arts. 529º, nº 2, e 530º, nº 1, do CPC). Por isso é devido quer na 1ª instância, quer na Relação, quer no STJ.
Assim sendo, a condenação em custas a que se reportam os arts. 527º, 607º, nº 6, e 663º, nº 2, do CPC, só respeita aos encargos, quando devidos (arts. 532º do CPC e 16º, 20º e 24º, nº 2, do RCP), e às custas de parte (arts. 533º do CPC e 25º e 26º do RCP).
Tecidas estas considerações, resta aplicar o preceito supracitado.
E fazendo-o diremos que no caso em apreço, face à total improcedência da presente apelação, as custas devem ser suportadas pela apelante.
4.–Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação totalmente improcedente, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Lisboa, 21 de novembro de 2023
Diogo Ravara Micaela Sousa Luís Filipe Pires de Sousa
[1]Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117 [2]Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 119 [3]Neste ponto de facto a sentença apelada reporta-se à apelada Gina como terceira contraente. Trata-se de um lapso de escrita, que, como se alcança da leitura do contrato, é manifesto, razão pela qual se corrigiu o mesmo – art. 613º, nº 2 e 662º, nº 1 (corpo), do CPC. [4]Refª 21915844/ 43501334, de 10-10-2022. [5]Vd. pontos 1, 2, 4 e 7 dos factos provados. [6]Ponto 3 dos factos provados. [7]Pontos 7., 10., 11., 12., e 15. dos factos provados. [8]Cfr., entre outros, ANTUNES VARELA, “Das obrigações em geral”, 9ª ed., vol. I, Almedina, 1998, pp.360-375, em especial, pp. 361 e 367; ALMEIDA COSTA, “Direito das obrigações”, 12ª ed., p. 428 ss., em especial p. 438; e MENEZES CORDEIRO, “Tratado de direito civil”, VII, Almedina, 2016 (2ª reimpressão), pp. 385-389. [9]Analisando a jurisprudência do STJ publicada até ao ano de 2009 vd. MENEZES CORDEIRO, ob. e vol. cits., pp. 388-389. Cfr. tb., por mais recentes, os acs. STJ de 25-10-2018 (Mª do Rosário Morgado), p. 604/12.9TBVRS.E1.S1; 27-12-2018 (Graça Amaral), p. 4724/10.6TBSTB.E1.S1; 10-12-2019 (Raimundo Queirós), p. 386/13.7T2AND.P2.S1; e 25-02-2021 (Mª da Graça Trigo), p. 854/18.4T8FNC.L1.S1, todos no sentido da tese dominante na jurisprudência. [10]Cfr., desde logo, a epígrafe do preceito que equipara a perda do interesse à recusa do cumprimento, embora o texto do preceito não contenha qualquer referência à hipótese de recusa da prestação devida. [11]Ob. e lug. cits., p. 136. [12]Acentuado nosso. [13]“Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, in Obra Dispersa, Vol. I, Scientia Ivridica, Braga, 2001, p. 162. [14]Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 128, pp. 136-138. [15]Ponto 5. dos factos provados. [16]Pontos 8 e 9 dos factos provados. [17]12 dos factos provados. [18]Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 4ª edição, Coimbra, 1990, pág. 268. [19]Vaz Serra, in Ver. de Leg. E Jur., ano 112, pág. 30. [20]Vd. pontos 1 e 2 dos factos provados, em especial a cláusula 5ª, transcrita no ponto 2.3. [21]Vd. pontos 1 a 3 dos factos provados. [22]“Da cessação do contrato”, Almedina, 3ª ed. (reimpressão), 2017, p. 110. [23]“Manual dos Contratos em Geral”, 4ª ed., Coimbra Editora, p. 380. [24]“Direito das Obrigações”, Vol. II, 6ª ed., Almedina, pp. 101-102. [25]Ponto 13 dos factos provados e ata da audiência final com a refª 141365987, de 16-12-2022. [26]Ponto 2.5. dos factos provados. [27]Ponto 4.4. dos factos provados. [28]Escrevemos a expressão com a ortografia clássica (no alfabeto latino inexistia a letra j). [29]“Manual do recurso civil”, vol. I, AAFDL Editora, 2020, p. 367. [30]Ob. cit., p. 363. [31]“Dos recursos”, Quid Juris, 2009, pp. 136-137.