CRIME DE INJÚRIA
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
AGIR POR FORMA LIVRE
Sumário


I. O despacho recorrido rejeitou a acusação particular assente na ideia de que a mesma não apresentava todos os factos necessários para preenchimento do elemento subjectivo do crime (injúria) imputado ao arguido, mormente no que tange à liberdade de acção por parte do arguido, por lhe faltar a palavra “livre”.
II. Não existem fórmulas sacramentais na forma de transmitir os elementos, quer objectivos, quer subjectivos dos crimes.
III. Sendo que a palavra “livre” não é a única que revela a vontade do agente em actuar contra legem, isto é, com a consciência da ilicitude sem constrangimentos exteriores que pudessem implicar uma diminuição ou mesmo anulação da sua culpa.
IV. Ora, na acusação particular diz-se que “O Arguido agiu voluntária e conscientemente, bem sabendo da natureza ilícita e criminalmente censurável da sua atuação.”
V. Afirmar que o arguido age de forma voluntária, equivale, a agir de forma livre e deliberada, pois o agir voluntariamente significa “agir por querer” ou “agir segundo a própria vontade”, sendo sinónimos da palavra voluntariamente as palavras: “deliberadamente”, “espontaneamente”, “intencionalmente”, “livremente” e “propositadamente.”
VI. Aliás, etimologicamente, a palavra voluntariamente, um advérbio que significa fazer de maneira voluntária, vem da palavra latina voluntas que significa vontade o que implica forçosamente uma actuação livre ou proveniente de um desejo livre.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que corre termos pelo Juiz ... do Juízo Local Criminal ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., sob o nº 3/21...., nos termos do artº 311º do Código de Processo Penal foi proferida decisão em 13-02-2023, com a refª ...65, na sequência de remessa dos autos para julgamento através do qual o Tribunal a quo rejeitou a acusação particular, deduzida pelo assistente AA contra o arguido BB, nos seguintes termos (transcrição parcial, pois a decisão é mais abrangente uma vez que foi também deduzida acusação pública pelo MºPº):

“Da acusação particular:

Quanto ao crime de injúria, nos termos do disposto na al. a), do n.º 2, do art.º 311.º, do Código de Processo Penal, “Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;”
Esclarecendo as als. b) e c), do n.º 3, do mesmo artigo, que se considera a acusação manifestamente infundada quando não contenha a narração dos factos ou se os factos não constituírem crime.

No que respeita à narração dos factos, preceitua a al. b), do n.º 3, do artigo 283.º, do Código de Processo Penal, que a acusação deve conter a “narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;”.
Para que se preencha o requisito da narração dos factos, é necessário que a acusação contenha a “descrição dos factos imputados”, e acrescenta-se, “todos” os factos imputados, uma vez que o artigo 13.º, do Código Penal, dispõe que “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”, sendo que a acusação tem de descrever os factos provados relativos ao elemento subjetivo. Isto porque não se pode presumir que o agente agiu nem com dolo, nem com negligência.
O que atrás fica dito é corroborado pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores. De facto, a título de exemplo pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17/06/2003 (processo 10164/02-5, publicado no sítio www.dgsi.pt), que, “sendo a decisão omissa de factualidade provada quanto ao elemento subjectivo do ilícito contra-ordenacional imputado à ora recorrente, não poderia esta ter sido sancionada, impondo-se a respectiva absolvição”.
A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do art. 283.º, n.º 3, do Código Penal, constitui, também, elemento fundamental para  garantia do direito de defesa do arguido, que só poderá ser efetivo com o adequado conhecimento dos factos imputados, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem.
A indicação dos factos imputados com menção das provas obtidas é uma exigência em tributo aos mais elementares princípios que devem reger um direito de carácter sancionatório e que têm a ver sobretudo com garantias mínimas relacionadas desde logo com o direito de defesa, consagrado na Constituição da República Portuguesa – cfr. art.º 32.°.
Entre essas garantias mínimas de defesa, avulta, a de “serem conhecidos os factos que são imputados ao arguido, pois sem que os mesmos estejam estabelecidos não é possível avaliar a justiça da condenação, fica inviabilizado o direito ao recurso e não há salvaguarda do ne bis in idem” - cf. Ac. deste STJ de 21-09-2006, Proc. n.º 3200/06 - 5.ª.
Descendo ao caso dos presentes autos, verifica-se que a acusação particular não contém a descrição de todos os factos no que concerne ao elemento subjetivo do ilícito.
De facto, analisada a mesma à luz dos considerandos supra expostos, verifica-se que não indica todos os factos que se exigiria para que se possa concluir pelo preenchimento do dolo.
Num crime doloso, da acusação há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar  a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade - o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).
O dolo como elemento subjetivo - enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objetivas - constitutivo do tipo legal, será, então, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283.º, n.º 3, do C.P.Penal, impõe que seja incluído na acusação.
No que se refere ao seu elemento subjetivo, o crime de injúria é um crime essencialmente doloso, bastando, para uma plena imputação subjetiva, o mero dolo eventual, como resulta da conjugação do artigo 14.º do C.P. com o artigo 181.º n.º 1 do mesmo diploma legal.
Saliente-se ainda que, como vem sendo entendido pela jurisprudência, este crime basta-se, para a sua consumação, com a verificação de dolo genérico (traduzido na consciência de que as expressões utilizadas são suscetíveis de produzir ofensa da honra e consideração do destinatário), não sendo necessário a existência de dolo específico (no sentido de haver uma especial intenção de injuriar). Neste sentido, veja-se, entre outros, o Acórdão do STJ, in BMJ 369-593; Acórdão da RL, in CJ XIII, 3, 180; Acórdão da RP, in CJ XIII, 5, 221.
Nestes termos, entende-se que não consta, na acusação particular, a descrição de todos os factos pelos quais se possa concluir pelo preenchimento do elemento subjetivo, traduzido na ação livre.
Efetivamente, na acusação deduzida, apenas se descrevem factos referentes à ação deliberada, consciente e conhecedora do carácter ilícito da conduta mas nada é referido quanto à liberdade da ação, fulcral para se poder concluir que o arguido pôde determinar a sua ação, inexistindo causas de exclusão da culpa.
Desta forma, não se poderá concluir pela existência de um ilícito penal.
Por fim, cumpre referir que não é admissível ao juiz ordenar qualquer convite ao aperfeiçoamento ou correção de uma acusação, formal ou substancialmente deficiente (neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa, de 10/10/2002, Col. de Jur., ano XXVII, tomo IV, pág. 132).
Pelo exposto, e ao abrigo do disposto no artigo 311º, nº2, alínea a) e nº3, alínea b), considero a acusação particular apresentada pelo assistente manifestamente infundada e, consequentemente, rejeito a mesma.
Custas pela assistente (artigo 515º, nº 1, alínea f) do Código de Processo Penal)…
(…)”

II. Inconformado veio o Assistente interpor recurso em 14-03-2023, com a refª ...71, através do qual oferece as seguintes conclusões:

“1. O douto tribunal recorrido rejeitou a acusação particular formulada pelo Recorrente, tendo-a julgado manifestamente infundada, fundamentando a decisão na circunstância de nela não constar a descrição de todos os factos pelos quais se pode concluir pelo preenchimento do elemento subjectivo (dolo), traduzido na acção livre.
2. Mais se decidiu pela inadmissibilidade de convite ao aperfeiçoamento da acusação.
Ora,
3. A acusação não contém a palavra livre aquando da caracterização da acção do Arguido, sendo que, por outro lado, e segundo a douta decisão em análise, todos os demais requisitos, nomeadamente a descrição completa dos factos, em ambos os seus elementos, foram minuciosamente respeitados e cumpridos na acusação particular.
4. A omissão em causa – um mero lapso de redacção -diz, portanto, respeito a um único elemento subjetivo da narração dos factos integradores do crime de injúria: a liberdade de actuação do Arguido.
5. Inequivocamente, o crime de injúrias pressupõe que o agente saiba e queira que as suas palavras contenham imputação inverídica ou desonrosa, e que com elas queira causar constrangimento e desconsideração para com o ofendido, mediante um ato de vontade livre e consciente.
6. A liberdade de ação do Arguido, e com isto a sua livre decisão de agir de modo diverso da lei, em desconformidade com o direito e com um dever-ser jurídico, pode presumir-se pelas palavras que o mesmo proferiu.
7. A acusação não é totalmente omissa quanto ao relato dos factos que integram o dolo do agente, nem quanto a indícios da sua liberdade de ação.
8. Pela utilização dos vocábulos descritos na acusação pode presumir-se a livre ação do Arguido – cfr., a este respeito, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 1776/05, de 07/04/2005, disponível em www.dgsi.pt.
9. Refira-se, ainda, que a rejeição prévia da acusação particular por manifestamente infundada colide com os interesses proclamados pelo legislador - cfr., a este respeito, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 694/21.3GCBRG.G1, de 26/09/2022, disponível em www.dgsi.pt.
10. De facto, a Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, ao aditar o n.º 3 ao art. 311.º do CPP, prevendo de modo claro e taxativo as situações que podem levar à não admissão da acusação, limitou os poderes do juiz antes do julgamento.
11. Neste sentido, a admissão da acusação particular levaria a que se procedesse ao devido estudo do caso em questão e a uma digna decisão acerca do mérito da causa e eventual merecimento de sanção penal.
12. Em conformidade, deverá ser revogada a douta decisão em mérito, admitindo-se a acusação particular formulada.
Sem prescindir,
13. a rejeição da acusação particular por ser manifestamente infundada, em específico por não estar descrito de forma completa o elemento subjetivo do crime imputado ao arguido, não implica, necessariamente, o arquivamento dos autos.
14. O legislador enumera no artigo 311.º, n.º 3 do CPP os casos extremos de nulidade da acusação, justificando que a rejeição liminar tenha lugar em casos limite, insuscetíveis de correção sem prejudicar o direito de defesa fundamental, subtraindo-se, por isso, tais vícios ao regime das nulidades sanáveis – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, processo n.º 482/19.7T9FAR.E1, de 12/01/2021, disponível em www.dgsi.pt.
15.  Apenas estes casos são considerados insuscetíveis de saneamento, e, claramente, a omissão involuntária, e por lapso, de um pressuposto do elemento subjetivo do tipo de crime de injúria, não se enquadra no que o legislador considera uma violação de tal forma grave que justifique a insanabilidade da acusação.
16. É entendimento jurisprudencial que deve ser permitida a correção da acusação, a qual deverá conter como únicas alterações à acusação rejeitada a colmatação das falhas que lhe foram apontadas enquanto motivo da rejeição, e não mais do que essas – cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, processo n.º 99/19.6GASAT.C1, de 08/05/2018, disponível em www.dgsi.pt.
17. Por outro lado, e segundo o melhor entendimento doutrinal, “o despacho de rejeição da acusação manifestamente infundada faz caso julgado formal, embora não faça caso julgado material” – cfr.  Albuquerque, Paulo Pinto, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2011, p. 827.
18. Assim, deverá ser concedida a possibilidade de correção da acusação rejeitada, através da apresentação de nova acusação, onde se veja corrigida a insuficiente descrição de um elemento típico, desde que as demais circunstâncias do crime não sofram alteração.
19. Caso contrário, estaremos perante uma deliberada aceitação e incentivo ao cometimento de ilícitos, fomentando a impunidade, como entende, igualmente, e de resto, o Tribunal Constitucional – cfr. Acórdão n.º 246/2017, processo n.º 880/2016, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
20. Em suma, julgando-se verificada a inexistência de factos pelos quais se pode concluir pelo preenchimento de elementos subjectivo, o que não se consente, deverá ser concedida ao Recorrente a possibilidade de aperfeiçoar a acusação formulada, proferindo-se nova acusação,
21. sob pena de violação do disposto nos artigos 283.º, n.º 3 ex vi do artigo 285.º, n.º 3, 119.º e 311.º CPP.

NESTES TERMOS, revogando o douto despacho recorrido, e admitindo a acusação particular formulada, ou, se assim não se entender, concedendo a possibilidade ao Recorrente de proceder à prolação de nova acusação particular aperfeiçoada, farão V. Exas a habitual J U S T I Ç A!”

III. O recurso foi admitido por despacho de 17-03-2023 com a refª ...10 tendo sido fixado efeito devolutivo com subida a final.

IV. Do despacho que reteve o recurso por si interposto veio o Assistente reclamar para o Exmº Sr. Presidente desta Relação, em 31-03-2023, com a refª ...08, tendo a sua reclamação sido deferida por despacho de 23-05-2022, com a refª ...91, que determinou a subida imediata do recurso.

V. Respondeu o Ministério Público através das contra-alegações juntas em 27-04-2023, com a refª ...91, através das quais pugna pela procedência do recurso e consequente revogação da decisão recorrida, tendo oferecido as seguintes conclusões:

“1. Nos presentes autos o assistente, ora recorrente, deduziu acusação particular contra o arguido BB imputando-lhe a prática em autoria material de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, nº 1, do Código Penal.
2. Por despacho proferido no dia 20 de Dezembro de 2022, o Ministério Público acompanhou a sobredita acusação particular.
3. Sucede porém, que remetidos os autos à distribuição, por despacho proferido no dia 13 de Fevereiro de 2023, o Tribunal a quo rejeitou a acusação particular deduzida nos autos, nos termos do disposto no artigo 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea b), do Código de Processo Penal, por entender que o libelo acusatório é manifestamente infundado na medida em que o elemento subjectivo se mostra insuficientemente narrado, porquanto “nada se diz quanto à liberdade da ação”.
4. Todavia, no caso em apreço, a acusação particular apresentada pelo assistente possui todos os factos necessários à subsunção ao crime de injúria imputado ao arguido, encontrando-se todos os elementos, objectivo e subjectivo, deste ilícito penal suficientemente narrados.
5. Resultando daquela peça processual que o arguido sabia o que fazia, queria fazê-lo e agiu com a consciência de que praticou um crime.
6. Ademais, sempre se dirá que o arguido ao ser confrontado com o teor do libelo acusatório em questão percebe perfeitamente o que lhe está a ser imputado e do que está a ser acusado, não se vislumbrando que resultem coartados quaisquer direitos de defesa.
7. Não obstante, caso assim não se entenda, entende-se que o assistente poderá, querendo, deduzir nova acusação particular, em que repare a omissão apontada, na esteira do que foi defendido no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 246/2017, publicado no DR, II Série, de 25/7/2017.
8. Nesta senda, urge concluir que a decisão recorrida não se afigura correcta, tanto mais que o julgador apenas deve rejeitar a acusação quando seja de todo inviável a condenação do arguido e, por isso, quando seja de evitar que seja sujeito injustificadamente à “violência” de um julgamento, o que não é, claramente, o caso dos autos, pois a mesma contém a narração dos factos imputados.
9. Veja-se a propósito o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 11 de Julho de 2017, proferido no âmbito do Processo nº 649/16.0T9BRG.G1 (disponível in www.dgs.pt), no qual ficou exarado que “ainda que a matéria  alegada no RAI possa não ter sido descrita de forma exemplar, se tal peça permitir aferir da verificação dos elementos objectivos e subjecivos do crime, o RAI não deverá ser rejeitado”.
10. Pelo que se entende que o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 181.º, n.º 1, do Código Penal e 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea b), do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que receba a acusação particular apresentada pelo assistente ou, caso assim não se entenda, deverá o mesmo ser notificado para, querendo, apresentar nova peça processual reparando a omissão apontada. Vossas Excelências, no entanto, decidirão como for de JUSTIÇA.”

VI. Foi aberta vista nos termos do disposto no artº 416º nº 1 do CPP, tendo o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto proferido douto parecer em 11-09-2023 (refª ...09), no qual também pugna pela procedência do recurso.

VII. Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do CPP nenhuma resposta foi oferecida.

VIII. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.

IX. Analisando e decidindo.

O objecto do recurso, e portanto da nossa análise, está delimitado pelas conclusões do recurso, atento o disposto nos artºs 402º, 403º e 412º todos do CPP.[1]
 
Entende o Assistente que a acusação não é totalmente omissa quanto ao relato dos factos que integram o dolo do agente, nem quanto a indícios da sua liberdade de acção, pelo que estando presentes os restantes elementos do tipo legal imputado ao arguido, o Tribunal a quo não podia ter rejeitado a acusação particular que reúne todos os elementos para levar o arguido a julgamento.
           
Está, assim, em causa saber se a acusação particular apresentada pelo assistente reúne todos os requisitos legais para ser liminarmente admitido e, assim, levar ao agendamento de julgamento nos termos do artº 312º do Código de Processo Penal.
           
Vejamos, olhando, primeiro, o teor da acusação particular (transcrição na parte que aqui interessa):

“AA, residente na Rua ...., ... ..., vem, no processo identificado em epígrafe, em que é Assistente, deduzir contra o arguido BB, melhor identificado nos autos,
ACUSAÇÃO PARTICULAR
Porquanto,
No dia 02.01.2021, por volta das 16h00, nas imediações do logradouro da residência da avó do Assistente, sita na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., o Arguido dirigiu-se ao Assistente, que lá se encontrava, e proferiu, de viva voz, as seguintes expressões:
“filho da puta, estás a olhar feito galifão para mim? Achas que és o dono disto tudo?”
Ao proferir tais palavras, o Arguido, vizinho da avó do Assistente, quis ofender – e ofendeu – o Assistente na sua honra, consideração e dignidade, dirigindo-lhe expressões que bem sabia serem ofensivas daqueles bens pessoais e que contêm um juízo de valor profundamente negativo sobre o caráter do Assistente.
Para além do mais, as palavras dirigidas ao Assistente pelo Arguido, para além de falsas, foram do conhecimento generalizado na família, e ainda dos vizinhos, pelo que o insulto e a ofensa foram divulgados e propagados a um grande número de pessoas, que deles tiveram conhecimento.
Acresce que o Arguido tinha, e tem, perfeita consciência do caráter ofensivo, injurioso e difamatório das afirmações, expressões e juízos de valor que proferiu, e quis atingir com elas, como atingiu, a honra, dignidade, consideração e personalidade do Assistente.
O Arguido agiu voluntária e conscientemente, bem sabendo da natureza ilícita e criminalmente censurável da sua atuação.
Cometeu, assim, em autoria material, um crime de injúrias, p. e p. no art. 181.º, n.o 1 do Código Penal, pelo qual deve responder em processo comum, perante juiz singular, o que se requer.

PROVA:
A) POR DECLARAÇÕES:
- requer sejam tomadas declarações ao Assistente em audiência de julgamento;
B) TESTEMUNHAL:
1. CC, militar da GNR, n.º ...79, a notificar no Posto Territorial ..., sito na Rua ... ...;
2. DD, residente na Rua ..., ... ..., ...;
3. EE, residente na Rua ...., ... ... – ...;
4. FF, com residência na Avenida ..., ... ...;
5. GG, residente na Rua ..., ... ... – ...;
6. HH, residente na Rua ..., ... ... – ....
(…)”

Nos termos do disposto no artº 311º do Código de Processo Penal:

“1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.”
             
Ora, o despacho recorrido rejeitou a acusação particular, acima citada, assente na ideia de que a mesma não apresentava todos os factos necessários para preenchimento do elemento subjectivo do crime imputado ao arguido, mormente no que tange à liberdade de acção por parte do arguido.
           
Recapitulemos o despacho no que a este aspecto diz directamente respeito:

“Efetivamente, na acusação deduzida, apenas se descrevem factos referentes à ação deliberada, consciente e conhecedora do carácter ilícito da conduta mas nada é referido quanto à liberdade da ação, fulcral para se poder concluir que o arguido pôde determinar a sua ação, inexistindo causas de exclusão da culpa.”

Ora, e salvo o devido respeito, não podemos sufragar o entendimento plasmado no despacho recorrido uma vez que, à excepção da palavra “livre” a acusação particular contém todos os elementos necessários para integrar o elemento subjectivo do crime em apreço, em especial a liberdade da acção, inexistindo causas de exclusão da culpa.

Não existem fórmulas sacramentais na forma de transmitir os elementos, quer objectivos, quer subjectivos dos crimes.

Sendo que a palavra “livre” não é a única que revela a vontade do agente em actuar contra legem, isto é, com a consciência da ilicitude sem constrangimentos exteriores que pudessem implicar uma diminuição ou mesmo anulação da sua culpa.

De notar que na acusação particular diz-se o seguinte no que tange ao elemento subjectivo:
           
“Ao proferir tais palavras, o Arguido, vizinho da avó do Assistente, quis ofender – e ofendeu – o Assistente na sua honra, consideração e dignidade, dirigindo-lhe expressões que bem sabia serem ofensivas daqueles bens pessoais e que contêm um juízo de valor profundamente negativo sobre o caráter do Assistente.
(…)     
Acresce que o Arguido tinha, e tem, perfeita consciência do caráter ofensivo, injurioso e difamatório das afirmações, expressões e juízos de valor que proferiu, e quis atingir com elas, como atingiu, a honra, dignidade, consideração e personalidade do Assistente.
O Arguido agiu voluntária e conscientemente, bem sabendo da natureza ilícita e criminalmente censurável da sua atuação.”

Ora, afirmar que o arguido age de forma voluntária, equivale, a agir de forma livre e deliberada, pois o agir voluntariamente significa “agir por querer” ou “agir segundo a própria vontade”, sendo sinónimos da palavra voluntariamente as palavras: “deliberadamente”, “espontaneamente”, “intencionalmente”, “livremente” e “propositadamente.” [2]

Aliás, etimologicamente, a palavra voluntariamente, um advérbio que significa fazer de maneira voluntária, vem da palavra latina voluntas que significa vontade o que implica forçosamente uma actuação livre ou proveniente de um desejo livre.

Pelo que, sinceramente, não conseguimos compreender o despacho recorrido quando diz que falta a alegação de factos para consubstanciar o elemento subjectivo do crime imputado ao arguido, na vertente da liberdade de acção.

Trata-se de uma questão de português (e não jurídica) que, em nosso entender, está clara e não deixa margem para dúvida o que está a ser imputado ao arguido.

Tem, assim, de proceder o presente recurso.

Decisão:

Em face do acima exposto os Juízes Desembargadores da Secção Penal da Relação de Guimarães decidem conceder provimento ao recurso interposto pelo Assistente e, em consequência, anulam a decisão recorrida, na parte referente à acusação particular, devendo a mesma ser substituída por uma que, admitindo liminarmente a acusação particular, designa data para julgamento nos termos do artº 312º do CPP.
Sem custas.
                                                           

Guimarães, 14 de Novembro de 2023.
                                                          
Florbela Sebastião e Silva (Relatora)
Pedro Freitas Pinto (1º Adjunto)
Carlos da Cunha Coutinho (2º Adjunto)

                                              

[1] Ver a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt, que reproduzimos: “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).”.
[2] In Infopedia, Dicionários Porto Editora, consultável em:
https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/voluntariamente