DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
FUNDAMENTAÇÃO
IRREGULARIDADE DE CONHECIMENTO OFICIOSO
Sumário

I–Sendo o despacho de não pronúncia um acto decisório do juiz está sujeito ao dever geral de fundamentação do artigo 97º, n.º 5 do Código de Processo Penal, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão, de forma a permitir a sua impugnação e o reexame da causa pelo tribunal de recurso.

II–Ainda que de forma remissiva, não pode o Juiz de instrução deixar de expor as razões de facto e de direito do despacho de pronúncia ou de não pronúncia – artigo 307º, nº 1, in fine, aplicável por remissão do artigo 308º, nº 2, in fine, do Código de Processo Penal.

III–Por força da remissão do nº 2, in fine, do citado artigo 308º, para o disposto no artigo 283º, nº 3, do Código de Processo Penal, o despacho de não pronúncia, por se tratar de despacho final do processo, tem de conter no mínimo a enumeração autónoma e percetível, ainda que sintética, dos factos considerados não suficientemente indiciados.

IV–A fixação da factualidade suficientemente indiciada ou não suficientemente indiciada, não só é fundamental para delimitar os poderes de cognição do Juiz de Instrução ao proferir o despacho de pronúncia ou não pronúncia, nos termos do citado artigo 308º, como é também é essencial para a determinação dos efeitos do caso julgado da decisão final de não pronúncia quando esta assenta na não verificação dos pressupostos materiais de punibilidade do arguido.

V–A falta de fundamentação da decisão instrutória, traduzida na falta de indicação/enunciação, de forma percetível, dos factos que o tribunal considerou suficientemente indiciados e aqueles que assim não considerou, reconduz-se a uma mera irregularidade, ainda que de conhecimento oficioso, podendo ser ordenada a sua reparação no momento em que dela se tomar conhecimento.

(Da responsabilidade da relatora)

Texto Integral

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:

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I.–RELATÓRIO

1.–No processo nº 6339/21.4T9LSB do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa (J 1) foi, em 02.05.2023 proferida decisão instrutória de não pronúncia dos arguidos AA…… e BB……, pela prática em co-autoria e concurso efetivo, de um crime de violação de segredo de justiça, p. e p. pelos art.ºs 371º do Código Penal, por referência ao art.º 86º nº 8 al. b) do Código de Processo Penal, ao art.º 30º nº 2 da Lei nº 2/99 de 13 de Janeiro e ao art.º 71º nº2 da Lei nº27/2007 de 30 de Julho e de um crime de desobediência, p. e p. pelos art.ºs 348º nº1 al. a) do Código Penal, por referência ao art.º 88º nº4 do Código de Processo Penal, ao art.º 30º nº 2 da Lei nº 2/99 de 13 de Janeiro e ao art.º 71º nº2 da Lei nº27/2007 de 30 de Julho, que lhes era imputado na acusação pública contra eles deduzida.
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2.–Não se conformando com essa decisão, o Ministério Público recorreu para este Tribunal da Relação pugnando pela prolação de decisão que determine a pronúncia dos arguidos nos termos constantes da acusação pública.

Da motivação deste recurso constam as seguintes conclusões:
«a)- Os arguidos AA...... e BB……, na qualidade de jornalistas, sabiam que lhes estava vedada a reprodução de peças processuais, de documentos incorporados em processos que se encontravam a correr a coberto do segredo de justiça, bem como a divulgação do conteúdo de intercetações telefónicas, mas ainda assim, não se coibiram de os divulgar.
b)-Todas estas notícias e reportagem, elaboradas de modo sequencial; foram-no porque pessoa (ou pessoas) cuja identidade não foi possível apurar facultou (facultaram) à arguida AA...... - pelo menos - parte do teor dos despachos, relatórios de intercetações telefónicas, autos de diligência, transcrição de intercetações telefónicas e despachos do Magistrado do Ministério Público do inquérito com NUIPC n° 9180/18.8T9LSB.
c)-Apesar de ter conhecimento que o referido inquérito se encontrava a correr a coberto do segredo de justiça, a arguida determinou-se a violá-lo, divulgando, notícias que descreviam o conteúdo a actos processuais ordenados no processo, indiferente aos efeitos que essa publicação causaria aos visados da investigação, aos interesses da investigação, nomeadamente à dissipação á prova por parte dos visados ou à perturbação da recolha da prova que se pretendia com tais diligências.
d)-O arguido BB……, a quem estavam cometidas funções á subdirector à data dos factos, quer do Jornal CM quer da CM TV teve conhecimento do tratamento e da forma conferida pela arguida AA...... à peça jornalística — até porque narrou o Programa Investigação CM" em momento prévio à exibição da reportagem - e não se opôs a que fosse exibida, sendo certo que o podia fazer como era sua obrigação.
e)-A arguida AA…… redigiu, relatou em off e foi a autora da forma como ilustrou as notícias que foram publicadas no Jornal" CM, sabendo ser proibida a reprodução e exibição de peças processuais, bem como do conteúdo de intercetações telefónicos que façam parte de processos em segredo de justiça, conformando-se com o resultado da sua conduta.
f)-A arguida AA…… aproveitou-se da circunstância de ter acesso a documentos constantes do Processo n° 9180/18.8T9LSB para elaborar diversos conteúdos jornalísticos (peças escritas e reportagem), logrando prolongar no tempo a sua conduta, pois já tinha conhecimento dos elementos necessários para esse efeito.
g)-Os arguidos agiram conjuntamente, com o objectivo comum de criar, desenvolver e emitir o programa televisivo em causa, sendo, pois, os seus autores, sabendo que não estavam autorizados a publicar e divulgar o conteúdo de ato processual e de intercetações telefónicas e, ainda assim, não se abstiveram de, no programa televisivo "Investigação - A Teia" reproduzir o conteúdo á parte das interceções telefónicas que foram obtidas da forma descrita, tomando conhecimento deras e divulgando-as por um número indeterminado de pessoas que assistiram ao programa em causa, tornado, dessa forma, público o seu conteúdo.
h)-Os arguidos deram a conhecer ao público o conteúdo de ato processual penal, sabendo que estavam proibidos de o fazer, sabendo também que incorriam em responsabilidade criminal; caso desrespeitassem essa proibição, e que essa ordem á proibição era legítima e provinha de Lei.
i)-Os arguidos agiram sempre livre, deliberada e conscientemente.
j)-Bem sabiam os arguidos que as suas condutas eram puníveis por lei penal.
k)-Existem nos autos indícios suficientes que fundamentam a acusação deduzida, existindo uma séria probabilidade de, em julgamento, vir a ser aplicada aos arguidos uma pena ou medida de segurança.
l)-Resulta à saciedade que os autos estavam em segredo de Justiça, pelo que mal se compreende a ausência de pronúncia posto que se mostra fortemente indiciado que tal era o estado do processo, que os arguidos conheciam a existência do segredo e que, mesmo assim, quiseram violar o segredo.
m)-O jornalista que, ilegitimamente, divulga, no todo ou em parte, teor de acto de processo penal que sabe encontrar-se coberto pelo segredo de justiça comete o crime do n.° 1 do artigo 371.° do Código Penal, independentemente do modo como chegou ao seu conhecimento aquilo que divulgou.
n)-É pressuposto da incriminação por violação de segredo de justiça (art° 371°, do CP) que tenha sido a divulgação, feita pelo concreto agente, que tornou público o que até aí era secreto, isto é, que só em virtude dessa divulgação, se tornou conhecido, no todo ou em parte, o teor de ato processual coberto pelo segredo.
o)-O direito dos jornalistas á acesso às fontes de informação não abrange os processos em segredo de justiça. O segredo de justiça vincula as pessoas que, por qualquer título, tiverem tomado contacto com o processo e implica, entre o mais, a proibição de divulgação da ocorrência ou do teor de ato processual independentemente do motivo que presidir a tal divulgação, mesmo que feita com o escopo, por parte do jornalista, de informar.
p)-O direito de informar não é um direito irrestrito, mas um direito que sofre limitações, como decorre do art° 37°, da Constituição da República Portuguesa.
Pelo que, ao não pronunciar os arguidos a decisão instrutória violou as normas contidas nos artigos 371° n° 1 do Código Penal, por referência ao art.86°, n° 8 b) do Código de Processo Penal e aos art.30° e 31° n°1 da Lei da Imprensa (Lei n °2/99 de 13.11).»

3.–Os arguidos, nas suas alegações de resposta pugnaram pelo não provimento do recurso e pela manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:
(......)
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4.–Nesta Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de nada mais aditar à argumentação da Exmª Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância.
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Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta ao parecer do Ministério Público.
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Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.
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II.–FUNDAMENTAÇÃO
II.1.–Questões a decidir
Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal superior (cf. por todos, o Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt).
Para além disso, deve o Tribunal de recurso conhecer de todas as questões que sejam de conhecimento oficioso, ou seja, que o Tribunal tem obrigação de conhecer independentemente de alegação, isto é, sejam ou não invocadas. 
A questão que importa decidir, é de acordo, com as conclusões da motivação do recurso, a  de saber se da prova produzida, quer em sede de inquérito, quer na fase de instrução, resultam indícios suficientes da prática pelos arguidos dos crimes que lhes são imputados na acusação pública contra eles deduzida, devendo ser eles pronunciados pela prática de tais crimes.

II.2.–Apreciação do recurso

II.2.1.Decisão recorrida

É o seguinte o teor do despacho recorrido:

=DECISÃO INSTRUTÓRIA=
AA…… e BB……, vieram, em tempo, e após notificação da acusação contra si deduzida, requerer a abertura de instrução, nos termos e com os fundamentos constantes do seu requerimento, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
Procedeu-se às diligências instrutórias requeridas e que foram julgadas adequadas e pertinentes às finalidades da instrução, não se vislumbrando outras relevantes para esse escopo.
Foi realizado o debate instrutório facultando-se aos arguidos a possibilidade de oferecer as suas conclusões, ex vi do disposto no art.° 302° do CPP.
O Tribunal é competente.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
Inexistem excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
Cumpre apreciar e decidir:
Os Arguidos vieram requerer a instrução conforme o RAI que ora faz fls. 313 a 381 e doc.s juntos.
Foram ouvidas em instrução as testemunhas …… e ……, que corroboram as qualidades de jornalista de investigação, a preservação das fontes, o seu não questionamento pelas Direcções editoriais, o facto de as noticias em causa respeitarem a inquéritos crime por negócios imobiliários associados a irregularidades e ilícitos criminais, no âmbito da gestão da …… e do interesse público no seu escrutínio pela opinião pública independentemente da prossecução dos processos no foro judicial.
Os testemunhos esclareceram que várias das notícias não são de "notícias mãe" mas de "notícias réplica" sobre a denominada "Operação Olissipus".
Os profissionais de informação aduziram que, na actividade jornalística, os seus profissionais dispõem de autonomia e deontologicamente de poder de ocultar as suas fontes.
Havendo factos novos, alcançados a partir de uma investigação jornalística, paralela à investigação judicial, credíveis, é dever do Jornalista trazer tais factos ao conhecimento público.
…… chega a aludir ter conhecimento da existência de 10 ou 12 processos crime em investigação criminal no DIAP de Lisboa, há quase uma década, que motivaram aprofundamento dos temas a partir de uma sindicância efectuada por uma Magistrada do M.° P.° a convite do executivo municipal.
……… fala em processos parados por quase quatro anos, outros que se iniciaram com peças jornalísticas, como é o caso do "Comendador …." ou o tema de vida e rendimentos de …… que, no seu dizer, originou investigações jornalísticas muito antes da autuação da "Operação …..".
As testemunhas referem ser direitos de todos os cidadãos as liberdades de informação e expressão e o interesse público que deve revestir o questionar o funcionamento dos tribunais e do sistema de justiça, em matéria de escrutínio da problemática dos ajustes directos através não só das ferramentas do portal-base dos contractos públicos.
É evidente que pode haver violação do segredo de justiça, mas ao Jornalista o que lhe compete é noticiar desde que tenha acesso a elementos que se revistam de interesse público.
Por outro lado, aos arguidos assiste razão, quando propugnam que algumas das notícias apontadas já decorriam de notícias da própria PGR, pelo seu gabinete de imprensa, colocando "à outrance" a questão de saber por quanto tempo é que o jornalista deve silenciar o que colheu para não prejudicar a investigação?!
Há excertos de escutas nas notícias?
E onde está a prova de que fazem parte concreta de um processo de inquérito?!
De acordo com o disposto no art. 286°/1 do CPP, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, ou seja, a instrução destina-se precisamente a verificar se existem indícios suficientes da prática, pelo arguido, dos factos e crimes pelos quais foram acusado, servindo ainda para se verificar se se mostram presentes todos os pressupostos processuais de que depende a acusação.
O actual CPP, no art. 283°/2, considera "... suficientes os indícios sempre que deles resultar a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança.".
Idêntica definição contém o artigo 308° n°1 do CPP.
De acordo com a doutrina e a jurisprudência indícios suficientes são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é o arguido responsável por ele.
Com efeito, para a pronúncia, não é necessária uma certeza da existência da infracção, devendo, no entanto, os factos indiciários ser suficientes e bastantes, por forma a que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado.
Por outro lado, e como é sabido, a prova tem por função a demonstração da realidade dos factos (art. 341°/1 CCP) e é, normalmente apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (art. 127° CPP).
A prova não pressupõe, como vem afirmando a melhor jurisprudência (cf. v.g. Ac. da Relação de Coimbra no Processo n.° 2447/99), uma certeza absoluta, lógico-matemática ou apodíctica, nem se basta, por outro lado, com a mera probabilidade de verificação de um facto.
Na verdade, a prova pressupõe
a)-O alto grau de probabilidade de verificação do facto, suficiente para as necessidades práticas da vida (cf. Manuel de Andrade, "Noções Elementares de Processo Civil" p. 191; Antunes Varela, "Manual de Processo Civil", p. 421);
b)-O grau de certeza que as pessoas mais exigentes da vida reclamariam para dar como verificado o facto respectivo (Anselmo de Castro, "Direito Processual Civil Declaratório, III", p. 345);
c)-A consciência de um elevado grau de probabilidade - convicção —assente no raciocínio lógico do juiz e não em meras impressões (Castro Mendes, "Do Conceito de Prova em Processo Civil" p. 306 e 325);
d)-Na convicção — objectivável, raciocinada (baseada na intuição e na reflexão e motiváveis - para além de toda a dúvida razoável, não qualquer dúvida, mas apenas a dúvida fundada em razões adequadas (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I," p. 205).
Divide-se actualmente a doutrina entre duas posições sobre o que são indícios suficientes:
a)-A que entende que o juiz deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que tenha cometido o crime do que não o tenha feito e que, portanto, a lei não impõe a mesma convicção requerida pelo julgamento, bastando-se com um juízo de indiciação (Prof. Germano Marques da Silva);
b)-A que parece equiparar a convicção de quem acusa ou pronúncia com a convicção de quem julga e condena (Dr. Carlos Adérito Teixeira).
Perfilhamos a primeira das opções.
Quanto aos fortes indícios diremos e citando o Acórdão de 20 de Setembro de 2008, relatado pelo, então, Excelentíssimo Desembargador Gabriel Catarino: Constituem-se em vestígios, suspeitas, presunções, sinais; indicações, suficientes e bastantes para convencer da existência de um facto jurídico-penalmente relevante e de que deve ser imputável a alguém determinado, devendo ou podendo ser previsível que, num juízo de prognose solidamente estruturado escorado, a manterem-se em julgamento, ocorram fundadas- e sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelos factos típicos que lhe são imputados.
Na indiciação em fase de inquérito, ou seja numa fase em que os elementos colectados ainda não foram objecto de contraditório, o grau de convencimento do juiz e de ponderação de  imputação casual- de- determinado agir a um concreto sujeito está dependente das regras da experiência e do sentido lógico representativo com que uma dada realidade percepcionada se prefigura ao discernimento e compreensibilidade do julgador.
O juiz pode, nesta fase, socorrer-se das inferências permitidas por um conjunto  de elementos que soem ocorrer em situações ou casos similares, observando sempre que as máximas de experiência atinam com factores de aleatoriedade que podem conduzir juízos erróneos ou de defeituosa avaliação."
Segundo Luís Osório no seu Comentário ao CPP, XV, pág. 411 refere que " devem considerar-se indícios suficientes aqueles que fazem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado"
A este propósito, cita-se ainda no Acórdão do Tribunal da Relação n° 128/11.1TELSB-J.L1 de 11.04.2013 de acordo com o qual:
É pressuposto da aplicação da medida de coacção de prisão preventiva a existência de fortes indícios da prática do crime.
No entendimento de Germano Marques da Silva, que por inteiro se subscreve, “A indiciação do crime necessária para a aplicação de uma medida de coacção significa “probatio previor”, isto é, a convicção da existência dos pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais, mas em grau inferior à que é necessária para a condenação. (…) não pode exigir-se uma comprovação categórica da existência dos referidos pressupostos; mas tão-só, face ao estado dos autos, a convicção de que o arguido" vira' a ser condenado pela prática de determinado crime.
Noutro passo:
embora não seja ainda de exigir a comprovação categórica sem qualquer dúvida razoável é pelo menos necessário que face aos elementos de prova disponíveis seja possível formar a convicção sobre a maior probabilidade de condenação do que de absolvição (“Curso de Processo Penal, II, 2ª ed, pág: 240)” (…)
(...) O Prof. Germano Marques da Silva,  por sua vez, e como já referido, obra cit., pág. 244 diz também que “(…) no momento da aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial que pode ocorrer ainda na fase de inquérito ou da instrução, fases em que o material - probatório não é ainda completo, não pode exigir-se uma comprovação categórica da  existência dos referidos pressupostos, mas tão-só, face ao estado dos autos, a convicção objectivável com os elementos recolhidos nos autos de que o arguido virá a ser condenado pela prática de determinado crime.
Nos casos em que a lei exige fortes indícios a exigência é naturalmente maior embora não seja ainda de exigir a comprovação categórica sem qualquer dúvida razoável, é pelo menos necessário que face aos elementos de prova disponíveis seja possível formar a convicção sobre a maior probabilidade de condenação do que de absolvição”.
Vital Moreira e Gomes Canotilho, a fls. 185 da Constituição da República Portuguesa (anotada), 1993, por sua vez, dizem também que “quando a lei fala em fortes indícios pretende exigir uma indiciação reforçada filiada no conceito de provas sérias"
Do mesmo modo, fortes indícios, ou indicias suficientes, na definição dada pelo art. 283; nº 2, do CPP, existem sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança."(fim de cit.)
O JIC signatário socorre-se ainda no juízo indiciário a efectuar para dilucidação do requerimento de abertura de instrução, do entendimento jurisprudencial propugnado no Ac. TRL de 25/06/2015, no NUIPC 3443/11.0TDLSB.L1-9 relator Desembargador Dr. Fernando Estrela, onde se diz:
"I- Os meios de prova directos não são os únicos a poderem ser utilizados pelo julgador. Existem os meios de prova indirecta, que são os procedimentos lógicos, para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um (ou vários) factos conhecidos, ou seja as presunções.
II-As presunções pressupõem a existência de um facto conhecido (base das presunções) cuja prova incumbe à parte que a presunção favorece e pode ser feita por meios probatórios gerais; provado esse facto, intervém a Lei (no caso de presunções legais) ou o julgador (no caso de presunções judiciais) a concluir dele a existência de outro facto (presumido), servindo-se o julgador, para esse fim, de regras deduzidas da experiência da vida
III- Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode utilizar o juiz a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência ou, se se quiser, vale-se de uma prova de primeira aparência. (...)." Fim de citação.
E do Acórdão do STJ, aí citado, de 11/10/08 - Proc. 07P3240, relator Conselheiro Simas Santos, in www.dosi.pt:
"4- Como tem sido jurisprudência deste Tribunal é admissível a, prova por presunção, o sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções."
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal- de Justiça, de 17 de Março de 2004, in www.dgsi,pt, "os meios de prova directos não são os únicos a poderem ser utilizados pelo julgador. Existem os meios de prova indirecta, que são os procedimentos lógicos, para prova. indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um (ou vários) factos conhecidos, ou seja as presunções. As presunções, cuja definição se encontra no artigo 349º  do Código  Civil, são também válidas  em processo penal; importando, neste domínio as presunções naturais que são, não mais que o produto das regras de experiência: o juiz valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, concluí que esse facto denuncia a existência de outro facto. O juiz utiliza a experiência da vida, da qual resulta que um facto é consequência de outro, ou seja, procede mediante uma presunção natural. Na passagem do facto conhecido para a aquisição do facto desconhecido, têm de intervir procedimentos lógicos e intelectuais que permitam, com fundamento, segundo as regras da experiência que determinado facto anteriormente desconhecido, é a natural consequência, ou resulta com probabilidade próxima da certeza de outro facto conhecido.
A propósito de provas indirectas, é imperioso citar o Exmo. Conselheiro Santos Cabral.
"Na prova indiciária, mais do que em qualquer outra, intervêm a inteligência e a lógica do juiz. A prova indiciaria pressupõe um facto, demonstrado através de uma prova directa, ao qual se associa uma regra de ciência, uma máxima de experiência ou uma regra de sentido comum. Este facto indiciante permite a elaboração de um facto-consequência em virtude de uma ligação racional e lógica (...).
Aliás é importante que se refira que a prova indiciaria, ou o funcionamento da lógica e das presunções, bem como das máximas da experiência, é transversal a toda a teoria da prova, começando pela averiguação do elemento subjectivo de crime, que só deste modo pode ser alcançado, até à  própria creditação da prova directa constante do testemunho (...)" p. .1 de "Prova indiciaria, e as novas formas de criminalidade", in www.cej.pt.
Não faz a nossa lei processual penal qualquer referência a requisitos especiais em sede de demonstração dos requisitos da prova indiciária. P. 16, cap. III
"Verificados os respectivos requisitos pode-se afirmar que o desenrolar da prova indiciária pressupõe três momentos distintos: a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento, faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência, ou da ciência, que permite, num terceiro momento, inferir outro facto que será, o facto sob julgamento." Fls. 23, cap. V” fim de citação.
E também do entendimento vertido no Ac. TRL primeiramente citado, quando aí se diz:
"Aqui chegados, e antes de prosseguir, crê-se ser de recordar o princípio que em Processo Criminal vigora no que respeita à apreciação da prova, e que é o da sua livre apreciação pelo julgador, princípio que encontra consagração no art. 127° do Cód. Processo Penal, onde exactamente se dispõe que, e salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente - este Tribunal, in casu.
O que não prejudica, como é absolutamente evidente, a exigência de que a condenação de qualquer pessoa pela prática de qualquer crime exija que a convicção positiva do julgador assente numa certeza alicerçada por sua vez em elementos probatórios concretos e seguros o bastante que afastem quaisquer dúvidas sobre essa mesma convicção. Isto é, assentando embora qualquer decisão do julgador penal na sua livre convicção, o processo de formação dessa mesma convicção é em si mesmo vinculado e sujeito a regras — não se trata de livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, antes se realizando de acordo com critérios lógicos e objectivos que determinam uma convicção racional, objectivável e motivável.
Mas isso também não pode, no entanto, significar que seja totalmente objectiva, já que não pode nunca dissociar-se nunca da pessoa do juiz que a aprecia e na qual "desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis - v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova - e mesmo puramente emocionais" (cfr. Figueiredo Dias, "Direito Processual Penal", pág. 205).
Já o Prof. Alberto dos Reis ensinava a este propósito que "o que está na base do conceito é o princípio da libertação do juiz das regras severas e inexoráveis da prova legal, sem que, entretanto, se queira atribuir-lhe o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas. ...o sistema da prova livre não exclui, e antes pressupõe, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica..." ("Código de Processo Civil Anotado — Volume III", pág. 245).
Neste mesmo sentido, defende o Prof. Cavaleiro de Ferreira que o julgador é livre ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório ("Curso de Processo Penal, Vol. II", págs. 297 e segs.).
Mais, o juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova). Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência (cfr. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal, Vol. II", págs. 111 e seg.).
Relativamente ao facto do Tribunal a quo considerar como válidas parcialmente  depoimentos e declarações cabe no exercício de um direito/dever, a saber, do art.° 127.° do C.P.Penal: " o juiz não tem que aceitar ou recusar cada um dos depoimentos  na globalidade, cabendo-lhe a difícil tarefa de dilucidar em cada um deles o que lhe  merece crédito. - Ac. Rel. Porto, de 2009-06-17 (Rec. n° 229/ 06.8TAMBR.P1, rel.  Borges Martins, in www.dgsi.pt).
As provas para sustentar a alteração dos factos são todos os documentos juntos aos autos, quer ainda os depoimentos de AC, FMV, RL - este último depoimento muito importante no sentido de sustentação desta nossa decisão -, IA (parcialmente) e deduções lógicas e raciocínios que fomos fazendo e/ou subscrevendo.
Por outro lado, no que respeita aos documentos constantes dos autos os mesmos  não têm de ser mostrados/exibidos em audiência, como é jurisprudência pacífica (valendo a argumentação para os factos imputados aos arguidos):  "1 - As provas constituídas por documentos juntos aos autos são provas que, forçosamente, estão presentes na audiência e submetidas ao contraditório, sem necessidade de serem lidas na mesma audiência, já que as partes têm conhecimento do seu conteúdo. - Embora a leitura de depoimento prestado por deprecada perante o juiz, na forma legal, possa ser lido na audiência de julgamento, nada obriga a que o seja." (Ac. STJ de 23 de Março de 1994, proc. 46218/3.a);
"A prova documental junta ao processo não carece de ser lida em audiência, embora o possa ser, por ser do conhecimento das partes e poder ser objecto de contraditório." (Ac. STJ de 9 de Novembro de 1994; proc. 46600/ /3.a);
"Não são inconstitucionais os normativos do art. 355. ° do CPP, interpretados no sentido de que os documentos juntos aos autos não são de leitura obrigatória na audiência de julgamento, considerando-se nesta produzidos e examinados, desde que se trate de caso em que a leitura não seja proibida. "(Ac. do Trib. Constitucional n.° 87/99, de 10 de Fevereiro, proc. n.° 444/98; DR, II série, de 1 de Julho de 1999)".
Sobre a intenção criminosa dos arguidos chamamos à colação que a prova sobre o elemento subjectivo de um crime nem sempre é de apreensão directa.
No que diz respeito à intenção criminosa terá de atender-se que: "os actos interiores (ou "factos internos" como lhes chama Cavaleiro de Ferreira), que respeitam à vida psíquica, a maior parte das vezes não se provam directamente, mas por ilação de indícios ou factos exteriores (Germano Marques da Silva, Curso de Proc. Penal,II, pag101)".
De facto, conforme jurisprudência do STJ "os elementos subjectivos do crime pertencem à vida íntima e interior do agente. Contudo, é possível captar a sua existência através e mediante a factualidade material que os possa inferir ou permitir divisar, ainda que por meio de presunções ligadas ao princípio da normalidade ou às regras da experiência comum" (Ac. STJ de 25/09/97 no Processo n° 479/97, citado por Leal Henriques e Situas Santos in Código Penal Anotado I Vol. 2002 p. 224).
Como refere o Acórdão do S.T.J. de 17-03-2004, proc.°03P2612, Relator: HENRIQUES GASPAR in www.dgsi.pt:
"Para avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade (ou impressionismo) da convicção sobre os factos, há que apreciar, de um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão. Relevantes neste ponto, para além dos meios de prova directos, são os procedimentos  lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de uni facto conhecido: as presunções.
A noção de presunção (noção geral, prestável como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos, e por isso válida também, no processo penal) consta do artigo 349° do Código Civil: «presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido».
Importam, neste âmbito, as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido.
As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência; o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. «Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que uni facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência [...] ou de uma prova de primeira aparência». (cfr, v. g., Vaz Serra, "Direito Probatório Material", BMJ, n° 112 , pág. 190).
Em formulação doutrinariamente bem marcada e soldada pelo tempo, as presunções devem ser «graves, precisas e concordantes». «São graves, quando as relações do facto desconhecido com o facto conhecido são tais, que a existência de um estabelece, por indução necessária, a existência do outro. São precisas, quando as induções, resultando do facto conhecido, tendem a estabelecer, directa e particularmente, o facto desconhecido e contestado. São concordantes, quando, tendo todas uma origem comum ou diferente, tendem, pelo conjunto e harmonia, a firmar o facto que se quer provar» (cfr. Carlos Maluf, "As Presunções na Teoria da Prova", in "Revista da Faculdade de Direito", Universidade de São Paulo, volume LXXIX, pág. 207) .
A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção.
A consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre o indício e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção (cfr. Vaz Serra, ibidem).
Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinada facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.
A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros.
A ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.
Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência segundo as regras de experiência, determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões.
A compreensão e a possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação de uma decisão sobre a matéria de facto, quando respeite a factos que só podem ter sido deduzidos ou adquiridos segundo as regras próprias das presunções naturais, constitui um elemento relevante para o exercício da competência de verificação da (in)existência dos vícios do artigo 410°, n° 2, do CPP, especialmente do erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c). - cfr., v. g., o acórdão deste STJ, de 7 de Janeiro de 2004, proc.3213/03.
(...)
A prova de determinados factos que não são directamente apreensíveis in natura, no plano da observação imediata, física e sensorial, só pode ser obtida por aproximações empíricas, permitidas pelas deduções decorrentes de factos ou comportamentos individuais, aceitáveis ou pressupostos pela normalidade de consequências que está suposta pelas regras da experiência e do fluir normal dos acontecimentos e relações." Fim de citação.
A este respeito o JIC signatário não pode olvidar o que já escreveu em duas decisões instrutórias:
«Subscrevemos a tese defendida no Ac. T.R. de Coimbra proferido no âmbito do NUIPC 59/12.0TAGVA.C1, cujo teor passamos a transcrever:
«I.- O direito da liberdade de expressão tem limites.
II.- Há difamação quando o "leitor médio", ao ser confrontado com tais expressões, retira claramente do seu conteúdo um significado de achincalhamento, de rebaixamento, de ataque gratuito e de menorização do bom nome e da reputação pessoal, social e política do assistente. "
A «consideração» refere-se á reputação social de cada um, crédito, bom nome, confiança, estima, reputação e prestígio individual, adquiridos ao longo da sua vida, enquanto aspecto exterior da honra, ou seja, o juízo porque somos tidos pelos outros, o «património social» de cada um, a opinião pública - Cfr. Ac. do STJ n.° 5/96, de 14/03/1996, in DR, I Série-A, de 24-05-1996.
O arguido quis escrever o artigo no Jornal "X..., sabendo que dessa forma ia divulgar o seu teor por número indeterminado de pessoas, o qual veio a ser efectivamente lido por centenas de pessoas, residentes no concelho de G (...) , em Portugal e outras com ligações a G (...), provocando reacções públicas de leitores do mesmo jornal.
Houve assim publicidade da difamação, nos termos do art. 183. ° n. '2, do CP.
A conduta do arguido é pois subsumível à prática do crime de difamação, com publicidade através de meio de comunicação social, p. e p. pelos art. 180. °, n.° 1 e 183.0 n.°2, do CP."
Ou ainda:
"(O direito à liberdade de expressão e crítica tem limites, como decorre do próprio n.° 3 do mesmo art.37. ° da C.R.P, quando estabelece que « as infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal.. ».
Há pois que conciliar o direito à honra e consideração com o direito à crítica, pois um e outro, pese embora sejam direitos fundamentais, não são direitos absolutos, ilimitados.
Em matéria de direitos fundamentais deve atender-se ao princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade, segundo o qual se deve procurar obter a harmonização ou concordância prática dos bens em colisão, a sua otimização, traduzida numa mútua compressão por forma a atribuir a cada um a máxima eficácia possível.
Até onde vai o exercício do direito e quando passa ele a ser ilegítimo? O art.334.° do Código Civil ao estatuir que «é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. ».
Uma definição idêntica não se encontra no Código Penal.
Acompanhando o acórdão da Relação de Coimbra, de 23 de Abril de 1998, diremos que «Há um sentir comum em que se reconhece que a vida em sociedade só é possível se cada um não ultrapassar certos limites na convivência com os outros. (…). Do elenco desses limites ou normas de conduta fazem parte (regras) que estabelecem a "obrigação e o dever "de cada cidadão se comportar relativamente aos demais com um mínimo de respeito moral, cívico e social, mínimo esse de respeito que não se confunde, porém, com educação ou cortesia, pelo que os comportamentos indelicados, e mesmo boçais, não fazem parte daquele mínimo de respeito, consabido que o direito penal, neste particular, não deve nem pode proteger as pessoas face a meras impertinências. ».
Tal interpretação está de acordo com o princípio do mínimo de intervenção do aparelho sancionatório do Estado, que subjaz ao direito penal.
E deste princípio não podemos esquecer-nos na determinação dos elementos objetivos previstos no art. 180. °, n. °1 do Código Penal.
Para a correta determinação dos elementos objetivos do tipo importa atender ao contexto em que os factos ou juízos pretensamente atentatórios da ", honra ou consideração "são produzidos.
Como bem refere o Prof. José Faria Costa «o cerne da determinação dos elementos objetivos (...) tem sempre de [se] fazer pelo recurso a um horizonte de contextualização. Reside, pois, aqui, um dos elementos mais importantes para, repete-se, a correta determinação dos elementos objetivos do tipo.»
Nas sociedades democráticas e abertas, como aquela em que vivemos, o direito à crítica é um dos mais importantes desdobramentos da liberdade de expressão.
Estabelecido que a conduta do arguido é típica cumpre averiguar seguidamente em sede de ilicitude se esta pode ser excluída, designadamente por se verificar a causa de justificação a que alude o nº 2 do art. 180. ° do Código Penal.
O art. 180. ° do Código Penai, estabelece, nomeadamente, com interesse para a decisão da presente questão:
2– A conduta não é punível quando:
a)-A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b)-O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.
3.–Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.° 2 do art. 31. ° o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar de imputação de facto relativo à intimidade da vida provada ou familiar.
4.–A boa fé referida na alínea b) do nº '2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.».
Desta disposição resulta que a conduta não será punível quando a imputação for feita para realizar interesses legítimos e o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira, sendo que a boa fé exige o cumprimento do dever de informação.
A "exceptio veritatis", como causa de exclusão da ilicitude prevista no art. 180.° nºs 2 e 3 do Código Penal, tem lugar através da prova dos factos imputados, não se aplicando à formulação de juízos ofensivos
O «facto», para estes efeitos, é definido, de modo mais ou menos pacífico, como o acontecimento ou situação pertencente ao passado ou ao presente, suscetível de prova.
Já o «juízo de valor» será toda a afirmação contendo uma apreciação sobre o carácter da vítima.
Frequentemente, coexistem na mesma afirmação factos e juízos de valor; quando assim acontece, a maioria da doutrina, entendendo que os juízos de valor se ocultam por detrás de determinados factos, prevalece, para efeitos de qualificação jurídica, a componente fáctica da afirmação
Nos termos do art. 31º n.º 2, al. b) do Código Penal, incluído na Parte Geral, não é ilícito o facto praticado no exercício de um direito.
Esta causa de justificação é de suma relevância nos casos de recusa de aplicação do disposto no art. 180.º, n.º 2 do Código Penal por a conduta difamatória consubstanciar um juízo de valor ou quando o juízo de valor se oculta por detrás de determinados factos.
Nestes casos de conflitualidade entre o direito à honra e o direito de expressão e opinião, como em todos os outros, não deve impedir-se a ponderação entre os valores em conflito, podendo a emissão do juízo considerar-se justificada nos termos gerais previstos no art.31.º, n.º 2, al. b) do Código Penal.
É o que assertivamente se consigna no acórdão n.º 407/2007, do Tribunal Constitucional, quando se afirma, designadamente o seguinte, a propósito do art.31.º n.º 2 al. b) do Código Penal:
«A consideração desta causa de justificação permitirá efetuar o necessário juízo de ponderação, com respeito pelo princípio da proporcionalidade, na resolução do conflito de direitos verificado, cumprindo-se assim as exigências constitucionais em matéria de resolução de conflitos entre a liberdade de imprensa e o direito à honra.
E nessa ponderação, ao abrigo deste dispositivo, não é de excluir totalmente uma apreciação e valoração por parte do julgador, sobre a verdade dos factos que eventualmente se achem subjacentes à exteriorização daquele juízo de valor, especialmente nos casos em que a par de juízos valorativos se imputam factos que se achem em relação de causa e efeito com aqueles. Para o juiz poderá ser decisivo, no seu “julgamento "sobre a verificação da causa de justificação da alínea b) do n. ° 2, do artigo 31. °, do C.P., a circunstância de os juízos valorativos ofensivos se basearem ou não em factos verídicos (vide, neste sentido, os acima citados acórdãos da Relação de Lisboa de 18-5-2005, e da Relação de Coimbra, de 22-6-2006). (..) A decisão recorrida, apesar de considerar inaplicável à formulação de juízos de valor o tipo justificador previsto no n ° 2, do artº 180° do C.P., não inviabilizou a necessidade de ponderar se esse juízo não se encontrava justificado pelo cumprimentas das finalidades da imprensa, no exercício da sua função pública, no âmbito da aplicação do art°31°, n° 2, b), do C.P., tendo efetuado tal ponderação. (...) Daqui decorre que a interpretação normativa adotada pela decisão recorrida não viola a exigência constitucional de que os direitos à liberdade de imprensa e à honra sejam conciliados através duma operação de harmonização proporcional, uma vez que não considera que o art.180°, n°2, do C.P., seja a única norma, no plano do direito infraconstitucional, convocável para julgar se os juízos de valor ofensivos da honra duma pessoa se possam traduzir no exercício do direito de liberdade de imprensa, tendo-se socorrido do disposto no art.31 °, n°2, b), do C.P., para efetuar essa ponderação.»
O art. 183.°, n. °2 do Código Penal, respeitando à «publicidade e calúnia», estabelece uma agravação das penas - com prisão até 2 anos ou multa não inferior a 120 dias se o crime for cometido através de meio de comunicação social.
Por sua vez, o art. 30. ° n. º2 da Lei n.° 2/99, de 13 de janeiro, que aprovou a Lei de Imprensa estabelece que «Sempre que a lei não cominar agravação diversa, em razão do meio de comissão, os crimes cometidos através da imprensa são punidos com as penas previstas na respetiva norma incriminatória, elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.»
Estando em causa um crime de abuso de liberdade de imprensa, os recorrentes chamam ainda à colação os artigos 1º,  n. °1 e 14. ° n.º 2 da Lei n.º 1/99, de 1 de janeiro, que aprovou o Estatuto do Jornalista.
O art. 1°, da Lei n.°1/99, de 1 de janeiro, limita-se a definir o que é um jornalista, estabelecendo que «São considerados jornalistas aqueles que, como ocupação principal, permanente e remunerada, exercem com capacidade editorial funções de pesquisa, recolha, seleção e tratamento de factos, notícias ou opiniões, através de texto, imagem ou som, destinados a divulgação, com fins informativos, pela imprensa, por agência noticiosa, peia rádio, pela televisão ou por qualquer outro meio eletrónico de difusão.».
O art. 14.º, n.º 2, estabelece, por sua vez, que «São ainda deveres dos jornalistas: a)- Proteger a confidencialidade das fontes de informação na medida do exigível em cada situação, tendo em conta o disposto no artigo 11. °, exceto se os tentarem usar para obter benefícios ilegítimos ou para veicular informações falsas; b)- Proceder à retificação das incorreções ou imprecisões que lhes sejam imputáveis; c)- Abster-se de formular acusações sem provas e respeitar a presunção de inocência; d)- Abster-se de recolher declarações ou imagens que atinjam a dignidade das pessoas através da exploração da sua vulnerabilidade psicológica, emocional ou física; e)- Não tratar discriminatoriamente as pessoas, designadamente em razão da ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual; f)- Não recolher imagens e sons com o recurso a meios não autorizados a não ser que se verifique um estado de necessidade para a segurança das pessoas envolvidas e o interesse público o justifique; g)- Não identificar, direta ou indiretamente, as vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, contra a honra ou contra a reserva da vida privada até à audiência de julgamento, e para além dela, se o ofendido for menor de 16 anos, bem como os menores que tiverem sido objeto de medidas tutelares sancionatórias; h)- Preservar, salvo razões de incontestável interesse público, a reserva da intimidade, bem como respeitar a privacidade de acordo com a natureza do caso e a condição das pessoas; i)- Identificar- se, salvo razões de manifesto interesse público, como jornalista e não encenar ou falsificar situações com o intuito de abusar da boa fé do público; j)- Não utilizar ou apresentar como sua qualquer criação ou prestação alheia; i)- Abster-se de participar no tratamento ou apresentação de materiais lúdicos, designadamente concursos ou passatempos, e de televotos».
Embora não invocada pelos recorrentes é da maior importância para a interpretação do tipo penal em causa a Lei n.° 2/99, de 13 de Janeiro, que aprovou a Lei de imprensa.
No seu art. 1.° garante a liberdade de imprensa, abrangendo nela o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações. E no seu art. 3.° estabelece que a mesma «... tem como únicos limites os que decorrem  da Constituição e da lei, de forma a salvaguardar o rigor e a objetividade da informação, a garantir os direitos ao bom nome, à reserva da intimidade da vida privada, à imagem e à palavra dos cidadãos e a defender o interesse público e a ordem democrática.»
Os limites da praxis jornalística têm sido definidos de forma bastante generosa pelo TEDH. Desde que a peça não constitua um ataque pessoal gratuito, o tribunal maximiza a liberdade de expressão dos jornalistas. O direito de informar questões de interesse geral parece estar apenas condicionado peia obrigação de os jornalistas agirem de boa-fé, com base em factos exatos, de modo a fornecerem informações fiáveis e precisas no respeito pela ética jornalística, " (sublinhados e negritos nossos)." (sic).
Quanto ao crime de violação do segredo de justiça, corrobora-se o aduzido nos artigos 155.°, 157.°, 158.° e 159.° do RAI, que infra se transcreve:
«
155.º
Ora, determina Acórdão da Relação de Lisboa de 03-10-1989 que "Não comete o crime de violação do segredo de justiça, do artigo 419° do Código Penal (1982 - hoje, artigo 3711, a pessoa que, por meios diversos da consulta dos autos criminais, ou de uma cópia não autorizada, divulga factos que estejam a ser apurados em processo ainda em fase secreta, se deles tiver tido conhecimento por meios lícitos, como o são a audição não proibida do próprio arguido ou dos declarantes ou das testemunhas desse processo, pessoas estas que, por natureza, não estão obrigadas a esse mesmo segredo de justiça".
157.º
No mesmo sentido decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa ao declarar que "Não se pode dizer, que comete o crime de violação de segredo de justiça uma pessoa que, em virtude da consulta dos autos criminais, divulga factos, que estejam a ser apurados em processo ainda em fase secreta, se deles tiver tido conhecimento por meios lícitos, como o são a audição não proibida do próprio arguido, dos declarantes ou das testemunhas desse processo, pessoas estas que, por natureza, não estão obrigadas a esse segredo de justiça".
158.º
Sob este aspeto, entendemos, tal como o Conselheiro Maia Gonçalves que perante a expressão "quem ilegitimamente", utilizada no n.° 1 do referido artigo 371.° e os direitos consignados no estatuto do jornalista, este só pode ser punido pelo crime de violação de segredo de justiça quando se demonstre que recorreu a meios ilícitos ou fraudulentos para obter a informação que veio a divulgar, o que, no caso, não se mostra comprovado ou sequer alegado por parte do MP.
159.º
Na verdade, "conforme é entendimento pacífico, o secretismo processual não abrange a investigação jornalística sobre os crimes objeto dos processos, podendo os jornalistas socorrer-se das fontes que deles têm conhecimento, até porque aqueles, na maior parte dos casos, são acontecimentos que revestem publicidade"» (sic).
Consequentemente, não há elementos subjectivos do crime de violação do segredo de justiça.
Igualmente se concorda com o constante do artigo 169.° do RAI em apreciação e que infra se transcreve:
«
169.º
Para além do mais, "assiste-se, com frequência, a iniciativas de dupla via, em que os interessados intervêm simultaneamente no processo e nos media; no primeiro, para sustentarem os seus direitos; nos segundos, para amplificarem o impacte da denúncia ou para anularem ou diluírem reações de reprovação social”(cfr. Cunha Rodrigues, in "Justiça e comunicação social", in "Revista Portuguesa de Ciência Criminal", Coimbra, Ano 7, fasc.4, Out.-Dez,1997).» (sic).
Pelas razões indicadas nos pontos 184.° a 220.° do RAI, que corroboramos, e que são do seguinte teor:
«
184.º
Vem o MP imputar aos arguidos a prática do crime de desobediência por referência ao n° 4 do artigo 88° do CPP.
185.º
Preceitua o artigo 88.° n.°1 do CPP que1. É permitida aos órgãos de comunicação social, dentro dos limites da lei, a narração circunstanciada do teor de atos processuais que se não encontrem cobertos por segredo de justiça ou a cujo decurso for permitida a assistência do público em geral”.
186.º
Por sua vez, o n.° 4 do art. 88.° do CP dispõe que "Não é permitida, sob pena de desobediência simples, a publicação por qualquer meio, de conversações ou comunicações intercetadas no âmbito de um processo, salvo se não estiverem sujeitas a segredo de justiça e os intervenientes processuais expressamente consentirem na sua publicação."
187.º
O disposto previsto no n.° 4 do art. 88º do CP pretende tutelar o direito à reserva da vida privada e evitar a devassa, pelo que, se impõe, sopesar esse interesse individualmente protegido como garantia constitucional do direito à informação e liberdade de imprensa, também ele pedra-de-toque do nosso ordenamento jurídico jurídico-constitucional.
188.º
Nesta senda, torna-se relevante saber se o conteúdo emitido na reportagem em causa nos presentes autos, encontra ou não acolhimento no tipo legal imputado aos Arguidos nos presentes autos.
189.º
O objetivo do legislador ao introduzir o referido n.° 4 do art. 88.º do CP foi "render "homenagem ao direito à palavra" e "impedir a devassa".
190.º
Pelo que, entende-se que o jornalista que, sem consentimento do escutado, cita uma escuta telefónica ouvida ou lida em audiência de julgamento aberta ao público ou sem o consentimento do escutado, comete o crime de desobediência.
191.º
Conforme resulta claramente da lei, esta proibição aplica-se em todas as fases do processo, e a violação desta proibição tem como consequência a punição a título de desobediência simples, que nos remete para o art. 348.° do CP, no que concerne à moldura penal correspondente.
192.º
Na verdade, e em consonância com o art. 348.° do CP, o dever de obediência tem uma de duas fontes: uma disposição legal que comine a sua punição ou, na ausência desta, que a correspondente cominação seja feita pela autoridade competente para ditar a ordem ou mandato, respetivamente, alíneas a) e b).
193.º
In casu, existe até uma norma expressa que comina como crime de desobediência a alegada atuação, isto é, o art. 88.° do CPP, conforme citado supra.
194.º
No entanto, no caso em apreço, o teor de atos processuais transmitido não devassou a vida privada dos suspeitos ou comprometeu a sua presunção de inocência a qual está assegurada dentro do Processo e não obsta a que cada cidadão tenha a sua livre interpretação/ liberdade de expressão.
195.º
Os conteúdos divulgados que alegadamente correspondem a interceções telefónicas, não respeitava ao foro íntimo dos intervenientes, mas apenas, tinham relação direta às práticas criminosas pelas quais se encontravam indiciados.
196.º
Além disso, contrariamente ao que o MP alega, não estamos perante uma reprodução na aceção da lei.
197.º
Foram transmitidas informações com interesse publico apuradas no âmbito de uma investigação jornalística após a confirmação e cruzamento das mesmas através de fontes diversificadas.
198.º
Sendo de sublinhar que, a divulgação da informação em crise era essencial, por um lado, (i) à credibilidade da notícia e, por outro, à (ii) aproximação do público ao caso.
199.º
E a verdade é que, da sua transmissão não resultou qualquer consequência/dano.
200.º
Contudo, o elemento subjetivo do crime em causa não se encontra preenchido.
Senão vejamos,
201.º
No crime de desobediência, para que o elemento subjetivo do ilícito se verifique, é necessário que o agente tenha consciência, neste caso, de que a reportagem emitida consubstanciava um ilícito penal, mais concretamente, um crime de desobediência e, apesar disso, tenha querido tal divulgação (dolo direto) ou tendo previsto ser proibida a alegada reprodução e exibição de peças processuais, não se inibiu de atuar como atuou, conformando-se com o resultado da sua conduta (dolo eventual).
Assim sendo,
202.º
A desobediência negligente não é punível, sendo de exigir dolo, sob qualquer das suas formas (cfr. arts. 13.° e 14.° do CP).
Senão vejamos:
a)- Do elemento subjetivo:
203.º
No crime de desobediência, por conseguinte, o tipo doloso preenche-se sempre que alguém incumpre, consciente e voluntariamente, uma "ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente".
Contudo,
204.º
Para se verificar o dolo, seria antes de mais, necessário que os Arguidos tivessem conhecimento de que a emissão da reportagem era proibida e, apesar disso, tenham querido tal emissão, o que de facto, não ocorreu, conforme já supra mencionado.
205.º
Contrariamente ao que consta da Acusação, não corresponde à verdade que "os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal".
206.º
O CP exige a verificação de uma atuação dolosa para haver dedução de Acusação, bem como ter havido anteriormente diligências necessárias que apurem se houve dolo ou não.
207.º
Ou seja, seria necessário imputar aos Arguidos, o preenchimento do elemento subjetivo do tipo de crime por que vêm acusados.
208.º
Bem como, as diligências realizadas em sede de inquérito que demonstrassem o inconfundível preenchimento desse mesmo elemento.
209.º
A Acusação menciona no seu ponto 18 que "sabendo que não estavam autorizados a publicar e divulgar o conteúdo de ato processual e de intercetações telefónicas, ainda assim, não se abstiveram de no programa televisivo "Investigação CM …" reproduzir o conteúdo de parte das interceções telefónicas (...)"
210.º
Mas o que é facto, é que não o demonstra ou prova.
211.º
De facto, seria impossível fazê-lo, por na realidade não terem os Arguidos atuado dolosamente, em qualquer uma das formas do dolo direto, necessário ou eventual, mas convictos que estavam a agir ao abrigo do seu legitimo direito a informar.
212.º
O MP não logrou sequer apurar a forma como os arguidos tiveram acesso a informações que alegadamente constavam do sobredito Processo.
213.º
Dos elementos recolhidos pelo MP não resulta sequer qual a intervenção/papel dos arguidos na reportagem em questão.
214.º
Verifica-se assim uma manifesta ausência de produção de prova em sede de inquérito, cuja finalidade, é apurar os factos que poderão consubstanciar o tipo de crime em causa, chegando-se à Acusação se deles resultarem indícios suficientes de se ter verificado o crime em questão.
215.º
O elemento subjetivo consubstancia-se na demonstração de que os arguidos tinham consciência de que as informações transmitidas poderiam alegadamente corresponder a passagens de interceções nas comunicações - eram proibidas e ainda assim tenham querido transmiti-las ou, não se tendo inibindo de atuar como atuaram, conforme-se com o resultado da sua conduta - o que não ficou provado pelo MP (ou sequer alegado).
216.º
Em bom rigor, o MP nem sequer alega ou prova a quem coube a decisão da transmissão da sobredita informação nem tampouco que os arguidos tinham ou não conhecimento de que o conteúdo divulgado poderia alegadamente corresponder a supostas interceções telefónicas no âmbito da reportagem em crise - uma vez que os mesmos nunca consultaram os autos.
217.º
Ainda que os arguidos tivessem tido a decisão quanto à divulgação das mesmas - o que não se concede - não significa que os mesmos teriam tido plena consciência que estariam a praticar um crime.
218.º
Na verdade, a intenção foi, ao abrigo da liberdade de imprensa, dar a conhecer os contornos de um processo polémico e de interesse público.
219.º
Nunca os arguidos tiveram intenção de praticar um crime.
220.º
Assim, não estando preenchido o elemento subjetivo do crime de desobediência não pode ser imputado aos Arguidos a prática do crime pelo qual vem acusado, impondo-se o despacho de NÃO PRONÚNCIA.» (sic).
Entendemos, assim, que também não há crime de desobediência.
Aliás, subscrevemos, na íntegra, o propugnado pelos arguidos no tocante à exclusão da ilicitude por exercício dos direitos de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa, constante dos artigos do RAI que se pede licença para transcrever infra, para melhor compreensão:
«
221.°
Dispõe a Declaração Universal dos Direitos do Homem ("DUDH"), no seu artigo 19.°, que "Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e procurar, receber e difundir, sem considerações de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão."
222.º
Idêntico direito prevê a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que no n.° 1, do artigo 10°, estabelece que, "Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem consideração de fronteiras. O presente artigo não impede que os estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia."
223.º
Existe atualmente uma jurisprudência consolidada do TEDH sobre o alcance deste direito e, em particular, sobre as restrições que o n.° 2 do art. 10.° da CEDH permite, à luz da legislação processual penal vigente entre nós.
224.º
Resulta desta jurisprudência que só são admissíveis restrições à liberdade de expressão se as mesmas (i)- estiverem expressamente previstas na Lei; (ii)- se tiverem por objetivo a obtenção dos fins legítimos enumerados no n.° 2 do artigo 10.° da CEDH e; (iii)- se forem necessárias, numa sociedade democrática, para se alcançarem estes fins.
226.º
O TEDH tem decidido uniformemente que "a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e que as garantias a conceder à imprensa revestem-se pois de uma importância particular" (sentença proferida no processo Campos Dâmaso C... Portugal).
CONTINUANDO A CITAR O MESMO ARESTO,
227.º
"Ponto 30. A imprensa desempenha um papel eminente numa sociedade democrática: se ela não deve ultrapassar certos limites tendentes nomeadamente à proteção da reputação e dos direitos de outrem bem como à necessidade de impedir a divulgação de informações confidenciais, incumbe-lhe, todavia, comunicar, no respeito dos seus deveres e responsabilidades, informações e ideias sobre qualquer questão de interesse geral (Tourancheau e July, supra, § 65).
Ponto 31. Em particular, não seria de pensar que as questões de que os tribunais se ocupam não pudessem, antes ou simultaneamente, dar lugar a discussão noutro local, seja em revistas especializadas, na grande imprensa ou no público em geral. A função dos meios de comunicação social de comunicar informações e ideias acresce o direito, para o público, de as receber. (Tourancheau e July, supra, § 66). Como o Tribunal já sublinhou, «os jornalistas, quando se pronunciem sobre processos penais pendentes, devem (SENTENÇA CAMPOS DÂMASO C. PORTUGAL) ter presente que os limites do comentário admissível podem não abranger declarações que, intencionalmente ou não, possam pôr em risco o direito de uma pessoa beneficiar de um processo equitativo ou de minar a confiança do público no papel dos tribunais na administração da justiça penal» (ibidem; Worm, supra, §50)."
230.º
Assim, dispõe ainda o n.° 1, do artigo 19°, do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, que: "Ninguém, pode ser inquietado pelas suas opiniões" e o seu n.° 2, que "Toda e qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão; este direito compreende a liberdade de procurar, receber e expandir informações e ideias de toda a espécie, sem consideração de fronteiras, sob a forma oral ou escrita, impressa ou artística, ou por qualquer outro meio à sua escolha."
231.º
Também a nossa CRP, no artigo 27° prevê que, "Todos têm direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações."
232.º
Para além disso, dispõe ainda o n.° 2, daquele artigo que, "O exercício destes direitos
não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura."
SIMULTANEAMENTE,
233.º
O n.° 1, do artigo 38° da CRP, por sua vez, garante a "liberdade de imprensa", concretizada no n.° 2 pela "liberdade de expressão e criação dos jornalistas e colaboradores.
234.º
Ao passo que prevê o Estatuto do Jornalista, no seu artigo 6° que, "constituem direitos fundamentais dos jornalistas, entre outros a Liberdade de Expressão."
235.º
Ora, "A liberdade de imprensa abrange o direito de informar e de ser informado, tal como resulta do art. 1° n°2 da Lei de Imprensa, n° 2/99 de 13/1, tendo como únicos limites os que decorrem da Constituição e da lei (art° 3°), de forma a salvaguardar o rigor e a objetividade da informação, a garantir os direitos ao bom nome, a reserva da intimidade da vida privada, a imagem e a palavra dos cidadãos e a defender o interesse público e a ordem democrática "
247.º
No processo PINTO COELHO VS. PORTUGAL, na sua decisão de 28 de novembro de 2011, entendeu o TEDH que, pese embora vigorar o segredo de justiça, o dever de informar e a Liberdade de Imprensa, no caso concreto deveriam prevalecer, uma vez que não foi alegado ou provado que a revelação da informação sujeita a segredo, tivesse causado qualquer dano à investigação, e como tal, tratou- se de uma restrição que não era "necessária".
248.º
Não perdendo de vista a proporcionalidade exigível, se os jornalistas não tiveram contacto direto com o processo e se o conhecimento foi obtido por meios lícitos, considerar que os Arguidos cometeram crime de violação de segredo de justiça, é ultrapassar a fronteira da proporcionalidade e entrar no campo da restrição ilegítima de um direito constitucionalmente consagrado.
254.º
A jurisprudência e a Doutrina têm defendido que, o direito à informação comporta três limites essenciais: (i)- O valor socialmente relevante da notícia; (II) A moderação da forma de a veicular; e (ii)- A verdade, que deve ser medida através da objetividade, seriedade das fontes, isenção e imparcialidade do seu autor, de forma a evitar manipulações, as quais são rejeitadas pela própria deontologia profissional- cf. neste sentido, Ac. STJ de 26.02.2004, CJ/STJ 2004, t.1, 74-80.
255.º
Antes de mais, o direito (do público) a ser informado tem de circunscrever-se aos atos e acontecimentos que sejam relevantes para o seu viver social - é a chamada utilidade social da notícia.
256.º
Sendo este um caso singular, em que estão em causa figuras públicas de relevo, a quem alegadamente foram imputados factos graves é natural que vários órgãos de informação da comunicação social venham revelar informações de idêntica natureza, caindo no domínio público.
257.º
Seguindo o ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, "parece de exigir que, no exercício da sua atividade, a imprensa tenha atuado com o civismo ou a intenção (ou menos imanente ou implícita) de cumprir a sua função pública e, assim, de exercer o seu direito e dever de informação; ou que ao menos não esteja em concreto excluído ter sido um tal cumprimento o motivo da sua atuação."» (sic).

Por todas estas razões decido pela não pronuncia dos arguidos, determinando-se o arquivamento dos autos.
Notifique e D.N.
Oportunamente, arquivem-se os autos.»
*

II.2.2.–Na situação dos autos, a decisão recorrida é, como se viu, de não pronúncia, após ter sido aberta instrução a requerimento dos arguidos, na sequência da acusação pública, cujo teor julgamos útil transcrever:
«1.–A sociedade C___ media SA… tem sede na Rua……, em Lisboa, sendo detentora do CM TV, CM e RS.
2.–A arguida AA…… celebrou, a 11 de Maio de 2021, um contrato de prestação de serviços com a C___M___, SA onde se obrigou a prestar colaboração a produção de trabalhos inéditos de investigação e de sua autoria, nomeadamente a exibição de peças que o integram e as sucessivas retomas dos conteúdos, com a presença em estúdio.
3.–O arguido BB......, jornalista, é subdirector do Jornal CM e da CM TV desde data anterior a 1 de Setembro de 2021.
4.–O inquérito com NUIPC nº 9180/18.8T9LSB corre termos no DIAP Regional de Lisboa, visando a investigação de crimes de participação económica em negócio, violação de regras urbanísticas por funcionários, entre outros.
5.–O referido inquérito foi submetido a segredo de justiça, por despacho datado de 15 de Novembro de 2018, validado pelo meritíssimo Juiz de instrução por despacho datado de 16 de Novembro de 2018.
6.–Por despachos proferidos a 23 de Dezembro de 2019 e 30 de Março de 2020, foi prorrogada a submissão dos autos a segredo de justiça, tendo tais despachos sido objeto de validação do meritíssimo Juiz de instrução a 2 de Janeiro de 2020 e 30 de Março de 2020.
7.–No âmbito do referido inquérito foram desenvolvidas, entre outras as seguintes diligências/atos processuais:
a)-intercetações telefónicas…..- e ……….-, relatórios referentes às mesmas e sua transcrição, donde constam as seguintes:
……….
b)-Auto de diligência onde se consigna que os indivíduos em investigação nos autos estiveram presentes num evento organizado a 19 de Dezembro de 2019, no estabelecimento comercial …….;
c)-buscas não domiciliárias por despacho proferido pelo Magistrado do Ministério Público titular dos autos:
…… .
d)-buscas domiciliárias ordenadas pelo meritíssimo Juiz às residências de …… .
8.–A arguida AA...... teve, por modo não apurado, acesso a informações relativas ao conteúdo de atos processuais constantes do inquérito com o NUIPC nº 9180/18.8T9LSB, nomeadamente ao conteúdo do despacho que promoveu a realização de buscas às……, bem como ao teor de intercetações telefónicas realizadas a …… .
9.–Apesar de ter conhecimento que o referido inquérito se encontrava a correr a coberto do segredo de justiça, a arguida determinou-se a violá-lo, divulgando, notícias que descreviam o conteúdo de atos processuais ordenados no processo, indiferente aos efeitos que essa publicação causaria aos visados da investigação, aos interesses da investigação, nomeadamente à dissipação de prova por parte dos visados ou à perturbação da recolha da prova que se pretendia com tais diligências.
10.–Assim, a arguida, na qualidade de jornalista, elaborou e fez publicar no Jornal CM os seguintes textos jornalísticos:
a)-No dia 2 de Setembro de 2021, foi publicada NA CAPA a manchete “VEREADOR DE LISBOA APANHADO EM ESCUTAS”, com a fotografia de….. e os textos: “……, sucessor de ……, promete prioridade a investidor” e “PROMOTOR PERGUNTA A EMPREGADO COMO PODE DAR OFERTAS EM DINHEIRO DE FORMA CONFIDENCIAL E SEM DEIXAR RASTO”.
b)-Na página 12 constava o seguinte título “Escutas comprometem vereador de Lisboa” e o texto: “…… o atual vereador do Urbanismo que substituiu ……, prometeu dar prioridade aos processos que envolvem um grande promotor imobiliário a …… Isso mesmo consta de escutas feitas pela Polícia Judiciária, durante a investigação que está a ser feita no âmbito da Operação Integrada de Entrecampos que abrange os terrenos da antiga feira popular, a âncora de um ambicioso projeto urbanístico que implicou anexar cerca de 3 hectares de arruamentos de Lisboa. As escutas em causa mostram uma teia de cumplicidades na …… que poderá ter sobrevivido ao tempo de ……, que juntamente com ……, o ex-diretor municipal do Urbanismo, controlava as grandes obras de Lisboa.
……, CEO da ……, funcionava como um desbloqueador dentro da autarquia, com contatos privilegiados nos departamentos do vereador ...... que terá conseguido manter já depois da saída do arquiteto.
Nas escutas percebe-se que essa influência alargava-se a todos os funcionários que trabalhavam com…… aos quais a qualquer hora do dia telefonava ou enviava SMS a solicitar informações para processos seus ou de amigos, nomeadamente para que fossem rapidamente despachados. A influência do promotor era tal que chegava ao ponto de dar ordens a funcionários da câmara para favorecer a sua empresa ou de amigos seus. Com frequência era abordado por amigos e familiares que tinham projetos pendentes na câmara, para que desbloqueasse a situação dos mesmos, já que se encontravam parados. Com a saída do vereador ......, chega a temer a influência que tinha e, por isso, conta com a ajuda de ...... o, ex-diretor do Urbanismo para seduzir o novo vereador ...... Em dezembro de 2019, convida o novo vereador do Urbanismo para o almoço de natal da ...... ……, já depois desse almoço, acaba por ser apanhado em escutas da polícia, a prometer dar prioridade, a partir de janeiro de 2020, aos processos em que ...... estivesse envolvido.
Numa conversa intercetada com um dos filhos, …… fala desse facto, vangloriando-se com um “já ganhei!”. Com um amigo reforça essa mesma ideia, dizendo que para essa vitória terá sido determinante o convite para o almoço. Nessa altura, …… ainda se encontra em funções e por isso pode continuar a contar com a sua ajuda por pouco tempo. ……, ao saber que é …… R.... que irá substituir……., mostra-se preocupado com as mudanças na autarquia. Disso mesmo dá conta noutro telefonema em que refere não serem boas as notícias, porque quem era o seu grande contato era …… e …… Uma chamada telefónica de…… com um funcionário da …… mostra bem até onde o promotor está disposto a ir, quando pergunta como se pode dar ofertas em dinheiro de forma confidencial e sem deixar rasto”
c)-Na página 13 da referida publicação é possível ler ainda:
(....)
d)-No dia 3 de Setembro de 2021, na capa da publicação CM surge a notícia “Urbanismo de Lisboa – Teia sob escuta durante dois anos”.
e)-Na página 8 constava sob a temática “Teia de favores – Teia sob escuta durante dois anos” o seguinte texto:…… .
(....)
f)-Também na mesma página se pode ler:
- PGR confirma inquérito – A Procuradoria-Geral da República confirma a existência do inquérito, mas não adianta se até ao momento já foram constituídos arguidos. O CM sabe, no entanto, que já foram feitas várias diligências para além das escutas, como diversas buscas a residências e gabinetes da autarquia.
(....)
- Suspeitos de troca de favores não falam em código – Para o MP as escutas são bastante claras e esclarecedoras sobre a teia de favores existentes na Câmara Municipal de Lisboa, já que nenhum dos suspeitos foi apanhado a falar em código. Isso mesmo mostra como todos os visados se sentiam impunes, sem nunca colocarem a hipótese de estarem sob escuta”.
g)-Na página 9 pode ler-se:
(....)
h)-No dia 5 de Setembro de 2021, na capa da publicação CM surge a notícia “PJ VIGIA NEGÓCIOS IMOBILIÁRIOS – Ligações perigosas no Urbanismo da Câmara de Lisboa - ……., ex-vereador, apanhado nas filmagens”.
i)-Na página 8 constava sob a temática “PJ vigiou encontros secretos na câmara” o seguinte texto: “Inquérito – Ministério Público considera que filmagens dos suspeitos são meios de prova indispensáveis – Estratégia – Pactos de silêncio na corrupção podem dificultar investigação – Na investigação às suspeitas de alegados atos ilícitos envolvendo a área do Urbanismo da Câmara de Lisboa, o Ministério Público (MP) recorreu, além de escutas, ao registo de voz e imagem de encontros secretos entre os suspeitos e terceiros. Em causa, recorde-se, promessas feitas pela vereação de dar prioridade a projetos envolvendo um grande promotor imobiliário, a ...... .
O MP, considerando todas as investigações em curso e os antecedentes registados envolvendo os mesmos suspeitos, e sabendo da dificuldade na recolha de provas neste tipo de crimes praticados no exercício de funções públicas, considerou indispensável por isso mesmo recorrer ao registo de som e imagem, como meio especial de obtenção de prova. (……)
j)-Ainda na mesma página pode ler-se:
- “Investigação visa o Urbanismo da Câmara de Lisboa – …… .
k)-Na página 9 da mesma publicação pode ainda ler-se:
(....)
11.–Também numa reportagem denominada “A Teia”, exibida no Programa “Investigação CM”, no CM TV, apresentada pelo arguido BB ......, no dia 2 de Setembro de 2021 é dada conta da existência de intercetações telefónicas efetuadas pela Polícia Judiciária a ……– que abrange também os terrenos da antiga Feira Popular de Lisboa.
12.–No decurso da reportagem, por ordem da arguida AA...... – com conhecimento do arguido BB...... - em simulação de intercetação telefónica, surgem referências diretas às seguintes conversações lidas em voz off por indivíduo não identificado:
(….)
13.–Todas estas notícias e reportagem, elaboradas de modo sequencial, foram-no porque pessoa (ou pessoas) cuja identidade não foi possível apurar facultou (facultaram) à arguida AA…... - pelo menos - parte do teor dos despachos, relatórios de intercetações telefónicas, autos de diligência, transcrição de intercetações telefónicas e despachos do Magistrado do Ministério Público do inquérito com NUIPC nº 9180/18.8T9LSB.
14.–Os arguidos AA…… e BB…..., na qualidade de jornalistas, sabiam que lhes estava vedada a reprodução de peças processuais, de documentos incorporados em processos que se encontravam a correr a coberto do segredo de justiça, bem como a divulgação do conteúdo de intercetações telefónicas, mas ainda assim, não se coibiram de divulgar a reportagem “A Teia” na CM TV, no dia 2 de Setembro de 2021.
15.–O arguido BB…..., a quem estavam cometidas funções de subdirector à data dos factos, quer do Jornal CM quer da CM TV teve conhecimento do tratamento e da forma conferida pela arguida AA…... à peça jornalística – até porque narrou o Programa Investigação CM” em momento prévio à exibição da reportagem - e não se opôs a que fosse exibida, sendo certo que o podia fazer como era sua obrigação.
16.–A arguida AA…... redigiu, relatou em off e foi a autora da forma como ilustrou as notícias que foram publicadas no Jornal CM, sabendo ser proibida a reprodução e exibição de peças processuais, bem como do conteúdo de intercetações telefónicas que façam parte de processos em segredo de justiça, conformando-se com o resultado da sua conduta.
17.–A arguida AA…... aproveitou-se da circunstância de ter acesso a documentos constantes do Processo nº 9180/18.8T9LSB para elaborar diversos conteúdos jornalísticos (peças escritas e reportagem), logrando prolongar no tempo a sua conduta, pois já tinha conhecimento dos elementos necessários para esse efeito.
18.–Os arguidos agiram conjuntamente, com o objetivo comum de criar, desenvolver e emitir o programa televisivo em causa, sendo, pois, os seus autores, sabendo que não estavam autorizados a publicar e divulgar o conteúdo de ato processual e de intercetações telefónicas e, ainda assim, não se abstiveram de, no programa televisivo “Investigação CM – A Teia” reproduzir o conteúdo de parte das interceções telefónicas que foram obtidas da forma descrita, tomando conhecimento delas e divulgando-as por um número indeterminado de pessoas que assistiram ao programa em causa, tornado, dessa forma, público o seu conteúdo.
19.–Os arguidos deram a conhecer ao público o conteúdo de ato processual penal, sabendo que estavam proibidos de o fazer, sabendo também que incorriam em responsabilidade criminal, caso desrespeitassem essa proibição, e que essa ordem de proibição era legítima e provinha de Lei.
20.–Os arguidos agiram sempre livre, deliberada e conscientemente.
21.– Bem sabiam os arguidos que as suas condutas eram puníveis por lei penal.
Pelo exposto, incorreram os arguidos, em co-autoria, em concurso efetivo, na prática de:
- a arguida AA…:
- um crime de violação de segredo de Justiça, na forma continuada p. e p. pelos art.ºs 371º e 30º nº2 do Código Penal, por referência ao art.º 86º nº8 al. b) do Código de Processo Penal, ao art.º 30º nº2 da Lei nº 2/99 de 13 de Janeiro e ao art.º 71º nº2 da Lei nº27/2007 de 30 de Julho;
- um crime de desobediência, p. e p. pelos art.ºs 348º nº1 al. a) e 30º nº2 do Código Penal, por referência ao art.º 88º nº4 do Código de Processo Penal, ao art.º 30º nº2 da Lei nº 2/99 de 13 de Janeiro e ao art.º 71º nº2 da Lei nº27/2007 de 30 de Julho;
- o arguido BB:
- um crime de violação de segredo de Justiça, p. e p. pelo art.º 371º do Código Penal, por referência ao art.º 86º nº8 al. b) do Código de Processo Penal e art.º 71º nº2 da Lei nº27/2007 de 30 de Julho;
- um crime de desobediência, p. e p. pelo art.º 348º nº1 al. a) do Código Penal, por referência ao art.º 88º nº4 do Código de Processo Penal e art.º 71º nº2 da Lei nº27/2007 de 30 de Julho;
Prova:
(….)
*

II.2.3.–Apresentados os dados da questão, impõe-se reiterar o que acima ficou dito acerca do âmbito das decisões de recurso.
Com efeito, constitui princípio básico em matéria processual o de que o Tribunal de recurso deve conhecer das questões que sejam submetidas à sua apreciação, isto é, que constituam objecto da impugnação, o qual em processo penal se define e delimita através das conclusões formuladas na motivação de recurso.
Sucede, porém, que tal princípio comporta uma ampliação decorrente dos poderes de cognição do tribunal de recurso.
A ampliação ocorre perante questões que a lei impõe que sejam conhecidas pelo Tribunal de recurso. Trata-se de todas aquelas questões de conhecimento oficioso, ou seja, que o Tribunal tem obrigação de conhecer independentemente de alegação.
Entre essas questões está, obviamente, a própria invalidade da decisão recorrida.
Posto isto, no caso dos autos, antes de mais, impõe-se apreciar um vício de conhecimento oficioso, e cuja procedência prejudica o conhecimento da questão suscitada no recurso, consubstanciando-se tal vício na falta de fundamentação da decisão recorrida.
Estabelece o artigo 286.º do Código de Processo Penal que «a instrução visa a comprovação judicial da existência ou inexistência de indícios em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».
No caso concreto, havendo acusação, o objecto do processo passou a ser definido pela narração típica aí descrita.
Se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz pronuncia o arguido pelos factos respectivos – artigo 308º, nº 1, 1ª parte, do Código de Processo Penal.
Caso contrário, sendo negativo o juízo, seja por virtude de alguma excepção ou vício processual, ou por inexistência dos factos, da sua não punibilidade, irresponsabilidade do arguido ou de insuficiência da prova para a pronúncia, o despacho é de não pronúncia – artigo 308º, n.º 1, parte final, do Código de Processo Penal.
Segundo o artigo 283º, nº 2, do Código de Processo Penal, para o qual remete o nº 2 do citado artigo 308º, «Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança».
A questão que se coloca, em face da decisão instrutória que é objecto do presente recurso, é a de se saber se do despacho de não pronúncia deve ou não constar, sob pena de invalidade, a enumeração dos factos suficientemente indiciados e dos factos não suficientemente indiciados.
E aqui[1]cabe referir que no que concerne à exigência de fundamentação de facto da decisão instrutória e mais especificamente sobre se deve incluir a enumeração dos factos indiciados e não indiciados, bem assim sobre as consequências advenientes de omissão dessa descrição fáctica, a jurisprudência divide-se.
Há quem considere que basta uma narração de forma sintética dos factos indiciados e não indiciados[2], outros que se exige uma enumeração de cada um dos factos indiciados e não indiciados[3], outros ainda que não se justifica a exigência de uma narração completa dos factos suficientemente indiciados e não indiciados quando a decisão instrutória de pronúncia é proferida em instrução requerida pelo arguido[4], e há também quem entenda que não se exige a narração dos factos indiciados e não indiciados[5] ou que não se exige a descrição de quaisquer factos, mas apenas a fundamentação prevista no n.º 4 do artigo 97º do CPP[6].
Quanto às consequências da “deficiência” de “motivação/fundamentação” de facto do despacho de não pronúncia, também existem divergentes posições na jurisprudência, sendo várias as soluções jurídicas apontadas: nulidade insanável de conhecimento oficioso[7], nulidade sanável dependente de arguição perante o tribunal a quo[8], irregularidade de conhecimento oficioso do artigo 123º, n.º 2 do Código de Processo Penal[9], mera irregularidade[10].
Como resulta do artigo 205º, n.º 1, da Constituição da República,  «As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei», conferindo assim ao legislador ordinário a conformação desse princípio basilar do Estado de Direito Democrático.
Esta exigência de fundamentação das decisões judiciais cumpre, como é sabido, várias funções. Visa, antes de mais, assegurar o controlo externo dessas decisões, comunicando aos demais sujeitos e intervenientes processuais as razões (de facto e de direito) pelas quais o Tribunal decidiu da forma como o fez, de modo a poderem ajustar correspondentemente a sua posterior intervenção no processo, mas também permitir aos Tribunais Superiores, em caso de recurso, sindicar se a decisão tomada é fundada, do ponto de vista fáctico como jurídico, e nessa medida obrigando também o Tribunal que a profere a uma actividade de autocontrolo sobre o teor e o sentido da mesma.
Tal exigência constitucional de fundamentação das diferentes decisões judiciais determina-se, assim, tendo em consideração as indicadas funções, variando o grau exigido de acordo com as matérias e relevância das decisões em causa, o que é claramente evidente no Código de Processo Penal na diferença de requisitos integradores daquela exigência constitucional quanto às sentenças, aos despachos e aos despachos de mero expediente.
Sendo o despacho de não pronúncia um acto decisório do juiz está sujeito ao dever geral de fundamentação do artigo 97º, n.º 5 do Código de Processo Penal, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão, de forma a permitir a sua impugnação e o reexame da causa pelo tribunal de recurso.
Ainda que de forma remissiva, não pode o Juiz de instrução deixar de expor as razões de facto e de direito do despacho de pronúncia ou de não pronúncia – artigo 307º, nº 1, in fine, aplicável por remissão do artigo 308º, nº 2, in fine, do Código de Processo Penal.
Acresce que por força da remissão do nº 2, in fine, do citado artigo 308º, para o disposto no artigo 283º, nº 3, do Código de Processo Penal, o despacho de não pronúncia, por se tratar de despacho final do processo, tem de conter no mínimo a enumeração autónoma e perceptível, ainda que sintéctica, dos factos considerados não suficientemente indiciados.
Realce-se, entretanto, que a fixação da factualidade suficientemente indiciada ou não suficientemente indiciada, não só é fundamental para delimitar os poderes de cognição do Juiz de Instrução ao proferir o despacho de pronúncia ou não pronúncia, nos termos do citado artigo 308º, como é também é essencial para a determinação dos efeitos do caso julgado da decisão final de não pronúncia quando esta assenta na não verificação dos pressupostos materiais de punibilidade do arguido.
Neste sentido, como se afirma no Acórdão do TRP de 22-09-2021 (relatado por Pedro Vaz Pato), «o despacho de não pronúncia configura uma decisão de mérito que tem força vinculativa dentro e fora do processo onde foi proferida, constituindo caso julgado e só mediante recurso de revisão poderá ser reaberta a discussão sobre os factos a que é relativo. Para se definir o alcance desse caso julgado, é óbvio que deverão ser descritos os factos que não se consideram suficientemente indiciados (porque é em relação a eles que não poderá ser reaberta tal discussão).»
Daí que, o despacho de não pronúncia, pela não verificação dos pressupostos materiais de punibilidade do arguido, como sucede no caso concreto, tem de conter no mínimo a enumeração autónoma e sistematizada, ainda que sintéctica, de forma perceptível, dos factos considerados não suficientemente indiciados, indicando os respectivos fundamentos ou motivação.
Importa saber quais os factos da acusação que se entenderam suficientemente indiciados e, na análise dos elementos de prova recolhidos, por que razão e quais os factos em que se verificou o contrário e porquê, sendo que para tanto não basta a mera invocação, quiçá com reprodução, do texto da legislação aplicável, ou a utilização de fórmulas de carácter genérico e/ou conclusivo.
Sucede, por vezes, em acusações mais simples que bastará dizer que por esta e aquela razão relativa aos elementos de prova o facto central não resultou suficientemente indiciado, por exemplo um murro numas ofensas à integridade física, e que por isso se profere despacho de não pronúncia, sendo perfeitamente compreensível e sindicável a razão da decisão.
Noutros casos, mais complexos, a falta de indicação de todos ou, pelo menos, da parte essencial dos factos indiciados e não indiciados, seja por enumeração directa ou apenas por remissão, poderá tornar muito difícil ou até impossível a compreensibilidade e a sindicância da decisão pelo tribunal superior.
Seja como for, o despacho de pronúncia ou de não pronúncia, deve conter, ainda que forma sintéctica, os factos que permitem chegar à conclusão de suficiência ou insuficiência da prova indiciária.
Estando o Tribunal de recurso impedido de sindicar a decisão de não pronúncia por fundamentação deficiente da motivação de facto, verifica-se um vício daquela.
Como se dá nota desenvolvidamente nos Acs. do TRP de 01.07.2015 (processo nº 3321/12.6TDPRT.P1) e de 17.05.2023 (processo nº 233/20.3T9MTS.P1) - acessíveis in www.dgsi.pt -, a jurisprudência divide-se quanto à qualificação do vício em questão.
Em nossa opinião, ressalvando sempre o devido respeito por opinião diversa, é de seguir a posição, segundo a qual a falta de fundamentação em apreço, traduzida na falta de indicação/enunciação, de forma perceptível, dos factos que o tribunal considerou suficientemente indiciados e aqueles que assim não considerou, reconduz-se a uma mera irregularidade, ainda que de conhecimento oficioso.
De facto, tal solução decorre do princípio da legalidade que vigora no regime geral das nulidades em processo penal, segundo o qual, só são nulos os atos que, sendo praticados com violação ou inobservância da lei, esta expressamente comine essa consequência (art. 118º, n.º 1, do Código de Processo Penal), sendo que, nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular (n.º 2 do mesmo artigo).
Nos termos do artigo 123º, n.º 1 do Código de Processo Penal, a irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado.
Todavia, um despacho de não pronúncia de tal modo insuficientemente fundamentado que impossibilite a apreciação da sua bondade pelo Tribunal de recurso, além de irregular, padece de valor enquanto decisão de não pronúncia, pelo que tal irregularidade é de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 123º, n.º 2 do Código de Processo Penal, podendo ser ordenada a sua reparação no momento em que dela se tomar conhecimento.
No caso dos autos, e como se retira do respectivo teor, a decisão recorrida, não cumpre as exigências de fundamentação assinaladas.
A primeira observação a fazer é a de que no despacho em análise não consta a enunciação dos factos da acusação que considera suficientemente indiciados e os não suficientemente indiciados, ainda que por mera remissão.
Com efeito, a decisão de não pronúncia não explicita de forma clara e objectiva a factualidade que entende suficientemente indiciada, tal como aquela que entende que o não foi, por reporte à acusação.
O Mmº. Juiz a quo, depois de mencionar a prova testemunhal ouvida em instrução com sintética explicitação do seu conteúdo, tece considerações sobre as finalidades da instrução, o conceito de indícios suficientes, discorre sobre a prova do elemento subjectivo de um qualquer crime e a prova indiciária, desenvolve a temática dos limites do direito de liberdade de expressão e das causas de justificação previstas no arts. 30º, nº 2, al. b) e 180º, nº 2, do Código Penal, aludindo ainda a algumas normas do Estatuto do Jornalista e da Lei da Imprensa.
Ademais, concretamente quanto ao crime de violação de segredo de justiça depois de afirmar que corrobora os arts. 157º, 158º e 159º do RAI, que reproduz, acrescenta apenas a seguinte afirmação: «Consequentemente, não há elementos subjectivos do crime de violação do segredo de justiça.»
Contudo, da decisão recorrida, não consta qualquer análise dirigida a demonstrar por que se considerou «não haver elementos subjectivos do crime de violação de segredo de justiça», nem tal decorre dos artigos do RAI que o Tribunal recorrido afirmou corroborar e reproduziu.
Desconhecem-se, deste modo, as razões que sustentam aquela conclusão, e, portanto, se ela se mostra ou não efectivamente fundada, sendo também que tal não é possível deduzir-se, de forma unívoca, do vertido nos artigos 157º, 158º e 159º do RAI.
Assim, sabendo-se que os elementos subjetivos dos tipos de ilícito criminal  pertencem, por natureza, ao mundo interior do agente e por isso ou são revelados pelo próprio, sob a forma de confissão, ou têm de ser extraídos dos factos objectivos, isto é, inferidos através da consideração de determinado circunstancialismo objectivo com idoneidade suficiente para revelá-los (cfr. Acórdão do TRC de 04-03-2015, processo n.º 4/13.3TBSAT.C1, in www.dgsi.pt), seria de esperar que o Tribunal recorrido explicitasse, por referência aos factos objetivos narrados na acusação pública, os motivos pelos quais  considerou não se verificar o preenchimento dos elementos subjectivos do crime em causa.
Acontece, por vezes, que do teor do despacho de não pronúncia resulta, implícita, mas claramente, que não se consideram suficientemente indiciados nenhum dos factos imputados ao arguido na acusação, mas não é isso que se verifica no despacho em apreço, onde não se afirma uma posição clara sobre de entre os factos que constam da acusação pública, quais os que considerou suficientemente indiciados e quais considerou não suficientemente indiciados.
Semelhante vício se verifica em relação ao crime de desobediência. A decisão recorrida conclui «Entendemos, assim, que também não há crime de desobediência.», mas não se percebe como chegou a tal conclusão, não explicando como os pontos 184º a 220º do RAI, que o Mmº Juiz de instrução afirma corroborar e reproduz, de contornos genéricos, servem de arrimo àquela conclusão.
Ou seja, também em relação ao crime de desobediência, não se procede na decisão recorrida à explicitação dos motivos pelos quais se entendeu não estar suficientemente indiciada a sua prática, omitindo, pois, a indicação, de uma forma que a torne apreensível e compreensível a este Tribunal, entre os factos elencados na acusação (peça onde são alegados factos integrantes dos elementos objetivos e do elemento subjetivo do tipo legal do crime de desobediência) aqueles que julga indiciados e/ou aqueles que julga não indiciados, ou como foram valorados na subsunção jurídica realizada, demonstrando, destarte, não ter procedido ao exame crítico, ou seja, a discussão sobre a suficiência ou insuficiência dos indícios probatórios, em face das provas recolhidas em inquérito e em instrução, o que também não pode deixar de consubstanciar uma irregularidade processual, por falta do juízo de avaliação dos indícios e da explicitação do raciocínio lógico que foi feito.
No caso dos autos, sendo vários os factos imputados na acusação no respeitante à responsabilidade dos arguidos, a omissão da sua enunciação, como indiciados ou não indiciados, constitui uma deficiência de fundamentação que impede o controlo pelo Tribunal de recurso da bondade da decisão de não pronúncia tomada na 1ª instância.
Não assegurando, a fundamentação da decisão recorrida , a «função de controlo» que lhe cabe garantir, não pode deixar de concluir-se que ocorre, no caso, irregularidade que afecta indubitavelmente o valor do acto praticado, e, como tal, pode e deve ser excepcionalmente conhecida ex officio, por este Tribunal, em sede de recurso (art. 123º, n.º 2 do CPP).
Assim, do que até aqui se expôs, resulta, pois, a necessidade de invalidar a decisão recorrida, com a consequente descida dos autos à 1ª instância, para prolação de nova decisão, devidamente fundamentada, ficando prejudicada a apreciação das questões suscitadas no recurso.

III.– DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar verificada a irregularidade do art. 123º, nº 1 do Código de Processo Penal, pelas razões acima indicadas, declarando inválida a decisão recorrida, e todos os actos posteriores dela dependentes, devendo a mesma ser substituída por outra que supra a omissão consistente na falta de enunciação dos factos indiciados e dos não indiciados, por referência à acusação e ao requerimento de abertura de abertura de instrução, e fazendo a análise crítica dos meios de prova produzidos no inquérito e na instrução.
Sem custas.
Notifique.


Lisboa, 09.11.2023


(texto processado e revisto pela relatora, assinado electronicamente)


Os Juízes Desembargadores,

(Amélia Carolina Teixeira Relatora)
(Jorge Manuel da Silva Rosas de Castro – 1º Adjunto)
(Paula Cristina C. Bizarro – 2ª Adjunta)



[1]Cfr., entre outros, os Acs.: TRL de 11-07-2013 (Relatora: Graça Santos Silva), 21.05.2015 (Relator: Antero Luís), 20-05-2015 (Relatora: Maria Elisa Marques), 14.04.2016 (Relatora: Maria do Carmo Ferreira), 28-09-2017 (Relator: Abrunhosa de Carvalho), 88-02-2018 (Relatora: Maria do Carmo Ferreira),TRP de 05-01-2011 (Relator: Joaquim Gomes), 17-10-2012 (Relator: Joaquim Gomes), 10-12-2014 (Relatora: Maria Luísa Arantes, 11-11-2015 (Relatora: Elsa Paixão), 12-10-2016 (Relator: José Carreto), 26-04-2017 (Relatora: Maria Ermelinda Carneiro), 14-06-2017 (Relatora: Eduarda Lobo), 31-05-2017 (Relator: Neto de Moura), 28-11-2018 (Relator: Neto de Moura), 09-01-2019 (Relatora: Elsa Paixão), 15-01-2020 (Relator: Nuno Pires Salpico), TRC de 16-06-2015 (Relator: Luís Coimbra, 26-06-2019 (Relatora: Olga Maurício), TRE de 20-12-2012 (Relatora: Maria Filomena Soares), 26-02-2013 (Relator: Renato Barroso), 24-11-2020 (Relatora: Fátima Bernardes), TRG de 27-05-2019 (Relatora: Fátima Furtado), 23.10.2017, 10.09.2018 12.10.2020 (Relator: Jorge Bispo), 22-02-2021 (Relator: António Teixeira), todos in www.dgsi.pt.
[2]Cfr. o Ac. TRC - 09-12-2010 (Relator: Eduardo Martins), in www.dgsi.pt.
[3]Cfr. o Ac. TRL - 11-07-2013 (Relatora: Graça Santos Silva), in www. dgsi.pt.
[4]Cfr. o Ac. do TRE de 12-06-2012 (Relatora: Maria Filomena Soares), in www.dgsi.pt.
[5]Cfr. o Ac. do TRL de 21.05.2015 (Relator: Antero Luís), in www.dgsi.pt.
[6]Cfr. o Ac. do TRP de 05-01-2011 (Relator: Joaquim Gomes), in www.dgsi.pt.
[7]Cfr. o Ac. do TRP de 22-09-2021 (Relator: Pedro Vaz Pato), in www.dgsi.pt.
[8]Cfr. o Ac. do TRP de 21-01-2015 (Relatora: Lígia Figueiredo), in www.dgsi.pt.
[9]Cfr. o Ac.do TRL de 10-02-2022 (Relator: Abrunhosa de Carvalho), in www.dgsi.pt.
[10]Cfr. o Ac. do TRP de 29-05-2013 (Relator: Abílio Ramalho), in www.dgsi.pt.