RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE
PRESSUPOSTOS
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
VALOR DA CAUSA
CASO JULGADO FORMAL
INADMISSIBILIDADE
Sumário


I- A admissibilidade do recurso de revista extraordinária baseada na al. d) do art. 629º, 2, do CPC, para acórdão da Relação «do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal», circunscreve-se (numa lógica de cumulação de requisitos) aos casos em que se pretende recorrer de acórdão proferido no âmbito de acção cujo valor excede a alçada da Relação, sem desrespeitar o valor mínimo de sucumbência (âmbito de recorribilidade delimitada pelo art. 629º, 1, do CPC), e relativamente ao qual, de acordo com o objecto recursivo ou a sua natureza temática, esteja excluído, por regra, o recurso de revista por motivo de ordem legal (impedimento ou restrição) alheio à conjugação do valor do processo com o valor da alçada da Relação (casos em que se integra a irrecorribilidade ditada pela dupla conformidade decisória, nos termos do art. 671º, 3, que salvaguarda, para sua superação, as situações de revista extraordinária do art. 629º, 2).
II- Sendo fixado o valor da causa no momento da prolação do despacho saneador, sem impugnação recursiva tempestiva e consequente aceitação pelas partes no processo dessa mesma decisão, constitui-se como decisão constitutiva de caso julgado formal (arts. 628º, 620º, 1, 621º, CPC), de tal forma que terá sempre o recurso para tribunal superior que ser avaliado na sua admissibilidade à luz do valor da causa que transitou e se impõe nesse momento, de acordo com os termos do art. 296º, 1 e 2, do CPC.

Texto Integral



Processo n.º 756/22.0T8STS-H.P1.S1


Revista – Tribunal recorrido: Relação do Porto, … Secção


Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO


1. «Baltazar e Cerqueiras, Lda.», enquanto credora reconhecida, requereu a qualificação da insolvência da sociedade «Lello Editores, Lda.» como culposa, com o respectivo incidente pleno, sendo solicitada a afectação dos gerentes da declarada insolvente, AA e BB (entretanto falecida: cfr. despacho de 21/10/2022, ref.ª CITIUS .......77).


2. Em razão da extinção da sociedade requerente em procedimento de dissolução e liquidação administrativa, os sócios CC e DD requereram a substituição da titularidade do crédito reconhecido à sociedade extinta em favor dos Requerentes e o reconhecimento da sua legitimidade processual activa nos termos dos arts. 162º («generalidade dos sócios»), 163º e 164º do CSC (sócios liquidatários).


3. O Requerido AA apresentou Oposição, a qual mereceu Resposta por parte dos sócios da sociedade Requerente.


Nessa oposição, o Requerido invocou a excepção de prescrição do direito de invocação do crédito reconhecido na insolvência à sociedade credora, tendo em conta a aplicação do art. 174º, 3, do CSC (direitos de crédito exigíveis pelos sócios da sociedade extinta contra terceiros).


Nessa Resposta, os Requerentes invocaram que o decurso de processo judicial interrompera qualquer prazo de prescrição, tendo em conta a aplicação do art. 323º do CCiv.


4. O Juiz ... do Juízo de Comércio de ... proferiu despacho saneador (30/1/2023), no qual se decidiu:


“B – Da legitimidade ativa para requerer a qualificação da insolvência


(…)


Face ao exposto, os requerentes CC e DD, em substituição da credora primitiva BALTAZAR & CERQUEIRAS LDA., como credores, dispõem de legitimidade processual para requerer a qualificação de insolvência, nos termos do art. 188.º, n.º1 do CIRE, pelo que improcede a exceção de ilegitimidade levantada pelo requerido AA.”





“C – Da prescrição do crédito da sociedade credora e dos credores CC e DD


Considerando que a sociedade requerente intentou ação executiva contra a sociedade requerida em 25.11.2011, a qual correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca do ..., Juízo de Execução do ..., Juiz ..., sob o número 4362/11.6... (vd. doc. 14 junto com a reclamação de créditos apresentada pela sociedade credora), ocorreu a prescrição1 a que alude o n.º 1 do art. 323.º do Código Civil, pelo que o crédito dos requerentes não se mostra prescrito.”


5. Nesse mesmo despacho saneador foi fixado o valor processual do incidente em € 30.000,00.


6. Inconformado, o Requerido interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto (TRP) das aludidas decisões proferidas quanto às excepções invocadas no despacho saneador (segmentos “B” e “C”).


Identificadas as questões decididendas – “saber se a sentença proferida no apenso de verificação de créditos constitui caso julgado quanto à existência do crédito, se os sócios da sociedade credora extinta têm legitimidade para a substituir no incidente de qualificação da insolvência e se o crédito, apesar de ter sido reconhecido e verificado no apenso de verificação de créditos, pode ser discutido, para aquele efeito, neste incidente de qualificação da insolvência” –, foi proferido acórdão pelo TRP (13/6/2023) que julgou improcedente o recurso, confirmando as decisões recorridas.


7. Sem se resignar, o Requerido interpôs recurso de revista para o STJ, com fundamento no art. 629º, 2, d), do CPC, circunscrito ao decidido relativamente ao segmento decisório “C” (prescrição do direito de crédito), e tendo por base oposição jurisprudencial com o Ac. da Relação de Lisboa de 28/2/2023, apresentando, após notificação, a respectiva certidão comprovativa, com nota de trânsito em julgado, tendo em vista a revogação do acórdão recorrido nesse segmento.


A finalizar as suas alegações, apresentou as seguintes Conclusões:


“1. O acórdãorecorrido está em contradiçãocom oacórdãodoTribunal daRelação de Lisboa de 28/2/2023 (acórdão fundamento), proferido no processo nº 16113/20.0T8LSB-B.L1-1.


2. A contradição respeita ao regime da prescrição de que trata o nº 3 do art. 174º do CSC.


3. No acórdão recorrido, entendeu-se que não ocorria a prescrição prevista no nº 3 do art. 174º do CSC, apesar de os antigos sócios de uma sociedade extinta teremvindo reclamar umcrédito daquela sociedade depois dedecorridos cinco anos sobre a extinção da mesma.


4. Noacórdão fundamento,entendeu-seque, “seaquela acção [destinada à cobrança de crédito de uma sociedade extinta] foi intentada mais de 6 anos após a extinção da sociedade, o crédito que os autores pretendiam exigir dos réus na qualidade de terceiros devedores, se encontra prescrito, pelo decurso do prazo previsto no 3 do artigo 174º do CSC”.


5. A contradição sai reforçada pela circunstância de o quadro que subjaz ao acórdão recorrido ser perfeitamente paralelo ao quadro que subjaz ao acórdão fundamento.


6. Em ambos os casos, a sociedade exequente não logrou a satisfação do seu crédito na lide executiva, a sociedade que fôra exequente veio a ser extinta, a sociedade que fôra executada veio a ser declarada insolvente, aquele que fôra o crédito exequendo deu azo a uma reclamação de créditos no processo de insolvência, a reclamação do crédito teve lugar depois de terem decorrido mais de cinco anos sobre a extinção da sociedade primitivamente titular do crédito reclamado na insolvência.


7. Em ambos os casos, a apreciação da tempestividade da reclamação do crédito na insolvência deveria ter sido apreciada como foi no acórdão fundamento – aí radicando a contradição de julgados.


8. Como se demonstra, as diferenças entre o caso dos autos e o caso tratado no acórdão fundamento são apenas aparentes.


9. Num e noutro dos casos houve uma execução inicialmente proposta por uma sociedade credora contra uma sociedade devedora, a sociedade credora veio a extinguir-se, a sociedade devedora veio a ser declarada insolvente, os antigos sócios da extinta sociedade credora foram reclamar créditos à insolvência da sociedade devedora, essa reclamação de créditos ocorreu mais de 5 anos após a extinção da sociedade credora.


10. Num e noutro dos casos a solução jurídica tinha de ser a mesma – aí radica também a contradição de julgados.


11. O entendimento firmado no acórdão recorrido é assaz incompreensível, o que decorre largamente da (errada) suposição de que, no caso vertente, não estamos perante um activo superveniente.


12. O acórdão fundamento – tal como o acórdão recorrido – também foi confrontado com uma situação em que começou por haver uma execução instaurada por uma sociedade credora contra uma sociedade devedora.


13. Nem por isso o acórdão fundamento – ao contrário do acórdão recorrido – deixou de assumir que o crédito reclamado na insolvência da sociedade devedora, após a extinção da sociedade credora, constituía um activo superveniente, para os efeitos dos nºs 1 e 2 do art. 164º do CSC.


14. Consequentemente, aplicando-se o regime dos nos 1 e 2 do art. 164º do CSC, sempre se aplicará o regime do nº 3 do art. 174º do CSC, tal como concluiu o acórdão fundamento.


15. A contradição de julgados deve ser resolvida em termos de aplicar ao caso dos autos a solução sufragada no acórdão fundamento, revogando-se o acórdão recorrido.


16. Não se diga que não assiste ao aqui Recorrente o direito de suscitar estas questões em juízo, pelo contrário.


17. Mostra-se violado o disposto nos nos 1 e 2 do art. 164º e no nº 3 do art. 174º, ambos do CSC.”


8. Proferido despacho para o efeito e no âmbito de aplicação do art. 655º do CPC, respondeu o Requerido e Recorrente, pugnando pela inexistência de caso julgado quanto à fixação do valor processual no despacho saneador, que teria sido mera “decisão tabelar”, e pelo conhecimento neste STJ dessa questão para fixação do valor em € 30.000,01, uma vez tratando-se de “mero lapso” a fixação exarada nos autos, tendo em vista a aplicação do critério legal e a consequente admissão do recurso interposto.





Dispensados os vistos nos termos legais, cumpre apreciar e decidir, enfrentando desde logo a questão da admissibilidade da revista.


II) APRECIAÇÃO E FUNDAMENTOS


Questão prévia da admissibilidade da revista


1. A circunstância de a decisão recorrida ter sido proferida em apenso aos autos de insolvência (art. 132º, ex vi art. 188º, 8, do CIRE) implica que a revista enquanto espécie siga o regime ordinário, sendo de apreciar e decidir à luz do regime dos arts. 671º, 1, e 674º, 1, do CPC, ex vi art. 17º, 1, do CIRE, precludindo-se o regime especial do art. 14º, 1, do CIRE e o correspondente afastamento das situações de revista extraordinária do art. 629º, 2, do CPC.


Nesse regime, inclui-se o impedimento que constitui irrecorribilidade para o STJ constituído pela “dupla conformidade”, tal como previsto no art. 671º, 3, do CPC.


2. O art. 671º, 3, do CPC, determina a existência de “dupla conformidade decisória” entre a Relação e a 1.ª instância como obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso de revista normal ou regra junto do STJ, em relação aos segmentos decisórios e seus fundamentos com eficácia jurídica autónoma (objecto de impugnação) nos quais se verifica identidade de julgados, sem fundamentação essencialmente diferente e sem voto de vencido, ou, para além disso, em que a decisão recorrida, no ou nos segmentos decisórios recorridos (mesmo que sem confirmação integral no dispositivo) e seus fundamentos atendíveis, se revela mais favorável, qualitativa ou quantitativamente, à parte recorrente (mesmo que só com procedência parcial do recurso).


3. Verifica-se que, no que toca à questão de direito relativa à excepção peremptória da prescrição do direito de crédito invocada pelo Requerido e Recorrente, a revista normal não é admissível no que respeita a esse segmento decisório, tendo em conta a existência de “dupla conformidade decisória” no que toca a tal segmento/questão de direito objecto de impugnação e reapreciação pela Relação, por adesão à decisão de 1.ª instância e com desenvolvimento argumentivo sobre a não aplicação do art. 174º, 3, do CSC em atenção à alegação do recorrente na apelação (v. acórdão recorrido, págs. 11-12), sem voto de vencido, nos termos e para os efeitos do art. 671º, 3, do CPC.


No entanto.


4. O art. 671º, 3, 1.ª parte, do CPC salvaguarda a impugnação recursiva nos termos do art. 629º, 2, do CPC, ou seja, as situações que fundamentam a revista extraordinária («sempre admissível recurso»), para superar-neutralizar a exclusão de recorribilidade que a dupla conformidade impõe como regra.


5. A a al. d) do art. 629º, 2, apenas serve e só se aplica para situações de exclusão (impedimento ou restrição) da revista, imposta ou prevista por lei (sem prejuízo de cláusulas recursivas de salvaguarda de ultima ratio); logo, abrange a previsão do art. 671º, 3, do CPC2, que – sublinhe-se – remete expressamente e (exactamenteO como salvaguarda para o art. 629º, 2, do CPC.


Na verdade.


6. Nos termos do art. 629º, 2, d), do CPC, «[i]ndependentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso: Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.»


Assim e concretizando.


7. O art. 629º, 2, d), do CPC, fundamento do recurso interposto pelo Recorrente, circunscreve-se aos casos em que se pretende recorrer de acórdão da Relação proferido no âmbito de acção cujo valor excede a alçada da Relação, sem desrespeitar o valor mínimo de sucumbência, e relativamente ao qual, de acordo com a sua natureza temática ou objecto recursivo, esteja excluído, por regra, o recurso de revista por outro motivo de ordem legal (alheio à conjugação do valor do processo com o valor da alçada da Relação) – requisitos cumulativos, desdobrados do pressuposto legal: recurso do acórdão da Relação «do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal».


Na verdade, a al. d) do art. 629º, 2, encontra-se reservada para as situações em que o obstáculo único para a admissibilidade da revista resulta de motivo que transcende a alçada (e a conjugação com a alçada) do tribunal recorrido. Assim, esse pressuposto negativo (e excludente da regra de admissibilidade prevista no proémio do n.º 2 do art. 629º, 2, CPC) implica que o recurso assim fundamentado está circunscrito aos casos em que se pretende recorrer de acórdão da Relação no âmbito de recorribilidade delimitada pelo art. 629º, 1, do CPC mas relativamente ao qual está excluído por princípio o recurso ao STJ por outra motivação legal (impedimento ou restrição) e, sendo esse o caso, em razão da natureza do processo (como sucede, por exemplo, com os procedimentos cautelares, nos termos do art. 370º, 2, e dos processos de jurisdição voluntária, de acordo com o art. 988º, 2, sempre do CPC).


Por outras palavras, a contradição jurisprudencial pugnada pelo art. 629º, 2, d), está apenas prevista para os casos em que, por um lado, o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça está vedado e, por outro lado, está vedado por razões diversas da alçada da Relação, de modo que o impedimento do ou a restrição ao recurso não residem no facto de o valor da acção ou o da sucumbência ser inferior aos limites mínimos resultantes do nº 1 do art. 629º. Ampliaram-se deste modo as possibilidades de serem levadas à cognição do STJ contradições jurisprudenciais em 2.ª instância que, de outro modo, poderiam persistir, pelo facto de, em regra, surgirem em acções em que, apesar de apresentarem valor processual superior à alçada da Relação, não se admite recurso de revista.3


8. Veja-se o que sustenta autorizada doutrina processualista (MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA) sobre o art. 629º, 2, d):


“O preceito não tem, de modo algum, o sentido de admitir a revista sempre que haja oposição entre dois acórdãos da Relação, ou seja, não permite a interposição da revista de qualquer acórdão da Relação que esteja em oposição com qualquer outro acórdão da Relação; pressuposto (aliás explícito) da aplicação daquele preceito é que a revista, que seria admissível pela conjugação do valor da causa com a alçada da Relação, não seja afinal admitida “por motivo estranho à alçada do tribunal”, isto é, por um impedimento legal distinto do funcionamento da regra da alçada. Quer dizer: o art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC só é aplicável se houver uma exclusão legal da revista por um motivo que nada tenha a ver com a relação entre o valor da causa e a alçada do tribunal ou, mais em concreto, se a lei excluir a admissibilidade de uma revista que, de outro modo, seria admissível.


(…)


Há uma (boa) razão de ordem sistemática para se entender que o disposto no art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC não pode dispensar a admissibilidade da revista nos termos gerais (sendo nomeadamente necessário, para a admissibilidade da revista, que o valor da causa exceda a alçada da Relação). O argumento é muito simples: se todos os acórdãos da Relação em contradição com outros acórdãos da Relação admitissem a revista “ordinária” nos termos do art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC, deixaria necessariamente de haver qualquer justificação para construir um regime de revista excepcional para a contradição entre acórdãos das Relações tal como se encontra no art. 672.º, n.º 1, al. c), CPC. Sempre que se verificasse uma contradição entre acórdãos das Relações, seria admissível uma revista “ordinária”, não havendo nenhuma necessidade de prever para a mesma situação uma revista excepcional. (…) Visto pela perspectiva contrária: a admissibilidade de uma revista "ordinária" sempre que se verifique uma contradição entre acórdãos das Relações retira qualquer espaço para uma revista excepcional baseada nessa mesma contradição. Assim, a única forma de atribuir algum sentido útil à contradição de julgados das Relações que consta, em sede de revista excepcional, do art. 672.º, n.º 1, al. c), CPC é pressupor que a revista “ordinária” não é admissível sempre que se verifique essa mesma contradição. Só nesta base é possível compatibilizar a vigência do art. 672.º, n.º 1, al. c), CPC com a do art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC.


(…)


(…) o regime instituído no art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC não se basta com uma mera contradição entre acórdãos das Relações, pelo que o preceito só é aplicável nos casos em que, apesar de a revista ser admissível nos termos gerais, se verifica uma irrecorribilidade estabelecida pela lei. Se se quiser resumir numa fórmula o estabelecido no art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC, pode dizer-se que este preceito estabelece uma recorribilidade para acórdãos que são recorríveis nos termos gerais e irrecorríveis por exclusão legal.


Atendendo à exclusão da revista por um critério legal independente da relação do valor da causa com a alçada do tribunal, há que instituir um regime que permita que o STJ possa pronunciar-se (e, nomeadamente, uniformizar jurisprudência) sobre matérias relativas aos procedimentos cautelares e aos processos de jurisdição voluntária. É precisamente essa a função do disposto no art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC”.4


E ainda mais é acrescentado pelo Autor numa outra oportunidade:


“O estabelecido no art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC corresponde, no essencial, ao disposto no art. 678.º, n.º 4, aCPC (versão do DL 180/96, de 25/9 e do DL 38/2003, de 8/3), preceito que, algo estranhamente, foi revogado pelo DL 303/2007, de 24/8.


Em relação àquele art. 678.º, n.º 4, aCPC escreveu-se o seguinte: "No caso que examinamos [art. 678.º, n.º 4], existe um verdadeiro recurso de uniformização de jurisprudência das Relações, excepcionalmente admitido porque, por razões estranhas à alçada do tribunal, nunca seria admissível o acesso ao STJ (é o caso, por exemplo, das situações que caem sob a alçada dos arts. 111-4, 800 ou 1411-2 [= 988.º, n.º 2, nCPC], ou, por via do art. 66-5 CExpr., do acórdão da Relação sobre a indemnização em caso de expropriação por utilidade pública)" (Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado III (2003), 13).


Está assim claro que o antigo art. 678.º, n.º 4, aCPC só era aplicável quando, apesar de o valor da causa o permitir, havia uma exclusão legal da revista. Não é facilmente compreensível, por isso, que o actual art. 629.º, n.º 2, al. d), nCPC possa ter um sentido diferente do seu directo antecessor.”5-6


*


Tal foi o entendimento acolhido pelo Tribunal Constitucional quando, no acórdão n.º 253/2018, proferido no processo n.º 699/2017 em 17/5/2018, decidiu, expressamente sobre essa questão processual, “[n]ão julgar inconstitucional a alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de que o recurso aí previsto só é admissível se o valor da causa exceder a alçada do Tribunal da Relação e o valor da sucumbência exceder metade dessa alçada7.


Assim sendo.


9. A admissibilidade do recurso por esta via extraordinária da al. d) do art. 629º, 2, como pretende o Recorrente, não prescinde da verificação dos pressupostos gerais de recorribilidade previstos no art. 629º, 1, do CPC («O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal (…)»), isto é, o valor do processo ser superior à alçada da Relação e o valor da sucumbência superior a metade dessa alçada (sucumbência mínima), tendo em conta o aludido segmento normativo referente ao «motivo estranho à alçada do tribunal».


Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de € 30.000,00 (art. 44º, 1, da L 62/2013, de 26 de Agosto), anotando-se que a admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a acção (n.º 3 desse art. 44º).


Ora.


Em 1.ª instância, foi fixado, ao abrigo do art. 306º, 1, e 2, 1.ª parte, do CPC, o valor da causa em € 30.000,00, decisão essa transitada em julgado (arts. 620º, 1, 621º, CPC).


10. O art. 306º, 1 e 2, do CPC estatui que «[c]ompete ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes», sendo esse valor fixado, por regra, no despacho saneador ou na sentença.


Com este exercício a lei visa evitar a manipulação do valor da causa (atribuído pelo Autor/Requerente ou aceite, expressa ou tacitamente, pelas partes: arts. 552º, 1, f), 583º, 2, 305º CPC)) – apresentando várias implicações processuais: desde logo, no art. 296º, 2, do CPC – em função de interesses particulares, entregando ao juiz a tarefa de zelar pelo cumprimento dos critérios legais. Em suma: “independentemente das posições assumidas pelas partes, o juiz sempre terá de se debruçar sobre o assunto e fixar o valor da causa, sem estar vinculado a qualquer dos valores indicados ou aceites por aquelas8.


Em concreto, como vimos, o valor da presente causa foi fixado no recorrido despacho saneador no valor de € 30.000,00, valor equivalente (não superior) ao valor da alçada do Tribunal da Relação, decisão essa transitada e constituindo caso julgado formal nos termos dos arts. 628º e 620º, 1, do CPC, na falta de impugnação tempestiva e consequente aceitação pelas partes no processo dessa mesma decisão.


Tal significa – como em tantas ocasiões se tem salientado neste STJ – que a decisão, sempre que proferida, legítima e tempestivamente no arco de aplicação do at. 306º do CPC, sendo susceptível de recurso (art. 644º, 1, a), CPC, para “incidente autónomo”9), se torna definitiva por força da constituição de caso julgado formal, a que, portanto, os tribunais superiores se encontram vinculados no momento de aferição da admissibilidade dos recursos correspondentes10 – como é o caso dos autos.


Tal fixação do valor da causa nos termos atribuídos pelo art. 306º, 1 e 2, do CPC, sendo “decisão de pendor incidental”11, uma vez transitada em julgado, não admite depois qualquer alteração do consolidado endoprocessualmente, a não ser que se verifiquem, a título excepcional, circunstâncias legais de correcção (nos termos gerais do art. 299º, 4, do CPC, sem prejuízo de outras especialidades12) e seja proferido novo despacho (com consequências possíveis, entre outras, na admissibilidade de recurso ordinário13). Neste contexto, na ausência do exercício desse poder-dever de correcção – inclusivamente, através de “despacho judicial autónomo de acertamento do valor da causa”14 –, terá sempre o recurso para tribunal superior que ser avaliado na sua admissibilidade à luz do valor da causa que transitou e vale nesse momento, de acordo com os termos do art. 296º, 1 e 2, do CPC, o que não pode deixar de ser respeitado nas instâncias subsequentes, em especial para a verificação do preenchimento do art. 629º, 1, do CPC.


Tal significa, por fim, que não é esta a sede, como pretende o Recorrente, por ser extemporânea e sem adequação processual, para sindicar a bondade do critério (ou a falta de critério) que serviu de base à decisão incidental sobre o valor da causa ou promover a correcção do valor da causa atribuído legitimamente aquando da prolação do saneador proferido em 1.ª instância.


Muito menos se verifica que se possa surpreender no contexto de tal decisão incidental qualquer lapso de escrita que se veja como manifesto e ostensivo nos termos do art. 614º, 1 e 2, 2.ª parte, do CPC.


Reitera-se.


O valor da presente causa foi fixado expressamente na decisão recorrida, no valor de € 30.000,00, decisão essa com trânsito em julgado (arts. 620º, 1, 621º, CPC).


É um valor fixado legitimamente pelo juiz no processo enquanto seu poder-dever oficioso e no momento apontado pela lei.


Se a fixação do valor processual e tributário da causa merece o inconformismo da parte, como mereceu na resposta dada ao despacho proferido no âmbito do art. 655º do CPC, restava-lhe o competente recurso, em tempo, da decisão proferida sobre o valor da causa (incluindo a arguição de eventual nulidade relativa à fundamentação de tal decisão), sob pena de se confrontar no processo com um valor processual imutável porque transitado.


Não tendo havido recurso, sibi imputet à parte mais tarde insatisfeita com tal decisão.


Como consequência.


Sendo tal valor o que está consolidado e vigente para se aferir do preenchimento do art. 629º, 1, do CPC, o valor da causa não é superior à alçada da Relação e, portanto e desde logo, a revista não pode ser admitida e conhecida nos termos da recorribilidade da al. d) do art. 629º, 2, do CPC, pois tal normativo de pressuposto geral é condição de aplicação deste fundamento de revista extraordinária.


III) DECISÃO


Em conformidade, acorda-se em não tomar conhecimento do objecto do recurso.


Custas da revista pelo Recorrente.


STJ/Lisboa, 16 de Novembro de 2023


Ricardo Costa (Relator)


António Barateiro Martins


Luís Espírito Santo


SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).

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1. Será lapso de escrita e a referência ao art. 323º, 1, do CCiv., implica que se leia, ao invés e devidamente, “ocorreu a interrupção”.↩︎

2. Cfr. Ac. do STJ de 29/9/2020, processo n.º 731/16.3T8STR.E1.S1, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.

Na doutrina processualista, JORGE PINTO FURTADO, Recursos em processo civil, 2.ª ed., Nova Causa – Edições Jurídicas, Braga, 2017, pág. 45, ABRANTES GERALDES, “Artigo 629º”, pág. 59, “Artigo 671º”, pág. 361, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018.↩︎

3. Neste sentido, v. o Ac. do STJ de 19/5/2016, processo n.º 122702/13.5YIPRT.P1.S1, Rel. ABRANTES GERALDES.↩︎

4. Comentário ao Ac. do STJ de 2/6/2015 (processo n.º 189/13.9TBCCH-B.E1.S1): https://blogippc.blogspot.com/2015/06/jurisprudencia-157.html, com data de 24/6/2015 e referência “Jurisprudência 2015 (157)”; sublinhado nosso.↩︎

5. Comentário ao Ac. do STJ de 16/6/2015 (processo n.º 1008/07.0TBFAR.D.E1.S1): https://blogippc.blogspot.com/2015/07/jurisprudencia-171.html, com data de 15/7/2015 e referência “Jurisprudência 2015 (171)”; sublinhado nosso.↩︎

6. Seguido doutrinalmente por ABRANTES GERALDES, “Artigo 629”, ob. cit., págs. 57-59, ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, “Artigo 629º”, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigos 1º a 702º, Almedina, Coimbra, 2018, págs. 753-754, sempre com citação de jurisprudência concordante do STJ. Antes, com a mesma leitura interpretativa, JORGE PINTO FURTADO, Recursos… cit., pág. 45; ELISABETH FERNANDEZ, Um novo Código de Processo Civil? (Em busca das diferenças), Vida Económica, Porto, 2014, nt. 184 – pág. 184: “Se o n.º 2 do artigo 629º contém soluções de recurso para decisões que não o admitiriam por causa do valor da causa e da sucumbência por referência à alçada do tribunal de que se recorre, então a inclusão da al. d) é, aqui, completamente descontextualizada, pois que a admissão deste recurso é para situações em que o mesmo não seria admitido por motivo estranho à alçada do tribunal. Portanto, continua a não haver recurso das decisões do Tribunal da Relação que, não sendo incluídas em qualquer uma das als. a) a c), justifiquem a sua não admissibilidade, precisamente, por causa do valor da alçada ou da sucumbência (…)” (enfatizado nosso).

Na jurisprudência do STJ, v. mais recentemente os Acs. de 8/2/2018, processo n.º 810713.9TBLSD.P1.S1, Rel. MARIA DO ROSÁRIO MORGADO, de 17/11/2021, processo n.º 95585/19.6YIPRT.L1.S1, Rel. FÁTIMA GOMES, de 15/3/2022, processo n.º 17315/16.9T8PRT.P3.S1, Rel. RICARDO COSTA, e de 24/5/2022, processo n.º 756/19.7T8ANS-A.C1-A.S1, Rel. TIBÉRIO SILVA, sempre in www.dgsi.pt.↩︎

7. Disponível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20180253.html.↩︎

8. ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, “Artigo 305º”, ob. cit., pág. 356, sublinhado nosso.↩︎

9. ABRANTES GERALDES, “Artigo 644º”, ob. cit., pág. 204.↩︎

10. Ex professo, SALVADOR DA COSTA, Os incidentes da instância, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, pág. 61.↩︎

11. ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art. 629º, pág. 43.↩︎

12. Maxime, cfr. o art. 15º, 2.ª parte, do CIRE ou o art. 302º, 3, 2.ª parte, do CPC; ainda as particularidades dos processos disciplinados nos arts. 938º e ss e 941º e ss do CPC.↩︎

13. ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, “Artigo 299º”, ob. cit., págs. 348 (e 347).↩︎

14. Neste sentido, SALVADOR DA COSTA, Os incidentes da instância cit., pág. 38.↩︎