QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
PRESSUPOSTOS
PRESUNÇÃO JURIS ET DE JURE
INSOLVÊNCIA CULPOSA
NEXO DE CAUSALIDADE
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
Sumário


I- A declaração de insolvência aporta consequências gravosas não só para o devedor, mas também para o tecido económico em geral, gerando situações que obstam ao desenvolvimento dos normais relacionamentos e interações, e levam a contextos disruptivos que afetam não só o insolvente, bem como os que com aquele de algum modo estabeleceram contactos relevantes, compreendendo-se que em prol de uma sã atividade económica, seja objeto de insolvência, o devedor que se encontra na impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas, art.º 3, n.º1, do CIRE, de modo a contrariar a manutenção e crescimento de situações deficitárias, com passivos impossíveis de solver.
II- Demonstrada a prática dos factos que devam ser subsumidos à imposição prevista, no art.º 189, n.º 2 do CIRE, temos que no mesmo se contempla uma presunção juris et jure, com vista à qualificação da insolvência como culposa, e assim quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo, prova em contrário, n.º2, parte final do art.º 350, do CC.
III- Evidencia-se com mediana clareza que a organização da contabilidade constitui instrumento privilegiado para obter a informação e prova da situação económica e financeira da devedora, constituindo aliás os elementos que se configuram como adequados par a abertura do incidente de qualificação
IV- Basta que a insolvência tinha sido qualificada como culposa para nascer a obrigação de indemnizar, sem que se tenha de se fazer apelo a qualquer outra fonte, não se confundindo com outras ações indemnizatórias, que possam ser interpostas, com fundamentos diversos.
V- Sem prejuízo do preceituado no n.º4, do art.º 189, do CIRE, vigente para o caso sob análise, ainda assim, pode-se entender, no acolhimentos dos melhores princípios hermenêuticos, que o Juiz não estará apenas adstrito à reposição mencionada no n.º 2, da mesma disposição legal, mas sim considerar-se que será permitido ao julgador referenciar outros fatores, que não sejam apenas o recurso a simples operações de subtração do ativo ao passivo, mas também um apelo a quaisquer outras circunstâncias que na situação em concreto, relevaram em termos positivos ou negativos.
VI- Na opção do exercício de uma atividade, sobretudo se muito exigente, quem se propõe a fazê-lo deve munir-se de todos os instrumentos que permitam o seu cabal desenvolvimento.

Texto Integral



REVISTA n.º 1937/21.9T8CBR-A.C1.S1.


ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I - Relatório

1. Em apenso aos autos de insolvência de SN CULTURE, UNIPESSOAL, LDA. no âmbito do incidente de qualificação da insolvência, a Administradora da Insolvência (AI) veio apresentar parecer no sentido da insolvência ser qualificada como culposa, com fundamento nas alíneas a), f) e h) do n.º 2, do art.º 186, do CIRE, indicando como afetado, AA.


2. Em sede do parecer indicado, invocou que no seguimento dos elementos de contabilidade da Insolvente encontrou indícios, dos quais se podia retirar que a situação em que aquela se encontra foi criada ou agravada em consequência de atuação culposa ou com culpa grave do seu administrador/gerente nos últimos três anos anteriores à declaração de insolvência, porquanto ocultou ou fez desaparecer, em parte considerável, o património da devedora, fez dos créditos ou bens da devedora uso contrário ao interesse desta, e incumpriu em termos substanciais a obrigação de manter a contabilidade organizada, mantendo uma contabilidade fictícia ou dupla contabilidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da devedora.


3. O Ministério Público aderiu ao parecer da AI.


4. Citado, veio o opoente contestar, alegando que as invocadas conta 27 e 276 – Outros Devedores e Credores, consubstanciam-se em contas correntes que dizem respeito às despesas resultantes da organização do Festival ..., que desde 2014 até à data de insolvência, constitui a principal atividade da Insolvente, devendo abranger as despesas nacionais e internacionais relativamente aos artistas que trabalhavam nesse festival, estando estas últimas documentada, mas que não fez refletir na sua contabilidade, e daí a existência de lucros fictícios porque não tiveram em conta essas mesmas despesas, traduzindo-se assim em prejuízos, ou lucros tão reduzidos que não foram suficientes para cobrir as despesas sucessivas de quatro anos de realização de festival.


Desde a data da constituição da sociedade insolvente, a gestão foi sempre assegurada pelo sócio único, ancorando-se na sua contabilista para efeito de cumprimento das obrigações legais fiscais, contudo como consequência da enorme logística subjacente à organização do festival referido, não teve capacidade para sozinho dar encaminhamento aos documentos com que diariamente lidava, não lhes dando o devido seguimento para a contabilidade, para que esta fizesse o acerto de contas e determinação do saldo anual final, razão pela qual os elementos contabilísticos invocados pela AI não refletiam a realidade financeira da sociedade insolvente.


Mais impugnou os demais fundamentos invocados.


4.1. A Insolvente veio igualmente contestar, impugnando a factualidade deduzida pela AI, verificando-se tão só lapsos, a que a Insolvente e o sócio-gerente são completamente alheios, aliás o PER, em 2019, foi aprovado e homologado, não tendo sido suscitada qualquer questão contabilística, agravando-se a situação com o início da pandemia, pois viu-se obrigada a cessar a sua atividade, e assim, verificando que não estava em condições de continuar a honrar os seus compromissos de uma forma geral, apresentou-se à insolvência.


5. A AI veio responder, mantendo o alegado.


6. Proferido despacho saneador, foi realizada perícia.


7. Efetuado o julgamento, foi proferida sentença que decidiu:


a) Qualificar como culposa a insolvência de SN CULTURE, UNIPESSOAL, LDA..


b) Julgar afetado pela qualificação o respetivo gerente, AA;


c) Declarar o gerente inibido para o exercício do comércio pelo período de 3 (três) anos, e inibido, por igual período, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;


d) Determinar a perda de quaisquer direitos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelo requerido, e condená-lo na restituição de quaisquer bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;


e) Condenar o requerido a indemnizar os credores da insolvente no montante dos respetivos créditos que não forem satisfeitos, até ao valor máximo de 77.105,72€ (setenta e sete mil, cento e cinco euros e setenta e dois cêntimos).


8. Inconformado, veio o requerido interpor recurso de apelação, tendo Relação do Porto proferido Acórdão que confirmou a sentença recorrida.


9. Novamente inconformado veio o Recorrente interpor recurso de revista excecional, nos termos dos artigos 671, n.º1, e n.º 3, 672, n.º 1, a), b) e c) do CPC e determinada a remessa do processo à Formação.


10. A Formação admitiu a revista excecional.


11. Nas alegações apresentadas pelo Recorrente, formula as seguintes conclusões: (Transcritas)


A. A insolvência nos presentes autos foi qualificada como culposa ao abrigo da al. h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE, tendo esta qualificação afetado o ora recorrente, sócio gerente da sociedade, condenando-o, além do mais, a indemnizar os credores da insolvente no montante dos respetivos créditos que não forem satisfeitos, até ao montante máximo de € 77.105,72 (setenta e sete mil, cento e cinco euros e setenta e dois cêntimos), condenação confirmada por acórdão proferido pelo Superior Tribunal da Relação ..., do qual se recorre;


B. Em face dos argumentos usados por ambas as instâncias, entende o aqui recorrente não ser possível recurso ordinário de revista, nos termos do art. 671.º do CPC, verificando-se, contudo, todos os requisitos para a admissibilidade do presente recurso de revista excecional previstos no art. 672.º do mesmo diploma legal, nomeadamente a relevância jurídica das questões a apreciar, a existência de interesses de particular relevância social e a oposição de julgados entre o acórdão recorrido e os acórdãos fundamento, em relação a ambas as questões suscitadas em sede de apelação;


C. Justifica-se a apreciação das questões colocadas no presente recurso por este Superior Tribunal com vista à clarificação dos conceitos jurídicos em causa e em que medida a factualidade provada determina o preenchimento desses mesmos conceitos, nomeadamente qual a interpretação que melhor se coaduna com o direito vigente da al. h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE, se é de adotar um conceito objetivo de incumprimento substancial ou se é de apelar às circunstâncias do caso e estabelecer um nexo causal entre esse incumprimento e as causas da insolvência ou do seu encobrimento;


D. No que aos interesses de particular relevância social diz respeito, considerando as consequências nefastas que a qualificação da insolvência como culposa acarreta para os afetados, principalmente para o recorrente, nomeadamente a obrigação de indemnização e a proibição da prática de certos atos jurídicos, impõe-se determinar se, no presente caso, a insolvência aqui em causa é ou não de qualificar como culposa, atentas as divergências colocadas em apreciação;


E. Finalmente, entende o recorrente existir oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão deste Superior Tribunal proferido no processo n.º 3071/16.4T8STS-F.P1.S1, de 02/03/2021, bem como em relação ao acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo n.º 167/09.2TYLSB-C.L1-1, relativamente à problemática da qualificação da insolvência como culposa ao abrigo da al. h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE, no sentido de esta se bastar com o mero preenchimento do conceito genérico de incumprimento substancial ou se se torna necessário ainda que esse incumprimento, para ser substancial, tenha criado ou agravado as causas da insolvência ou ocultado as suas origens;


F. O acórdão recorrido considerou como suficiente a verificação em termos objetivos da situação descrita na al. h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE, sem necessidade de demonstração de nexo causal com a criação ou agravamento das causas da insolvência, sendo que, por seu turno, os acórdãos fundamento impõem que a par da verificação objetiva, se demonstre ainda que esse mencionado incumprimento tenha sido causador ou agravador da situação de insolvência ou então que demonstre um comportamento do devedor tendente a ocultar essa mesmas causas, pelo que, em nosso entender, se verifica uma efetiva contradição entre decisões judiciais;


G. A segunda contradição entre decisões materializa-se na adoção da culpa do devedor como critério orientador para a determinação do montante da indemnização a conceder aos credores, pois, enquanto o acórdão recorrido recusa expressamente a inclusão da culpa nos fatores determinadores do quantum indemnizatório, o acórdão proferido por este Supremo Tribunal no processo n.º 291/18.0T8PRG-C.G2.S1, de 06/09/2022, deixa aberta a porta ao permitir o recurso à adoção da culpa ou ao grau de culpa como fator relevante nesta matéria, pelo que será de entender verificar-se a exigida oposição de julgados também em relação a esta matéria;


H. Aderindo às posições sufragadas nos acórdãos fundamentos e, primariamente em relação ao conceito de incumprimento substancial, nos termos da al. h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE, o acórdão recorrido não fez a melhor interpretação do referido conceito indeterminado, ao não tomar em devida consideração a relevância desse substancial incumprimento para as causas originadoras ou agravadoras da insolvência;


I. Pois, apoiando-nos na tese dos acórdãos fundamento, entende o recorrente que o incumprimento substancial se verifica sempre que determinado comportamento do devedor em face da organização da sua contabilidade demonstre que o primordial objetivo foi o de ocultar a realidade financeira da empresa a terceiros ou tenha como propósito último impedir o conhecimento por terceiros das causas da insolvência ou do seu agravamento;


J. Como conceito indeterminado, o incumprimento substancial apenas pode ser aferido em face do caso concreto e preenchido com factos demonstrativos de, pela sua gravidade, estarmos perante um incumprimento com finalidade de ocultação ou que não permita a análise da génese da situação de insolvência ou do seu agravamento;


K. Neste concreto ponto falharam quer a sentença, quer o acórdão recorridos, uma vez que dos factos assentes nada consta que permita subsumir a concreta situação do recorrente à previsão da al. h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE;


L. O único ponto da matéria de facto provada que assume relevância para a presente questão, o ponto 15, refere somente que na conta 27 existente na contabilidade da insolvente se encontravam inscritas movimentações financeira sem o respetivo suporte documental para o correto enquadramento, levando a que as quantias ali inseridas fossem assumidas como ativos da empresa;


M. Não obstante, a verificação de um ativo aparente na contabilidade da empresa gerida pelo recorrente não permite a conclusão, por si, pela verificação de um incumprimento substancial da a obrigação de manter a contabilidade organizada, pois, na esteira dos acórdãos fundamento, essa conclusão deveria encontrar ainda sustento noutros factos que demonstrassem que a existência da conta 27 visou, em última análise, a ocultação da situação patrimonial da empresa ou que visasse impedir o apuramento das causas da insolvência ou seu agravamento, conclusão que até acaba contrariada pelos factos considerados não provados;


N. Perante a omissão total de factos que demonstrem que a existência da conta 27, com o seu significado próprio, acarretou qualquer prejuízo para o conhecimento da situação patrimonial e financeira da empresa ou determinação das causas da insolvência, tanto assim que nos parece resultar evidente dos pontos 13 e 14 da matéria de facto que a verdadeira causa da insolvência foi a proibição legal de realização de festivais durante o período da pandemia causada pelo COVID – 19 e, consequentemente, a cessação de toda a atividade da insolvente;


O. Ficando por demonstrar o nexo causal entre a existência da conta 27 e a insolvência da empresa, quer como causa da origem, quer como causa do seu agravamento ou quer ainda como tentativa de ocultação, por parte do recorrente, das razões que levaram ao seu decretamento;


P. Caso seja de manter a decisão recorrida, por não se verificar a suscitada oposição de julgados, sempre será de argumentar que errou o Superior Tribunal da Relação ... ao confirmar a legalidade dos critérios usados pela 1.ª instância para determinação do montante indemnizatório previsto al. e) do n.º 2 e do n.º 4 do art. 189.º do CIRE, sem que neles se incluísse o grau de culpa do recorrente;


Q. Como supra se indicou, o recorrente entende que a culpa terá um fator preponderante na determinação da indemnização a atribuir aos credores, não só para evitar o recurso a critérios puramente objetivos, mas também para limitar a responsabilidade dos devedores que, não obstante tenham assumido determinado comportamento lesivo dos interesses patrimoniais da empresa insolvente, não tenham agido de forma determinante à declaração de insolvência ou ao agravamento da sua situação, tornando-se necessário, por isso, uma apreciação casuística das condutas concretizadas;


R. Bem como uma determinação da indemnização a atribuir balizada pelos princípios da proporcionalidade e da proibição do excesso;


S. Ora, a verdade é que da sentença recorrida não consta provado qualquer facto ou circunstância para além do estado de depressão do recorrente, que permita determinar, de forma adequada, o grau de culpa a imputar ao recorrente, mas, olhando para os pontos 13 e 14 da matéria provada vemos que, como já referido, a primordial causa da insolvência foi a proibição legal de realização de festivais, circunstâncias alheias à vontade do recorrente;


T. Nesta medida não vemos como o grau de culpa do recorrente não possa ser evidenciado como diminuto, uma vez que o seu comportamento, em face dos factos provados, pouco ou nenhum impacto gerou quadro geral das causas da insolvência;


U. Ao confirmar a sentença da 1.ª instância, o acórdão recorrido violou a al. h) do n.º 2 do art. 186.º, a al. a) do n.º 2 e o n.º 4 do art. 189.º, todos do CIRE.


Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso de revista excecional ser admitido e julgado procedente e, por via do mesmo, revogar-se a decisão recorrida, substituindo-se por outra que qualifique a insolvência como fortuita. Caso assim não se entenda, deve revogar-se o acórdão recorrido, no segmento da condenação ao pagamento da indemnização, substituindo-se por outro que tome em devida conta o grau de culpa do recorrente, com todas as legais consequências.

12. Cumpre apreciar e decidir.

*


II – Enquadramento facto-jurídico

A – Dos Factos

Foram julgados provados os seguintes factos:


1) A sociedade SN CULTURE, UNIPESSOAL, LDA, foi constituída em 22.04.2014 e apresenta um capital social de 5.000,00€;


2) A sua atividade consistia na promoção de eventos e espetáculos; edição discográfica, consultoria e agenciamento de artistas;


3) O gerente da Requerente, de facto e de direito, é o seu único sócio, AA;


4) Em 05.05.2021, a aludida sociedade apresentou-se à insolvência, alegando apresentar um passivo global de 676.000,45€ e um ativo de 190,00€;


5) Em 17.05.2021, foi proferida sentença declaratória da sua insolvência, a qual transitou em julgado, em 08.06.2021;


6) Por se ter verificado que o património da sociedade não era presumivelmente suficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis, a sentença declaratória da insolvência foi decretada de acordo com o disposto no artigo 39.º, n.º 1, do CIRE;


7) O principal projeto por si desenvolvido foi o Festival ..., que consiste num festival de música eletrónica, aliado às artes performativas e audiovisuais;


8) Foi no ano de 2014 que a requerente assumiu, pela primeira vez, em parceria com a Câmara Municipal de ... e a Direção Regional de Cultura do Centro, a programação e produção do Festival ..., o qual tem lugar no Castelo de ...;


9) Até à presente data, a requerente realizou 5 edições do referido festival;


10) A organização, produção e programação do Festival exigiram investimentos de vulto e, por conseguinte, implicaram custos elevados que a devedora foi procurando suportar, sempre na expectativa de recuperar os investimentos e custos tidos;


11) A sociedade ora insolvente foi, ao longo das 5 edições do festival que já realizou, acumulando dívidas, quer com fornecedores, quer com financiadores aos quais foi recorrendo para fazer face aos pagamentos com artistas, segurança, licenças;


12) Em 25.06.2019, a requerente apresentou-se a processo especial de revitalização, o qual correu termos sob o processo n.º 4049/19.1..., do Juiz ..., do Juízo de Comércio ..., data em que a requerente possuía dívidas na ordem de 651.947,00€, as quais não conseguia fazer face nem regularizar;


13) No âmbito do referido processo especial de revitalização, a requerente apresentou o seu Plano de Recuperação, o qual, após a votação por banda dos credores, foi aprovado e homologado por sentença, datada de 09.12.2019;


14) Todavia, a sociedade ora insolvente viu-se impossibilitada de cumprir tal plano, pois desde Março de 2020, com a sobrevinda da pandemia de SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, encerrou a sua atividade e ficou impedida de realizar o aludido festival no ano de 2020;


15) Dos elementos de contabilidade da sociedade insolvente resulta que, da Conta 27 – «Outros Devedores e Credores», faz parte uma conta denominada “Contas correntes dos Festivais” – Conta 276, que apresenta um saldo devedor à sociedade (um ativo, portanto) que ascende a 486.878,56€, e que está decomposto nas seguintes subcontas:


- Conta 27601 – Festival ... 2015 – 52.919,75€;


- Conta 27602 – Festival ... 2016 – 64.616,69€;


- Conta 27603 – Festival ... 2017 – 167.134,35€;


- Conta 27604 – Festival ... 2018 – 202.207,77€;


16) O tal valor de 486.878,56€ representa o valor global de saídas de dinheiro da sociedade sem haver registo dos correspondentes documentos contabilísticos ou fiscais de suporte;


17) Contabilisticamente, tal valor de 486.878,56€ foi registado numa conta transitória de ativos da empresa (a conta 276), ficando a aguardar pela correspondente compensação, a qual pode ser efectuada por uma de duas vias: com a junção de faturas ou documentos equivalentes de suporte contabilístico ou com o recebimento dos respetivos valores por parte da entidade beneficiária da saída de dinheiro da empresa;


18) Em 2018, encontravam-se por contabilizar faturas no montante global de 125.102,05€, as quais, caso tivessem sido registadas, faria diminuir o saldo da conta 276 nessa importância;


19) O valor de 125.102,05€ respeita a pagamentos efetuados pela empresa devedora, na pessoa do seu gerente, a fornecedores e artistas internacionais contratados para a realização do Festival ...;


20) Em 2017, o capital próprio da sociedade devedora mostrava-se negativo em 183.594,24€;


21) Em 2018, o capital próprio da sociedade devedora mostrava-se negativo em 181.021,27€;


22) Em 2019, o capital próprio da sociedade devedora mostrava-se negativo em 226.086,44€;


23) AA, em virtude da situação deficitária da empresa e da enorme logística subjacente à organização dos festivais que era por assumida sozinho, viu-se psiquicamente afetado, pelo menos desde 2018, tendo sofrido de uma depressão.


Factos não provados


a) O valor correspondente à diferença entre os 486.878,56€ e os 125.102,05€ mencionados nos pontos 16 e 18, respetivamente, foi feito desaparecer por AA;


b) O valor correspondente à diferença entre os 486.878,56€ e os 125.102,05€ mencionados nos pontos 16 e 18, respetivamente, foi usado por AA contra o interesse da empresa e em proveito pessoal ou de terceiro;


c) Foi por lapso que o valor de 486.878,56€ foi introduzido na conta 276 da sociedade ora insolvente;


d) Foi por motivos alheios à devedora e ao seu sócio gerente que as saídas de dinheiro da empresa, na importância global de 486.878,56€, não foram levadas à contabilidade;


e) AA nunca recebeu, por parte da responsável pela contabilidade da empresa ora insolvente, um alerta para a necessidade de entrega das faturas/invoices emitidas por entidades estrangeiras;


f) O valor correspondente à diferença entre os 486.878,56€ e os 125.102,05€ mencionados nos pontos 16 e 18, respetivamente, respeita a outros pagamentos efetuados pela devedora, na pessoa de AA, a fornecedores e artistas contratados para a realização do Festival ..., sem que existam os respetivos documentos de suporte contabilístico.


B. Do Direito


1. Estando nós no âmbito de um recurso de revista excecional, importa ater-nos ao consignado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido pela Formação em 21.06.2023, quanto às questões jurídicas formuladas “ determinar se a qualificação da insolvência como culposa ao abrigo da al. h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE se basta com a verificação objetiva de um incumprimento substancial do dever de manter contabilidade organizada ou se implica ainda a demonstração de culpa ou da existência de um nexo causal com a criação ou agravamento das causas da insolvência, ou até para o conhecimento destas1 e de saber se “a determinação do montante da indemnização a que alude a al. e) do n.º 2 e o n.º 4 do art. 189.º do CIRE (…) deverá tomar na devida consideração a culpa ou o seu grau como fator relevante para o seu apuramento ou não2(…).

1. No Acórdão sob recurso, relativamente ao disposto na alínea h) do n.º 2, do art.º 186, do CIRE3, questionando-se como deve ser interpretado e integrado o conceito, indeterminado, de incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter a contabilidade organizada, quanto à necessidade de um comportamento tendente a esconder, alterar ou adulterar as contas da empresa, considerou-se que a intenção ou os objetivos visados com o comportamento que lhe estavam subjacentes eram totalmente alheios ao juízo a fazer sobre a verificação da situação prevista na norma apontada, até porque nos casos previstos no n.º 2 do art.º 186, o legislador pretendeu prescindir de qualquer análise ou juízo relativamente à culpa do agente, sendo bastante a verificação objetiva dos itens ali enunciados, para a qualificação da insolvência como culposa.


Mais se entendeu no que concerne ao incumprimento de tal obrigação, que o mesmo revelaria quando afetasse o respetivo objetivo, isto é, criar um instrumento pela qual se dá a conhecer a real situação patrimonial e financeira do devedor, de modo compreensível, o que acontecia nos autos.


Contrapõe o Recorrente que o incumprimento substancial verifica-se sempre que determinado comportamento do devedor em face da organização da sua contabilidade demonstre que o principal objetivo foi o de ocultar a realidade financeira da empresa a terceiros, nada constando dos factos assentes que permita subsumir a concreta situação à previsão da aludida al. h) do n.º 2, do art.º 186, ficando por demonstrar o nexo causal entre a existência da “conta 27” e a insolvência da empresa, quer como causa da origem, quer da causa do seu agravamento.

2. Como se sabe, a declaração de insolvência aporta consequências gravosas não só para o devedor, mas também para o tecido económico em geral, gerando situações que obstam ao desenvolvimento dos normais relacionamentos e interações, e levam a contextos disruptivos que afetam não só o insolvente, bem como os que com aquele de algum modo estabeleceram contactos relevantes, compreendendo-se que em prol de uma sã atividade económica, seja objeto de insolvência, o devedor que se encontra na impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas, art.º 3, n.º1, de modo a contrariar a manutenção e crescimento de situações deficitárias, com passivos impossíveis de solver.


Sabendo-se que existem conjunturas que propiciam, ou mesmo determinam uma situação de insolvência, independentemente dos esforços em contrário dos respetivos administradores, estes últimos na definição do art.º 6, n.º1, e fora do âmbito das pessoas singulares, certo é que, muitas vezes as condutas daqueles no que concerne à sua atividade de organização e gestão, contribuem ou são motivadoras do estado de insolvente do devedor.


Deste modo compreende-se que o legislador, através do DL 53/2004, de 18 de Março que aprovou o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE)4 tenha considerado como um dos objetivos visados na reforma pretendida fosse obter uma “mais eficaz responsabilização dos titulares de empresas e dos administradores, como finalidade do novo incidente de qualificação da insolvência, atendendo até ao propósito de evitar insolvências fraudulentas, “o que ficaria seriamente prejudicado” … “caso não sobreviessem quaisquer consequências para os administradores que tivessem contribuído para as situações5.


Assim, identificados dois tipos de insolvência, fortuita e culposa, art.º 185, quanto a esta última6, encontramos a definição, válida para qualquer insolvente, como regra geral, no art.º 186, n.º 1, “ a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação culposa, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores de facto ou de direito, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.


Mostram-se desta forma indicados os requisitos da insolvência culposa, a saber, facto, relativo à conduta, por ação ou omissão do devedor ou dos seus administradores, no período de três anos que antecede o início do processo de insolvência; culpa, na versão de dolo ou culpa grave; e nexo de causalidade entre a conduta, na vertente de ação ou omissão, na criação ou agravamento da situação de insolvência.


Demonstrada a prática dos factos que devam ser subsumidos à imposição prevista, no vertido no n.º 2, no mesmo se contempla uma presunção juris et jure, com vista à qualificação da insolvência como culposa, e assim quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo, prova em contrário, n.º2, parte final do art.º 350, do CC7.

1. Assim importa ater-nos ao teor da previsão legal no caso sob análise, isto é, “Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor, (…) quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham :h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter a contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira.”.


Com efeito, evidencia-se com mediana clareza que a organização da contabilidade constitui instrumento privilegiado para obter a informação e prova da situação económica e financeira da devedora, constituindo aliás os elementos que se configuram como adequados para a abertura do incidente de qualificação, pelo que o seu atendimento, terá uma função mista de punição, por destruição ou ocultação de prova e de extensão do conjunto de situações às quais o regime de insolvência culposa se aplica8, entendendo-se até, que as condutas reportadas podem não causar a insolvência ou mesmo danos9.


De qualquer forma sempre se têm de estar demonstrados, pela factualidade apurada, e o caso particular em discussão10, o concreto preenchimento dos conceitos indeterminados utilizados pelo normativo em causa, sendo que conforme o mesmo diz, o incumprimento deve ser essencial, e assim nada obstando que se traduza no sentido de espelhar a conduta negocial da devedora.

2. Nos presentes autos, relevantemente ficou apurado que a devedora foi constituída em 22.04.2014, com um capital social de 5.000,00€, tendo como atividade a promoção de eventos, e espetáculos; edição discográfica, consultoria e agenciamento de artistas, sendo o Recorrente seu único sócio, e o gerente de facto e direito.


O principal projeto desenvolvido consistia num festival de música eletrónica, o Festival ..., assumindo em 2024, pela primeira vez, a sua programação e produção, em parceria com entidades públicas, tendo realizadas pela Insolvente 5 edições do festival.


A organização, produção e programação do Festival exigiram investimentos de vulto e, por conseguinte, implicaram custos elevados que a Insolvente procurava suportar, na expectativa de recuperar os investimentos e custos tidos, mas ao longo das edições mencionadas foi acumulando dívidas, quer com fornecedores, quer com financiadores aos quais foi recorrendo para fazer face aos pagamentos com artistas, segurança, licenças.


Dos elementos de contabilidade da sociedade insolvente resulta que, da Conta 27 – «Outros Devedores e Credores», faz parte uma conta denominada “Contas correntes dos Festivais” – Conta 276, que apresenta um saldo devedor à sociedade (um ativo, portanto) que ascende a 486.878,56€, e que está decomposto nas seguintes subcontas:


- Conta 27601 – Festival ... 2015 – 52.919,75€;


- Conta 27602 – Festival ... 2016 – 64.616,69€;


- Conta 27603 – Festival ... 2017 – 167.134,35€;


- Conta 27604 – Festival ... 2018 – 202.207,77€;


Tal valor de 486.878,56€ representa o valor global de saídas de dinheiro da sociedade sem haver registo dos correspondentes documentos contabilísticos ou fiscais de suporte.


Contabilisticamente, tal valor de 486.878,56€ foi registado numa conta transitória de ativos da empresa (a conta 276), ficando a aguardar pela correspondente compensação, a qual podia ser efectuada por uma de duas vias: com a junção de faturas ou documentos equivalentes de suporte contabilístico ou com o recebimento dos respetivos valores por parte da entidade beneficiária da saída de dinheiro da empresa.


Em 2018, encontravam-se por contabilizar faturas no montante global de 125.102,05€, as quais, caso tivessem sido registadas, faria diminuir o saldo da conta 276 nessa importância, respeitante esse valor a pagamentos efetuados pela Insolvente, na pessoa do seu gerente, o Recorrente, a fornecedores e artistas internacionais contratados para a realização do Festival ....


Não despiciendo, são os dados de em 2017, o capital próprio da Insolvente mostrava-se negativo em 183.594,24€, em 2018, o mesmo mostrava-se negativo em 181.021,27€ e em 2019, negativo em 226.086,44€, pelo que, de modo simples, o ativo circulante não era o suficiente para pagar aos credores.


Ora como avulta do exposto não estamos perante uma mera discrepância ou desconformidade contabilística, mas sim perante uma organização mais que deficiente e inadequada, que durante algum tempo permitiu o desenvolvimento da atividade pela Insolvente, organização essa que não espelhava a verdadeira situação da empresa, permitindo, diremos, manter o giro em circunstâncias deficitárias, tendo em 25.06.2019, a Insolvente se apresentado a processo especial de revitalização, data em que a requerente possuía dívidas na ordem de 651.947,00€, as quais não conseguia fazer face nem regularizar, tendo apresentado Plano de Recuperação, o qual, após a votação por banda dos credores, foi aprovado e homologado por sentença, datada de 09.12.2019.


No entanto a Insolvente viu-se impossibilitada de cumprir tal plano, pois desde Março de 2020, com a sobrevinda da pandemia de SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, encerrou a sua atividade e ficou impedida de realizar o aludido festival no ano de 2020.


A devedora apresentou-se à insolvência, em 17.05.2021, sob a invocação de um passivo global de 676.000,45€ e um ativo de 190,00€, com sentença transitada em julgado em 8.06.2021 verificando-se que o património da sociedade não era presumivelmente suficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis.


Invoca o Recorrente que a verificação de um ativo aparente na contabilidade da empresa por si gerida não teve por finalidade qualquer ocultação patrimonial da empresa, ou impediu o apuramento das causas da insolvência, carece no entanto de razão para a afastar a qualificação como culposa, pois é manifesto, face ao apurado, que se patenteia um incumprimento substancial, enquadrável na referida al. h) do n.º 2, do art.º 186, que não se mostra contrariado pela situação epidemiológica, que impossibilitou, de forma absoluta, a existência da Insolvente.

3. Quanto à segunda questão, que se prende com o disposto na alínea e) do n.º 2, e n.º 4 do art.º 189, entendeu-se no Acórdão recorrido que sendo certo que perante a atual redação se estava perante um dano, o que devia ser considerado era o que resultava da não satisfação dos créditos, que poderia corresponder à globalidade dos créditos que não fossem satisfeitos, ou apenas a uma parte deles,


A insolvência culposa implicava sempre um nexo de causalidade entre a conduta em causa e os prejuízos que podiam resultar para os credores, não havendo razões válidas para discordar do montante achado, porquanto considerando que apenas revelava a conduta do Recorrente, relativa ao ano 2018, por a inserida no período temporal respeitante ao n.º 1, do art.º 186, registou o valor que estava apontado quanto a esse ano e pese embora fosse discutível tal entendimento, mas não tendo sido questionado pelo Recorrente, foi considerado o valor inscrito na contabilidade relativa a esse ano, 2018, isto é, 202.207,77€, e que uma parte desse valor – 125.102,72€, respeitava ao que tinha sido utilizado para pagamentos a fornecedores e artistas internacionais contratados para o Festival, e desse modo achou o montante, relativo à diferença, 77,105,72€, como o indemnizatório.


Já o Recorrente frisando que a culpa era um fator preponderante na atribuição da indemnização aos credores, devia ser balizada por princípios da proporcionalidade e da proibição do excesso, pelo que o seu grau de culpa seria sempre diminuto.

1. Em causa está a aplicação no art.º 189, nº2, quando a insolvência seja qualificada como culposa, importando nos termos da alínea e) a condenação das pessoas afetadas, como o Recorrente a indemnizarem os credores da Insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças do seu património, reportando o n.º 411, do mesmo preceito.


Ao fazê-lo, o juiz deve fixar o valor da indeminização, ou caso tal não seja possível por não dispor dos elementos necessários para calcular os prejuízos sofridos, os critérios para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença.


Em conformidade, basta que a insolvência tinha sido qualificada como culposa para nascer a obrigação de indemnizar, sem que se tenha de se fazer apelo a qualquer outra fonte, não se confundindo com outras ações indemnizatórias, que possam ser interpostas, com fundamentos diversos.


Por outro lado e sem prejuízo do preceituado no n.º4, vigente para o caso sob análise, ainda assim, pode-se entender, no acolhimentos dos melhores princípios hermenêuticos, que o juiz não estará apenas adstrito à reposição mencionada no n.º 2, mas sim considerar que será permitido ao julgador referenciar outros fatores, que não sejam apenas o recurso a simples operações de subtração do ativo ao passivo, mas também um apelo a quaisquer outras circunstâncias que na situação em concreto, relevaram em termos positivos ou negativos12.

2. Neste âmbito parece ir a pretensão do Recorrente, no entanto, para além da situação de sofrer de uma depressão, conforme resultou apurado a mesma adveio da situação deficitária da empresa e da enorme logística subjacente à organização dos festivais que era por assumida pelo Recorrente, sozinho, que assim o afetaram psiquicamente, não se evidencia quaisquer outras situações a ponderar, caso de por si só estar a desenvolver tal sem colaboradores, pois na opção do exercício de uma atividade, sobretudo se muito exigente, quem se propõe a fazê-lo deve munir-se de todos os instrumentos que permitam o seu cabal desenrolamento.


Deste modo, o montante achado a título indemnizatório e os termos em que o foi, e que aqui não se repetem por fastidioso, surgem como equilibrados e proporcionais aos eventos descritos, mantendo-se nos seus precisos termos.


*


III – DECISÃO


Nestes termos, decide-se negar a revista.


Custas pelo Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.


Notifique.

Lisboa, 16 de novembro de 2023

Ana Resende (Relatora)

Maria Amélia Ribeiro

Graça Amaral


*


Sumário, art.º 663, n.º 7, do CPC.

____________________________________________________

1. (…) Neste conspecto, e ainda que não exista uma oposição jurisprudencial em sentido técnico-jurídico entre os dois arestos, cremos que se mostra curial uma intervenção clarificadora por parte do Supremo Tribunal de Justiça quanto à (des)necessidade da ponderação dos elementos relativos à culpa do agente na aferição do incumprimento substancial da obrigação de manutenção de contabilidade organizada para efeitos de qualificação da insolvência como culposa, nos termos da alínea h) do n.º 2 do art.º 186º do CIRE, assim como ao nexo de causalidade existente entre tal incumprimento e a compreensão da situação patrimonial e financeira da sociedade, justificando-se a admissão do presente meio impugnatório excecional para apreciação desta matéria, pela relevância jurídica que suscita”(…).↩︎

2. (…) sobre a questão da relevância do grau de culpa do afetado (ou ausência dela) a respeito do dever de indemnizar consagrado no art.º 186º nºs. 2 e 4 do CIRE,(…) mostra-se justificativa da intervenção do Supremo Tribunal de Justiça (…)”.

.↩︎

3. ? Diploma a que se fará referência, desde agora, se nada mais for dito↩︎

4. Revogando o Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresas e de Falência, (CPEREF), aprovado pelo DL 132/93, de 23 de abril, e posteriores alterações.↩︎

5. Preâmbulo do DL 53/2004, de 18.03, ponto n.º 40, mais se mencionando que tendo-se inspirado em quanto a certos aspetos pela Ley Concursal espanhola, aprovada pela L 22/2003, de 9 de julho, (…) “ destina-se a apurar (sem efeitos quanto ao processo penal ou à apreciação da responsabilidade civil), se a insolvência é fortuita ou culposa, entendendo-se que esta última se verifica quando a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave (presumindo-se a segunda em certos casos), do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, e indicando-se que a falência é sempre considerada culposa em caso da prática de certos atos necessariamente desvantajosos para a empresa.(…)”↩︎

6. A delimitação da insolvência fortuita é feita por exclusão de partes.↩︎

7. Cf. Acórdão do STJ de 20.06.2017, processo n.º 612/14.5TBVIS-C1.S1. (inédito), Acórdão do STJ de 11.02.2020, processo n.º 6824/17.2T8GMR-A.G1.S1, que apesar da factualidade dever revelar as circunstâncias que preencham as previsões normativas do n.º 2, do art.º 186, torna-se inevitável, a partir daí, a qualificação da insolvência como culposa, dado tratar-se de uma presunção que não admite prova em contrário, Acórdão do STJ de 5.04.2022, processo n.º 1247/13.5TYVNG-A.P1.S1, verificada a demonstração do preenchimento descritos na previsão do n.º 2, do art.º 186, fica abrangida a impossibilidade legal do afastamento do nexo de causalidade, entre a situação descrita e a insolvência ou o seu agravamento que assim se presume, ambos in www.dgsi.pt. No mesmo sentido, de presunções ilidíveis de insolvência culposa constantes no n.º 2, do art.º 186, Adelaide Menezes Leitão, Insolvência culposa e responsabilidade dos administradores na Lei 16/2012, de 20 de abril, in I Congresso do Direito da Insolvência, 2013, pag.274; Engrácia Antunes, As Pessoas Coletivas na Insolvência Culposa, RCE/Rebules, n.º 30, 2018, pág. 75; Maria do Rosário Epifânio, O Incidente de Qualificação da Insolvência, Estudos em Memória do Prof. Doutor J.L. Saldanha Sanches, vol. II, fls. 583-584; Alexandre Soveral, Um Curso de Insolvência, volume I, 2022, pág. 567↩︎

8. Cf. Luís Correia Araújo, Responsabilidade Civil dos Administradores da Sociedade Comercial, a qualificação da insolvência entre as vias para a responsabilização dos administradores, 2022, pág. 372, mencionando.↩︎

9. Cf. Rui Pinto Duarte, in Responsabilidade dos Administradores coordenação dos regimes do CSC e do CIRE, III, Congresso de Direito de Insolvência, pág. 162-163.↩︎

10. Ac. STJ de 2.03-2021, processo 3071/16.4T8TS-F.P1.S1, referenciado pelo Recorrente.↩︎

11. Antes da alteração legislativa operada pela Lei 9/2022, de 11.12, inaplicável aos autos, desde logo por entrar em vigor 90 dias depois da sua publicação, art.º 12.↩︎

12. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2013, pág. 737.↩︎