NULIDADE DO CONTRATO
CONHECIMENTO OFICIOSO
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
EFEITOS
PRESCRIÇÃO EXTINTIVA
ABUSO DO DIREITO
SUPRESSIO
BOA FÉ
DEVER DE LEALDADE
Sumário


I – Declarada oficiosamente a nulidade do negócio jurídico, nos termos dos artigos 286º e 289º, nº 1, do Código de Civil, não pode o devedor fazer uso, em sua defesa, do instituto da prescrição extintiva previsto no artigo 310º, alínea g), do mesmo diploma legal.
II – A válvula de segurança que o sistema jurídico coloca ao seu dispor, conferindo oportunidade à afirmação dos valores da certeza, equilíbrio e segurança jurídica, residirá - provados que sejam os factos correspondentes – na possível avocação da figura do abuso do direito nos termos do artigo 334º do Código Civil, na modalidade de supressio, na medida em que a invalidade do negócio não prejudica a manutenção de deveres de segurança, de informação e de lealdade que acompanham qualquer obrigação, por força do princípio geral da boa fé.

Texto Integral



Revista nº 567/20.7T8VFR.P1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção).

I - RELATÓRIO.

Instaurou Uniagri União de Cooperativas Agrícolas do Noroeste Português, UCRL a presente acção declarativa sob forma comum contra Uniagri II Indústria Agro-alimentar, S.A.

Essencialmente alegou:

Após a constituição da ré pela autora, as partes acordaram que até à concretização da autonomização dos respetivos consumos manter-se-iam as mesmas condições e procedimentos que se vinham praticando desde 4 de Março de 2001.

Nesta data ré iniciou a sua actividade.

O contrato de fornecimento de energia elétrica manter-se-ia, segundo o acordado entre as partes, titulado pela autora, sendo a esta faturados os consumos de ambas e a ré continuaria a reembolsar a autora dos valores correspondentes aos seus consumos de energia elétrica, apurados pela diferença entre a contagem total obtida pela EDP no registo do contador instalado na cabine, que a ré controlava.

Assim e neste contexto, autora passou a debitar mensalmente à ré valores correspondentes aos seus consumos, tendo a ré pago mensalmente à autora, até ao momento em que a ré deixou de proceder aos reembolsos invocando uma reserva contabilística sobre o modo por que deviam os pagamentos ser sustentados.

Continuou, contudo, a ré a consumir a energia elétrica inerente ao funcionamento da sua actividade, deixando de pagar à autora a parte correspondente aos gastos de energia por si efetuados, no período de 7 de Setembro de 2002 a 7 de Março de 2005, sendo esses consumos no valor de € 120.889,05.

Conclui pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe:

a) A quantia €120.889,05, correspondente á sua parte nos consumos de energia, fornecida pela EDP entre 7 de Setembro de 2002 e 7 de Março de 2005 de que não reembolsou a Autora;

b) Juros de mora sobre esta quantia, correspondentes aos últimos 5 anos perfazendo na presente data (6 de Janeiro de 2020) o montante de €24.177,81 e os vincendos até integral pagamento.

A ré contestou invocando a caducidade do direito da autora exigir o pagamento dos custos da energia elétrica, já que, nos termos da Lei dos Serviços Públicos Essenciais, devia ter intentado a acção no prazo de seis meses após a prestação do serviço de fornecimento de energia elétrica; invocou a prescrição do mesmo direito por terem decorrido mais de seis meses sobre a prestação do mesmo serviço também nos termos da Lei dos Serviços Públicos Essenciais e, assim não se entendendo, pelo decurso do prazo quinquenal previsto na alínea, g) do artigo 310º do Código Civil e ainda pelo decurso do prazo de prescrição da obrigação de restituir com fundamento em enriquecimento sem causa, a prescrição da obrigação de pagamento de juros pelo decurso do prazo quinquenal previsto na alínea d) do artigo 310º do Código Civil, contado a partir do momento em que se verificou a prescrição da obrigação de pagamento do capital e o abuso do direito em virtude de estar a reclamar o pagamento de um crédito depois de se ter mantido inerte durante dezoito anos.

Além disso, impugnou a quase totalidade da factualidade alegada na petição inicial e a prova documental oferecida pela autora e conclui pela sua absolvição do pedido em função da sucessiva procedência das exceções perentórias que deduziu e não procedendo nenhuma delas, pela total improcedência da acção.

A autora replicou pugnando pela total improcedência das exceções deduzidas pela ré e invocou a nulidade do acordo celebrado entre a autora e a ré no sentido de a primeira ceder à segunda energia elétrica onerosamente, pedindo, a título subsidiário, a condenação da ré a restituir à autora a quantia de € 120.889,05, por força da nulidade do contrato celebrado entre ambas, acrescido de juros de mora à taxa legal contados desde a citação até integral pagamento.

Foi proferida sentença em 1ª instância que:

A) Declarou nulo o contrato inominado de cedência de energia eléctrica celebrado entre as partes.

B) Condenou a a pagar à Autora a quantia de 120.889,05 (cento e vinte mil, oitocentos e oitenta e nove euros e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento;

C) Absolveu a do demais peticionado.

Interpuseram a Ré e A. recurso de apelação, sendo o desta última na modalidade de recurso subordinado.

Foi proferido acórdão do Tribunal da Relação do Porto que julgou improcedente o recurso independente interposto por Uniagri II Indústria Agro-alimentar, S.A. e bem assim o recurso subordinado interposto por Uniagri União de Cooperativas Agrícolas do Noroeste Português, UCRL, neste caso não obstante a procedência da ampliação da decisão da matéria de facto, por não ter tido qualquer influência na decisão final, confirmando, em consequência, a decisão recorrida proferida em 29 de Outubro de 2021, nos segmentos impugnados.

Veio a R. Uniagri II Indústria Agro-alimentar, S.A. interpor recurso de revista, apresentando as seguintes conclusões:

A. O presente recurso visa debruçar-se sobre a decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto no âmbito dos autos à margem identificados, e a qual, em suma, manteve a decisão de 1.ª instância e, portanto, a condenação da Ré a pagar à Autora a quantia de € 120.889,05, acrescida de juros desde a citação até integral e efetivo pagamento.

B. O Acórdão Recorrido encontra-se em clara contradição com um acórdão proferido em 7 de março de 2019 pelo Tribunal da Relação de Guimarães no âmbito do processo n.º 876/18.5T8BRG.G1, no qualé abordada a mesma questão essencial de Direito, no domínio da mesma legislação, e perante base factual idêntica.

C. Apesar da dupla conforme que, nos termos do artigo 671.º do CPC, impediria o recurso de revista, encontram-se reunidos os requisitos de admissibilidade do Recurso Excecional de Revista elencados na alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.

D. Consideram-se requisitos para a admissão do Recurso Excecional de Revista nos termos do normativo supracitado a existência de“(i) uma relação de identidade entre a questão que foi objeto de cada um dos acórdãos em confronto, a qual pressupõe que a subsunção jurídica feita em qualquer das decisões tenha operado sobre o mesmo núcleo factual; (ii) a natureza essencial da questão de direito formulada para o resultado que foi alcançado em ambas as decisões; (iii) a identidade substancial do quadro normativo em que se verifica a divergência”

E. A questão fundamental de direito apreciada pelos Tribunais da Relação em ambos os acórdãos supra identificados, consiste em saber se o instituto da prescrição prevalece, ou não, sobre a possibilidade de invocação da nulidade do negócio jurídico a todo o tempo.

F. Só da leitura dos sumários de cada um dos acórdãos em contradição é possível entender estar em causa a mesma questão fundamental de Direito, já que no Acórdão Fundamento se pode ler, quanto à parte que interessa para efeitos de recurso “(…) IV- O instituto da “prescrição” para além de endereçado à realização de critérios de conveniência ou oportunidade, tem consigo uma perspetiva de justiça, com a ponderação de uma inércia negligente do titular do direito em exercitá-lo, o que faz presumir uma renúncia ou, pelo menos, o torna indigno da tutela do Direito, em harmonia com o velho aforismo «dormientibus non succurrit jus». V- Razões de segurança e certeza jurídicas impõem que o instituto da “prescrição”, mesmo na sua vertente extintiva ou negativa, prevaleça sobre a possibilidade de invocação da nulidade do negócio jurídico a todo tempo, devendo assim esta considerar-se precludida sempre que o direito emergente do mesmo negócio, sem a validade imputada, se mostre extinto por prescrição.” Enquanto o entendimento do Tribunal da Relação do Porto no Acórdão Recorrido foi o seguinte: “1.O contrato de cedência de energia elétrica em que são partes o cliente final e o terceiro a quem é cedida a energia elétrica enferma de nulidade por incidir sobre objeto juridicamente impossível e também por violar norma imperativa (artigo 280º, 1, do Código Civil). 2. A declaração oficiosa de nulidade de negócio jurídico opera independentemente do decurso do prazo prescricional que seria aplicável às obrigações que dele emergiriam, se fosse válido e pode ser declarada a todo o tempo, sem prejuízo da verificação de causas originárias de aquisição de direitos incompatíveis com a invocação desse vício ou da verificação de uma situação de abuso do direito a determinar a preclusão desse conhecimento oficioso. 3. Os juros de mora contados sobre o capital objeto de obrigação de restituir a cargo da e fundada em declaração oficiosa de nulidade de um certo contratoapenassãodevidosa contardacitaçãoda réparaaação emque édecretada a obrigação de restituir o capital.”

G. Não obstante, é amplamente aceite que para se considerar como estando em causa a mesma questão fundamental de direito, o núcleo fáctico terá de ser necessariamente idêntico, à luz dos normativos aplicáveis (cfr. Abílio Neto, Código de Processo Civil Anotado (5 edn, Ediforum 2020) 1216.).

H. No que toca ao Acórdão Recorrido, em termos de matéria factual, importa o seguinte: a Autora e a Ré celebraram um contrato inominado de cedência de energia elétrica, tendo, em 1.ª instância, o Tribunal considerado que o referido contrato estava dependente da autorização prévia por parte da EDP, de acordo com o artigo 40.º do Despacho n.º 18413-A/2001, publicado no dia 1 de setembro de 2002, e que como tal não se verificou, o contrato padecia de uma nulidade. Consequentemente, a Ré foi condenada a pagar à Autora a quantia de € 120.889,05 (cento e vinte mil oitocentos e oitenta e nove euros e cinco cêntimos).

I. Em sede de recurso, veio a Ré e Recorrente, conforme já tinha feito em sede de 1.ª instância, arguir, entre outros, que mesmo que tal nulidade se verificasse de facto, tal circunstância nunca afastaria a prescrição do direito que também ocorreu, já que a doutrina e a jurisprudência são unânimes em considerar que a norma relativa à prescrição da obrigação suscetível de ser aplicado ao negócio que, entretanto, foi considerado nulo, prevalece sobre o regime da nulidade. E, dado que no caso em apreço o prazo de prescrição aplicável é de 5 anos, a Ré deveria ser absolvida do pedido. O Tribunal da Relação do Porto manteve, no entanto, a decisão de 1.ª instância, por considerar que o regime da nulidade do negócio jurídico se sobrepõe às regras da prescrição.

J. Já quanto ao Acórdão Fundamento, o mesmo debruça-se sobre um negócio jurídico celebrado entre o respetivo autor e a ré, mais concretamente, um contrato de mútuo, o qual o autor requereu em 1.ª instância que fosse declarado nulo e, consequentemente, fosse a ré condenada a restituir o valor mutuado.

K. Ou seja, considera-se que existe uma similitude fáctica entre os acórdãos em contradição pelo seguinte:

Em ambos os casos foi celebrado um negócio jurídico entre as partes envolvidas no litigio;

Em ambos os casos é levantada a questão de nulidade do respetivo negócio jurídico;

Em ambos os casos os réus vêm lançar mão do instituto da prescrição e arguir a sua prevalência sobre o regime da nulidade;

Em ambos os casos os Tribunais de 1.ª instância concluem pela verificação da nulidade do negócio jurídico e debruçam-se sobre a questão de prevalência, ou não, do instituto da prescrição sobre o regime da nulidade.

Em ambos os casos os Tribunais da Relação confirmam que o negócio jurídico em causa é nulo e voltam a debruçar-se sobre a questão de prevalência, ou não, do instituto da prescrição sobre o regime da nulidade, sendo a resposta a essa questão fulcral para ambas as decisões.

L. Analisada a apreciação da questão fundamental em discussão em ambos os arestos judiciais, perante situações em tudo equivalentes, dúvidas não podem restar quanto à evidente contradição de julgados.

M. É inequívoco que a questão relativa à aplicação do instituto da prescrição num cenário de nulidade do negócio jurídico foi a questão essencial para a resolução de ambos os litígios.

N. E no que para a contradição importa, não são relevantes as diferenças na matéria de facto provada em cada um dos casos, já que tais factos não foram a causa determinante das diferenças das decisões proferidas nos acórdãos em confronto.

O. Nem tampouco releva para a questão o facto de os prazos de prescrição serem distintos, pois ainda que no Acórdão Recorrido o prazo prescricional seja de 5 anos e no Acórdão Fundamento o prazo já seja de 20 anos, as disposições que ditam a aplicação do instituto aplicam-se independentemente da longevidade do prazo prescricional.

P. De todo o modo, a exigência de identidade fáctica nunca deverá ser entendida como uma necessidade de que a matéria fáctica dos dois litígios seja exatamente a mesma, pois tal seria, obviamente, excessivo e desproporcional e tornaria a norma da alínea c) do número 1 do artigo 672.º do CPC totalmente obsoleta, inútil e desprovida de sentido, dada a impossibilidade de configurar dois casos completamente idênticos.

Q. Pelo exposto, apenas de pode concluir que tanto no Acórdão Fundamento como no Acórdão Recorrido foi apreciada exatamente a mesma questão fundamental de direito, perante base factual em tudo idêntica, tendo, no entanto, as decisões sido manifestamente contraditórias.

R. Constata-se que as decisões constantes do Acórdão Recorrido e do Acórdão Fundamento resultaram da interpretação e aplicação de um quadro normativo idêntico, a saber, aos regimes da prescrição e da nulidade, nomeadamente dos artigos 268.º, 298.º e 300.º a 310.º, todos do Código Civil.

S. Conclui-se assim que o Acórdão recorrido e o Acórdão Fundamento foram proferidos no âmbito da mesma legislação, dos pontos de vista formal e material e, consequentemente, pelo preenchimento do requisito em análise.

T. Quanto à violação da lei pelo Acórdão Recorrido, considera a Recorrente que o Acórdão Recorrido incorreu em violação da lei ao considerar que a declaração de nulidade de negócio jurídico opera independentemente do decurso do prazo prescricional aplicável, considerando assim que o instituto prescricional não prevalece sobre o regime da nulidade.

U. Isto porque, a doutrina e a jurisprudência são praticamente unânimes em considerar que a norma relativa à prescrição da obrigação suscetível de ser aplicado ao negócio que, entretanto, foi considerado nulo, prevalece sobre o regime da nulidade.

V. Um dos principais argumentos do Douto Tribunal da Relação do Porto contra a tese propugnada pela Requerente, assenta na ideia de ser “contraditório afirmar, por um lado, que um certo negócio é nulo e por isso insuscetível de produzir efeitos jurídicos ab initio e, por outro, afirmar que desse negócio nulo emergem obrigações que com o decurso do tempo se extinguem por prescrição”.

W. No entanto, há que ter em conta o seguinte: “As afirmações da doutrina no sentido de que o negócio nulo não produz efeitos ab initio e de que o negócio anulável, enquanto não for anulado, produz provisoriamente os seus efeitos devem ser habilmente entendidas, pois, na prática, se ninguém invocar a nulidade nem a anulabilidade, como acontecerá a mais das vezes na realidade jurídica, quer os negócios nulos quer os anuláveis se consolidam na ordem jurídica. Por outro lado, uma vez declarada a nulidade ou obtida a sentença de anulação, os efeitos são retroativos, em ambos os casos, não distinguido o CC a nulidade da anulabilidade, como faz a doutrina, ao afirmar que o negócio nulo não produz efeitos ab initio, o que em rigor dispensaria a ideia de retroatividade (…) No mesmo sentido, não corresponde à realidade jurídica a ideia de que o negocio nulo nunca produziu efeitos, mesmo antes da sentença de nulidade, ou de que o negócio nulo seria um nada-jurídico. Se nunca for declarada a nulidade, o negócio acabará por ser tratado pelas partes por terceiros e pela sociedade, como válido. Mesmo aceitando-se a ideia, no plano dos princípios, segundo a qual o negócio nulo não produz efeitos como negócio jurídico, de qualquer forma existe como facto, na vida social e jurídica e produz efeitos legais (Oliveira Ascensão, 2003: 381; Hörster, 1992: 589) (…)”.

X - Ou seja, o que é verdadeiramente contraditório é arguir que a nulidade produz efeitos ab initio, sem mais, e que só por isso o regime da prescrição não tem força para ser aplicado.

Z. Assim, é precisamente pelo facto de a nulidade não fazer desaparecer da ordem jurídica o contrato celebrado entre as partes, que a prescrição produz os seus efeitos.

AA.Um outro argumento invocado no Acórdão Recorrido, decorre do facto de a doutrina, em geral, apenas admitir a prevalência do instituto da prescrição sobre a nulidade, nas situações de prescrição aquisitiva (e não, prescrição extintiva, como aquela em discussão nos autos).

BB.No entanto, não decorre da lei qualquer distinção de regime entre a prescrição extintiva e a prescrição aquisitiva, suscetível de justificar distintas consequência quando em confronto com o regime da nulidade.

CC.Segundo o Tribunal a quo, tal distinção decorre do facto de a prescrição extintiva “não constituir por efeito do decurso do prazo prescricional um direito novo, autónomo e originária, como se verifica na usucapião”.

DD.Ora salvo o devido respeito tal argumento cede perante os princípios da segurança e certeza jurídica em que assenta a prescrição extintiva, inexistindo razões que possam sustentar que a prescrição extintiva merece menor proteção que a prescrição enquanto criadora de direitos novos.

EE.Por fim, o Tribunal da Relação do Porto fundamenta a sua decisão no argumento de que a prescrição não pode prevalecer sobre a nulidade, uma vez que nulidade é invocável a todo o tempo.

FF.No entanto, em bom rigor, o direito a invocar a nulidade de um negócio não consubstancia um direito indisponível e, como bem se sabe, é amplamente aceite que o instituto da prescrição apenas pode ser afastado caso a indisponibilidade do direito seja plena e absoluta.

GG.Neste sentido, veja-se o acórdão da Relação de Évora, acima citado, e que no seu sumário refere: “Embora a nulidade do negócio seja invocável a todo o tempo (o que não foi) e possa ser declarada oficiosamente pelo tribunal (cfr. artigo 286.º do Código Civil), tal não significa, que à restituição da importância mutuada não seja aplicável prazo prescricional e possa ser afastado caso a indisponibilidade do direito seja plena e absoluta.

GG. Neste sentido, veja-se o acórdão da Relação de Évora, acima citado, e que no seu sumário refere: “Embora a nulidade do negócio seja invocável a todo o tempo (o que não foi) e possa ser declarada oficiosamente pelo tribunal (cfr. artigo 286.º do Código Civil), tal não significa, que à restituição da importância mutuada não seja aplicável prazo prescricional e possa ser reconhecida a prescrição do direito a tal quantia pelo decurso do tempo, não obstante a nulidade do negócio que importa a restituição, sendo de concluir que as obrigações decorrentes de negócios nulos não são imunes à eficácia da prescrição”

HH.Acresce que, não resulta da lei que a nulidade de um negócio, não esteja sujeita ao regime da prescrição, tal como aliás decorre do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19 de Maio de 2020, processo n.º 5598/18.4T8LSB.L1-7, publicado em www.dgsi.pt:a nulidade de negócio jurídico não constitui motivo de suspensão ou interrupção da prescrição, conforme resulta da interpretação a contrario do disposto nos artigos 318 a 327º, do C. Civil, sendo certo que, o regime da prescrição é inderrogável -artigo 300, do C.Civil- e, a renúncia da prescrição é admitida depois de haver decorrido o prazo prescricional -artigo 302, n.º 1, do C. Civil”.”

II. Por fim, invocar que a prescrição não se aplica aos casos de nulidade do negócio jurídico uma vez que a parte pode recorrer ao instituto do abuso do direito, não se afigura admissível, na medida em que a verificação do abuso de direito (e a sua prova) constitui um ónus para a parte que o invoca significativamente mais gravoso, nomeadamente, quando comparado com o regime da prescrição.

JJ. Em suma, é manifesto que a prescrição procede mesmo perante a declaração de nulidade do negócio, pelo que, uma vez que prazo prescricional – neste caso de 5 anos à luz do artigo 310.º, alínea g) do CC - já decorreu, sempre a prescrição deve ter-se por verificada.

KK.Em face do exposto, deve o Acórdão Recorrido ser revogado e concluir-se pela procedência da exceção perentória de prescrição e, consequentemente, pela absolvição da Ré do pedido formulado pela Autora.

Contra-alegou a A., formulando as seguintes conclusões:

1. Para efeito da sua admissibilidade do recurso interposto ao abrigo do art.672.º/1, c), do CPC, é necessário que: i) os Acórdãos em confronto tenham proferido respostas contrárias sobre a mesma questão fundamental de direito. A questão julgada por um e outro tem de ser idêntica e não apenas análoga; ii) a oposição entre acórdãos deve ser frontal e não apenas implícita; iii) a questão de direito apreciada deve ser essencial para a determinação do resultado numa e noutra das decisões, a qual tem como pressuposto a identidade dos respetivos pressupostos de facto; iv) a divergência deve verificar-se num quadro normativo substancialmente idêntico, com reflexos no sentido da decisão tomada.

2. Nos acórdãos em confronto, a similitude manifesta-se tão só em dois aspetos: i) ambos os Acórdãos apreciaram a validade de dois negócios jurídicos; ii) as duas decisões concluem serem os mesmos nulos. No mais,não existe identidade entre as decisões, razão por que não se verificam os pressupostos ínsitos no art.672.º/1, c), do CPC.

3. A Recorrente alega, como fundamento da pretensa oposição, o facto de no caso julgado pelo Acórdão Recorrido o prazo de prescrição da sua obrigação ser de 5 anos, enquanto no acórdão fundamento tal prazo é de 20 anos e convoca o art.310.º, g), do Código Civil para sustentar a pretensa identidade normativa.

4. Ao contrário do alegado pela Recorrente, constata-se que em passo algum do Acórdão recorrido é afirmado que a prescrição da obrigação da Recorrida se deu - ou daria - no aludido prazo de 5 anos, nem tal resulta da Decisão da 1ª instância, onde se conclui que tendo o direito da Recorrida sido oficiosamente reconhecido com base na nulidade do contrato o prazo de prescrição é o ordinário de 20 anos (art.309.º do CC), que ainda não decorreu, o que foi aceite pela Recorrente, tendo-se formado o correspondente caso julgado (art.635.º/5, CPC).

5. Por outro lado, também não é exato, ao contrário do alegado pela Recorrente que o prazo de prescrição de 20 anos (art.309.º do CC) não é relevante para apreciação do recurso. É-o e em termos decisivos.

6. Mesmo admitindo a identidade de prazos de prescrição de 20 anos das duas obrigações julgadas pelos Acórdãos, esta questão não assume relevância fundamental para a decisão do caso dos autos. Uma vez que,

7. Segundo o Acórdão fundamento, o decurso do prazo ordinário de prescrição de 20 anos releva para a improcedência da ação movida pela Autora.

8. Inversamente, no caso sub judice, o prazo ordinário de prescrição de 20 anos não decorreu (facto que a Recorrente não questiona).

9. Não existe, assim, uma contradição de julgados sobre a mesma questão fundamental de direito, porque os elementos de facto relevantes para a ratio da regra jurídica não coincidem num e noutro caso (Amâncio Ferreira, Manual dos Recurso em Processo Civil, 8.ª ed, p.116).

10.Para se manifestar a essencialidade da questão de direito para o resultado de uma (Acórdão fundamento) e outra (Acórdão recorrido) decisão, essa essencialidade teria de conduzir a que a aplicação da doutrina do Acórdão fundamento ao caso dos autos conduzisse à (eventual) prescrição do direito da Recorrida, pelo decurso do prazo de 20 anos, prescrição que não se manifesta nos presentes autos.

11.A patente dissemelhança entre os Acórdãos demonstra a inexistência de decisões contraditórias sobre a mesma questão fundamental de direito, conduzindo à inadmissibilidade do recurso, por inverificação dos pressupostos do art.672.º/1, c) do CPC.

Subsidiariamente,

12.Na nulidade, é a própria ordem jurídica que não tolera o vício e que não permite que o negócio chegue a ter eficácia, não aceita que o vício seja sanado, permite a sua arguição por qualquer interessado e sem limite de tempo, e determina o seu conhecimento oficioso (art.286.º do CC). A decisão judicial que declara a nulidade nada altera no estatuto do negócio: este já era nulo e continua a sê-lo, mas agora esta sua condição torna-se certa (Pedro Pias de Vasconcelos; Oliveira Ascensão).

13.Distinta é a situação jurídica emergente da usucapião (prescrição aquisitiva), de contornos distintos da prescrição extintiva, como enfatiza a doutrina: “a nulidade opera ipso iure. Daí poder ser conhecida oficiosamente pelo tribunal e poder ser declarada a todo o tempo. Claro, porém, que a não fixação de um prazo para ser arguida não afeta os direitos que hajam sido adquiridos por usucapião” (Pires de Lima /Antunes Varela; Manuel de Andrade; Mota Pinto; Castro Mendes; Carvalho Fernandes; Maria Clara Sottomaior).

14.Como se salienta no Acórdão recorrido, não é por acaso ter a doutrina apenas ressalvado a usucapião e não a prescrição extintiva.

15.É contraditório afirmar, por um lado, que um negócio é nulo e insuscetível de produzir efeitos jurídicos ab initio e, por outro, que desse negócio nulo emergem obrigações que com o decurso do tempo se extinguem por prescrição, não obstante a aludida nulidade.

16.Sendo o negócio nulo não há obrigações (e sua prescrição) que desse negócio emerjam.

17.As razões que determinam que a usucapião (prescrição aquisitiva) se sobreponha à declaração de nulidade do negócio que esteve na origem da situação possessória conducente à usucapião não são transponíveis para a prescrição, não havendo analogia entre uma figura e outra que justifique a aplicação das mesmas regras a um e outro instituto.

18.O decurso do prazo da prescrição extintiva extingue a obrigação que a ela se achava sujeito, mas não se constitui por efeito do decurso do prazo prescricional um direito novo, autónomo e originário, como se verifica na usucapião.

19.Afirmar que o direito à invocação da nulidade, não sendo indisponível nem sendo declarado legalmente imprescritível, está sujeito à prescrição, é contraditório com a afirmação legal de que a nulidade é invocável a todo o tempo.

20.Seja como for, o prazo de prescrição da obrigação da Recorrida seria o ordinário de 20 anos (art.309.º do CC). A aplicação da doutrina do Acórdão fundamento ao caso dos autos não conduz à prescrição do direito da Recorrida pelo decurso deste prazo, por este não se ter completado.

21.Ao contrário do que a Recorrente sustenta “a prescrição pode ser invocada e reconhecida mesmo perante a declaração de nulidade do negócio, pelo que, no caso em apreço e tendo já decorrido o prazo de 5 anos, previsto no artigo 310.º, alínea g) do CC, é manifesto que a prescrição operou” para além de constituir uma contradição de termos, não é exato, por ter sido rejeitada pela Sentença e por o Acórdão recorrido não afirmar que a prescrição da obrigação da Recorrida se deu - ou daria - no aludido prazo de 5 anos.

22.Ainda assim, o eventual prazo de prescrição de 5 anos não é aplicável ao regime da nulidade do negócio sub judice. Como é destacado na Sentença e Acórdão recorrido, declarada a nulidade estabelece-se entre as partes uma relação de liquidação, devendo ser restituído tudo o que foi prestado ou o valor correspondente como se o negócio não tivesse sido realizado, traduzido num só crédito (art.289.º/1, do CC): Ac. RP, de 16/12/2015, P. 638/12.3TBFLG.P1: Ac. RC, de 12/06/2018, P.17012/17.8YIPRT.C1; Ac. STJ, de 7/10/2003, Revista n.º 2345/03 - 1.ª Secção, in Sumários do STJ.

23.Não estando em causa a apreciação da responsabilidade da Ré decorrente do contrato celebrado com a Autora, mas a obrigação de restituir decorrente da relação de liquidação do negócio declarado nulo, o prazo de prescrição será sempre o de 20 anos (arts. 289/1, e 309.º do CC) e não o do art.310.º, g) do CC, prazo que, no caso em apreço, não decorreu. Diga-se, ainda, que a prescrição prevista no art.310.º do CC não foi sindicada pelo Acórdão fundamento.

24.Pelo exposto, resulta que a Recorrente faz um uso temerário do recurso de revista excecional com o único objeto de ver alterada a decisão conforme das instâncias que sempre decidiram pela inexistência, no caso em apreço, de um prazo de prescrição de 5 anos. Procura, assim, a Recorrente obter através do presente recurso uma decisão irrecorrível.

Por acórdão da Formação, proferido em 24 de Maio de 2023, foi admitida a presente revista excepcional.

II – FACTOS PROVADOS.

Foi dado como provado:

1 - A autora é uma União de Cooperativas que se dedica à actividade de prestação de serviços e a ré é uma sociedade que se dedica ao abate de gado e produção de carne e sua comercialização.

2 - Por escritura pública celebrada em 12 de Setembro de 2000, no Cartório Notarial de..., a autora constituiu, em conjunto com outros agentes económicos, a sociedade ré UNIAGRI II – Indústria Agro-alimentar, S.A..

3 - O capital social da ré, em cerca de 97%, constituído por bens móveis e imóveis que integravam parte do património da autora, e que naquele acto foram transmitidos para a ré, designadamente o prédio constituído por complexo fabril destinado a abate e transformação de carnes e subprodutos com secções auxiliares, descrito [e inscrito] em seu nome na Conservatória do Registo Predial de ..., freguesia de ..., com o n.º 77/19860303.

4 - O conjunto dos imóveis que integravam e integram o património da autora, bem como os imóveis que passaram para a titularidade da ré, continuaram a ser abastecidos de energia elétrica fornecida pela EDP, a partir de um Posto de Transformação (PT) instalado numa cabine elétrica existente no interior do acima referido prédio transmitido para a ré, delimitado com a cor vermelha na planta junta sob doc. 3 com a petição.

5 - A autora remeteu à ré, em 21 de Dezembro de 2004, a carta constante do doc. 102 junto com a petição, designadamente da mesma constando a interpelação da autora à ré para proceder ao pagamento do gasto de energia [eléctrica] apurado de € 103.643,12.

6 - A autora instaurou em 3 de Novembro de 2005 ação declarativa contra a ré, que correu termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de ... com o n.º 708/05.4..., na qual peticionou fosse declarado que a autora tinha o direito a ser reembolsada pela ré do valor da energia elétrica consumida nas suas instalações fabris entre 7 de Setembro de 2002 e 7 de Março de 2005 (…) e condenar-se a ali e aqui ré a pagar à ali e aqui autora a quantia de € 120.889,05, acrescida de juros à taxa legal desde a citação da ré, tendo a ré contestado a ação.

7 - A acção referida em F) [3.3.1.6] veio a ser julgada extinta por deserção, por decisão de 9 de Maio de 2011.

8 - A baixada de energia elétrica que abastece a cabine provém de condutores em média tensão que se encontram amarrados num “poste de fim de linha”, implantado em terreno pertencente à autora, por onde descem os cabos que depois de atravessarem pelo subsolo toda a largura desse terreno e a própria estrada, entram na referida cabine da ré, localizada no prédio identificado.

9 - Local onde se encontram instalados três transformadores com uma potência total de 2.800 kilowatts (KW), que continuaram a pertencer à autora, sendo um de 800 KW e os outros dois de 1000 KW cada um, bem como os respetivos quadros elétricos e cabos.

10 - Cabos que formam uma intrincada rede subterrânea, que a partir dessa cabine atravessam os logradouros da autora e da ré até aos seus diversos setores e edifícios.

11 - A fim de aproveitarem estas estruturas já implantadas e em pleno funcionamento quando a ré foi constituída, autora e ré acordaram, em 30 de Agosto de 2002, autonomizar os consumos de energia de cada uma delas, a partir da referida cabine cedendo, para tanto, a autora à ré o seu transformador de 800 KW e esta àquela o espaço necessário, dentro da referida cabine, para a autora aí instalar um transformador que satisfaça as suas necessidades de funcionamento.

12 - As entidades licenciadoras aprovaram a separação física do posto de transformação, com vista à autonomização das duas entidades consumidoras.

13 - Autora e ré acordaram ainda, na mesma data, que, até à concretização da autonomização dos respetivos consumos, manter-se-iam as mesmas condições e procedimentos que se vinham praticando desde 4 de março de 2001, data em que a ré iniciou a sua atividade, mantendo-se o contrato de fornecimento de energia celebrado entre a EDP e a autora, com o n.º B300293001, a quem, como até então, continuariam a ser faturados os consumos de ambas.

14 - E a ré continuaria a reembolsar a autora dos valores correspondentes aos seus consumos de energia elétrica, apurados pela diferença entre a contagem total obtida pela EDP no registo do contador instalado naquela cabine, que a ré controlava, e a contagem registada pelo contador trifásico instalado no edifício polivalente da autora, ao qual os então administradores da ré também tinham acesso.

15 - Autora e ré acordaram igualmente que os consumos apurados nos termos acima referidos seriam debitados mensalmente pela autora à ré através de notas de débito.

16 - Tal foi praticado pelas partes desde março de 2001 até 8 de Setembro de 2002, tendo a ré pago à autora, mensalmente, os referidos valores, no total de € 83.454,29.

17 - A autora emitiu as notas de débito n.ºs 11, de 21/10/2002 e 13, de 27 de Novembro de 2002, nos montantes de € 4.229,30 e € 4.226,67, respetivamente, que a ré não pagou.

18 - A partir daí, a autora não voltou a emitir notas de débito relativas à parte dos consumos da ré.

19 - O valor dos consumos da ré entre 8 de setembro de 2002 e 7 de março de 2005 totalizou € 120.889,05.

20 - Ascendendo a € 134.111,04 + IVA a totalidade da energia consumida por ambas as partes, tendo a autora satisfeito tal valor à EDP.

21 - A ré usou o transformador de 800 kw, mas protelou a cedência do espaço dentro da cabine elétrica para que a autora aí instalasse o transformador adequado às suas necessidades, impedindo a autonomização dos consumos.

22 - A autora não tem por objeto social, nem aptidão técnica, nem está autorizada a fornecer energia elétrica a terceiros.

23 - A autora não foi autorizada pelas entidades administrativas competentes a ceder à ré energia elétrica.

24 - Na acção referida a autora reconheceu os acordos.

25 - Por cheque datado de 9 de Outubro de 2002, no valor de € 4.637,66, a ré pagou à autora a nota de débito n.º 10, respeitante ao consumo por si efetuado entre 8 de Agosto de 2002 e 8 de Setembro de 2002.

26 - Na acção referida a autora [ré] invocou que deixou de pagar os consumos posteriores porque a autora, não obstante as diversas solicitações efetuadas, não lhe apresentava as faturas da EDP e não explicava os consumos que lhe imputava, estando convencida que estava a pagar a mais, sendo necessário um encontro de contas, além de que a autora não podia faturar a eletricidade por meio de nota de débito, situação para a qual a ré foi alertada pelo revisor oficial de contas e de que deu conta à autora.

27 - Na pendência da acção referida ocorreram negociações entre autora e ré tendentes à celebração de diversos acordos quanto às diversas questões pendentes entre ambas.

28 - O anterior administrador e acionista da ré, AA, reconheceu a existência dos acordos através do doc. 3 junto com a resposta, datado de 7 de Dezembro de 2009.

29 - De acordo com o n.º 4 das condições gerais de fornecimento de energia em média e alta tensão, da apólice do contrato de fornecimento de energia elétrica celebrado entre a autora e a EDP: “O consumidor não poderá fornecer energia a terceiros sem prévio acordo da EDP”.

III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.

Efeitos da declaração oficiosa de nulidade do negócio, nos termos dos artigos 286º e 289º do Código Civil. (Im)possibilidade de o devedor invocar, em seu favor, o instituto da prescrição extintiva previsto no artigo 310º, alínea g), do Código Civil. Hipótese de avocação da figura do abuso do direito na modalidade de supressio, nos termos gerais do artigo 334º do Código Civil.

Passemos à sua análise:

A questão jurídica que cumpre analisar na presente revista pode sintetizar-se nos seguintes termos:

Declarada oficiosamente a nulidade de determinado negócio jurídico, encontram-se (ou não) os seus efeitos, consignados no artigo 289º, nº 1, do Código Civil, condicionados e/ou paralisados pelo instituto da prescrição extintiva, invocado oportunamente pela parte interessada, que nesse caso prevaleceria (ou não).

Na situação sub judice, a presente acção deu entrada em juízo em 17 de Fevereiro de 2020 e a Ré foi citada em 24 de Fevereiro do mesmo ano.

As prestações exigidas encontram-se compreendidas no período temporal de 7 de Setembro de 2002 a 7 de Março de 2005 (isto é, 15 anos após o vencimento da última das prestações periódicas em causa).

Considerando a possibilidade do funcionamento prevalecente do instituto da prescrição extintiva prevista no artigo 310º, alínea g), do Código Civil, as obrigações da Ré encontrar-se-iam prescritas, devendo ser, portanto, absolvida do pedido.

Entendendo que os efeitos da declaração da nulidade, respeitante à destruição retroactiva do negócio e ao dever de restituição de tudo o que tenha sido prestado, são alheios e imunes ao decurso do prazo de prescrição (extintiva) e sua invocação, que sobre eles não prevalece, então mantém-se incólume a obrigação de restituição do valor correspondente à prestação realizada pela A. em favor da Ré e não satisfeita por esta, por força do disposto no artigo 289º, nº 1, do Código Civil.

Foi neste sentido, aliás, o entendimento das instâncias.

Na sentença argumentou-se que:

Tratando-se a obrigação de restituição de uma obrigação legal, decorrente do artigo 289º, nº 1, do Código Civil, deixamos de estar perante obrigações periódicas mensais e passamos a estar face a uma obrigação de restituição, não sendo, por isso, aplicáveis os prazos mais curtos de prescrição previstos no artigo 310º, alínea g) e no artigo 482º, ambos do Código Civil.

O acórdão recorrido, perfilhando a mesma interpretação jurídica, enfatizou que:

É contraditório afirmar, por um lado, que o negócio nulo e insusceptível de produzir efeitos ab initio, e por outro, que desse negócio nulo possam emergir obrigações que com o decurso do tempo se venham a extinguir com base no instituto da prescrição.

Sustentar que o direito à invocação da nulidade, não sendo indisponível nem sendo declarado legalmente imprescritível, está sujeito à prescrição, é contraditório com a afirmação legal de que a nulidade é invocável a todo o tempo (artigo 286º do Código Civil), sendo pelo contrário um daqueles direitos potestativos que não está sujeito a prescrição (veja-se o nº 1 do artigo 298º do Código Civil).

De facto, se a invocação da nulidade, legalmente, pode ser feita a todo o tempo, isso significa que não tem de ser invocada dentro do prazo de vinte anos, como seria se a tal invocação fosse aplicável o instituto da prescrição.

Em sentido oposto, aduz a ora recorrente:

A norma relativa à prescrição da obrigação é susceptível de ser aplicada ao negócio que, entretanto, foi considerado nulo, prevalecendo assim a prescrição sobre o regime da nulidade.

Mesmo aceitando-se a ideia, no plano dos princípios, que o negócio nulo não produz efeitos como negócio jurídico, o certo é que existe de facto na vida social e jurídica e produz efeitos legais.

O negócio jurídico no caso em apreço foi celebrado, executado e cumprido pelas partes e, durante a sua vigência, produziu todos os seus efeitos, como se de um negócio válido se tratasse, só vindo a ser declarado nulo em resultado da intervenção oficiosa do tribunal.

Logo, a nulidade não é susceptível de fazer desaparecer o negócio jurídico pelo que, por esta razão, pode a prescrição ser invocada e reconhecida.

O facto de a nulidade poder ser invocada a todo o tempo não afasta o princípio da inderrogabilidade da prescrição, razão pela qual esta pode, ainda neste contexto, ser invocada pela parte a quem aproveita.

Estribou-se ainda no decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 7 de Março de 2019 (relator Barroca Penha), proferido no processo nº 876/18.5T8BRG.G1; no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25 de Maio de 2017 (relator Mata Ribeiro), proferido no processo nº 1123/09.6TBOLH-G.E1; no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de Maio de 2020 (relatora Isabel Salgado), proferido no processo nº 5598/18.4T8LSB.L1, todos publicados in www.dgsi.pt.

Nestes arestos alinham-se os seguintes argumentos que militam no sentido da aplicação do instituto da prescrição extintiva mesmo que o respectivo negócio tenha sido declarado nulo nos termos dos artigos 286º e 289º do Código Civil:

- o instituto da prescrição serve uma perspectiva de afirmação de justiça.

- se a prescrição aquisitiva funciona nos casos de declaração de nulidade do negócio, não existe motivo para não funcionar igualmente, nessas situações, e nos mesmos termos, a prescrição extintiva.

- o artigo 298º do Código Civil sujeita a prescrição todos os direitos, apenas excepcionando os direitos indisponíveis e aqueles que a lei declare isentos de prescrição (não se incluindo nestas categorias o direito resultante da declaração de nulidade).

- a nulidade de negócio jurídico não constitui motivo de suspensão ou interrupção da prescrição, conforme resulta da interpretação a contrario do disposto nos arts. 318º a 327º, do C. Civil, sendo certo que o regime da prescrição é inderrogável (art. 300º, do C. Civil) e a renúncia da prescrição só é admitida depois de haver decorrido o prazo prescricional (art. 302º, nº.1, do Código Civil).

- razões de segurança e certeza jurídica impõem a prevalência do instituto da prescrição extintiva sobre os efeitos da declaração de nulidade do negócio.

Quid juris?

A declaração de nulidade do negócio jurídico gera, por força de norma imperativa da lei (artigo 289º, nº 1, do Código Civil), a obrigação de restituição de tudo aquilo que houver sido prestado (ou do valor correspondente), gerando-se assim uma relação de liquidação.

(Sobre o tema, vide António Menezes Cordeio, in “Tratado de Direito Civil. Parte Geral. Tomo I”, Almedina 2009, 3ª edição, a páginas 873 a 876; e, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Maio de 2018 (relator António Joaquim Piçarra), proferido no processo nº 18858/12.9T2SNT.L1.S2; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Julho de 2007 (relator Fonseca Ramos), com a referência 07A1839, publicados in www.dgsi.pt).

Esta nova realidade jurídica que resulta da declaração de nulidade do negócio é diversa, por sua própria natureza, da que existia no plano meramente contratual (sem a declaração de nulidade) e que se reconduzia, neste caso, à consensual fixação e vigência duradoura de um conjunto de prestações periódicas e sucessivas a cargo da Ré, como contrapartida pelo serviço prestado continuamente pela A. em seu favor.

(Isto sem prejuízo da existência de relevantes limitações ao objecto do dever de restituição motivadas e produzidas pela própria realidade social e económica, que se traduz na existência de um acontecimento no plano factual, o qual não pode ser, enquanto tal, desconsiderado pelo sistema jurídico.

A este propósito, vide Clara Sottomayor, anotação ao artigo 289º do Código Civil, in “Comentário ao Código Civil. Parte Geral”, Universidade Católica Editora, 2014, a páginas 716 a 720).

Tal programa contratual (então vigente) assentava no pressuposto de que o negócio mantido entre as partes, e que as vinculava sinalagmaticamente, era válido, por conforme ao ordenamento jurídico, sendo assim cumprido por ambas nesse mesmo contexto e com essas características próprias e singulares.

Porém, com a declaração oficiosa de nulidade do negócio deixou agora de ser possível considerar, no plano jurídico, o regime de prestações periódicas mensais antes convencionadas, com a estrutura concreta que assumiam, e que era vivenciado entre as partes contraentes, sem deixar contudo de salvaguardar-se a prestação continuada que foi realizada pela fornecedora (A.) (que não pode ser objecto de qualquer tipo de restituição) e os efeitos associados ao pontual cumprimento das ditas prestações periódicas pela contraparte (que não justificam, por sua natureza, qualquer tipo de devolução dos montantes envolvidos).

Com o automático desaparecimento, no plano jurídico, dessa anterior e concreta realidade, por força de norma imperativa da lei, ficará inevitavelmente prejudicada a hipótese do funcionamento da prescrição extintiva (que nada tem rigorosamente a ver, em termos da sua natureza, estrutura jurídica e finalidades típicas, com a denominada prescrição aquisitiva – como acertada e desenvolvidamente se explicou no acórdão recorrido -, e cuja similitude a recorrente para estes efeitos indevidamente invocou), uma vez que não se pode atender, neste momento, à vigência da obrigação de pagamento periódico a que respeitavam as facturas juntas aos autos.

(Situação similar verifica-se a respeito dos efeitos da resolução do contrato, equiparáveis aos efeitos da nulidade nos termos do artigo 433º do Código Civil, em que igualmente se estabelece, em princípio, uma relação de liquidação.

Sobre esta matéria, vide o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12 de Junho de 2018 (relator Jorge Arcanjo), proferido no processo nº 17012/17.8YIPRT.C1, publicado in www.dgsi.pt.).

A este propósito, refere Manuel de Andrade in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Volume II, Almedina 1974, a página 418:

“(…) a nulidade absoluta é determinada por motivos de interesse público. No entanto, o princípio de que a nulidade absoluta pode, por via da acção, ser invocada a todo o tempo, não prevalece sobre a doutrina da prescrição aquisitiva”.

No mesmo sentido, escreve Carlos Alberto da Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil”, Coimbra Editora, 2005, 4ª edição, a página 620:

“Regime das nulidades: (…) São insanáveis pelo decurso do tempo, isto é, são invocáveis a todo o tempo (artigo 286º). A possibilidade da sua invocação perpétua pode, porém, ser precludida, no aspecto prático, pela verificação da usucapião (prescrição aquisitiva), se a situação de facto foi actuada de acordo com os efeitos a que tendia o negócio”.

Não deixa de ser deveras sintomático, para a discussão que nos ocupa, que os ditos autores não tenham feito a mais leve alusão, neste mesmo contexto, à figura da prescrição extintiva, de verificação muito mais vulgar e frequente, dado a maior abertura e menor exigência dos seus requisitos legais, sendo os prazos em que assentam, em regra, mais curtos do que aqueles que estão na base da prescrição aquisitiva (de tal forma longos que permitem por isso, na sequência de uma situação de manutenção prolongada da posse, a aquisição originária de um direito de natureza real).

Daí inexistir cabimento legal para avocar o pretenso funcionamento do instituto da prescrição extintiva, figura jurídica que não prescinde da validade do negócio enquanto seu pressuposto básico e essencial, que lhe imprime a inerente e necessária configuração (ontologicamente diferente de uma relação de liquidação).

Por outro lado, a circunstância objectiva de o negócio ter existido no plano real e concreto dos factos experienciados pelos celebrantes, inclusive durante longos anos a fio até ser oficiosamente declarado nulo pelo tribunal, não altera de modo algum esta análise de cariz jurídico, bem como a inerente conclusão que se extraiu.

É óbvio e manifesto que a declaração de nulidade do negócio não significa, nem quer dizer, que nada aconteceu afinal entre as partes, como se tudo não tivesse passado de pura ficção, o que é desmentido pela simples constatação da existência inegável de uma relação de facto que aquelas entre si construíram para prosseguir no terreno os recíprocos interesses concretos de que eram titulares.

A A. forneceu (embora ilegalmente) durante anos e anos um serviço de electricidade à Ré, mediante o pagamento mensal de uma contrapartida monetária correspondente, tendo tido lugar a respectiva facturação nos termos acordados.

Nenhuma dúvida, portanto, sobre a existência desta relação contratual de facto que as partes entre si livremente mantiveram.

E também há que reconhecer que existem efeitos jurídicos que se produzem em consequência desta mesma relação de facto, não obstante a declaração de nulidade do negócio que venha a ser declarada.

(Refere-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Outubro de 1997 (relator Miranda Gusmão), publicado in BMJ nº 470, a página 565:

“Ao efeito da nulidade (anulatório) pode, todavia, a lei estabelecer certos desvios, sob pressão de atendíveis necessidades práticas.

(…) Isto significa que o princípio do efeito retroactivo de anulação – o efeito não apenas in personam, mas in rem – admite limitações e só pode afirmar-se como regra geral” ).

Assim:

Na sequência da própria previsão normativa do artigo 289º, nº 3, do Código Civil, operam as vicissitudes associadas ao regime da posse e, nesse preciso contexto, pode verificar-se, como se assinalou, a prescrição aquisitiva, que constitui uma aquisição originária do direito de propriedade, fundada no instituto da usucapião, nos termos gerais do artigo 1287º do Código Civil.

Dever-se-á reconhecer e salvaguardar outrossim o funcionamento das regras da acessão, verificados que sejam os respectivos requisitos.

Dever-se-á observar ainda, em relação ao contraente de boa fé, o conjunto de normas respeitantes ao direito a frutos e benfeitorias.

(Vide, sobre este ponto, Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, Volume I, Coimbra Editora, 1987, a página 265).

E, principalmente, há que assinalar que o modo de execução efectiva e voluntária que moldou esta relação de facto, a qual se constituiu e perdurou no tempo, condicionará necessariamente os contornos dos efeitos associados ao objecto do dever de restituição determinado pela declaração de nulidade do negócio.

Contudo, quando a lei, por motivos de interesse público que ultrapassam, como se compreende, a natureza meramente privatística do negócio, fulmina de nula e de nenhum efeito a relação em apreço, produz-se uma consequência própria e incontornável no plano puramente jurídico que exclui, por si, a aplicação de outros regimes (neste caso de prescrição extintiva) que tinham como pressuposto essencial, indispensável e decisivo, a sua intocada validade.

(Como salienta Mota Pinta in obra citada supra, a página 620:

“O negócio nulo não produz, desde o início (ab inicio), por força da falta ou vício de um elemento interno ou formativo, os efeitos a que tendia.

(…) O regime e os efeitos mais severos da nulidade encontram o seu fundamento teleológico em motivos de interesse público predominante. As anulabilidades fundam-se na infracção de requisitos dirigidos à tutela de interesses predominantemente particulares.”.

No mesmo sentido escreve Pedro Pais de Vasconcelos in “Teoria Geral do Direito Civil”, Almedina 2022, a página 732:

“A diferença entre a nulidade e a anulabilidade decorre fundamentalmente da diversidade dos interesses envolvidos numa e noutra. Na nulidade estão tipicamente em jogo interesses de ordem pública, enquanto na anulabilidade, estão tipicamente em jogo interesses interprivados. Por isso, na nulidade, é a própria Ordem Jurídica que não tolera o vício e que não permite que o negócio chegue a ter eficácia, não aceita que o vício seja sanado, permite a sua arguição por qualquer interessado sem limite de tempo, e determina o seu conhecimento oficioso.”.

Dito de outro modo, a prescrição extintiva visa proteger as legítimas expectativas do devedor relativamente à inexigibilidade de prestações (transformadas em obrigações naturais nos termos do artigo 304º, nº 2, do Código Civil) a que, de outro modo, se encontraria vinculado, fazendo-o por razões que se prendem com a inércia, desinteresse ou incúria do credor em responsabilizá-lo, por determinado período temporal legalmente definido; este mesmo instituto, nos moldes em que tipicamente se configura, nada tem a ver com os negócios que juridicamente não podem, ab initio, por interesses e imperativos de natureza pública, produzir qualquer tipo de efeito, não se lhes aplicando por essa mesma razão.

Isto na medida em que tais prestações (para além da consolidação dos efeitos espontaneamente assumidos pelos contraentes – prestação de serviços e pagamento entretanto realizados -, que não são objecto de restituição) deixam juridicamente de existir para dar lugar a uma obrigação nova e única, no âmbito da relação de liquidação, com características totalmente diferente daquelas.

O direito do devedor de contrapor ao credor a paralisação/extinção do crédito pela prescrição assentava na possibilidade de ter o negócio como juridicamente válido na sua configuração inicial.

Se em vez da obrigação (inicial) do pagamento de determinada prestação periódica ficarmos apenas face a uma simples relação de liquidação de tudo o que houver sido prestado (e concretamente do preço não pago pelo fornecimento efectivo de todos os serviços de energia eléctrica que beneficiaram materialmente o seu utente) perde-se irreversivelmente a delimitação temporal que constituía a referência indispensável e justificativa do funcionamento deste instituto da prescrição.

A situação ainda é mais clara quando estão em causa – como sucede na situação sub judice – prazos especiais (e excepcionalmente curtos) de prescrição (extintiva) que estão intimamente conexionados com a natureza periódica dos pagamentos que deveriam ter sido realizados.

Não é possível, perante uma declaração de nulidade do negócio, pretender salvaguardar um regime jurídico que apenas era aplicável nessas exactas circunstâncias (e não noutras).

De enfatizar ainda que a circunstância da nulidade ser invocável a todo o tempo por qualquer interessado e poder ser, nessas mesmas circunstâncias, declarada oficiosamente pelo tribunal, conforme consagra o artigo 286º do Código Civil, é logicamente incompatível com a possibilidade de avocação da figura da prescrição, destinada a evitar/paralisar a produção dos seus efeitos jurídicos próprios.

Sendo o negócio nulo, por razões que se prendem com interesses públicos e imperativos que a lei quer primacialmente salvaguardar, e não existindo limites temporais para essa mesma declaração de nulidade, as partes deixam, em consequência, de poder dispor ou influir sobre o conteúdo do negócio que é assim invalidado.

Tudo se transforma, como se assinalou, numa pura relação de liquidação, pelo que há que integrar ou equiparar a situação sub judice (de declaração de nulidade do negócio) na figura dos direitos que se tornam indisponíveis, nos termos e para os efeitos do artigo 298º, nº 1, do Código Civil.

Ou seja, não é possível admitir que a declaração (imposta legalmente) de que o negócio é nulo, e que por isso não produziu qualquer efeito ab initio, comporte a contraditória possibilidade de uma das partes, uma vez declarada a nulidade, ainda conseguir paralisar qualquer direito de que outra seja titular no âmbito do mencionado dever de restituição, com fundamento, directo e exclusivo, nos concretos termos de um negócio que nessa altura já não vale, nem nunca valeu aliás juridicamente, desde a sua origem.

A única válvula de segurança do sistema jurídico que neste caso pode conferir oportunidade à afirmação dos valores da certeza, equilíbrio e segurança jurídica residirá, uma vez provados os factos correspondentes, no recurso à figura do abuso do direito, nos termos do artigo 334º do Código Civil, na modalidade de supressio, o que não foi colocado no âmbito da discussão dos autos.

São abrangidas pela supressio situações em que as circunstâncias que rodearam o não exercício de um direito pelo seu titular, por um período temporal significativo, são susceptíveis de gerar na contraparte a fundada confiança quanto ao seu não exercício futuro, o que merecerá por isso a tutela da ordem jurídica.

(Será aqui de equiparar, por identidade de razões, a inalegabilidade da nulidade pela parte que gerou na outra, por um período temporal significativo, a fundada confiança na validade do negócio e da renúncia em fazê-lo, ao aproveitamento que a mesma pretenda oportunisticamente realizar, nas mesmas exactas circunstâncias, de uma nulidade oficiosamente declarada pelo tribunal).

Todavia, para a verificação deste impedimento à efectivação do direito do credor não é suficiente o seu mero não exercício conjugado com o decurso do tempo (como acontece na prescrição extintiva); exige-se ainda a concreta demonstração dos elementos circunstanciais que alicercem, consolidando no caso em apreço, a situação de confiança incutida na contraparte, o que, por si, justifica a avocação do instituto do abuso do direito, nos termos gerais do artigo 334º do Código Civil.

(Sobre a figura da supressio vide António Menezes Cordeiro in “Da Boa Fé no Direito Civil”, Volume II, Almedina 1984, a páginas 819 a 821 e “Tratado de Direito Civil. V. Parte Geral. Exercício Jurídico”, Almedina, 2015, 2ª edição, a página 344 a 357).

Seria porventura essa (e não outra) a via que, a ser seguida, poderia eventualmente tutelar, de algum modo, a posição da devedora perante a inusitada e inexplicável demora da A. em accioná-la (o que igualmente e em contrapartida demonstra a inadequação e impertinência da avocação do regime da prescrição extintiva com esse mesmo desiderato).

Conforme refere António Menezes Cordeiro in obra citada supra, a página 876:

“A invalidade do negócio pode não prejudicar a manutenção de deveres de segurança, de informação e de lealdade que acompanham qualquer obrigação, por força da boa fé. Esta, na linguagem de Canaris manter-se-á, então, mau grado a falta do dever de prestar principal.

Tais deveres irão acompanhar toda a relação de liquidação, podendo manter-se post pactum finitum”.

(Sobre a relação entre a supressio e o instituto da prescrição, vide o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24 de Novembro de 2020 (relatora Sílvia Pires), proferido no processo nº 4472/18.9T8VIS-A.C1, publicado in www.dgsi.pt, onde se enfatiza que:

“A prescrição e a suppressio não se confundem, nem se excluem, daí que a suppressio não deixe de ter espaço num sistema jurídico, como o nosso, dotado de um quadro minucioso das repercussões do tempo nas situações jurídicas.

A supressio não desempenha entre nós um papel complementar da prescrição, atuando em situações em que a prescrição falha na obtenção da justiça do caso concreto, obedecendo antes a uma finalidade própria – a proteção de uma situação de confiança legítima da contraparte do direito inativado durante um período significativo de tempo (um não exercício eloquente)”.

Versando situações concretas de supressio, vide, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Junho de 2018 (relator Henrique Araújo), proferido no processo nº 10855/15.9T8CBR-A.C1-S1; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Novembro de 2021 (relator Jorge Dias), proferido no processo nº 17431/19.5T8LSB.L1.S1; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Abril de 2021 (relator Fernando Samões), proferido no processo nº 7268/18.4T8LSB-A.L1.S1; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Abril de 2021 (relator Ferreira Lopes), proferido no processo nº 2359.0TBVCD.P2.S1; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Dezembro de 2013 (relator Fernandes da Silva), proferido no processo nº 629/10.9TTBRG.P2.S1, todos publicado in www.dgsi.pt.).

Pelo que, concordando com o acórdão recorrido, a revista é negada.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 16 de Novembro de 2023.

Luís Espírito Santo (Relator)

Ana Resende

Maria Olinda Garcia

V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.