INVALIDADE
ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
AÇÃO DE ANULAÇÃO
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
Sumário


Sendo o juízo de Comércio competente para apreciar o pedido de declaração de invalidade de uma deliberação social, deverá ser também competente para apreciar o pedido conexo ou subsequente respeitante às consequências contratuais do negócio cuja realização foi deliberada, por tal poder ainda caber no conceito de ação “relativa ao exercício de direitos sociais”, para efeitos do art.128º, n.1, alínea c) da LOSJ, porquanto o autor não sustenta a sua pretensão em vícios de natureza puramente civilística do negócio, mas sim numa projeção contratual de deliberações de natureza societária.

Texto Integral



Processo n. 5266/21.0T8CBR-A.C1.S1


Recorrente: Auto-Garagem de Coimbra, Ldª e outros


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


1. AA propôs, no juízo de Comércio da comarca de Coimbra, ação declarativa com processo comum contra:


“Auto-Garagem de Coimbra, Ldª”, BB e mulher, CC, “Gesmobility, Ldª”, DD, EE e “Marcopetróleos - Comércio de Combustíveis, Ldª”.


O autor alegou serem nulas as deliberações tomadas na assembleia geral da 1ª ré, realizada em 13 de novembro de 2017, e formulou os seguintes pedidos:


- I -


a) seja decretada a nulidade de todas as deliberações tomadas pela Ré Auto-Garagem de Coimbra, Lda., na reunião da sua assembleia geral de 13 de novembro de 2017. Quando assim se não entenda, e subsidiariamente, sejam declaradas nulas as deliberações tomadas na reunião da sua assembleia geral de 13 de novembro de 2017, de trespasse parcial do estabelecimento comercial da Auto-Garagem de Coimbra, Ldª e de atribuição de poderes ao Réu BB, como gerente daquela sociedade, para outorgar a escritura de trespasse, que incluiu a transmissão de imóveis;


b) condenada a Ré Gesmobility, Ldª a reconhecer que, por efeito de tal declaração de nulidade, é nula e de nenhum efeito a transmissão pela Auto-Garagem de Coimbra, Ldª e a correspondente aquisição pela Gesmobility, Ldª, documentada pela escritura de trespasse de 30 de novembro de 2018, do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana


da freguesia de ... sob o artigo matricial nº 5107, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 963/...; e do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia de ... sob os artigos 2058, 2060 e 1551, descrito na mesma Conservatória do Registo Predial sob o nº 4115/... e a transmissão por trespasse dos demais bens e valores afetos ao estabelecimento comercial, definidos naquela escritura, com as legais consequências; e bem assim condenada a reconhecer que é igualmente nulo e de nenhum efeito o trespasse formalizado pela mesma escritura, na parte em que versa sobre os demais bens e valores


do ativo e passivo referidos naquela escritura pública;


c) Determinado o cancelamento dos registos de aquisição a favor da Ré Gesmobility, Ldª dos bens imóveis das descrições prediais nº 963 da freguesia de ... e nº 4115 da mesma freguesia de ..., do Município de ..., na Segunda Conservatória do Registo Predial de ...;


d) Condenados todos os réus a reconhecerem a nulidade de tal negócio jurídico, com as legais consequências.


Ou, subsidiariamente:


- II -


a) declarado ineficaz em relação à sociedade Auto-Garagem de Coimbra, Ldª, o negócio jurídico chamado de trespasse, que incluiu no título jurídico que o formalizou para além dos demais valores do ativo e passivo da Auto-Garagem identificados naquela escritura pública, também a transmissão onerosa dos imóveis das descrições prediais nº 963 e nº 4115 da freguesia de ..., do Município de ..., presentemente com registo de aquisição a favor da Ré Gesmobility, Ldª, feito com base em tal escritura pública de trespasse, na Segunda Conservatória do Registo Predial de ..., com as legais consequências;


b) determinado, por efeito de tal ineficácia, o cancelamento dos registos de aquisição a favor da Ré Gesmobility dos bens imóveis referidos em I;


c) condenados todos os Réus a reconhecer a ineficácia jurídica de tal negócio jurídico, com as legais consequências.


2. Os réus Auto-Garagem de Coimbra, Ldª, BB e CC apresentaram contestação conjunta onde excecionaram a falta de legitimidade do autor para deduzir os pedidos formulados nas alíneas b) a d) do ponto I e os pedidos formulados subsidiariamente, por tal legitimidade ativa caber à Sociedade Auto-Garagem, Ldª. Invocaram a caducidade do direito alegado pelo autor, por as deliberações em causa serem anuláveis e não nulas, bem como a inoponibilidade à Gesmobility, Ldª de qualquer eventual declaração de nulidade da escritura de trespasse celebrada em 30 de novembro de 2018.


Também os réus Gesmobility, Ldª, Marcopetroleos - Comércio de Combustíveis, Ldª, DD e EE apresentaram contestação conjunta, invocando também as exceções suscitadas pelos demais réus; defenderam-se igualmente por impugnação e deduziram reconvenção.


3. Por decisão de 24.11.2022, o juízo de Comércio declarou-se incompetente para conhecer de todos os pedidos formulados pelo autor, com exceção do pedido formulado no ponto I – a): declaração de nulidade das deliberações tomadas na assembleia geral da 1ª ré, realizada em 13 de novembro de 2017. Consequentemente, foram os réus absolvidos da instância quanto aos demais pedidos.


4. Tendo o autor interposto recurso de apelação, a segunda instância delimitou o objeto do recurso tendo em vista o conhecimento das seguintes questões:


«1ª- decidir se a competência para conhecer de todos os pedidos cabe ao juízo de comércio, por se tratar de uma ação que visa o exercício de direitos sociais, nos termos e para os efeitos do art. 128°, al. c) da Lei da Organização do Sistema Judiciário; e, em caso negativo,


2ª - decidir se os autos devem ser remetidos ao juízo central cível da mesma comarca para conhecimento dos pedidos, relativamente aos quais a decisão recorrida se considerou incompetente


E decidiu revogar a decisão da primeira instância, julgando competente o juízo de Comércio para conhecer de todos os pedidos deduzidos pelo autor.


5. Os réus “GESMOBILITY, Ldª”, “MARCOPETROLEOS - Comércio de Combustíveis, Ldª”, DD e EE interpuseram recurso de revista, em cujas alegações formularam as seguintes conclusões:


«A) As presentes alegações de recurso visam colocar em crise a douta decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, consubstanciando-se a respectiva motivação:


A - nos termos do disposto no artigo 671º, nº 2, b) do CPC – recurso de acórdão da Relação que aprecia decisão interlocutória que recai sobre a relação processual, em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito:


- a) com fundamento em violação de lei substantiva, que pode consistir tanto em erro de interpretação ou de aplicação - artigo 674º, nº 1 a) do CPC;


- b) violação ou errada aplicação de lei de processo - artigo 674º, nº 1 b) do CPC;


- c) violação do disposto na Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.8, na redacção conferida pela Lei n.º 40-A/2016, de 22.12, que estabeleceu as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário, no seu artigo 128.º


Não obstante, sem prescindir, por mera cautela de patrocínio,


B - nos termos do disposto no artigo 671º, nº 2, a) do CPC – recurso de acórdão da Relação que aprecia decisão interlocutória que recai sobre a relação processual, sendo o recurso sempre admissível.


B) A posição controvertida dos aqui RR/Recorrentes reconduz-se tão só e apenas à celebração de um negócio jurídico, que traduz obrigações de natureza obrigacional, com obrigações recíprocas estabelecidas entre duas sociedades comerciais: a Auto-garagem de Coimbra e a Gesmobility, Lda.


O A./Recorrido não interveio, em momento algum, na celebração de qualquer negócio jurídico em que tenham intervindo os aqui Recorrentes ou a Auto-garagem de Coimbra, de que aquele é mero sócio.


A ser considerado competente – o que não se concede - o Juízo de Comércio de Coimbra teria que dirimir todas as questões controvertidas já aludidas anteriormente (em termos sintéticos), incluindo pedido reconvencional e liquidação em sede de execução de sentença, afastando-se de forma evidente do seu desígnio de especialização, como visado com o legislador, “caindo num campo” de actuação que deve ser confiado em exclusivo ao Juízo Central Cível de Coimbra.


C) Encontrando-se o poder jurisdicional repartido entre os diversos tribunais, cada um deles detém a sua fracção própria, a qual constitui a sua competência, existindo regras de competência que determinam como é feita tal repartição.


Tais “regras” atribuem competência aos tribunais, tomando em consideração os termos (objectivos e subjectivos) que caracterizam cada acção.


A incompetência de um tribunal é a insusceptibilidade desse “tribunal apreciar determinada causa por os critérios determinativos da sua competência lhe não concederem uma medida de jurisdição suficiente para essa apreciação. A lei infere a existência de quatro tipos de incompetência do tribunal: a incompetência absoluta, a incompetência relativa, a violação de pacto privativo de jurisdição e a preterição de tribunal arbitral”.


D) A incompetência absoluta provém de infracção das regras da competência legal internacional e da competência legal interna material e hierárquica.


Sendo que a “nível interno, mais concretamente no âmbito dos tribunais judiciais, a competência reparte-se em função da matéria, da hierarquia, do valor da causa e do território (nº 2 do art. 60º; cfr. também o nº1, do art. 37º da LOSJ)”, verifica-se que, no que respeita à referida competência em razão da matéria, o art. 211º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.


O nº 1, do art. 40º, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovado pela Lei n.º 62/2013, de 26/01, e o art. 64º, do CPC, fazem a transposição para a lei ordinária dos princípios constitucionais, consagrando aquele preceito que “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”, e este que “São da competência dos Tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”, estabelecendo-se, assim, a competência residual dos tribunais judiciais no confronto com as restantes ordens de tribunais constitucionalmente consagradas.


E) As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotadas de competência especializada (art.º 65º, do CPC).


A competência em razão da matéria actua no plano da contraposição dos tribunais judiciais aos outros tribunais, impondo-se casuisticamente verificar se tal competência para conhecer dessa causa se encontra atribuída a outras ordens jurisdicionais, sendo que, caso o não esteja, a competência para conhecer do caso caberá aos tribunais judiciais. Estes, “e só estes surgem como a ordem de jurisdição também vocacionada para o julgamento das questões que a lei não inclui na esfera de competência de Tribunais integrados noutras jurisdições, o mesmo é dizer que a jurisdição dos Tribunais Judiciais está dotada de uma força expansionista, só comprimida através da presença de jurisdições com carácter especial”


F) A infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal (art.º 96º, al. a), do CPC).


Pressupõem tais normas a existência de várias ordens jurisdicionais.


Nos termos da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.8, na redacção conferida pela Lei n.º 40-A/2016, de 22.12), que estabeleceu as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário, no seu artigo 128.º, vai referido que:[…]


G) Quaisquer matérias que sejam estranhas ao critério determinativo de competência dos juízos de comércio devem ser expurgadas da apreciação jurisdicional nesta sede.


Mais ainda quando – bem se entende – não devem ser submetidas a julgamento matérias que ab initio se constata serem descartáveis, retirando da instância matéria que naturalmente tornaria o processo mais denso, mais complexo, mais moroso.


H) Pelo que, como corolário que nos parece óbvio, tem que imperar uma interpretação restritiva ao que vai definido no normativo (artigo 128º da LOSJ que delimita a competência dos juízo de comércio).


Veja-se, neste sentido, o que resulta expresso em acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 01.06.2017, proferido no Procº. 5874/15.8T8LSB.L1-A.S1, da 2ª. Secção, em que foi relator o Senhor Conselheiro Abrantes Geraldes.


Neste aresto é referido que a criação de secções dos tribunais judiciais de 1ª instância com competência especializada visa proporcionar melhores condições para a correcta e célere apreciação das matérias em causa.


Escreve-se nesse douto aresto que “a solução actual (do artº. 128º. da LOSJ) é o resultado de uma evolução que se tem verificado nas leis de organização judiciária com paulatina introdução da especialização, designadamente na área do direito privado”


E acrescenta-se ainda que “o teor do art. 128º da LOSJ permite constatar com facilidade que a competência não se estende a todas as questões que objectiva ou subjectivamente tenham natureza comercial, sendo restrita àquelas que, no prudente critério do legislador, mais justificavam a separação da esfera de competência residual atribuída às Secções Cíveis”.


Por isso, “a enunciação das acções que dele (do artº. 128º. da LOSJ) constam permite traçar um critério que atina no essencial com questões que, de forma mais directa, estão ligadas à vida das sociedades comerciais: em torno das deliberações sociais, do exercício de direitos sociais, de eventos ligados à extinção e liquidação de algumas sociedades e, ainda, com especial interesse para o caso, da insolvência e da revitalização de empresas”.


Analisando criticamente essa norma legal, refere-se no douto acórdão, que “outro poderia ter sido o critério adoptado atribuindo, designadamente, às Secções de Comércio competência para a apreciação de quaisquer litígios em torno das sociedades comerciais ou que indirectamente tivessem conexão com as matérias especificamente previstas.


Mas não foi essa a opção do legislador que, para além de enunciar as concretas acções que devem ser interpostas nessas secções especializadas, se limitou a expandir essa competência para os incidentes e apensos de cada um dos processos e bem assim para os processos de execução das decisões neles proferidas”


É que “a razão de ser desta opção é facilmente perceptível. Sendo a criação de Secções de Comércio uma solução que visa permitir uma resolução mais correcta e mais célere de litígios ligados a empresas e sociedades comerciais, revelar-se-ia seria contraproducente, ao menos na perspectiva da celeridade, a atribuição de uma competência que abarcasse todo e qualquer litígio que tivesse alguma relação com essas entidades comerciais”.


I) Deste modo, estando consolidada na jurisprudência a interpretação do artº. 128º. da LOSJ, no sentido de que a competência material dos Tribunais de Comércio se restringe às acções nesta norma expressamente referidas, seus incidentes, apensos e execuções, pelas razões que acabámos de transcrever do acórdão do STJ de 1/6/2017, dúvidas não existem de que este tribunal de comércio não tem competência material para conhecer dos pedidos das alíneas b), c) e d) e pedidos subsidiários da petição inicial.


J) Com a decisão proferida pelo Juízo de Comércio de Coimbra não resulta precludido o exercício de qualquer direito do A./Recorrente, o A. não vê coarctado o exercício de direito de demandar, podendo exercer esse direito, querendo, na sede própria (que não é aquela).


A descabida linha argumentativa do autor impele-o a intentar acção contra a ré Auto-Garagem de Coimbra, Lda, de que é sócio e de que arroga ser gerente e, ao mesmo tempo, arroga-se titular de um interesse que seria exclusivo da Auto-Garagem de Coimbra, Lda para demandar os aqui réus para os termos deste processo.


Em evidente confusão de linha argumentativa, num mesmo articulado processual (petição inicial) soma pedidos diferenciados, substancialmente diversos, que deverão ser apreciados em instâncias jurisdicionais diversas.


K) No caso sub judice, os pedidos excluídos na decorrência da decisão jurisdicional do Juízo de Comércio de Coimbra, que muito bem decidiu ao considerar-se incompetente, atêm-se substancialmente:


- à verificação da existência de um negócio jurídico (trespasse) celebrado entre a Gesmobility, Lda e a Autogaragem de Coimbra, Lda (de que o A. é um mero sócio);


- as obrigações jurídicas recíprocas foram estabelecidas entre a Gesmobility, Lda e a Autogaragem de Coimbra, Lda (de que o A. é um mero sócio)


- o A. invoca a nulidade ou ineficácia de um negócio jurídico em que não foi parte interveniente (é um mero sócio de uma das intervenientes).


L) O que está em causa nestes concretos pedidos formulados pelo A./Recorrido é, assim, a invocada (in)validade (ou ineficácia) de um contrato de trespasse, sendo a relação materialmente controvertida composta, objectivamente, pelos (alegados, mas nunca reconhecidos ou aceites) vícios conducentes a essa nulidade ou ineficácia e que não visam o exercício de um direito social do autor.


E, neste caso, o interesse em agir - numa acção cujo elemento essencial da causa de pedir é a invocada nulidade/ineficácia do negócio jurídico (trespasse) – terá que ser consubstanciado e dirimido noutra instância (no Juízo Central Cível de Coimbra).


M) O que o A. invoca nestes concretos pedidos são causas intrínsecas à apreciação da validade ou eficácia do negócio jurídico.


E, sendo este o caso – como parece verificar-se e como se sublinha no acórdão do STJ de 05/07/2018:


“considerando quer o pedido quer a respectiva fundamentação, estamos perante uma acção em que o Autor ocupa uma posição semelhante àquela em que porventura estaria qualquer outro interessado, sendo que apenas de modo reflexo dela podem emergir efeitos que reflitam na sua esfera jurídica”.


N) Ante o descrito enquadramento jurídico e normativo, bem como o acervo fáctico levado à petição inicial (quando o A. visa discutir o próprio negócio jurídico de trespasse, na sua essência), enfim, se atentarmos na realidade donde emergem as pretensões deduzidas em juízo e nas normas que deverão ser convocadas para a sua resolução, antolha-se evidente que tudo girará à volta das regras gerais do negócio jurídico previstas na lei civil substantiva não estará assim em causa a apreciação de direitos sociais dos sócios, de terceiros ou da própria sociedade A. (cf., v.g., os art.ºs 78º e 79º do Código das Sociedades Comerciais/CSC), ligados necessariamente à vida (interna) da sociedade e em que se imponha harmonizar os interesses envolvidos.


O) O objecto da presente acção, parece evidente – no que tange aos concretos pedidos colocados em crise, formulados pelo A/Recorrido contra os aqui Recorrentes/RR – por exemplo, dizem respeito não à eventual responsabilização dos administradores ou gerentes perante a sociedade nos termos da lei societária (cf., v. g. os art.ºs 64º, n.º 1; 72º e 259º, do CSC) e que tem a respectiva matriz no contrato de administração ou de gestão (reconduzível ao de mandato) e cuja violação acarreta para os administradores/gerentes responsabilidade contratual perante a sociedade - que, como entidade jurídica personalizada, é “dona da empresa”, num plano diverso dos respectivos sócios, apenas donos das acções ou das participações sociais -, mas, sim, à verificação da existência de vícios na formação e no conteúdo do negócio jurídico de trespasse aludido na PI.


Não restando dúvidas que no caso sub judice o Recorrente não pretendeu exercer direitos sociais, mas sim que fossem reconhecidos direitos decorrentes da lei civil (“ordinária”), sendo por essa razão o Tribunal a quo materialmente incompetente para julgar os concretos pedidos colocados em crise.


P) Por outro lado, “direitos sociais" não são todos os que genericamente poderiam ser classificados como direitos exercidos pelos sócios, mas sim os correspondentes aos direitos que provêm da relação social, ou seja, da relação da sociedade com o sócio.


Não pretendendo o A./Recorrido – no âmbito destes concretos pedidos – exercer direitos sociais reconhecidos ou previstos nas normas do Código das Sociedades Comerciais e importando apenas verificar e reconhecer direitos decorrentes da lei civil substantiva, a competência para a preparação e julgamento da causa está atribuída à Jurisdição Comum/Cível.


Q) A competência jurisdicional para apreciação daqueles pedidos será acometida instância cível (Juízo Central Cível de Coimbra).


R) São vários os arestos jurisdicionais, tirados pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça, que determinam a incompetência dos Juízos de Comércio para a apreciação das questões similares à que aqui se submetem para superior apreciação.


S) O Douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra erra na apreciação da questão sub judice, pelo que deve ser revogada, mantendo-se como decidido pelo Juízo de Comércio de Coimbra.


T) O Douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra viola o disposto no artigo no artigo 671º, nº 2, b) do CPC (recurso de acórdão da Relação que aprecia decisão interlocutória que recai sobre a relação processual, em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito):


- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça – Ac.do STJ de 01.06.2017, proferido no Procº. 5874/15.8T8LSB.L1-A.S1, da 2ª. Secção – em que foi relator o Senhor Conselheiro Abrantes Geraldes (acórdão publicitado em http://www.dgsi.pt/jstj).


- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/07/2018.


U) A douta decisão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra atenta contra a correcta aplicação da lei, incorrendo manifestamente em erro de interpretação quanto à fundamentação legal processual determinativa da competência do Tribunal para julgar os pedidos em crise, aplicando de forma errada a norma que determina a competência do Tribunal para julgar os pedidos em referência, pelo que deveria ter considerado incompetente o Juízo de Comércio de Coimbra para os apreciar.


V) Assim actuando, o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra atentou contra as disposições normativas plasmadas no artigo 674º, nº 1 a) do CPC (violação de lei substantiva, que pode consistir tanto em erro de interpretação ou de aplicação), bem como no artigo 674º, nº 1 b) do CPC (violação ou errada aplicação de lei de processo).


W) De igual modo, a douta decisão do Tribunal da Relação de Coimbra incorreu em erro ao não interpretar e aplicar correctamente o disposto Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.8, na redacção conferida pela Lei n.º 40-A/2016, de 22.12, que estabeleceu as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário, no seu artigo 128.º.


X) A douta decisão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra deve ser revogada, devendo o Juízo de Comércio de Coimbra ser considerado incompetente para apreciar os pedidos formulados pelo A./Recorrido: […]


Não obstante, sem prescindir, por mera cautela de patrocínio:


Y) O douto acórdão da Relação de Coimbra deveria ser revogado, nos termos do disposto no artigo 671º, nº 2, a) do CPC – recurso de acórdão da Relação que aprecia decisão interlocutória que recai sobre a relação processual, sendo o recurso sempre admissível.


A douta decisão do Tribunal da Relação de Coimbra – à qual não se adere – contraria a decisão do Juízo de Comércio de Coimbra – à qual se adere.


No caso vertente, não estamos perante uma decisão que se integra no conceito de “dupla conforme”, verificando-se haver divergência quanto ao quadro normativo substantivo e processual aplicável em instâncias diferentes.


As diferentes decisões de instâncias jurisdicionais diversas consubstancia a possibilidade de reclamar a intervenção dos Colendos Juízes Conselheiros, o que ora se faz.


O recurso de revista é, também por esta via, admissível.


Dá-se aqui por integralmente reproduzido tudo quanto foi anteriormente alegado neste articulado, estribando-se as alegações de recurso neste conspecto particular ao que foi anteriormente vertido.


Z) A douta decisão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra atenta contra a correcta aplicação da lei, incorrendo manifestamente em erro de interpretação quanto à fundamentação legal processual determinativa da competência do Tribunal para julgar os pedidos em crise, aplicando de forma errada a norma que determina a competência do Tribunal para julgar os pedidos em referência, pelo que deveria ter considerado incompetente o Juízo de Comércio de Coimbra para os apreciar.


Na improcedência da suscitada e verificada excepção de incompetência material do douto Tribunal – muito bem decidida pelo Tribunal a quo (Juízo de Comércio de Coimbra) e cuja reversão não se admite, nem por mera lógica de raciocínio – ter-se-iam que apreciar as demais excepções articuladas por todos os RR., bem como o pedido reconvencional (o que de facto traduzir-se-ia num processo fastidioso, moroso, extenso, complexo, contrariando o que resulta do espírito do legislador quando criou os juízos especializados de comércio).


Na atribuição de competência especializada ao Tribunal do Comércio/Secção de Comércio para preparar e julgar as acções relativas ao exercício dos direitos sociais releva a circunstância de estarmos perante matérias que exigem especial preparação técnica e sensibilidade e envolvem dificuldades/complexidades que podem repercutir-se também na respectiva solução ou celeridade de resolução, devendo ser expurgadas de apreciação jurisdicional tudo quanto extravase esta delimitação de competência.


Termos em que, pelo Douto Suprimento, deve ser revogada a decisão da Superior instância recorrida.


Assim decidindo, V. Exas, Colendos Juízes Conselheiros, determinarão a manutenção da douta decisão do Tribunal a quo (Juízo de Comércio de Coimbra), sendo julgada procedente e provada a excepção da incompetência material daquele Tribunal para conhecer dos pedidos formulados pelo autor na petição inicial, tal como resulta doutamente decidido.»


Cabe apreciar.


*


II – FUNDAMENTOS


1. Admissibilidade e objeto do recurso


A revista é admissível, nos termos do art.671º, n.1 do CPC, porquanto o acórdão recorrido se pronunciou sobre decisão da primeira instância que, parcialmente, pôs termo ao processo e absolveu os réus da instância quanto aos restantes pedidos com exceção do pedido de anulação de deliberação social.


Caso se defendesse a tese dos recorrentes, segundo a qual se trataria de acórdão sobre decisão interlocutória, comportável no âmbito do art.671º, n.2, alínea a) do CPC, também por aí a revista seria admissível, nos termos do art.629º, n.2, alínea a) do CPC, por estar em causa decisão sobre regras de competência em razão da matéria.


O objeto do recurso respeita apenas à questão de saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação da lei de processo quando considerou o juízo de Comércio competente para conhecer de todos os pedidos do autor (e não apenas do pedido respeitante à invalidade da deliberação social).


2. Factualidade assente.


As instâncias consideraram relevante para o conhecimento da questão da competência material do tribunal a seguinte factualidade:


«1. AA, invocando a qualidade de sócio e gerente da sociedade Auto-Garagem de Coimbra, Lda. veio intentar ação de processo comum contra Auto-Garagem de Coimbra, Lda, BB e mulher, CC, Gesmobility, Lda., DD, EE, Marcopetróleos - Comércio de Combustíveis, Lda, NIF .......41, todos melhor identificados nos autos, peticionando que seja:


(a) decretada a nulidade de todas as deliberações tomadas pela Ré Auto-Garagem de Coimbra, Lda., na reunião da sua assembleia geral de 13 de Novembro de 2017; quando assim se não entenda, e subsidiariamente, declaradas nulas as deliberações, na reunião da sua assembleia geral de 13 de Novembro de 2017 de trespasse parcial do estabelecimento comercial da Auto-Garagem de Coimbra, Lda. e de atribuição de poderes ao Réu BB, como gerente daquela sociedade, para outorgar a escritura dita de trespasse, que incluiu a transmissão de imóveis;


(b) condenada a Ré Gesmobility, Lda. a reconhecer que, por efeito de tal declaração de nulidade, é nula e de nenhum efeito transmissão pela Auto-Garagem de Coimbra, Lda. e a correspondente aquisição pela Gesmobility, Lda., documentada pela escritura de trespasse de 30 de Novembro de 2018, do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo matricial nº. 5107, descrito na 2ª. Conservatória do Registo Predial de ...sob o nº. 963/...; e do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia de ... sob os artigos 2058, 2060 e 1551, descrito na mesma Conservatória do Registo Predial sob o nº. 4115/... e a transmissão por trespasse dos demais bens e valores afetos ao estabelecimento comercial, definidos naquela escritura, com as legais consequências; e bem assim condenada a reconhecer que é igualmente nulo e de nenhum efeito o trespasse formalizado pela mesma escritura, na parte em que versa sobre os demais bens e valores do ativo e passivo referidos naquela escritura pública;


(c) Determinado o cancelamento dos registos de aquisição a favor da Ré Gesmobility, Lda. dos bens imóveis das descrições prediais nº. 963 da freguesia de ... e nº. 4115 da mesma freguesia de ..., do Município de ..., na Segunda Conservatória do Registo Predial de ...;


(d) Condenados todos os Réus a reconhecer a nulidade de tal negócio jurídico, com as legais consequências.


ou, subsidiariamente,


(a) declarado ineficaz em relação à sociedade Auto-Garagem de Coimbra, Lda., o negócio jurídico chamado de trespasse, que incluiu no título jurídico que o formalizou para além dos demais valores do ativo e passivo da Auto-Garagem identificados naquela escritura pública, também a transmissão onerosa de dos imóveis das descrições prediais nº. 963 e nº. 4115 da freguesia de ..., do Município de ..., presentemente com registo de aquisição a favor da Ré Gesmobility,Lda., feito com base em tal escritura pública de trespasse, na Segunda Conservatória do Registo Predial de ..., com as legais consequências;


(b) determinado, por efeito de tal ineficácia, o cancelamento dos registos de aquisição a favor da Ré Gesmobility dos bens imóveis referidos em I;


(c) condenados todos os Réus a reconhecer a ineficácia jurídica de tal negócio jurídico, com as legais consequências.


2 – A Ré Auto-Garagem de Coimbra, Lda. é uma sociedade comercial por quotas, constituída por escritura pública de 30 de Maio de 1939, sob a denominação A........... ......... . ....., Limitada; que mais tarde mudou a denominação social para Auto-Garagem de Coimbra, Limitada; tem sede em ...; está definitivamente matriculada na Conservatória do Registo Comercial de ...; é titular do NIF .......67, que é, também, o número, da sua matrícula; e tem o capital social realizado de Euro 10.114,08. Sendo o seu objeto social o exercício do comércio de compra e venda de automóveis, reparações, garagem e recolha e qualquer outro comércio que a sociedade resolva, exceto o bancário– cfr. certidão permanente que antecede.


3 - O Autor é sócio da Ré, invocando que é titular de uma quota no valor nominal de Euro 336,69, doutra do valor nominal de Euro 9,82; doutra do valor nominal de Euro 7,50 e ainda de outra do valor nominal de Euro 7,50; cujas aquisições estão registadas a seu favor na Conservatória do Registo Comercial de ...; sendo, ainda o Autor titular de uma quota no valor nominal de Euro 336,69, doutra do valor nominal de Euro 9,82; doutra do valor nominal de Euro 7,50 e ainda de outra do valor nominal de Euro 7,50, registadas a favor de FF - e pertencentes ao Autor, seu atual titular, por a ter adquirido por sucessão hereditária de sua Mãe, a titular que consta do registo comercial, de quem o Autor foi único e universal herdeiro. Sendo ainda o Autor, enquanto sócio de V.... ..... . ........., Limitada, e como sucessor universal de sua Mãe, contitular com os Herdeiros de GG de uma quota no valor nominal de Euro 972,66, que o mencionado GG e V.... ..... . ........., Limitada no passado adquiriram em comum na Auto-Garagem de Coimbra, Lda. por meio de cessão de quotas de outras pessoas que, anteriormente, haviam sido – e eram à data dessas cessões -sócias da Ré Auto-Garagem – cfr. certidão permanente da sociedade que antecede.


4. Os réus, “Gesmobility, Lda”, “Marcopetroleos - Comércio de Combustíveis, Lda”, DD e EE, cautelarmente, apenas na eventualidade de procedência de qualquer um dos pedidos do Reconvindo, deverá ser julgado procedente, por provado, o pedido reconvencional deduzido pelos Reconvintes, na senda do disposto, entre outros, do artigo 290º do Código Civil, relegando-se para liquidação em execução de sentença os concretos valores pecuniários a restituir /compensar aos Reconvintes, devendo o Reconvindo ser condenado a pagar a indemnização que venha a ser determinada.


5. Por escritura pública de trespasse de 30 de Novembro de 2018, o Réu BB, invocando a qualidade de gerente da Auto-Garagem declarou trespassar à Ré Gesmobility, Limitada, representada pelos Réus DD e EE, pelo preço de setecentos e três mil euros o estabelecimento comercial instalado na sede da trespassante, na ..., nos seguintes imóveis – o prédio urbano inscrito na matriz predial da freguesia de ... sob o artigo matricial nº. 5107, descrito na 2ª. Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº. 963/...; e o prédio urbano inscrito na matriz predial respetiva sob os artigos 2058, 2060 e 1551, descrito na mesma Conservatória do Registo Predial sob o nº. 4115/... – cfr. Doc. n.º 17 junto com a petição inicial.


6. O autor não foi interveniente no negócio celebrado entre a co-Ré Auto-Garagem de Coimbra, Lda e a Ré Gesmobility”.»


*


3. O direito aplicável


3.1. Está em causa a questão de saber se o juízo de Comércio é competente para conhecer apenas do primeiro pedido formulado pelo autor, ou seja, a invalidade das deliberações tomadas pela Ré “Auto-Garagem de Coimbra, Ldª”, na reunião da sua assembleia geral de 13.11.2017, ou se tal competência se pode estender ao petitório subsequente, nomeadamente, à declaração de invalidade ou ineficácia do trespasse de estabelecimento comercial daquela ré, deliberado nessa data, e realizado através de escritura pública de 30.11.2018.


3.2. Afirmam os recorrentes, nas suas conclusões (nas quais procedem a longas transcrições de textos jurisprudenciais), que a competência para apreciar o negócio de trespasse celebrado entre a Auto-garagem de Coimbra e a Gesmobility, Ldª não deve caber ao juízo de Comércio, por tal não ser comportável no seu âmbito de especialização, mas sim ao juízo Central Cível de Coimbra.


Alegam que a matéria respeitante à eventual invalidade ou ineficácia do negócio de trespasse e suas consequências não respeita ao exercício de um direito social do autor (que é um mero sócio da sociedade trespassante), mas sim a regras gerais do negócio jurídico previstas na lei civil substantiva, pelo que o juízo de Comércio não será competente para apreciar os pedidos respeitantes a essa matéria. Sustentam que, para efeitos do art.128º da LOSJ, os “direitos sociais” devem ser entendidos apenas como os que resultam da relação da sociedade com o sócio, o que não aconteceria no caso concreto quanto à matéria que a primeira instância excluiu da competência do juízo de comércio.


3.3. O acórdão recorrido sumariou o seu entendimento nos seguintes termos:


«- A apreciação da competência material dos tribunais afere-se em função do pedido e da causa de pedir expostos na petição inicial em confronto com as normas delimitadoras da competência.


- Os juízos de comércio são juízos de competência especializada dos tribunais de comarca, aos quais incumbe, designadamente, preparar e julgar as ações relativas ao exercício de direitos sociais.


- Sendo os fundamentos invocados para pedir a nulidade/ineficácia do contrato de trespasse também invocados para pedir a nulidade das deliberações tomadas no dia 13 de novembro de 2017 e sendo competente para conhecer do pedido de nulidade das deliberações os juízos de comércio, estes são também competentes para apreciar o pedido de nulidade e subsidiariamente, de ineficácia, do contrato de trespasse e demais pedidos que decorrem destes, uma vez que os fundamentos são societários, tendo as questões que ser apreciadas no quadro deste ramo do direito.


- A nulidade do contrato é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo Tribunal (art. 286º do CC). Entre os interessados não pode deixar de se integrar o sócio quando está em causa a nulidade de um contrato que é alegadamente prejudicial para a sociedade, afetando, necessariamente, a sua participação social


E afirma-se, ainda, na fundamentação do acórdão recorrido que:


«(…) parte dos fundamentos invocados para pedir a nulidade/ineficácia do contrato de trespasse coincidem com parte dos fundamentos invocados para pedir a nulidade das deliberações tomadas no dia 13 de novembro de 2017. Os fundamentos da nulidade invocada do contrato de trespasse são, assim, também societários, tendo o caso que ser apreciado no quadro deste ramo do direito, fazendo sentido colocar a presente ação na competência dos juízos de comércio para apreciar todos os pedidos.


Consequentemente, e com o devido respeito por posição contrária, não se vê razões para não atribuir aos juízos de comércio a competência para o conhecimento dos pedidos formulados em I) b) a d), sendo que os constantes nas alíneas c) e d) são decorrência do pedido formulado em b) (…)»


3.4. Não havendo qualquer dúvida de que a resolução do conflito a que respeitam os presentes autos cabe aos tribunais judiciais (art.64º do CPC), a determinação do tribunal competente em razão da matéria é remetida para as leis de organização judiciária (art.65º do CPC).


A vigente Lei da Organização do Sistema Judiciário – Lei n.62/2023 – recortou a competência material dos tribunais de primeira instância em função das caraterísticas tipológicas de determinadas matérias, catalogando-as segundo princípios de especialização, conducentes, por essa razão, a resultados de maior eficácia e celeridade decisórias. Paralelamente foram mantidos os tribunais de competência genérica para decidirem os conflitos que não são catalogáveis segundo critérios de especialização.


Todavia, a concreta identificação dos conflitos que cabem no âmbito de um tribunal de competência especializada e aqueles que caem no domínio comum do tribunal de competência genérica nem sempre se processa de forma linear, na medida em que o legislador recorreu a conceitos indeterminados cujo alcance suscita dúvidas interpretativas.


Dispõe o art.128º da LOSJ, sobre a competência dos juízos de comércio:


«1. Compete aos juízos de comércio preparar e julgar:


a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;


b) As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;


c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais;


d) As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais; (…)»


A alínea c) do n.1 deste artigo (aquela que especificamente interessa ao caso concreto), referindo-se a “ações relativas ao exercício de direitos sociais”, é uma das normas que recorta a competência do tribunal de comércio por meio de um conceito indeterminado, cujo alcance não é traçado de forma absolutamente unânime.


A jurisprudência do STJ tem entendido que a expressão “direitos sociais” não deve ser compreendida num sentido restrito enquanto sinónimo apenas de “direitos dos sócios”, mas sim num sentido mais amplo, no qual poderá caber, em certas hipóteses, a tutela de interesses da própria sociedade ou até de terceiros1.


Num caso que apresenta algumas notas de proximidade com o caso a que respeitam os presentes autos, o conceito de “direitos sociais” para efeitos de atribuição de competência aos tribunais de comércio, foi entendido nos seguintes termos pelo Acórdão do STJ, de 11.10.2022 (relator José Rainho)2, no proc. n. 4669/21.4T8VNF-C.G1.S1:


«- Direitos sociais são, nomeadamente, os que integram a esfera jurídica do sócio, por força do contrato de sociedade, sendo inerentes à qualidade e estatuto de sócio e dirigidos à proteção dos seus interesses sociais.


- Se a pretensão cautelar dos sócios se funda essencialmente na prejudicialidade que de um certo acordo firmado por outro sócio resulta para a sociedade, isso relaciona-se inseparavelmente com o nuclear direito daqueles sócios (direito social, corporativo), subjacente ou imanente à lei societária e ao contrato de sociedade, qual seja, o direito à preservação da sociedade, à devida prossecução do seu objeto social e ao lucro.


- Para o conhecimento de uma tal pretensão cautelar está a competência material deferida aos juízos de comércio, nos termos dos n.os 1, al. c), e 3, do art. 128.º da LOSJ


3.5. A determinação concreta da competência do juízo de comércio, estando em causa a questão de saber se a ação é “relativa ao exercício de direitos sociais”, implica que se atenda ao modo como o pedido e a causa de pedir são formulados pelo autor. Naturalmente que o confronto entre o quadro normativo abstrato que traça a competência do tribunal e a realidade do conflito pictoricamente filtrada pelo autor apenas poderá ser alvo de uma análise perfunctória e funcionalizada ao objetivo do recorte dessa competência, sem antecipação de juízos de eventual viabilidade da ação.


Neste sentido, afirma-se no acórdão do STJ, de 11.10.2022 (relator José Rainho)3, no processo n. 4669/21.4T8VNF-C.G1.S1:


«A competência afere-se em função dos termos da ação, tendo em consideração a pretensão formulada pelo autor e os respetivos fundamentos, tudo independentemente da idoneidade do meio processual utilizado e do mérito da pretensão


Nestes termos, os pedidos que a primeira instância entendeu não caberem na competência do juízo de comércio são ainda apresentados pelo autor como tendo causa na invalidade das deliberações por si alegada, e reportam-se a um negócio (trespasse) suscetível de poder afetar o valor da sua participação social. Assim, face ao modo como o autor formula as suas pretensões em juízo (e sem antecipar qualquer valoração sobre o mérito de tais pretensões), não se poderá afirmar que elas são completamente estranhas ao exercício de direitos sociais.


3.6. Não se encontra na jurisprudência do STJ (pelo menos dos últimos anos) qualquer acórdão no qual se tivesse apreciado um caso semelhante ao dos presentes autos, ou seja, o de saber se o tribunal de comércio é competente para apreciar o pedido de declaração de invalidade de uma deliberação social, mas já não as consequências contratuais (máxime de legitimidade vinculativa) do negócio cuja realização foi deliberada. Trata-se, portanto, de saber se este pedido conexo ou subsequente ainda poderá caber no conceito de ação “relativa ao exercício de direitos sociais”, para efeitos do art.128º, n.1, alínea c) da LOSJ.


No caso concreto, quando o autor pede que o tribunal se pronuncie sobre a invalidade ou ineficácia do negócio de trespasse sustenta essa pretensão enquanto consequência da alegação da invalidade das deliberações sociais pelas quais foi decidido realizar esse trespasse e foram conferidos poderes ao réu BB para representar a sociedade “Auto Garagem de Coimbra, Ldª” nesse negócio.


O autor não invoca, assim, fundamentos autónomos de invalidade ou ineficácia do negócio de trespasse (que poderia invocar num tribunal de competência geral). O pedido de declaração de invalidade ou ineficácia do negócio de trespasse é formulado enquanto consequência da alegada irregularidade deliberatória pela qual os sócios decidiram trespassar o estabelecimento e decidiram quem representaria a Sociedade transmitente na celebração desse negócio. Assim, de um ponto de vista teórico ou hipotético, é possível conjeturar que, se o tribunal vier a concluir que as deliberações em causa não podiam produzir os efeitos a que tendiam, a consequência lógica seria a da falta de poderes para vincular eficazmente a sociedade transmitente.


O que o autor alega para fundar as suas pretensões quanto à invalidade ou ineficácia do trespasse não são, portanto, vícios de natureza puramente civilística, mas sim uma projeção contratual de deliberações de natureza societária.


É compreensível, de um ponto de vista geral, que o negócio de trespasse (envolvendo a alienação de imóveis que integravam o património da sociedade, primeira ré) possa, em abstrato, ser suscetível de afetar o valor da participação social do autor. Assim, embora nessa parte o litígio não respeite a atos que, num sentido restrito, contendam, de forma direta, com o exercício de direitos sociais do autor, na medida em que possa existir afetação reflexa do valor da respetiva participação social (diminuição) será concebível que tal hipótese se comporte ainda no âmbito das “ações relativas ao exercício de direitos sociais” [como previsto na alínea c) do n.1 do art.128º da LOSJ]4.


Assim, atendendo ao modo como o autor configura o pedido e a causa de pedir, não se pode afirmar, de forma inequívoca, que a sua pretensão se encontre completamente desligada do exercício de direitos sociais.


Por outro lado, deverá ainda ser tido em conta que a solução processual defendida pelo acórdão recorrido é aquela que melhor serve o interesse da celeridade processual, sem afetar (pelo menos, de modo significativo) o interesse da especialização que enforma o recorte da competência dos tribunais de comércio, pois permite concentrar num só juízo a apreciação de questões que, em concreto, se apresentam imbricadas, contribuindo também para evitar potenciais contradições de julgados.


Em resumo, conclui-se que o acórdão recorrido não merece censura, pois fez a correta aplicação do direito ao caso concreto.


*


Decisão: Pelo exposto, decide-se julgar a revista improcedente, confirmando-se o acórdão recorrido, com as inerentes consequências processuais.


Custas na revista: pelos recorrentes.


Lisboa, 16.11.2023


Maria Olinda Garcia (Relatora)


António Barateiro Martins


Graça Amaral


________________________________________________

1. Neste sentido, veja-se, por exemplo, o Acórdão do STJ, de 26.10.2022 (relator António Barateiro Martins), no processo n.º 4583/21.3T8VNF-B.G1.S1, publicado em:

http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1d592c581356a711802588e70049b416?OpenDocument↩︎

2. Publicado em:

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2b493bb9f101e8f3802588d8004b9d38?OpenDocument↩︎

3. Publicado em:

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2b493bb9f101e8f3802588d8004b9d38?OpenDocument↩︎

4. Admitindo a competência do tribunal de comércio para conhecer de prejuízos sofridos pela sociedade só reflexamente suscetíveis de se repercutirem na esfera jurídica do sócio, vd. o Acórdão do STJ, de 18.12.2008 (relator Salvador da Costa), no agravo n.º 3907/08. Publicado em:

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b44f6dc3d38b6ef080257523004f8715?OpenDocument↩︎