I - A decisão da Relação que indeferiu a arguição de nulidade do art. 195º do CPC, por a 1ª instância ter omitido o convite ao aperfeiçoamento da petição inicial (art. 590º, nº4) não pode ser objecto de recurso de revista, nos termos do art. 630º, nº2 do CPCivil.
II – A demarcação entre a personalidade colectiva e a personalidade singular não é um valor absoluto, devendo ser desconsiderada, designadamente, quando a sociedade invocar a autonomia para almejar um resultado abusivo, e atentatório dos ditames da boa fé;
III – É o que sucede quando uma sociedade anónima, controlada por um sócio titular de mais de 99% das acções, se escuda na autonomia societária para obviar aos efeitos interruptivos do prazo de usucapião, nos termos do art. 323º, nº1 do CC, ex vi do art. 1292º, em processos judiciais em que se discutia a titularidade de tais acções, em que aquele foi parte.
C..., S.A.., intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum, contra:
1. AA,
2. BB,
3. CC,
pedindo:
a) seja a A. reconhecida e declarada como legítima possuidora e proprietária de 1.418.000 ações tituladas nominativas, representativas de 56,72% do capital social da A..., S.A. (identificadas no artigo 11.º supra), condenando-se os RR. a reconhecer esse direito, com todas as legais consequências;
b) seja a A. reconhecida e declarada como legítima possuidora e proprietária de 304.476 ações, representativas de 12,18% do capital social da A..., S.A. (identificadas no artigo 11.º supra), condenando-se os RR. a reconhecer esse direito, com todas as legais consequências;
c) seja a A. reconhecida e declarada como legítima possuidora e proprietária de 55.524 ações, representativas de 2,22% do capital social da A..., S.A. (identificadas no artigo 11.º supra), condenando-se os RR. a reconhecer esse direito, com todas as legais consequências.
Alegando, para tal e em síntese:
A Autora, C..., S.A., que figura como sociedade gestora de participações sociais, sendo titular de 1.778.000 ações, tituladas e nominativas, representativas de 71,12% do capital social da A..., S.A., pretendendo, com a presente ação, ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre os mesmos títulos com base na sua aquisição originária por usucapião, pretensão que dirige contra os Réus AA, e BB [cada um titular de 361.000 ações representativas de 14,44% do capital social desta sociedade] e CC [que antecedeu a sociedade Autora na propriedade e posse das ações], por estes assumirem condutas tendentes a pôr em causa o seu direito;
As sobreditas ações foram-lhe transmitidas [ou para sociedades por si participadas], por intermédio de endosso, pelo Réu CC – 1.418.000 ações em 20 de janeiro de 2011, 304.476 ações em 7 de dezembro de 2012 e 55.524 ações em 31 de julho de 2013, com subsequente registo das sobreditas transmissões no livro da sociedade A..., S.A.;
A autora vem exercendo, de forma contínua, pública e de boa-fé, atos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade sobre as participações supramencionadas, atuação por si diretamente desenvolvida desde as datas em que o 3º Réu, CC, operou a correspondente transmissão por reporte a cada um dos referidos blocos de ações;
Numa conduta que nunca foi obstaculizada pelos 1º e 2º Réus, podendo, de qualquer forma, aceder à posse materializada pelo 3º Réu, pois que o mesmo ingressou no domínio das sobreditas participações – i) em 18 de janeiro de 2011 quanto a 1.418.00 ações; ii) em 10 de janeiro de 2011 quanto a 204.167 ações e iii) em 25 de Março de 1996, quanto a 77.000 ações.
Os 1º e 2º réus, BB e AA apresentaram contestação, alegando, em síntese:
Reconhecendo que a Autora se acha titular de 77.000 ações da A..., S.A., por lhe terem sido transmitidas pelo 3ºRéu, CC enquanto seu legítimo possuidor e proprietário, rejeitam, no demais, os direitos invocados pela Autora sobre as restantes ações, ações essas que figuravam como bem comum do casal composto por DD e EE, casados no regime da comunhão geral de bens e 2 que titulavam, à data do óbito de EE, [ocorrido em 16 de fevereiro de 2007], num total de 90,76% do capital social de tal sociedade, não tendo, até à data, tais participações sociais sido objeto de partilha;
DD, exercendo funções como Cabeça de Casal no inventário por óbito de EE – que correu termos neste Tribunal sob o n.º 326/12.0... –, pretendeu excluir as sobreditas ações da correspondente relação de bens, invocando, para tanto, a materialização, em 10 de Janeiro de 2011, de uma partilha verbal e extrajudicial das mesmas participações por intermédio da qual teriam cabido 1.418.126 ações ao Cabeça de Casal e 283.625 ações a cada um dos aqui Réus; tendo o DD, nesse seguimento, doado as suas 1.418.126 ações ao aqui 3º Réu, CC [o qual as transmitiu, posteriormente, para a Autora];
no entanto, tal partilha nunca ocorreu, pelo que, as participações sociais continuam a integrar o acervo hereditário aberto por óbito de EE;
a subsequente doação concretizada por BB ao 3º Réu CC [ou qualquer ulterior transmissão] acha-se nula ou ineficaz relativamente à herança de EE ou em face dos demais herdeiros, o que inviabiliza a possibilidade de aquisição das ações pela Autora por usucapião, o que, aliás, sempre representaria um manifesto abuso de direito.
Concluem, afirmando que essa mesma realidade é do conhecimento de todos os sujeitos processuais e foi já reconhecida por acórdão transitado em julgado proferido no processo n.º 894/11.4..., consistente numa ação de anulação de deliberações sociais proposta pelo Réu AA contra a sociedade, A..., S.A.
Após os articulados, foi proferida decisão do seguinte teor:
Decide-se:
- Julgar a presente ação como parcialmente procedente e, em consequência, condenar os Réus AA, BB e CC, a reconhecer a Autora C..., S.A., como legítima possuidora e proprietária de 77.000 ações representativas do capital social da A..., S.A.
- Custas pela Autora C..., S.A. [artigos 527.º e, quanto às 77.000 objeto de procedência, 535.º, n.º 1 do Código de Processo Civil no artigo 11.º supra), condenando-se os RR. a reconhecer esse direito, com todas as legais consequências.
Inconformado, a Autora apelou, mas sem sucesso, pois que a Relação de Coimbra, por acórdão de 25.10.2022, por unanimidade, confirmou a sentença.
Ainda inconformado, o Autor interpôs recurso de revista excepcional, com fundamento nas alíneas a) e c) do nº1, art. 672º do CPCivil, tendo apresentado as seguintes conclusões uteis (desconsideram-se as atinentes à admissibilidade da revista excepcional, questão ultrapassada em face do acórdão da formação que a admitiu) :
1. O recurso de revista vem interposto na sequência do Acórdão Recorrido, no qual o Tribunal a quo julgou totalmente improcedente o recurso de apelação apresentado pela ora Recorrente e confirmou a o Saneador-Sentença proferido pelo Tribunal de 1.ª instância em 30.01.2022.
2. Em resumo, o Acórdão Recorrido considerou que se verificou tanto uma causa de suspensão da prescrição — pois os herdeiros da Sra. EE encontravam-se em situação de conflito de interesses, não podendo exercer os direitos da herança — como uma causa de interrupção da prescrição — pois existia uma “confusão” entre a Recorrente, o Recorrido CC e a A..., S.A. (por o Recorrido CC ser acionista maioritário da Recorrente, assim controlando a A..., S.A., e ser ... tanto da Recorrente como da A..., S.A.) que fundamenta a aplicação do instituto do abuso de personalidade coletiva para efeitos de imputação dos efeitos da citação e notificação judicial da A..., S.A. e do Recorrido CC à Recorrente.
3. Com fundamento nestas duas linhas de argumentação, o Acórdão Recorrido conclui que o prazo para aquisição das Ações Controvertidas por parte da Recorrente com fundamento na usucapião não se completou e, consequentemente, que a Recorrente não havia adquirido estas ações por usucapião.
4. É firme convicção da Recorrente que as decisões vertidas no Acórdão Recorrido e na Sentença devem ser revogadas, porquanto:
a. Se recorre a uma interpretação errada e contrária à lei das normas que regulam a suspensão e interrupção da prescrição aquisitiva (usucapião) – cfr. artigo 323.º, n.º 1 e n.º 4 do CC;
b. Procede à desconsideração da personalidade coletiva sem que estejam verificados os seus pressupostos, em clara violação do princípio societário geral de autonomia jurídica da sociedade comercial, tendo considerado a Recorrente como uma sociedade-fachada do Recorrido CC, ignorando que o Recorrido CC já não é acionista maioritário da Recorrente desde 2013 e não exerce quaisquer funções como ... da Recorrente desde outubro de 2017, tendo sido destituído judicialmente com fundamento nos seus comportamentos desleais para com a Recorrente;
c. O Acórdão Recorrido violou as regras de admissibilidade da suspensão da prescrição (aquisitiva), tendo ainda o Acórdão Recorrido, neste âmbito, violado o princípio do contraditório ao proferir uma decisão surpresa, por não ter sido dada à Recorrente a oportunidade de influenciar o Acórdão Recorrido - cfr. artigos 318.º, 321.º e 322.º do CC, 3.º n.º 3 do CPC e 20.º, n.º 4 da CRP;
d. Recorre ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica para equiparar o conhecimento da Recorrente à sua citação judicial e, deste modo, considerar interrompida a prescrição, sem qualquer fundamento legal que o suporte, apenas e só como forma de o Acórdão Recorrido suprir um ónus dos Recorridos, que podia e devia ter sido por estes cumprido - cfr. artigo 323.º, n.º 1 e n.º 4 do CC; e
e. Convoca valorações ético-jurídicas no instituto da usucapião, contrariando os seus vetores teleológico-sistemáticos de segurança e certeza jurídica– cfr. artigos 1260.º e 1287.º e ss. do CC.
5. Ao que acresce o facto de, contrariamente ao que o Acórdão Recorrido alega, não é imputável ao Recorrido CC o facto de os demais Recorridos não terem agido judicialmente contra a Recorrente por forma a fazerem valer os direitos que se arrogavam ou a interromperem o prazo de usucapião que corria a favor da Recorrente.
6. Não tendo os Recorridos: (i) no âmbito do Processo de Inventário e do Processo de Inexistência do Registo das Ações Controvertidas chamado a Recorrente aos autos ou proposto uma ação judicial idónea a dirimir a titularidade das Ações Controvertidas; ou (ii) sequer recorrido a uma notificação judicial avulsa dirigida à Recorrente, que teria sido suficiente para interromper a prescrição aquisitiva das Ações Controvertidas.
7. Ao que acresce que a solução que o Acórdão Recorrido entendeu ser a correta para não prejudicar os Recorridos AA e BB — não obstante estes terem, efetivamente, adotado um comportamento de inércia perante a Recorrente — e sancionar o Recorrido CC acaba, na realidade, por beneficiar o Recorrido CC, o qual em tese reingressa na qualidade de herdeiro. Não é lícito nem legítimo os Tribunais castigarem a Recorrente e as demais empresas do Grupo C..., S.A. (entre as quais a A..., S.A.), e os seus trabalhadores e credores, pelos atos praticados pelo Recorrido CC enquanto pessoa individual e herdeiro da Sra. EE, não podendo o Tribunal ad quem deixar prevalecer o entendimento do Acórdão Recorrido que resulta numa incorreta e ilegal aplicação do Direito e dos institutos jurídicos invocados.
8. Não se conformando com o Acórdão Recorrido, a ora Recorrente vem interpor, o presente recurso de revista o qual tem por objeto esta decisão, devendo, conforme se verá, o Tribunal ad quem admitir o presente recurso e, subsequentemente, revogar o Acórdão Recorrido e substituí-lo por outro que aplique corretamente o Direito.
Da nulidade do Acórdão Recorrido por inobservância do princípio do contraditório (decisão surpresa)
9. Nos termos do artigo 674.º, n.º 1 alínea c), do CPC, a revista pode ter por fundamento as nulidades previstas nos artigos 615.º e 666.º do CPC.
10. O Acórdão Recorrido padece de uma nulidade por violação do princípio do contraditório, na medida em que constitui uma decisão surpresa na parte relativa à suspensão do prazo de prescrição da usucapião.
11. Desta forma, verificados os requisitos necessários à admissibilidade do presente recurso de revista excecional deve também ser conhecida a nulidade do Acórdão Recorrido, visto que, uma vez admitida a revista excecional, as nulidades integrarão o objeto do respetivo recurso.
12. Consabidamente, o princípio do contraditório constitui uma manifestação do direito constitucional de defesa previsto no artigo 20.º, n.º 4 da CRP, nos termos do qual os participantes na relação material controvertida objeto do litígio deverão ter a faculdade de se pronunciar sobre todos os elementos que poderão contribuir para a decisão final.
13. Assim, o princípio do contraditório tem como fundamento último evitar as decisões surpresa, i.e., decisões que sejam proferidas sem que a devida possibilidade de contraditório prévio seja concedida às partes.
14. Embora reconhecendo que o Juiz é livre na apreciação da matéria de direito, o Tribunal tem sempre o dever de ouvir as partes sobre determinada questão de facto ou de direito, quando, sobre ela, estas ainda não se tenham pronunciado.
15. Assim, haverá violação do princípio do contraditório sempre que o Tribunal, tendo procedido a um enquadramento jurídico diferente daquele até então formulado pelas partes, profere uma decisão com base no mesmo sem ter o cuidado de, previamente, conceder o respetivo contraditório às partes.
16. No caso sub judice, o Acórdão Recorrido violou o princípio do contraditório ao analisar o instituto da suspensão da prescrição, concluindo pela verificação de uma causa suspensiva da prescrição na contagem do prazo da usucapião, sem que tivesse concedido às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre esta questão, proferindo uma decisão surpresa, a qual, por sua vez, redunda num excesso de pronúncia por parte do Tribunal a quo.
17. Não tendo esta questão sido ponderada ou tida em conta pelo Tribunal de 1.ª instância em sede de Sentença, nem tampouco ao longo da tramitação do processo, visto que não é possível identificar qualquer ato processual que tenha suscitado a questão da suspensão do prazo de prescrição da usucapião.
18. O exercício do contraditório não é um jogo do “gato e do rato”, não se basta com a concessão, pelo Tribunal, de contraditório às partes com recurso a questionamentos genéricos, abstratos e difusos sobre se eventuais situações ou pressupostos de facto “assumem alguma virtualidade” para a decisão da causa.
19. O Tribunal deverá indicar as questões, de facto ou de direito, que pretende resolver, pois só assim será possível às partes exercer de forma plena e efetiva o contraditório.
20. Atualmente, o princípio do contraditório tem sido entendido num sentido mais lato, nos termos do qual deve ser disponibilizada às partes a possibilidade de participação efetiva no desenrolar do litígio, isto é, o direito de materialmente poderem intervir e influenciar a decisão — quer no âmbito da alegação fáctica, quer no âmbito das provas quer quanto ao direito —, manifestando a sua perspetiva, garantindo-se a ambas condições de absoluta igualdade.
21. É esta possibilidade de influenciar ativamente o rumo e as decisões que possam afetar as partes que justifica que o Tribunal deva ouvir as partes antes de decidir sobre qualquer questão, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sendo este o entendimento resultante do Acórdão Fundamento da Violação do Contraditório.
22. As partes só poderão influenciar a decisão do Tribunal se este indicar, concretamente, qual a solução jurídica e respetiva linha de raciocínio que ponderaria adotar, de forma que as partes a possam apreender na sua plenitude e munir-se dos necessários argumentos para sobre a mesma se pronunciarem de forma cabal e fundamentada.
23. O que não sucedeu no caso sub judice, visto que o Tribunal de 1.ª instância apenas fez alusão a menções difusas e genéricas através do despacho proferido a 06.07.2021 em sede de audiência prévia, sem que tenha dali retirado qualquer efeito útil, na medida em que, como se viu, nem sequer ponderou, em sede de Sentença e para efeitos de decisão de mérito, a aplicação do instituto da suspensão ao prazo de prescrição aplicável à usucapião.
24. Não se cumpriu a exigência do contraditório com a questão genérica dirigida às partes no despacho supracitado, na medida em que não é exigível às partes que “adivinhem” a suposta “virtualidade” que o Tribunal refere, mas que não adianta, em momento algum, qual poderá ser.
25. Não cumpre igualmente o Acórdão Recorrido as exigências de contraditório, ao ponderar e amparar a suspensão do prazo de prescrição aplicável à usucapião ao facto de ter de ser a herança da Sra. EE a exercer os direitos relativos às Ações Controvertidas.
26. Desta forma, a linha de raciocínio utilizada no Acórdão Recorrido — o “litígio dentro da própria herança” como causa de suspensão da prescrição — não foi dada a conhecer às partes nem pelo Tribunal da Relação, nem pelo Tribunal de 1.ª instância, sendo a questão de direito em apreço uma questão nova objeto de decisão no Acórdão Recorrido, não permitindo, assim, às partes exercer, efetivamente o contraditório.
27. Donde se conclui que o Acórdão Recorrido configura uma decisão surpresa que fundamenta a sua nulidade, por ter desconsiderado o direito ao exercício do contraditório, corolário do direito de acesso à tutela jurisdicional efetiva, nos termos dos artigos 3.º, n.º 3 do CPC e 20.º da CRP.
28. A jurisprudência e a doutrina têm configurado a nulidade resultante da prolação de decisões surpresa como uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia, prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, a qual, nos termos do seu n.º 4, deve ser invocada em sede de recurso da decisão proferida.
29. Assim, deve o Tribunal ad quem revogar o Acórdão Recorrido, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 615.º, n.º 1, alínea d), 666.º, n.º 1, e 674.º, n.º 1, alínea c), do CPC, substituindo-o por outro que faça observar o princípio do contraditório.
30. Ainda que assim não se entenda, sempre se deve considerar que a ocorrida violação do princípio do contraditório consubstancia uma nulidade processual nos termos do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, na medida em que foi omitida uma formalidade que a lei prescreve (cfr. artigo 3.º, n.º 3 do CPC), por ausência de convite às partes para se pronunciarem sobre a solução jurídica perfilhada pelo Tribunal que influiu no exame e decisão da presente causa, devendo o Tribunal ad quem decidir no mesmo sentido supra referido.
31. Acresce ainda que a suspensão do prazo de prescrição não constitui matéria de conhecimento oficioso, sendo necessária a invocação e demonstração pela pessoa a quem aproveite.
32. Donde se retira que, além de se tratar de uma decisão surpresa, a questão da suspensão da prescrição tinha de ter sido alegada e provada, o que não sucedeu ao longo de todo o processo.
33. Com efeito, também por este motivo o Acórdão Recorrido incorreu em excesso de pronúncia nos termos e para os efeitos do disposto 615.º, n.º 1, alínea d), 666.º, n.º 1, e 674.º, n.º 1, alínea c), do CPC, pois pronunciou-se sobre uma questão que não podia conhecer, visto a mesma não ser de conhecimento oficioso e não ter sido invocada pelos Recorridos.
34. Neste sentido, não restam dúvidas quanto à nulidade do Acórdão Recorrido por excesso de pronúncia, devendo o mesmo ser revogado e substituído por outro que faça observar o princípio do contraditório.
(…)
Do mérito do Acórdão Recorrido
Quanto às nulidades da Sentença proferida pela 1.ª instância da nulidade por omissão do convite ao aperfeiçoamento
36. Salvo o devido respeito, andou mal o Acórdão Recorrido quando rejeitou a existência de uma nulidade por omissão de convite de aperfeiçoamento, devendo a decisão ser revogada, por se verificar a aduzida nulidade.
37. Em sede de Sentença, além de se ter desconsiderado materialmente os aperfeiçoamentos e complementos factuais efetuados pela Recorrente — na esteira de um recurso interlocutório para o Tribunal da Relação de Coimbra, que determinou a admissibilidade do articulado de aperfeiçoamento —, veio o Acórdão Recorrido entender que a Recorrente falhou na concretização de determinados factos essenciais para o conhecimento cabal do mérito da causa.
38. Ocorre aqui uma manifesta contradição de atuações do Tribunal de 1.ª instância, pois, ou bem que os factos alegados pela Recorrente na Petição Inicial são suficientes e não careciam de aperfeiçoamento/concretização nos termos do Articulado de Aperfeiçoamento, ou bem que os factos alegados pela Recorrente na Petição Inicial sofrem de insuficiências ou imprecisões e, por conseguinte, carecem de densificação, pelo que o Tribunal de 1.ª instância não só deveria ter considerado o Articulado de Aperfeiçoamento, como também deveria ter convidado a Recorrente a aperfeiçoar as deficiências e insuficiências que alegadamente encontrou.
39. O que não é possível é o Tribunal considerar que existem insuficiências ou imprecisões nos factos alegados na Petição Inicial e, ao mesmo tempo, desconsiderar totalmente o Articulado de Aperfeiçoamento e não convidar a Recorrente a aperfeiçoar e concretizar os factos cujo aperfeiçoamento e concretização alegadamente não foi feito no âmbito daquele articulado, sendo que este convite ao aperfeiçoamento dos articulados, previsto pelo artigo 590.º, n.º 4, do CPC, corresponde a um poder-dever do juiz.
40. O Acórdão Recorrido considerou que a invocação do negócio que esteve por trás do endosso não obrigava à prolação de qualquer convite ao aperfeiçoamento por parte do Tribunal de 1.ª instância, por considerar a alegação respeitante aos negócios que estiveram na base do endosso e registo das ações a favor da autora não seria necessária à demonstração da aquisição por usucapião, sendo apenas relevante apenas ao nível do tempo necessário à prescrição aquisitiva.
41. Conclusão esta que a Recorrente não pode aceitar, na medida em que tais factos dizem respeito não só ao tempo de posse, mas também ao momento de início da posse, sendo este último o principal facto constitutivo da usucapião. Assim, e pretendendo a Recorrente o reconhecimento e declaração do seu direito de propriedade sobre as Ações Controvertidas com base na aquisição originária por usucapião, não se pode deixar de considerar os factos supramencionados.
42. Constituindo a usucapião uma forma de aquisição originária da propriedade ou de outros direitos reais de gozo, decorrentes da posse e do decurso do tempo, a causa de pedir subjacente ao pedido da Recorrente compreende: (i) a posse sobre as Ações Controvertidas e (ii) o decurso de um determinado lapso de tempo.
43. Donde se retira que a titulação dos negócios que estiveram na base de endossos das ações reveste a natureza de facto concretizador da factualidade essencial alegada em sede de Petição Inicial, uma vez que exerce influência no âmbito do início da posse que é, por sua vez, facto constitutivo da usucapião.
44. Desta forma, o Acórdão Recorrido desconsiderou que foi o próprio Tribunal de 1.ª instância que, em sede de Sentença, determinou que o negócio que esteve por trás do endosso era um facto essencial para demonstrar a aquisição.
45. Adicionalmente, o Tribunal de 1.ª instância entendeu que, por serem factos essenciais, não podia convidar a aperfeiçoar, na medida em que o convite ao aperfeiçoamento não pode incidir sobre factualidade essencial. Por outro lado, em sentido diverso, o Tribunal da Relação de Coimbra entendeu que o convite ao aperfeiçoamento se destina precisamente a suprir a alegação de factos essenciais, sendo que no caso em apreço tal convite não se justificaria.
46. É, assim, possível concluir que o Tribunal a quo considera que os factos essenciais, se deficientes, têm de ser aperfeiçoados por ser esse o justo propósito do convite ao aperfeiçoamento, bem sabendo que o Tribunal de 1.ª instância considerou que os factos sob apreço constituem factos essenciais, pelo que deveria o Tribunal a quo ter reconhecido que houve uma nulidade por omissão do convite ao aperfeiçoamento.
47. Impunha-se ao Tribunal de 1.ª instância convidar ao aperfeiçoamento dos factos concretizadores da factualidade essencial (constitutivos da usucapião), relativos à concretização dos negócios subjacentes às transmissões das Ações Controvertidas a favor da Recorrente, por força da sua relevância: (i) em matéria de início da posse; (ii) em matéria de caraterização da posse; e, (iii) consequentemente, dos prazos para usucapir.
48. Desta forma, havendo causa de pedir devidamente articulada, encontrando-se por se alegar e demonstrar a posse para usucapir, deveria ter sido proferido despacho de aperfeiçoamento para suprir a insuficiência da factualidade concretizadora relativa aos negócios subjacentes às transmissões que serviriam para concretizar o carácter titulado desta posse.
49. O presente entendimento encontra respaldo no Acórdão Fundamento de Omissão do Convite ao Aperfeiçoamento, na medida em que se considerou que, apesar de a causa de pedir estar perfeitamente esboçada e ser inteligível, devia ter sido proferido despacho de aperfeiçoamento para suprir a insuficiência na factualidade concretizadora da factualidade essencial já alegada.
50. Sempre que se verifique uma insuficiência na alegação de factos concretizadores de outros inicialmente alegados, incumbe ao juiz proferir convite ao aperfeiçoamento por forma a que a insuficiência seja suprida, nos termos do artigo 590.º, n.º 4, do CPC. Pelo que o Tribunal de 1.ª instância deveria ter convidado a Recorrente a aperfeiçoar os factos concretizadores da factualidade essencial, respeitantes aos negócios que estiveram na base do endosso e registo das ações a favor da Recorrente, nos termos do artigo 590.º, n.º 4 do CPC.
51. Uma vez que o Tribunal de 1.ª instância incumpriu este dever, verifica-se uma nulidade nos termos do artigo 195.º do CPC, sindicável em sede de recurso, mas sendo consumida por uma nulidade da sentença, nos termos e para efeitos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, a qual foi julgada improcedente pelo Acórdão Recorrido.
52. Dado que o convite ao aperfeiçoamento por parte do Tribunal de 1.ª instância constitui um dever deste quando se depara com o que considera serem insuficiências ou imprecisões do alegado na petição inicial, a consignação de que a alegação do Recorrente na Petição Inicial carecia de ser concretizada sem a prolação do correspondente convite ao aperfeiçoamento constitui uma omissão de um ato que a lei prescreve, omissão esta que tem manifesta influencia no exame e decisão da presente causa.
53. Assim, quer se considere que se trata de uma nulidade processual, nos termos do artigo 195.º, n.º 1 do CPC, por omissão de um ato que a lei prescreve, com incidência na decisão da causa, quer se entenda que aquela omissão determina a nulidade da própria decisão, sempre será aplicável o regime de impugnação de nulidades, com a consequente revogação do Acórdão Recorrido e anulação da decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, a fim de ser proferido o despacho de convite de aperfeiçoamento.
54. Pelo que deverá o Supremo Tribunal de Justiça julgar verificada a referida nulidade e, consequentemente, revogar o Acórdão Recorrido, bem como a Sentença, e ordenar o proferimento de despacho pré-saneador, a convidar a Recorrente a concretizar e aperfeiçoar os pontos da matéria de facto alegada na Petição Inicial que o Tribunal de 1.ª instância considera insuficiente ou deficientemente alegada, nos termos do artigo 590.º, n.º 4 do CPC.
Da nulidade da Sentença por violação do princípio do contraditório (decisão surpresa)
55. Por outro lado, a Recorrente considera que o Tribunal de 1.ª instância violou o princípio do contraditório ao proferir Sentença na qual procedeu à aplicação do instituto do abuso de direito em relação à prescrição aquisitiva (usucapião) invocada pela Recorrente, a qual configura uma decisão surpresa, na medida em que o Tribunal de 1.ª instância nunca aflorou o instituto do abuso de direito ou manifestou sequer a intenção de o considerar no âmbito da decisão de mérito.
56. Não obstante, o Acórdão Recorrido rejeitou a invocada nulidade, visto que considerou que não havia decisão surpresa, uma vez que o juiz anunciou, por despacho, a intenção de proferir decisão sobre o mérito da causa e não apenas sobre alguma questão ou exceção suscitada pelas partes, bastando-se com a exemplificação dos pontos sobre os quais as partes são convidadas a pronunciar-se meramente exemplificativa.
57. Entende a Recorrente que ocorre na presente situação uma violação do princípio do contraditório suscetível de dar lugar à nulidade da Sentença.
58. Tal como se referiu a propósito da nulidade do Acórdão Recorrido, o contraditório tem sido entendido em sentido lato enquanto direito de materialmente poder intervir e influenciar a decisão, quer no âmbito da alegação fáctica, quer no âmbito das provas, quer quanto ao direito, manifestando a sua perspetiva, tal como resulta, aliás, do Acórdão Fundamento da Violação do Princípio do Contraditório.
59. Assim, o princípio do contraditório presente no artigo 3.º, n.º 3, do CPC foi violado pelo Tribunal de 1.ª instância no que respeita à aplicação do instituto do abuso do direito em relação à prescrição aquisitiva invocada pela Recorrente, sendo forçoso concluir que a Sentença — por concluir pela aplicação do referido instituto — configura uma verdadeira decisão surpresa, por não ter sido sinalizada pelo Tribunal de 1.ª instância e, sobre a qual, a Recorrente não teve oportunidade de se pronunciar.
60. Não se admitindo que a mera referência genérica ao instituto na Contestação deduzida pelos Recorridos AA e BB seja bastante para se rejeitar a violação do princípio do contraditório, na medida em que se tratou de uma mera alegação residual e sem contextualização factual que nunca foi aflorado pelo Tribunal de 1.ª instância ao longo de todo o processo como elemento relevante para fundamentar a decisão de mérito do caso sub judice, pelo que não se pode considerar que tenha sido concedido às partes a oportunidade, efetiva, de se pronunciarem sobre a sua eventual aplicação.
61. Semelhante conclusão se aplica ao fundamento avançado pelo Acórdão Recorrido, de acordo com o qual não se verifica uma decisão surpresa, com fundamento no conteúdo do despacho proferido na segunda sessão de audiência prévia, que teve lugar no dia 06.07.2021, na medida em que facilmente se verifica que em momento algum se concedeu às partes oportunidade para se pronunciarem sobre uma eventual aplicação do instituto do abuso de direito.
62. Assim, não cabe às partes ter de adivinhar sobre quais vão ser as questões de direito que o Tribunal levará em conta para a prolação da decisão de mérito; em boa verdade, é dever do juiz expressamente identificar que questões são estas, sob pena de se violar o contraditório, encontrando este entendimento respaldo no Acórdão Fundamento da Violação do Contraditório.
63. Defender o oposto contraria de forma flagrante o entendimento dominante na jurisprudência e na doutrina acerca do exercício pleno e efectivo do princípio do contraditório.
64. Deste modo, o juiz ao considerar o instituto do abuso de direito com argumentos inovadores e com um enquadramento que não poderia ser previsto pelas partes, sem que tenha permitido às partes, previamente, exercer contraditório, impediu que estas exercem o seu direito a influenciar a decisão e a participar ativamente em todos os elementos do litígio.
65. Pelo que apenas se poderá concluir que a Sentença configura uma decisão surpresa, determinante da sua nulidade, tendo o Tribunal de 1.ª instância desconsiderado o direito ao exercício do contraditório, previsto no artigo 3.º, n.º 3 do CPC, que constitui um corolário básico do direito de acesso à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º da CRP.
66. Sendo a Sentença nula, na medida em que a jurisprudência e a doutrina têm assim qualificado a nulidade resultante da prolação de decisões surpresa como uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia, prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, a qual, nos termos do n.º 4 deste artigo deve ser invocada em sede de recurso da decisão, sendo que, ainda que assim não se entenda, a referida violação sempre consubstanciará uma nulidade processual, nos termos do artigo 195.º, n.º 1 do CPC, na medida em que foi omitida uma formalidade que a lei prescreve (cfr. artigo 3.º, n.º 3, do CPC), por ausência de convite às partes para se pronunciarem sobre a solução jurídica perfilhada pelo Tribunal que influiu no exame e decisão da presente causa.
67. Por tudo o exposto, deve o Tribunal ad quem julgar verificada a referida nulidade e revogar o Acórdão Recorrido, bem como a Sentença, determinando a necessidade de observância do princípio do contraditório.
Quanto à questão de mérito do litígio: a usucapião das Ações Controvertidas
68. Determina o artigo 674.º, n.º 1, alínea a) do CPC que o recurso de revista pode ter por fundamento a violação da lei substantiva, a qual poderá consistir tanto num erro de interpretação como de aplicação.
69. O que sucedeu no caso sub judice, na medida em que o Acórdão Recorrido incorreu num erro de interpretação e aplicação da lei quando considerou, por um lado, que estava verificada uma causa de suspensão da prescrição que impedia a aquisição das Ações Controvertidas por usucapião por parte da Recorrente, e, por outro lado, que estava verificada uma causa de interrupção da prescrição, por via da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade coletiva, que impedia a aquisição das Ações Controvertidas por usucapião por parte da Recorrente.
70. Erros de interpretação e aplicação das normas jurídicas que impõem a revogação do Acórdão Recorrido e a sua substituição por outro que julgue a presente ação totalmente procedente, reconhecendo a aquisição das Ações Controvertidas pela Recorrente com fundamento no instituto da usucapião.
Da inexistência de uma causa de suspensão da prescrição aquisitiva
71. O Acórdão Recorrido concluiu que existia nos presentes autos uma causa de suspensão do prazo de prescrição aquisitiva e que impediu que a Recorrente adquirisse as Ações Controvertidas por usucapião. Tudo isto por considerar que era a herança da Sra. EE quem tinha de exercer os direitos que levavam à interrupção da prescrição aquisitiva, pelo que existia uma causa de suspensão da prescrição com fundamento em duas disposições distintas, nomeadamente os artigos 321.º e 322.º do CC.
72. Contudo, contrariamente ao que sustenta o Acórdão Recorrido, as causas de suspensão da prescrição são taxativas, não se admitindo outras situações de suspensão de prescrição que não aquelas expressamente previstas na lei, sendo este entendimento sufragado tanto pela doutrina nacional como pela jurisprudência.
73. Mais: o legislador previu expressamente no artigo 318.º, alíneas b), c) e d) do CC, as situações de suspensão da prescrição com fundamento em casos de conflito de interesses que entendeu ser de dar relevância para este efeito suspensivo, não sendo o caso sub judice subsumível a nenhuma das situações, pelo que o conflito de interesses entre herdeiros será irrelevante para efeitos de suspensão dos prazos de prescrição.
74. No entanto, o Acórdão Recorrido, por considerar a atuação do Recorrido CC moralmente errada, pretende incluir o caso sub judice no elenco taxativo dos mencionados preceitos com vista a impedir a usucapião das Ações Controvertidas por parte da Recorrente.
75. A tudo isto acresce a inadmissibilidade de subsumir o caso sub judice a uma situação de força maior, nos termos do artigo 321.º do CC, na medida em que a aplicabilidade deste preceito depende da existência de um impedimento ao exercício do direito que seja, de todo, invencível. Tratando-se, portanto, de uma impossibilidade efetiva, por causa não imputável ao titular do direito.
76. Ora, a referida incompatibilidade ou conflito de interesses entre herdeiros nunca poderia ser considerada caso de força maior, por não se subsumir a nenhum daqueles eventos imprevisíveis e insuperáveis, cujos efeitos se produzem independentemente da vontade do titular do direito.
77. Por outro lado, a herança da Sra. EE apenas não exerceu os seus direitos relativamente às Ações Controvertidas porque os Recorridos AA e BB optaram por não forçar tal atuação, visto que poderiam ter recorrido aos meios comuns para determinar a questão da titularidade das Ações Controvertidas e, deste modo, interromper a prescrição aquisitiva e exercer os direitos relativos àquelas ações, e nunca o fizeram.
78. Deste modo, embora, materialmente, a partilha das ações da A..., S.A. constantes da herança da Sra. EE não ter respeitado todas as regras injuntivas que lhe são aplicáveis, os Recorridos AA e BB reagiram contra esta partilha no âmbito do Processo de Inventário, tendo o Tribunal no âmbito daquele processo remetido a questão da titularidade das ações da A..., S.A. objeto daquela partilha para os meios comuns, nunca tendo os Recorridos AA e BB recorrido aos meios comuns para determinar a questão da titularidade das ações da A..., S.A. objeto de partilha em 2011. E não foi porque simplesmente optaram por não o fazer.
79. Evidência disso mesmo está no facto de os Recorridos AA e BB terem finalmente instaurado uma ação de reivindicação contra a ora Recorrente (processo n.º 1378/22.0..., pendente junto do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Local Cível de ..., Juiz 1).
80. Com efeito, se a herança da Sra. EE não reclamou os seus supostos direitos perante a Recorrente, foi porque os Recorridos AA e BB assim quiseram, ao optar por não fazer uso dos meios comuns e antes optar por respeitar a vontade do seu pai.
81. Donde apenas se poderá concluir que no caso sub judice se está perante uma efetiva inércia dos herdeiros em exercer os supostos direitos da herança, pois estes tinham à sua disposição os meios judiciais para ultrapassar a incompatibilidade e o conflito de interesses existente entre si e escolheram nunca fazer uso desses meios.
82. Ao que acresce o facto de a Recorrente não ter atuado em momento algum de modo a impedir que os Recorridos ou a herança exercessem qualquer direito que considerassem existir, não estando nos autos qualquer facto nesse sentido ou sequer qualquer alegação.
83. Sendo que a circunstância de existir um conflito de interesses entre o Recorrido CC, o qual era ... da Recorrente, e os demais Recorridos relativamente à titularidade das Ações Controvertidas não pode, de modo algum, ser imputada à Recorrente.
84. O Recorrido CC, além de ... da Recorrente naquela data — não o sendo desde 2017 por ter sido afastado judicialmente - é também uma pessoa singular e atua nesta qualidade, não se podendo confundir as suas atuações enquanto herdeiro da Sra. EE com as suas atuações enquanto ... da Recorrente, não podendo igualmente ser imputadas à Recorrente.
85. A Recorrente não foi parte no Processo de Inventário por óbito da Sra. EE, a Recorrente não participou na partilha das ações da A..., S.A. incluídas no acervo hereditário da Sra. EE e a Recorrente não impediu em momento algum que os Recorridos AA e BB recorressem aos meios comuns para dirimir a questão da titularidade das Ações Controvertidas.
86. A Recorrente não tinha quaisquer meios à sua disposição para impedir o exercício dos direitos que os Recorridos AA e BB consideram ser seus por intermédio da herança da Sra. EE.
87. Desta forma, quaisquer atos neste sentido poderiam apenas e somente ser atribuídos ao Recorrido CC na sua qualidade de herdeiro da Sra. EE e não na sua qualidade de ... da Recorrente, a qual era totalmente irrelevante para a situação de conflito de interesses existente entre os herdeiros da Sra. EE, visto a Recorrente não ser herdeira desta e, por conseguinte, não ter qualquer “voto na matéria” relativa à partilha da sua herança ou às atuações da herança para efeitos de exercício dos respetivos direitos.
88. Note-se que os Recorridos AA e BB sempre dispuseram de meios para ultrapassar esta questão, simplesmente não tendo feito uso desses meios porque assim escolheram.
89. Em suma, é evidente que a suposta incompatibilidade ou conflito de interesses identificada pelo Acórdão Recorrido no caso sub judice entre os herdeiros da Sra. EE — não se enquadra nas previsões normativas do artigo 321.º do CC, seja no seu n.º 1, seja no seu n.º 2, não existindo qualquer causa de suspensão do prazo de prescrição aquisitiva.
90. Não sendo de equacionar, igualmente, a aplicação do artigo 322.º do CC, na medida em que esta é aplicável a duas situações muito específicas: quando não existe cabeça-de-casal ou não se sabe quem este é ou quando não estão identificados os herdeiros, tal como tem vindo a ser referenciado pela doutrina nacional mais autorizada110.
91. Não sendo aplicável ao caso sub judice por existir cabeça-de-casal e por todos os herdeiros estarem devidamente identificados no Processo de Inventário.
92. Donde se conclui que o Acórdão Recorrido não deveria ter considerado verificada a causa de suspensão do prazo de prescrição aquisitiva pela Recorrente das Ações Controvertidas.
93. Por não se enquadrar nas normas relativas à suspensão da prescrição e por estas não admitirem aplicação analógica a qualquer outro caso, deve o Tribunal ad quem revogar o Acórdão Recorrido e substituí-lo por outro que declare que inexiste uma causa de suspensão do prazo de prescrição aquisitiva das Ações Controvertidas e, consequentemente, julgando totalmente procedente a pretensão da Recorrente na aquisição das Ações Controvertidas com fundamento na usucapião.
Da inexistência de uma causa de interrupção da prescrição aquisitiva
94. O Acórdão Recorrido socorreu-se do instituto da desconsideração da personalidade jurídica para fundamentar a imputação das citações e notificações judiciais dirigidas e recebidas pela A..., S.A. e pelo Recorrido CC à Recorrente, mais sustentando que por esta razão estava verificada a causa interruptiva da prescrição prevista no artigo 323.º, n.º 1, do CC.
95. Com efeito, o Acórdão Recorrido considerou que o prazo de prescrição aquisitiva se considera interrompido pela imputação à Recorrente dos efeitos da citação ou notificação judicial efetuadas na pessoa do Recorrido CC e da A..., S.A. no Processo de Inventário, no Processo de Anulação de Deliberações Sociais e no Processo de Inexistência do Registo das Ações Controvertidas.
96. Embora o Acórdão Recorrido não adiante qual a concreta citação ou notificação judicial que permite a interrupção do prazo de prescrição aquisitiva da Recorrente, facilmente se conclui que este realiza uma extensão subjetiva do disposto no artigo 323.º, n.º 1, do CC com fundamento na desconsideração da personalidade jurídica, dizendo que tanto a A..., S.A. como a Recorrente são, na verdade, o Recorrido CC.
97. Construção despida de qualquer suporte factual e legal, porquanto, não existe qualquer facto que permita fundamentar uma instrumentalização da Recorrente ou da A..., S.A. por parte do Recorrido CC para efeitos da aquisição das Ações Controvertidas por usucapião, e, por conseguinte, que possa fundamentar a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade coletiva.
98. Mas ainda por o artigo 323.º, n.º 1, do CC nunca permitir a extensão subjetiva que o Acórdão Recorrido pretendeu fazer, pois esta norma assenta em razões de ordem pública e de segurança e certeza jurídica que não permitem que os efeitos interruptivos se deem de qualquer outro modo que não o expressamente previsto na mesma.
99. Deste modo, a decisão constante do Acórdão Recorrido apenas se explica num contexto de tentativa de construção de uma solução jurídica que se enquadre naquilo que o Acórdão Recorrido considerou ser a solução mais ética, o que para além de não permitido pelo Direito, contraria totalmente a circunstância de a usucapião ser um instituto amoral.
100. E a propósito da solução moralmente mais correta não pode a Recorrente deixar de salientar novamente que o Recorrido CC já não exerce quaisquer funções como ... da Recorrente desde 20.10.2017, tendo sido judicialmente suspenso desse cargo e posteriormente judicialmente destituído com justa causa, tudo com fundamento nos seus comportamentos desleais para com a Recorrente, nomeadamente pelo facto de ter desviado sistematicamente património, os recursos materiais, financeiros e humanos, as oportunidades de negócio e a clientela da Recorrida e das sociedades operacionais do Grupo C..., S.A. para um grupo paralelo.
101. Ao que acresce o facto de o Recorrido CC já não corresponder ao acionista único da Recorrente desde 2013, encontrando-se a amortização das suas ações da Recorrente a ser discutida nos Tribunais.
102. Pelo que se deve realçar que a tentativa de obtenção de uma decisão baseada na moral no âmbito do presente caso feita no Acórdão Recorrido, para além de premiar a inércia dos Recorridos BB e AA, apenas beneficia o próprio Recorrido CC, pois atribui-lhe nova possibilidade de se apropriar das Ações Controvertidas através da herança da sua mãe, e prejudica sobremaneira os atuais acionistas da Recorrente e os seus credores e stakeholders, os quais se vêm sem as ações da principal sociedade operacional do Grupo C..., S.A..
103. Donde se conclui que o Acórdão Recorrido responsabiliza moralmente a Recorrente — que não se confunde com o Recorrido CC —, os seus credores e os seus stakeholders pelas atuações que o Recorrido CC adotou a título individual enquanto herdeiro da Sra. EE.
104. Devendo o Tribunal ad quem revogar o Acórdão Recorrido, de forma a evitar a violação flagrante do Direito vigente neste aresto.
Da impossibilidade de aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica ao presente caso
105. O instituto da desconsideração da personalidade jurídica da pessoa coletiva corresponde a um instituto que opera por exigência da boa-fé, in casu, dos valores fundamentais do ordenamento jurídico, através da imputação de obrigações da sociedade às pessoas singulares que lhe sirvam de suporte (seja aos administradores, seja aos sócios, conforme as circunstâncias.
106. Embora parte da doutrina e da jurisprudência admita a desconsideração da personalidade coletiva apenas para efeitos de responsabilização dos sócios ou administradores, como é o caso do Acórdão Fundamento de Desconsideração da Personalidade Coletiva -, existem outros entendimentos que consideram o instituto aplicável a duas situações: (i) levantamento da limitação de responsabilidade (corresponde aos casos nos quais cede a regra da personalidade limitada dos sócios, que são chamados a responder com o seu património perante os credores sociais, por utilizarem abusivamente a entidade coletiva) ; ou (ii) levantamento de imputação (determinados conhecimentos, qualidades ou comportamentos de sócios são referidos ou imputados à sociedade).
107. Ora, no caso sub judice, o Acórdão Recorrido pretende imputar à Recorrente os efeitos das citações ou notificações judiciais efetuadas ao Recorrido CC e à A..., S.A., sendo que, como é evidente, esta situação não se enquadra em nenhuma das situações de desconsideração da personalidade colectiva referidas: não é uma questão de responsabilização patrimonial e tampouco é uma questão de imputação de conhecimentos, qualidades ou comportamentos
108. Ao que acresce o facto de o artigo 323.º, n.º 1, do CC não se bastar com o mero conhecimento, antes exigindo uma forma específica de conhecimento. E não se imputa no caso sub judice um qualquer comportamento ou qualidade à Recorrente, mas sim os efeitos de uma citação ou notificação judicial.
109. Donde se conclui que a situação dos autos não se enquadra em nenhuma das situações a que o instituto da desconsideração da personalidade coletiva, pelo que implica, necessariamente, a impossibilidade de aplicação deste instituto para os efeitos pretendidos no âmbito do Acórdão Recorrido, sendo bastante para fundamentar a revogação da decisão.
110. Adicionalmente, reitere-se que é unânime entre a doutrina e a jurisprudência, qualquer que seja a modalidade de desconsideração da personalidade coletiva, que este instituto tem carácter subsidiário e excecional, apenas sendo legítima a sua consideração em situações em que seja necessária a correção das consequências jurídicas decorrentes do pleno respeito da autonomia da personalidade jurídica da pessoa coletiva, com fundamento numa utilização abusiva da mesma pelos seus membros.
111. Com efeito, a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade coletiva exige sempre a identificação de uma situação abusiva, i.e., de uma utilização abusiva da personalidade coletiva por ser contrária aos objetivos da sua concessão.
112. Entre os grupos de casos que marcam a casuística do instituto do levantamento da personalidade jurídica, o Acórdão Recorrido direcionou o caso sub judice às situações confusão de esferas, sendo que, para fundamentar a referida confusão de esferas entre Recorrente, A..., S.A. e o Recorrido CC, o Acórdão Recorrido invoca, em termos muito singelos, a simples existência de uma relação de influência dominante entre a Recorrente e a A..., S.A. e entre o Recorrido CC e a Recorrente.
113. Neste sentido, os únicos argumentos invocados pelo Acórdão Recorrido para operar a desconsideração da personalidade jurídica da A..., S.A. são: (i) a existência de uma confusão/identificação entre o Recorrido CC e a Recorrente, visto que o primeiro, enquanto seu acionista quase-único e ..., alegadamente instrumentalizava a Recorrente para controlar a A..., S.A., na medida em que a Recorrente detinha a maioria do capital social da A..., S.A., devido ao apossamento das mesmas pelo Recorrido CC; e (ii) a invocação da aquisição das Ações Controvertidas pela Recorrente redundaria num resultado ilegítimo, na medida em que o Recorrido CC se apossou das Ações Controvertidas através de negócios jurídicos inválidos para depois transmitir as Ações Controvertidas para a Recorrente, sendo possuidor através da Recorrente e, por outro lado, enquanto herdeiro, impedindo que a herança de EE viesse reclamar qualquer direito face às Ações Controvertidas.
114. Em nenhum destes argumentos se fundamentou a alegada utilização abusiva, seja da Recorrente para detenção das Ações Controvertidas, seja da A..., S.A., sendo este um requisito essencial do recurso à desconsideração da personalidade jurídica, não bastando a alegação do abuso, antes sendo necessário reconduzir esta alegação a factos concretos que demonstram tal abuso.
115. No caso concreto tais factos concretos não foram alegados pelos Recorridos, nem provados, nem invocados no Acórdão Recorrido.
116. A detenção de participações sociais por intermédio de sociedades anónimas é bastante comum e, inclusivamente, permitido pela lei, daí se permitir a figura das sociedades gestoras de participações sociais.
117. O Recorrido CC nunca escondeu ser o acionista quase-único da Recorrente — que, relembre-se, já não é o caso desde 2013 —, nem utilizou a Recorrente ou a A..., S.A. por forma a obstaculizar que a herança da Sra. EE ou os demais herdeiros desta Sra. exercessem os seus direitos relativamente às Ações Controvertidas, pelo que simples facto de o Recorrido CC ter transmitido as ações da A..., S.A. das quais se apossou a Recorrente e de aquele ser acionista maioritário e ... desta e através desta controlar a A..., S.A. não representa, em si e sem mais, fundamento para a existência de uma confusão de esferas, nem é, em si e sem mais, abusivo ou merecedor de uma correção com base no instituto da desconsideração da personalidade jurídica.
118. Sendo que circunstância de o Recorrido CC, a título individual de herdeiro da Sra. EE, alegadamente impedir que a herança reclamasse os seus direitos relativamente às Ações Controvertidas, tampouco constitui um uso abusivo da Recorrente ou da A..., S.A., pois o Recorrido CC nem sequer atuava na qualidade de ... da Recorrente ou da A..., S.A..
119. A Recorrente não é uma sociedade-veículo de fachada. É a holding do maior grupo empresarial da indústria nacional de extração mineira. Tem muitos colaboradores e inúmeros credores, pelo que não existe qualquer abuso da personalidade coletiva.
Da alegada identificação ou confusão entre a Recorrente e o Recorrido CC – da irrelevância da influência dominante
120. O Acórdão Recorrido acentua na fundamentação a identificação ou confusão entre a Recorrente e o Recorrido CC por este ser, em 2011, acionista quase-único e ... do Conselho de Administração daquela, apresentando-se como o real controlador da A..., S.A..
121. Assim, o Acórdão Recorrido identifica esta “confusão” de esferas com a existência de uma relação de domínio com a A..., S.A..
122. A influência dominante traduz-se no “poder que assiste à sociedade dominante de, mediata ou imediatamente, agir sobre o governo da sociedade dependente, determinando a sua vontade juridicamente relevante”112.
123. Pelo que, a suposta “confusão” identificada no Acórdão Recorrido representa, na verdade, apenas e somente o normal funcionamento de uma relação de domínio conforme permitido e expressamente previsto na lei.
124. Sendo unânime o entendimento de que a referida relação de influência dominante não prejudica a autonomia jurídica de cada sociedade, não implicando necessariamente uma confusão de esferas entre a sociedade dominante e a sociedade dominada.
125. Realidade tão evidente no âmbito do direito societário que este ramo de direito não associa quaisquer efeitos jurídicos substanciais à existência de uma relação de domínio, pelo que perante um sistema de direito societário que não associa consequências jurídicas ao exercício da influência dominante, torna-se sistematicamente desajustado defender, como faz o Acórdão Recorrido, que é possível a declaração da existência de uma “confusão” de esferas pelo simples facto de existir uma relação de dominância e, consequentemente, invocar a necessidade de aplicação da desconsideração da personalidade coletiva por forma a que a citação ou notificação judicial da A..., S.A. pode ser estendida à Recorrente com o fundamento de a Recorrente ser a sócia dominante da A..., S.A..
126. Com efeito, a posição do Acórdão Recorrido introduz uma quebra no sistema jurídico-societário de irrelevância substantiva das relações de domínio, na medida em que o sistema reconhece as relações de domínio entre sociedades, mantendo, tanto a sociedade dominada como a dominante, a sua personalidade jurídica autónoma, surgindo o poder de influência dominante como um mero dado de facto.
127. Donde se retira a conclusão de que a relação de influência dominante não será bastante para fundamentar e para fazer operar um instituto de carácter excecional e subsidiário que visa corrigir situações anormais e contrárias ao direito, como é o caso da desconsideração da personalidade jurídica.
128. Não se vislumbrando qualquer fundamento no âmbito do Acórdão Recorrido e da factualidade alegada e considerada como provada que justifique a invocação do instituto do levantamento da personalidade jurídica da pessoa coletiva com base em simples asserções como a eleição dos órgãos sociais pela sócia dominante que corresponde ao mero exercício de influência dominante.
129. Pelo que se conclui que, também com base nestes fundamentos, deverá o Acórdão Recorrido ser revogado com fundamento na errada aplicação do direito.
130. Ao que acresce ainda o facto de o Acórdão Recorrido não ter identificado, em concreto, qual a entidade cuja personalidade jurídica coletiva se deveria desconsiderar, de forma a operar o efeito da extensão subjetiva do artigo 323.º do CC, embora se possa concluir da argumentação do mesmo que a personalidade jurídica desconsiderada seja a da A..., S.A..
131. Sucede que, conforme já se referiu exaustivamente, a desconsideração da personalidade jurídica pressupõe sempre que, independentemente do juízo de censura imputável ao agente, exista uma utilização abusiva da personalidade coletiva e esses elementos necessários à desconsideração não constam do Acórdão Recorrido, pelo que não se identificam argumentos que justifiquem uma utilização da personalidade coletiva da A..., S.A. que seja contrária ao sistema jurídico, nem tampouco o grave atentado à boa-fé capaz de fundamentar a desconsideração da personalidade coletiva.
132. Com efeito, toda a argumentação do Acórdão Recorrido resulta da pretensa “confusão” de esferas que não encontra respaldo factual e legal, conforme já se demonstrou exaustivamente, pelo que o único fundamento que se identifica no Acórdão Recorrido é, afinal, a situação (lícita) de influência dominante.
133. É, assim, evidente, que também pelo ora exposto falece a invocação do instituto do abuso de personalidade coletiva como fundamento da extensão subjetiva dos efeitos previstos no artigo 323.º, n.º 1, do CC à Recorrente, pois a invocação deste instituto, como o próprio nome indica, pressupõe a existência de uma utilização abusiva da personalidade coletiva da A..., S.A. ou da Recorrente, consoante a perspetiva que se adotar, que simplesmente não existiu, não foi alegada, não foi considerada como provada, nem foi invocada no Acórdão Recorrido.
Da inexistência de um resultado ilegítimo da invocação pela Recorrente da usucapião das Ações Controvertidas
134. Fundamenta ainda o Acórdão Recorrido a necessidade do recurso à desconsideração da personalidade coletiva, argumentando que se fosse permitido à Recorrente prevalecer-se da usucapião das Ações Controvertidas estaria a permitir um resultado ilegítimo porque branquearia o comportamento do Recorrido CC que teria obstaculizado o exercício do direito à reivindicação das Ações Controvertidas enquanto herdeiro, mantendo um conflito de interesses com a herança.
135. Conforme já foi demonstrado, o Recorrido CC não podia obstaculizar, por si só e de forma definitiva, o exercício do direito de reivindicação das Ações Controvertidas.
136. A questão da titularidade das Ações Controvertidas foi suscitada pelos demais Recorridos no âmbito do Processo de Inventário, tendo ali sido proferido despacho no sentido de remeter esta questão aos meios comuns, não tendo estes Recorridos proposto a respetiva ação judicial simplesmente porque não quiseram.
137. Os Recorridos poderiam ainda ter chamado a Recorrente ao Processo de Inexistência do Registo das Ações Controvertidas para obterem autoridade de caso julgado contra esta quanto à nulidade do registo das Ações Controvertidas e, ao mesmo tempo, interromper a prescrição aquisitiva que corria a favor desta. Optando, mais uma vez, por não o fazer.
138. Donde se conclui que nenhum resultado ilegítimo seria obtido com a presente ação, visto que a aquisição por usucapião das Ações Controvertidas por parte da Recorrente decorre apenas e somente da inércia dos Recorridos BB e AA em recorrer aos meios comuns para dirimir o presente litígio.
139. Por outro lado, este fundamento assenta, também, num argumento circular, pois, presume-se, novamente que existe uma confusão de esferas abusiva entre a Recorrente e o Recorrido CC, que, conforme já vimos, não tem qualquer suporte factual ou legal.
140. Conforme também já exposto, já desde 2013 que o Recorrido CC não é sócio maioritário da Recorrente — ou seja, já não o era à data da entrada da presente ação —, tendo, aliás, por essa razão, este Recorrido todo o interesse em que a presente ação seja julgada improcedente para que possa outra vez “deitar mão” às Ações Controvertidas.
141. Adicionalmente, ao considerar que a aquisição das Ações Controvertidas pela Recorrente por meio da usucapião seria um “resultado ilegítimo” por abusivo e contrário à boa-fé, o Acórdão Recorrido está a realizar uma valoração ética da invocação da usucapião por parte da Recorrente que contraria expressamente a ratio deste instituto.
142. Com efeito, o Acórdão Recorrido associa um vetor teleológico e sistemático de valoração ética e de justiça material à possibilidade de invocação da usucapião, sendo que este instituto não visa quaisquer finalidades de justiça material, mas antes a proteção de valores como a segurança e a certeza jurídica através da consolidação definitiva de uma situação jurídico-fáctica de posse.
143. Contraria, assim, o Acórdão Recorrido a doutrina mais autorizada e a generalidade da jurisprudência relativa à natureza da usucapião e dos valores que visa proteger.
144. Posto de outro modo, acima de qualquer valor de justiça material, subjacente à usucapião está um interesse de ordem pública ligado à certeza, definição, estabilidade e segurança jurídica, de forma a permitir a harmonização do direito com a realidade fáctica, tornando a situação fáctica legítima por efeito do decurso do tempo.
145. Desta forma, a ponderação dos valores em causa limita a suscetibilidade de fundamentar a improcedência do pedido do usucapiente com recurso a institutos que visam tutelar princípios ético-jurídicos do sistema e de justiça material baseados na boa-fé, cujos exemplos primordiais no direito civil e no direito societário são, respetivamente, o abuso de direito e a desconsideração da personalidade coletiva.
146. Assim, a aquisição por usucapião até pode ser um “resultado [moralmente e eticamente] ilegítimo”, mas que é tornado [legalmente] legítimo por razões de segurança e certeza jurídica e de ordem pública, realçando-se ainda que, a este propósito, exatamente por dar primazia à segurança e certeza jurídica sobre a boa-fé, o legislador previu expressamente que a boa ou má-fé do usucapiente releva apenas e somente para efeitos da contagem do prazo para usucapir.
147. Entendimento sufragado pela generalidade da doutrina nacional e pela jurisprudência, em especial, pelo Acórdão Fundamento da Relevância da Má-fé.
148. Neste sentido, contrariamente ao que considerou o Acórdão Recorrido, é irrelevante a valoração ética e de justiça material subjacente à circunstância de a Recorrente, por ter como seu ... naquela data o Recorrido CC, ter conhecimento de que os Recorridos AA e BB haviam intentado várias ações contra a ADM e tentado discutir esta questão no Processo de Inventário e, ainda assim, invocar a usucapião contra aqueles Recorridos.
149. Ao considerar que a invocação por parte da Recorrente da usucapião das Ações Controvertidas com esta valoração ético-jurídica o Acórdão Recorrido está a subverter toda ratio subjacente ao instituto da usucapião e a atribuir à boa-fé uma preponderância que a mesma não tem, nem pode ter, no âmbito deste instituto.
150. Nos termos da lei, o conhecimento destas circunstâncias pela Recorrente releva apenas e somente para efeitos de determinar se a Recorrente se encontra de boa ou má-fé e, a final, determinar o prazo necessário para a aquisição por usucapião, não tendo qualquer influência na possibilidade ou impossibilidade de a Recorrente invocar a usucapião.
151. Assim, também pelo ora exposto falecem os argumentos do Acórdão Recorrido no sentido de ser necessário o recurso à figura da desconsideração da personalidade coletiva para imputar a citação e notificação judicial da A..., S.A. e do Recorrido CC à Recorrente e, deste modo, evitar um “resultado ilegítimo”, pois os efeitos da má-fé em sede de usucapião, sob pena de se subverter os vetores teleológicos subjacentes a este instituto.
Da inadmissibilidade de interrupção do prazo de prescrição aquisitiva por outros meios que não os legalmente previstos e, consequentemente, da inadmissibilidade da extensão subjetiva do ato interruptivo do prazo de prescrição
152. Tendo em conta que as regras relativas à prescrição e, em especial, à prescrição aquisitiva estão ancoradas em princípios de segurança, certeza e ordem pública, também as regras relativas à sua interrupção se norteiam pelos mesmos princípios.
153. Com fundamento nestas considerações, a doutrina e a jurisprudência são unânimes no sentido de que a prescrição apenas e somente se interrompe pelos meios previstos na lei.
154. Ora, o artigo 323.º do CC prevê como meio de interrupção da prescrição apenas e somente a utilização de um meio judicial diretamente contra o obrigado, não se bastando com o mero conhecimento por parte deste de que existe um terceiro que pretende exercer o direito sujeito a prescrição, sendo este o entendimento que resulta claramente do Acórdão Fundamento de Interrupção da Prescrição.
155. Tendo o legislador consagrando que o conhecimento relevante para efeitos de interrupção do prazo de prescrição aquisitiva é apenas e somente aquele que for levado ao conhecimento daquele contra quem o direito puder ser exercido através de um meio judicial, não se afigura admissível permitir que sejam criadas formas de interrupção do prazo de prescrição além das que tenham sido legalmente previstas.
156. Ao que acresce o facto de o disposto no artigo 323.º, n.ºs 1 e 4, do CC, por estar assente em princípios de segurança e certeza, não admite qualquer extensão do seu âmbito que não esteja legalmente prevista, pois tal extensão não legalmente prevista sempre prejudicaria esta segurança e certeza jurídicas ao criar uma causa de interrupção da prescrição além das previstas na lei.
157. Contudo, através do instituto da desconsideração da personalidade coletiva — o qual é norteado por princípios opostos ao que norteiam o instituto da prescrição — e na consequente suposta extensão subjetiva do disposto no artigo 323.º do CC, o Acórdão Recorrido desconsidera os princípios que norteiam o instituto da prescrição, equiparando o conhecimento da Recorrente à citação / notificação judicial da Recorrente e, dessa forma, criando uma nova causa de interrupção da prescrição de construção meramente jurisprudencial e sem qualquer respaldo na letra ou na ratio da lei.
158. Ora, atendendo à necessidade de certeza e segurança jurídica subjacente ao instituto da prescrição e da interrupção da prescrição, uma construção jurisprudencial segundo a qual é possível uma extensão subjetiva do disposto no artigo 323.º do CC introduz um elemento se insegurança, incerteza e casuística que não é (nem pode ser) tolerado.
159. E contra este entendimento não vale o argumento do Acórdão Recorrido da admissibilidade da extensão subjetiva do artigo 323.º do CC, nos casos excecionais respeitantes aos atos exercidos pelos compossuidores ou pelos herdeiros do possuidor ou proprietário, visto que estas normas não preveem a extensão subjetiva do artigo 323.º do CC, mas antes concedem aos compossuidores e aos herdeiros legitimidade para exercer os seus direitos decorrentes da propriedade dos bens ou da expectativa de vir a ter essa propriedade.
160. Não existe qualquer analogia entre o caso em apreço e as situações invocadas pelo Acórdão Recorrido, mas antes o reconhecimento de que o legislador quis prever determinadas situações em que os poderes previstos no artigo 323.º do CC poderiam ser exercidos por terceiros que não os titulares únicos do direito.
161. Deste modo, o Acórdão Recorrido cria uma nova causa de interrupção da prescrição não prevista na lei num caso de prescrição aquisitiva, em que a necessidade de certeza e segurança jurídica, para além de se manifestarem de forma mais intensa, existem para proteção do usucapiente e não daquele a quem a usucapião está a ser oposta.
162. Pelo que o Acórdão Recorrido não só ignora totalmente o disposto na lei e a ratio da lei, como também o faz para proteção daqueles que a lei não pretendeu proteger.
163. Protegendo os Recorridos AA e BB numa situação em que poderiam facilmente interromper o prazo de prescrição aquisitiva através do recurso aos meios comuns ou requerendo a notificação judicial da Recorrente no âmbito dos processos pendentes em que se discutia a titularidade das Ações Controvertidas.
164. Em face do exposto, é evidente que a solução jurídica ad hoc constante do Acórdão Recorrido segundo a qual é possível operar uma extensão subjetiva do disposto no artigo 323.º do CC por forma a imputar os efeitos da citação de uma sociedade a outra sociedade — in casu, a citação da ADM à Recorrente — e assim impedir a aquisição das Ações Controvertidas por usucapião contraria frontalmente os princípios de ordem pública e segurança e certezas jurídicas subjacentes ao instituto da prescrição (e da sua interrupção) sendo, por conseguinte, é legalmente inadmissível.
165. Em suma, deve o Acórdão Recorrido ser revogado, por aplicar erradamente o Direito constituído, e o mesmo ser substituído por outro que considere, (i) que inexiste fundamento para a aplicação do instituto do abuso de personalidade coletiva nos presentes autos e, (ii) por outro lado, que inexiste uma causa de interrupção da prescrição aquisitiva nos presentes autos, por ser impossível a extensão subjetiva do disposto no artigo 323.º do CC por meio da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica.
Da contagem do prazo para usucapir
166. O Acórdão Recorrido entendeu que o momento relevante a considerar para início da contagem do prazo da posse das Ações Controvertidas é o do respetivo registo de aquisição a favor da Recorrente, porquanto entendeu que antes de tal registo a Recorrente encontrava-se impedida de exercer os direitos decorrentes da propriedade das Ações Controvertidas.
167. Contudo, o Acórdão Recorrido confunde o impedimento legal-jurídico do exercício dos direitos sociais relativo às Ações Controvertidas, com um pretenso impedimento fáctico, empírico, do exercício de tais direitos sociais.
168. Deste modo, o Acórdão Recorrido caiu num erro de interpretação dos artigos 1251.º e 1287.º do CC, partindo de uma noção de posse que não tem respaldo na Doutrina e Jurisprudência, visto que a posse se abstrai destes impedimentos jurídicos, sendo apenas relevante para efeitos da posse o plano fáctico e empírico, tendo este entendimento consagração, nomeadamente no Acórdão Fundamento do Início da Posse.
169. Enquanto exercício fáctico de um poder, a posse envolve, no seu início e ao longo da sua subsistência, a disponibilidade fáctica sobre a coisa, em termos de exercício atual e/ou potencial de poderes empíricos. Tal noção de disponibilidade empírica extravasa, portanto, e naturalmente, o domínio do jurídico.
170. Pelo que o registo no livro de registo de ações da A..., S.A. da aquisição das Ações Controvertidas a favor da Recorrente, apesar de poder constituir um ato possessório, não determina necessariamente o momento relevante para efeitos de início da posse, pois não é o reconhecimento jurídico decorrente de tal registo que faz nascer a posse, mas antes os atos possessórios efetivamente praticados pela Recorrente.
171. Posto de outro modo, ao registo da transmissão das Ações Controvertidas não se pode ligar de modo automático o efeito de início da posse, dado que tal registo de aquisição não constitui necessariamente, por si, o momento a partir do qual, de facto, se torna possível o exercício dos poderes fácticos sobre as Ações Controvertidas, visto que tal poder de facto pode surgir em momento anterior, tendo sido esse o caso da situação sub judice, pelos diversos atos materiais e possessórios praticados pela Recorrente sobre as Ações Controvertidas em momento anterior ao registo da transmissão das mesmas a seu favor.
172. Donde resulta que o registo de aquisição em momento posterior ao início do exercício de atos de posse pela Recorrente sobre as Ações Controvertidas em nada releva para efeitos de contagem do respetivo tempo de posse daquela no presente caso, pois que o momento a atender para efeitos de contagem do prazo de prescrição aquisitiva corresponde à data em que a Recorrente iniciou o exercício dos seus direitos sociais sobre a A..., S.A..
173. E quanto a este momento resulta da factualidade considerada pelo Tribunal de 1.ª instância e posteriormente aceite pelo Tribunal a quo que o mesmo corresponde ao momento em que as Ações Controvertidas foram transmitidas à Recorrente (ou às sociedades por si participadas).
174. Devendo ainda ser considerado o conteúdo do Articulado de Aperfeiçoamento para efeitos de identificação do momento em que as Ações Controvertidas foram transmitidas à Recorrente (ou às sociedades por si participadas).
175. Reitere-se que o Tribunal a quo não pôs em causa, em momento algum, esta factualidade aceite pelo Tribunal de 1.ª instância — ou seja, a factualidade invocada na Petição Inicial e corrigida no Articulado de Aperfeiçoamento.
176. Assim, com base nesta factualidade considerada assente pelo Tribunal de 1.ª instância e pelo Tribunal a quo, podem sintetizar-se os seguintes factos relativamente à posse das Ações Controvertidas pela Recorrente:
LOTE | NÚMERO DE AÇÕES | DATA DE INÍCIO DA POSSE |
|
|
A | 1.418.000 | 20.01.2011 | 20.01.2011 | 18.04.2011 |
B | 171.742 | 07.12.2012 | 07.12.2012 | 07.12.2012 |
7.793 | ||||
3.156 | ||||
33.867 | 18.09.2013 | 18.09.2013 | ||
66.442 |
177. Aplicando-se o artigo 1299.º do CC e considerando-se a Recorrente de má-fé é aplicável o prazo de 6 anos previsto nesta norma para determinar se a Recorrente adquiriu ou não as Ações Controvertidas por usucapião, tendo terminado este prazo em:
LOTE | NÚMERO DE AÇÕES | DATA DE INÍCIO DA POSSE RELEVANTE | TERMO DO PRAZO DE 6 ANOS |
A | 1.418.000 | 20.01.2011 | 20.01.2017 |
B | 171.742 | 07.12.2012 | 07.12.2018 |
7.793 | |||
3.156 | |||
33.867 | |||
66.442 |
178. Subsidiariamente, caso se considere a acessão na posse do Recorrido CC nos termos do disposto no artigo 1256.º, n.º 1, do CC, visto ambas as posses terem as mesmas características, as datas relevantes são as seguintes:
LOTE | NÚMERO DE AÇÕES | DATA DE INÍCIO DA POSSE RELEVANTE | TERMODO PRAZODE 6 ANOS |
A | 1.418.000 | 18.01.2011 | 18.01.2017 |
B | 171.742 | 10.01.2011 | 10.01.2017 |
7.793 | |||
3.156 | |||
33.867 | |||
66.442 |
179. Considerando tudo o exposto, na presente data — e na data em que foi proferida a Sentença nos presentes autos —, o prazo de seis anos já se completou há vários anos, tendo a Recorrente adquirido a propriedade das Ações Controvertidas por usucapião, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 1287.º, 1288.º e 1299.º do CC (e, subsidiariamente, 1256.º, n.º 1, também do CC).
180. Por conseguinte, deve o Tribunal ad quem revogar o Acórdão Recorrido e substituí-lo por outro que julgue a presente ação inteiramente procedente e declare e reconheça a Recorrente como legitima possuidora e proprietária de 1.778.000 ações representativas do capital social da ADM (77.000 ações cuja propriedade já foi reconhecida em sede de Sentença e não se discute + 1.701.000 Ações Controvertidas).
Não foram apresentadas contra alegações.
- Nulidade do acórdão;
- Interrupção do prazo de prescrição aquisitiva;
- Desconsideração da personalidade jurídica de pessoa colectiva;
- Prazo para a usucapião.
Fundamentação de facto.
Vem provada a seguinte matéria de facto:
1. A Autora CC é uma sociedade gestora de participações sociais, sendo titular de 1.778.000 ações, tituladas e nominativas, representativas de 71,12% do capital social da DD.
2. 1.418.000 ações [representativas de 56,72% do capital social] da DD foram-lhe endossadas e transmitidas em 20 de Janeiro de 2011 pelo Réu CC [a quem foram transmitidas em 18 de Janeiro de 2011],
3. Tendo a Autora CC, em 18 de Abril de 2011, mobilizado o sobredito lote de acções para aumentar o seu capital social de € 15.000.000,00 para € 23.675.000,00,
4. Registando, simultaneamente, a mencionada transmissão no livro de registo de ações da DD;
5. O Réu CC endossou e transmitiu, em 7 de Dezembro de 2012 e com concretização no correspondente registo no livro de registo de ações da DD, i) 204.167 ações [representativas de 8,17% do capital social] à Autora CC, ii) 33.867[representativas de 1,35% do capital social] à sociedade F...... ........ ........... e iii) 66.442 [representativas de 2,66% do capital social] à sociedade M...,
6. Detendo então a Autora CC, respetivamente, 50,85% e 100% do capital social da F...... e da M...,
7. Tendo estas sociedades transmitido, por seu turno e em 18 de Setembro de 2013, as ações por si tituladas à Autora CC e endossando-as em conformidade em 11 de Outubro de 2013,
8. Procedendo a Autora CC, naquela data de 18 de Setembro de 2013, ao registo da sobredita transmissão no livro de registo de ações da DD;
9. O Réu CC endossou e transmitiu à Autora CC, em 31 de Julho de 2013, 55.524 ações [representativas de 2,22% do capital social] da DD,
10. Tendo a Autora CC impulsionado, em 31 de Agosto de 2013, o registo da sobredita transmissão no livro de registo de ações da DD;
12. Desde as datas em que as sobreditas participações sociais lhe foram transmitidas [ou às sociedades por si participadas] que a Autora CC vem praticando, de forma ininterrupta, pública e de boa-fé, um conjunto de atos sobre as mesmas ações e exercendo os inerentes direitos e deveres sociais,
13. Participando e votando, na qualidade de acionista detentora das correspondentes participações sociais, nas assembleias gerais da DD,
14. Propondo também, enquanto sua acionista maioritária, a composição dos respetivos órgãos sociais,
15. Quinhoando nas perdas e lucros da DD na proporção dessa participação no seu capital social,
16. Apresentado, ademais, contas consolidadas com a DD,
17. Tendo, inclusivamente, transmitido, e ulteriormente readquirido, 100.00 das propaladas ações para o FUNDO REVITALIZAR ...,
18. E dando mesmo em penhor 1.418.000 ações a favor do Banco Espírito Santo como parte da garantia a financiamento por desconto de uma livrança;
19. Os atos descritos em 13 a 18 verificaram-se mesmo por reporte às participações tituladas pela F...... e M... no período em virtude de a Autora CC ser a sua sociedade-mãe e ter definido o correspondente sentido de voto;
20. Tais direitos exercidos sobre as descritas participações sociais nunca foram obstados ou impedidos pelos Réus AA, BB e CC;
21. A Autora CC realça, ademais e para efeitos de acessão na posse, que o Réu CC ingressou na titularidade de 1.418.000 ações da DD em 18 de Janeiro de 2011 e de 204.167 ações em 10 de Janeiro de 2011,
22. Isto sendo que as restantes 3,08% das sobreditas participações sociais [designadamente 21.476 ações de entre as que lhe foram transmitidas em 7 de Dezembro de 2012 e as 55.524 ações que lhe foram transmitidas em 31 de Julho de 2013] se achavam já pertença do Réu CC desde a transformação em sociedade anónima da DD concretizada em 11 de Janeiro de 1996,
23. O qual vinha exercendo, sobre esses ações e desde essa data, atos materiais de posse idênticos aos supra explanados
Foram ainda considerados os seguintes factos:
a) Da Certidão de Registo Comercial da Autora C..., S.A. junta a fls.
Ap. 2/010928 – CONTRATO DE SOCIEDADE E DESIGNAÇÃO DE MEMBRO(S) DE ÓRGÃO(S)SOCIAL(AIS)
FIRMA: C..., S.A. (…)
NATUREZA JURÍDICA: SOCIEDADE ANÓNIMA (…)
Objecto: Gestão de participações sociais de outras sociedades, como forma indirecta de exercício de actividades económicas
CAPITAL: 5.000.000,00 Euros (…)
FORMA DE OBRIGAR/ÓRGÃOS SOCIAIS
Forma de obrigar: obriga-se pela assinatura do ... do Conselho de Administração ou pela assinatura conjunta dos dois Vogais (…)
Ap. 1/20090812 – DESIGNAÇÃO DE MEMBRO(S) DE ÓRGÃO(S) SOCIAL(AIS) ÓRGÃO(S) DESIGNADO(S)
CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO
Nome/Firma: CC Cargo: ...
(…)
Ap. 1/20110519 – AUMENTO DE CAPITAL Montante do aumento: 8.675.000,00 Euros
Modalidade e forma de subscrição: Realizado por entrada em espécie de títulos de ações nominativas da sociedade “A..., S.A.”, pertencentes ao acionista CC
Capital após o aumento: 23.675.000,00 Euros (…)
Ap. 126/20131205 – ALTERAÇÃO TOTAL AO CONTRATO DE SOCIEDADE E DESIGNAÇÃO DE MEMBRO(S) DE ÓRGÃO(S) SOCIAL(AIS)
FORMA DE OBIRGAR/ÓRGÃOS SOCIAIS:
Forma de obrigar: Intervenção de 3 administradores; de um ou mais administradores com poderes delegados
(…)
ÓRGÃO(S)DESIGNADO ) CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO
Nome/Firma: CC Cargo: ...
(…)
Ap. 254/20161018 – DESIGNAÇÃO DE MEMBRO(S) DE ÓRGÃO(S) SOCIAL(AIS) (…)
ÓRGÃO(S) DESIGNADO(S) CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO
Nome/Firma: CC Cargo: ...
[artigo 1.º da p.i. e certidão de fls. 60]
b) Da Certidão de Registo Comercial da A..., S.A.., junta a fls. 66 consta, designadamente, o seguinte:
Firma: A..., S.A., Natureza Jurídica: SOCIEDADE ANÓNIMA (…)
Objecto: Prospecção, pesquisa, exploração e comercialização de depósitos minerais, especialmente argilas destinadas à indústria de cerâmica e venda de energia eléctrica Capital: 12.500.000,00 Euros
(…)
Prazo de duração do(s) Mandato(s): triénio (…)
Ap. 37/20110322 – ALTERAÇÕES AO CONTRATO DE SOCIEDADE (ONLINE) E DESIGNAÇÃO DE MEMBRO(S) DE ÓRGÃO(S) SOCIAL(AIS)
ÓRGÃO(S)DESIGNADO(S) CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO
Nome/Firma: DD Cargo: ...
(…)
Nome/Firma: CC Cargo: ...
(…)
Nome/Firma FF Cargo: ...
(…)
Ap. 71/20110323 – ACTUALIZADO (ONLINE) ÓRGÃO(S) DESIGNADO(S)
CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO Nome/Firma: DD Cargo: ...
(…)
Nome/Firma: CC Cargo: Vice ... e ... da Comissão Executiva (…)
Nome/Firma: FF
Cargo: Administrador e membro da Comissão Executiva (…)
Nome/Firma: GG Cargo: ... e membro da Comissão Executiva (…)
Ap. 81/20150914 – DESIGNAÇÃO DE MEMBRO(S) DE ÓRGÃO(S) SOCIAL(AIS) ÓRGÃO(S) DESIGNADO(S)
CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO Nome/Firma: DD Cargo: ...
(…)
Nome/Firma: CC Cargo: Vice-...
(…)
Nome/Firma: HH Cargo: Vice-...
(…)
Ap. 80/20160922 – DECISÃO FINAL AUTOR(ES):
Nome/Firma: AA (…)
RÉU(S)
Nome/Firma: A..., S.A. (…)
CONTEÚDO DISPOSITIVO DA SENTENÇA: Declara anuladas as deliberações tomadas na assembleia geral da Ré de 19 de Março de 2011. Declara nulas as alterações propostas aos estatutos da Ré relativamente aos artigos 10.º, n.º 2 – “as prestações acessórias poderão ser efectuadas a título gratuito ou oneroso, consoante o que for deliberado em assembleia geral que as determine” – e 12.º, n.º 5 “as pessoas colectivas poderão delegar a sua representação a quem entenderem”
Declara improcedentes os demais pedidos principais e subsidiários que foram formulados pelo Autor.
Declara ainda improcedente o pedido formulado pela Ré no sentido de ser condenada na renovação das deliberações sindicadas.
Data do trânsito em julgado: 2016-06-22
Ap. 8/20170327 – Provisório por natureza – ACÇÃO JUDICIAL
Artigo 64.º, n.º 1, alínea n) AUTOR(ES)
Nome/Firma: AA (…)
RÉU(S)
Nome/Firma: A..., S.A. (…)
PEDIDO: a) Que seja declarado que o registo, no livro de registo de acções da ré, de 2.269.000 acções, representativas de 90,76% do respectivo capital social, pertencentes À herança de EE, a favor de CC e, posteriormente, a favor de C..., S.A., é juridicamente inexistente ou, se assim não se entender, nulo ou, se também assim não se considerar, ineficaz; b) Que sejam declaradas juridicamente inexistentes ou, se assim não se entender, nulas ou, caso também assim não se considere, anuladas todas as deliberações tomadas na Assembleia Geral da Ré realizada no dia 15 de Fevereiro de 2017, retratadas na respectiva acta n.º 168, com todas as legais consequências.
[artigo 2.º da p.i. e certidão de fls. 66]
c) DD e EE contraíram casamento em 21 de Abril de 1956 sujeito ao regime da comunhão geral de bens [artigo 18.º da contestação e assento de fls. 1117],
d) Tendo a sobredita EE falecido no mês de Fevereiro de 2007 [artigo 17.º da contestação e assento de fls. 66],
e) Deixando como herdeiros o seu cônjuge DD e os filhos e aqui
Réus AA, CC e BB [artigo 19.º da contestação e escritura de fls. 1120];
f) No Inventário com o n.º 326/12.0..., autuado em 9 de Fevereiro de 2012, tendente à partilha do património hereditário de EE e na qual intervieram como interessados DD, AA, CC e BB [artigo 32.º da contestação e certidão de fls. 1132],
g) o correspondente Cabeça de Casal DD apresentado, nessa sede e em 12 de Novembro de 2012, a relação de bens junta a fls. 1145 e da qual constam, designadamente, as seguintes verbas:
5.º 1.134.500 ações do valor nominal de € 5,00, em nome de EE, no capital social da soc. A..., S.A., pessoa colectiva n.º .......87, com sede em ..., no valor de ………………….. € 5.672.500,00
6.º1.134.500 ações do valor nominal de € 5,00, em nome de DD, no capital social da soc. A..., S.A., pessoa colectiva n.º .......87, com sede em ..., no valor de …………………. € 5.672.500,00
(…)
i) O Réu AA deu entrada, em 4 de Dezembro de 2012, da reclamação contra a relação
de bens descrita em h) junta a fls. 1178 e da qual fez constar, designadamente, o seguinte: (…) Das participações sociais
(…)
8. Ademais, o cabeça-de-casal refere que a mãe do ora Requerente era titular de 1.134.500 acções no valor nominal de € 5,00 cada, na sociedade A..., S.A.,
9. ora, atenta a actuação do cabeça-de-casal que motivou o processo de arrolamento que se encontra apensado aos presentes autos (cfr. artigos 41.º a 124.º do requerimento inicial de arrolamento), as acções referidas 1.134.500 acções já não integram a herança, no entanto,
10. o Requerente desconhece o destino que lhes foi dado e, caso tenham sido transmitidas, qual o negócio através do qual se deu essa transmissão, o que deverá ser explicado pelo cabeça-de-casal.
(…)
Termos em que se requer a V. Exa. que seja notificado o cabeça-de-casal para relacionar os bens em falta e dizer o que se lhe oferecer sobra a reclamação supra apresentada.
j) Por requerimento apresentado no Inventário n.º 326/12.0... em 10 de Dezembro de 2012 e junto a fls. 1183, o aí Cabeça de Casal DD expôs, designadamente, o seguinte:
(…)
Quanto às comparticipações sociais (…)
6.º As 1.134.500 acções da sociedade DD estão relacionadas sob a verba 5 da relação e o cabeça de casal entende que integram a herança. (…)
k) Por requerimento apresentado no Inventário n.º 326/12.0... em 26 de Janeiro de 2013 e junto a fls. 1204, o aí Cabeça de Casal DD expôs, designadamente, o seguinte:
(…)
Vem corrigir a relação de bens que apresentou, eliminando da mesma as verbas 5 e 6, que, só por lapso, as incluiu e já não pertencem à herança pois:
1º- As acções, na soc. A..., S.A., quer as que pertenciam à inventariada quer as que pertenciam ao cabeça de casal, foram partilhadas entre os 3 filhos, em partes iguais, em 10.01.2011;
2º- Tal partilha foi feita verbalmente e, na sequência da mesma, foram essas registadas em nome dos 3 filhos conforme resulta do livro de registo de acções de que junta fotocópia (doc.1);
3º- Como o cabeça de casal já tem mais de 82 anos e não foi feito documento escrito de partilhas, não se apercebeu do lapso ao incluir na relação de bens tais acções, do que se penitencia.
l) O Réu BB deu entrada, em 5 de Fevereiro de 2013, de reclamação contra a relação de bens e da qual fez constar, designadamente, o seguinte: (…)
11. Por fim, veio entretanto o Cabeça de Casal “corrigir a relação de bens” por si inicialmente apresentada, eliminando as verbas n.º 5 e 6 desta por, alegadamente, as acções objecto dessas verbas terem sido verbalmente “partilhadas entre os três flhos”.
12. O Cabeça de Casal tem sido imaginativo nas sucessivas e já incontáveis versões que tem apresentado relativamente ao destino que deu às acções em causa.
13. Esta é só mais uma dessas versões.
14. Todavia, a verdade é que não existiu qualquer partilha das referidas acções.
15. Pelo que corresponde à verdade o que consta das verbas n.º 5 e 6 da relação de bens originária. (…)
m) Por requerimento apresentado no Inventário n.º 326/12.0... em 15 de Fevereiro de 2013, o aí Cabeça de Casal DD expôs, designadamente, o seguinte: (…)
2.º
Em 10.01.2011, os interessados procederem à partilha verbal das acções que a inventariada tinha na sociedade. 3.º Couberam ao Cabeça de Casal, como herdeiro, 283.625 acções para além das 1.134.500 que lhe pertenciam.
4.º De imediato, o Cabeça de Casal dispôs-se a doar a qualquer um dos filhos as 1.418.126, que lhe pertenciam, desde que o libertassem dos inúmeros avales que tinha dado à empresa. O reclamante tentou preencher esta condição, mas não o conseguiu.
5.º Perante a resposta do reclamante de que não o libertava dos avales, o Cabeça de Casal negociou a doação por
conta da quota disponível com o filho, CC, que aceitou, satisfazendo a condição proposta.
6.º Portanto, a parte das acções que lhe coube na partilha foi vendida ao filho CC, que, provavelmente, ainda as tem.
7.º O Cabeça de Casal é que não em já qualquer acção em seu nome ou na sua posse”
n) Por requerimento apresentado no Inventário n.º 326/12.0... em 21 de Fevereiro de 2013, o Réu CC expôs, designadamente, o seguinte:
Relativamente aos bens relacionados na verba n.º 5 da Relação de Bens, o ora Interveniente acompanha o entendimento do seu Irmão, o Requerente AA, no sentido dos mesmos bens já não integrarem a herança.
4. De facto, conforme veio – e bem - o Cabeça de Casal retificar, no seu requerimento de Refª. 12278202, as acções da A..., S.A. foram efetivamente partilhadas pelos herdeiros em iguais proporções, nos termos propostos pelo Cabeça de Casal,
5. Devendo, nessa medida, ser excluídas as verbas n.ºs 5 e 6 da Relação de Bens original.Nestes termos e nos melhores de Direito, sempre com o mui douto suprimento de V. Exa., devem as verbas n.º 5 e 6 da Relação de Bens original ser dadas por não escritas, por não fazerem parte do acervo a partilhar
o) Por requerimento apresentado no Inventário n.º 326/12.0... em 26 de Fevereiro de 2013,
o Réu AA expôs, designadamente, o seguinte:
1. Esta é apenas mais uma versão do que sucedeu às acções que, afinal, estarão por partilhar desde a morte da autora da herança, apesar de todas as afirmações feitas pelo cabeça de casal e pelo interessado CC a propósito das mesmas.
2. Parece ilimitada a capacidade que o cabeça de casal tem para inventar a quem pertencem as acções e de que forma lhe foram parar às mãos.
3. O Requerente reitera que não tem conhecimento de qualquer partilha verbal ou venda das acções.
4. Mas parece que também esta última versão não pode colher na medida em que o próprio interessado CC, a quem o Cabeça de casal diz que vendeu as suas acções após a alegada partilha verbal, reconhece que não é titular das mesmas.
o) Foi proferido, em 15 de Janeiro de 2014, o despacho de fls. 1251 no Inventário com o n.º 326/12.0... e do qual consta, designadamente, o seguinte:
(…)
Reclamações à nova relação de bens
Do interessado BB (fls. 226 a 229)
Este interessado vem reclamar a manutenção das verbas n.º 5 e 6 da relação de bens, porque, segundo alega, não houve qualquer partilha das mesmas.
Do interessado AA
Este interessado, pronunciando-se, alega, em síntese, continuar a desconhecer o destino dado às ações, pois que apenas alguns dias após a alegada partilha das mesmas, da lista de presenças da mencionada sociedade na Assembleia Geral (19.03.2011), constavam, como acionistas, CC, como sendo titular de 1.778.000 ações, AA, como titular de 361.000 ações e BB, como titular de 361.000, sendo que não são os referidos acionistas titulares desse número de ações.
Em face das reclamações descritas, o cabeça-de-casal, veio esclarecer que da partilha verbal o mesmo ficou com 1.134.500 ações, que já detinha, e 283.625, da esposa inventariada, e que doou a totalidade de tais ações ao filho CC, por conta da quota disponível.
Este interessado refere que as ações a partilhar o foram em partes iguais pelos herdeiros, devendo dessa medida serem excluídas as verbas n.º 5 e 6 da relação de bens inicial.
Do interessado BB Este interessado, impugnando qualquer partilha verbal das ações em causa, vem defender que atento o regime de bens (de comunhão geral), o cabeça-de-casal não podia ter vendido as suas ações, pois estas também integravam o acervo a partilhar.
(…)
2. Existência das ações relacionadas nas verbas n.º 5 e 6 da relação de bens de fls. 39 a 69. (…)
Ora da prova produzida não foi possível apurar o tipo de acordo ou contrato que foi efetivado entre os interessados e se efetivamente já se concretizou alguma transferência da titularidade das ações inicialmente relacionadas, bem como em relação a que parte das ações.
Deste modo, mais não resta concluir que não há nos autos elementos que permitam com segurança dizer que as ações relacionadas ainda façam parte do acervo a partilhar ou se já foram por qualquer forma transmitidas e a que título.
Resta pois, atendendo às considerações tecidas, concluir que a complexidade manifesta da questão suscitada torna inconveniente a decisão deste incidente nesta sede e, em consequência, remetemos os interessados, nesta parte, para os meios comuns, nos termos do disposto no artigo 1350.º, nº 1 do CPC.
Pelo exposto, decide-se:
a) julgar improcedente a reclamação relativamente às joias da inventariada;
b) determinar o conhecimento da questão relativa às verbas n.º 5 e 6 da relação de bens inicial para os meios comuns.
p) O Réu AA intentou, em 18 de Abril de 2011 e junto do Juiz 3 do Juízo de Comércio do Tribunal da Comarca de ..., a ação de anulação de deliberações sociais contra A..., S.A., com o n.º 894/11.4... e por intermédio da qual peticionou:
a) a declaração de nulidade das deliberações aprovadas na Assembleia Geral de 19 de Março de 2011, porquanto tomadas em Assembleia Geral não convocada de acordo com o artigo 56º, n.º 1, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais.
Sem conceder e a título subsidiário,
b) caso se entenda que se está apenas perante uma irregularidade na convocação da Assembleia Geral e não em face de uma não convocação da mesma, a anulabilidade das deliberações, ao abrigo do preceituado no artigo 58.º, n.º 1, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais.
Sem conceder e a título subsidiário
c) a inexistência das deliberações aprovadas na reunião da Assembleia Geral de 19 de Março de 2011, uma vez que a Assembleia Geral da Ré deliberou sem que estivesse reunido o quórum necessário para que a mencionada assembleia se reunisse e pudesse validamente apreciar e aprovar as propostas de deliberação.
Se assim não se entender e a título subsidiário,
d) a anulabilidade das mesmas deliberações, conforme dispõe o artigo 58.º, n.º 1, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais.
Sem conceder e a título subsidiário,
e) a ineficácia da proclamação do resultado das deliberações em crise nestes autos pelo ... da mesa da Assembleia Geral;
Sem conceder e a título subsidiário,
f) caso se entenda que a proclamação é a última fase do processo deliberativo e que, em consequência, tem valor constitutivo da deliberação, a anulabilidade das mesmas deliberações por violarem o disposto no artigo 386.º do Código das Sociedades Comerciais e o artigo 11.º dos estatutos da Ré, conforme dispõe o artigo 58.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código.
Sem conceder e a título subsidiário,
g) por não terem sido facultados ao Autor os elementos descritos nas alíneas a), b) e d), do artigo 289.º do CSC, durante os quinze dias anteriores à reunião da Assembleia Geral da Ré, a anulabilidade das mesmas deliberações, conforme dispõe o artigo 58.º, n.º 1, alínea c), e n.º 4, alínea b), do Código das Sociedades Comerciais.
Sem conceder e a título subsidiário,
h) a nulidade das deliberações que aprovaram a alteração dos estatutos relativamente à aprovação do artigo 5.º, n.º 2 e n.º 3, do artigo 9.º, n.º 1, do artigo 10.º, n.º 2, e do artigo 12.º, n.º 5, dado que o seu conteúdo é ofensivo de preceitos legais que não podem ser derrogados, nos termos do artigo 56.º, n.º 1, al. d), do Código das Sociedades Comerciais, bem como o aditamento ao artigo 18.º, n.º 6, nos termos do artigo 56.º, n.º 1, als. a) e d) do referido Código.
[artigo 57.º da contestação e certidão de fls. 1273]
q) Foi proferida sentença em 14 de Setembro de 2015 no processo n.º 894/11.4... junta a fls.
1603 e da qual consta, designadamente, o seguinte: (…)
“Pelo exposto, ao abrigo das disposições legais mencionadas e em complemento da sentença proferida nos autos a 6 de Agosto de 2012 com a sindicância que dela fez o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19 de Fevereiro de 2013, o Tribunal julga a presente acção instaurada por AA contra a sociedade A..., S.A., parcialmente procedente por provada e em consequência:
5.1. Declara anuladas as deliberações tomadas na Assembleia Geral da Requerida de 19 de março de 2011, materializadas na acta n.º 159, documentada a fls.131 e ss e sua Adenda, por violação do quórum constitutivo e deliberativo nos termos dos artigos 58.º n.º 1 al.a), 383.º n.º 1 e 2 e 386.º do Código das Sociedades Comerciais.
5.2. Declara nulas as alterações propostas aos estatutos da Requerida relativamente aos artigos 10.º, n.º 2 - “as prestações acessórias poderão ser efetuadas a título gratuito ou oneroso, consoante o que for deliberado em Assembleia Geral que as determine” – e 12.º, n.º 5 - “as pessoas coletivas poderão delegar a sua representação a quem entenderem” – por violação de preceitos legais que não podem ser derrogados por vontade dos seus sócios nos termos do art.56.º n.º 1 al.d) do Código das Sociedades Comerciais.
5.3. Declara improcedentes os demais pedidos principais e subsidiários que foram formulados pelo Autor.
5.4. Declara ainda improcedente o pedido formulado pela Requerida no sentido de ser condenada na renovação das deliberações sindicadas nos termos do art.62.º n.º 1 e 2 do Código das Sociedades Comerciais.”
r) Em 17 de Maio de 2016, foi proferido o Acórdão de fls. 1654 [já transitado em julgado em de Junho de 2016 à luz de fls. 2405] pelo Tribunal da Relação de Coimbra no processo 894/11.4... e do qual consta, designadamente, o seguinte:
(…)
Os factos provados são os seguintes: (…)
25. No dia 19 de março de 2011 reuniu a Assembleia-Geral da Ré (alínea I), dos factos assentes);
26. Encontravam-se presentes o Sr. Dr. II, o Sr. DD, o Sr. CC, o Sr. Dr. GG, o Sr. Dr. JJ, o Sr. Dr. KK e a Sra. Dra. LL (alínea J), dos factos assentes);
27. Encontrava-se ainda presente o Autor na sua qualidade de ... da Ré (alínea K), dos factos assentes); 28. O Autor, na sua qualidade de sócio, fez-se representar na Assembleia-Geral por Advogada, a Sra. Dra. MM
(alínea L), dos factos assentes);
29. Da lista de presenças na Assembleia Geral constavam, como [sendo]acionistas, CC, como sendo titular de 1.778.000 ações, representativas de 71,12% do capital social da Ré, o Autor, como sendo titular de 361.000 ações, representativas de 14,44% do capital social da Ré, e BB, como sendo titular de 361.000 ações, representativas de 14,44% do capital social da Ré (alínea M), dos factos assentes);
30. Assumiu a Presidência da mesa da Assembleia-Geral o Sr. Dr. II, na qualidade de fiscal único da Ré e para suprir a falta do ... da mesa da Assembleia-Geral (alínea N), dos factos assentes);
31. O ... da mesa considerou existir quórum constitutivo da Assembleia-Geral e deu início aos trabalhos (alínea O), dos factos assentes);
32. Aquando da realização da assembleia-geral de 19 de março, o ... da mesa aceitou a declaração do Autor no sentido de que este apenas se reconhecia titular não de trezentas e sessenta e uma mil e sim de setenta e sete mil ações no capital social (resposta ao quesito 10.º);
33. Entrando na discussão do ponto 1 da ordem de trabalhos, o acionista CC propôs, para membros da mesa da Assembleia Geral, o Sr. Dr. KK, para ..., e a Sra. Dra. LL, para secretária (alínea P), dos factos assentes);
34. Mais propôs que os mencionados membros assumissem de imediato as respetivas funções, cessando as até aí desempenhadas pelo Sr. Dr. II (alínea Q), dos factos assentes);
35. Submetida a proposta a votação, o acionista CC votou no sentido da sua aprovação (alínea R), dos factos assentes);
36. O Autor votou contra a mencionada proposta e o ... da mesa considerou a proposta aprovada por maioria de 71,12%, com base no sentido de voto do acionista CC (alínea S), dos factos assentes);
37. O ... da Mesa considerou, em consequência e com efeitos imediatos, cessadas as suas funções, pelo que assumiu a presidência da mesa o Sr. Dr. KK, secretariado pela Sra. Dra. LL (alínea T), dos factos assentes);
38. Tendo-se passado à discussão e deliberação do ponto 2 da ordem de trabalhos, o ... da mesa leu a proposta de alteração de estatutos que afirmou ter sido apresentada pelo acionista CC (alínea U), dos factos assentes);
39. Sujeita a proposta a votação, o acionista CC votou a favor da mesma, o autor votou contra e o ... da mesa considerou a proposta aprovada por 71,12% dos votos, com base no sentido de voto do acionista CC (alínea V), dos factos assentes);
40. Tendo-se passado à discussão e deliberação do ponto 3 da ordem de trabalhos, o ... da mesa leu a proposta de destituição dos membros do Conselho de Administração apresentada pelo acionista CC (alínea W), dos factos assentes);
41. A proposta a que se alude em “40” foi justificada, na Assembleia-Geral de 19 de março, pelo seu proponente,
pelo facto de ter ocorrido a renúncia de metade dos membros do conselho de administração, de ser insuficiente o número de administradores e pela necessidade de adequação do conselho de administração aos novos estatutos da sociedade (resposta aos quesitos 17.º, 18.º e 19.º);
42. Sujeita esta proposta a votação, foi a mesma considerada aprovada com os votos favoráveis do acionista CC. O Autor votou contra e, no uso da palavra, declarou que: “Voto contra a destituição dos ... em exercício desse cargo, uma vez que o mandato ainda está em curso e desconhecia até este momento quem serão os administradores substitutos. Acresce que estando o mandato em curso, será necessário ressarcir nos termos gerais do direito os administradores destituídos, uma vez que não existe justa causa para a destituição agora sujeita a deliberação. Para além de acionista, é administrador desta Sociedade desde 1996 e em momento algum foram nomeados administradores que não fossem acionistas da Sociedade. Esta forma de atuar não corresponde à natureza da Sociedade, que como é do conhecimento de todos é uma empresa de caráter familiar, em que os acionistas, do conhecimento do acionista, ainda são apenas a herança indivisa por morte da sua mãe, o seu pai e os seus irmãos, pelo que censura veementemente os termos e os comportamentos que estão ser adotados na empresa, desconhecendo por completo os seus motivos.” (alínea X), dos factos assentes);
43. No que respeita ao ponto 4 da ordem de trabalhos, foi apresentada pelo acionista CC, através do ... da mesa, a seguinte proposta de deliberação: designação, como ... do Conselho de Administração, do Sr. BB, como Vice-..., o acionista CC, e, como vogais, o Dr. JJ, o Dr. GG e o Sr. FF (alínea Y), dos factos assentes);
44. Submetida a proposta a votação, a mesma foi objeto dos votos favoráveis do acionista CC e dos votos contra do Autor (alínea Z), dos factos assentes);
45. O ... da mesa considerou a proposta aprovada por 71,12%, atento o sentido de voto do acionista CC (alínea AA), dos factos assentes);
46. O artigo 5.º, n.º 2, da proposta de alteração dos estatutos prevê que “As ações tituladas podem ser convertidas em ações escriturais mediante solicitação escrita à Sociedade pelo(s) respetivo(s) titular(es)” (alínea CC), dos factos assentes);
47. O artigo 5.º, n.º 3, da proposta de alteração dos estatutos estabelece que: “O custo das operações de registo das transmissões, conversões, bem como qualquer outro custo relativo às ações escriturais, é suportado pelo respetivo titular, segundo critério a fixar pelo Conselho de Administração” (alínea DD), dos factos assentes);
48. O art. 9.º, n.º 1, da proposta de alteração dos estatutos refere que a “a Sociedade poderá emitir ações preferenciais sem voto” (alínea EE), dos factos assentes);
49. O art. 10.º, n.º 2 da proposta de alteração dos estatutos prevê que “as prestações acessórias poderão ser efetuadas a título gratuito ou oneroso, consoante o que for deliberado em Assembleia Geral que as determine” (alínea FF), dos factos assentes);
50. O artigo 12.º, n.º 5, da mesma proposta, prevê que “as pessoas coletivas poderão delegar a sua representação a quem entenderem” (alínea GG), dos factos assentes);
51. No decurso da Assembleia-Geral foi apresentada uma proposta de aditamento de um número seis ao artigo 18.º da proposta de reformulação dos estatutos que previa: “As faltas de qualquer ... a 5 (cinco) reuniões ordinárias seguidas ou interpoladas sem justificação aceite pelo Conselho de Administração conduzirá a uma falta definitiva desse ..., com as consequências legais estabelecidas no art. 393.º do Código das Sociedades Comerciais” (alínea HH),dos factos assentes);
52. As deliberações tomadas na Assembleia-Geral de 19 de março foram registadas (alínea MM), dos factos assentes);
(…)
Quando foi realizada a Assembleia Geral da Ré, em que forma tomadas as deliberações impugnadas pelo Autor, constava no livro de registo de ações da Ré que CC era titular de 71,12% do capital social, AA de 14,44% e BB de 14,44%.
Ora, a Ré era, inicialmente, uma sociedade por quotas que foi transformada em sociedade anónima, passando o capital social a ter os seguintes titulares:
- DD, titular de 1.134.500 ações correspondentes a 45,38% do capital social;
- EE, casada com DD, no regime de comunhão geral de bens, titular de 1.134.500 ações correspondentes a 45,38% do capital social;
- AA, filho de DD e EE, titular de 77.000 ações, correspondentes a 3,08% do capital social;
- CC, filho de DD e EE, titular de 77.000 ações, correspondentes a 3,08% do capital social;
- BB, filho de DD e EE, titular de 77.000 ações, correspondentes a 3,08% do capital social;
EE faleceu em ... de Fevereiro de 2007, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros, o marido e os filhos acima referidos.
(…)
Ora, a partilha extrajudicial é um negócio jurídico que pressupõe o acordo de todos os interessados – artigo 2102.º, n.º 1 do Código Civil.
A proposta de partilha efetuada por DD aos restantes interessados não obteve o acordo de AA e de BB, sendo certo que o silêncio nunca teria aqui valor declarativo, uma vez que não estamos perante qualquer uma das hipóteses previstas no artigo 218.º do Código Civil.
Não tendo a proposta de partilha obtido o acordo de todos os interessados, inexiste qualquer negócio jurídico de partilha, não tendo, pois, resultado das negociações descritas a produção de quaisquer efeitos jurídicos nos bens da herança, designadamente na titularidade das ações da Ré.
A alegada partilha é inexistente. (…)
Como DD era casado em comunhão geral de bens com a falecida EE as ações de um e de outro pertenciam ao património comum do casal - art.º 1372º do C. Civil -, pelo que todas essas acções integravam a massa da herança aberta por morte de EE.
Inexistindo a partilha da herança quanto a essas acções, como acima se concluiu, DD não tinha legitimidade para as doar, uma vez que o direito de alienar bens da herança só pode ser exercido por todos os herdeiros - art.º 2091º, n.º 1, do C. Civil -, pelo que nos encontramos perante uma doação de bens alheios, acto que é sancionado com nulidade, nos termos do art.º 956º, n.º 1, do C. Civil.
Apesar da alegada partilha ser inexistente e a subsequente doação ser nula, as mesmas tiveram tradução no livro de registos de acções da Ré.
Qual o valor deste registo na determinação do quorum constitutivo e deliberativo da Assembleia de uma sociedade anónima, com vista a apurar a validade das deliberações nela tomadas?A verificação quer do quorum constitutivo, quer do quorum deliberativo, compete na Assembleia ao ... da Mesa, o qual deve mandar organizar a lista dos accionistas que se encontrem presentes e representados no início da reunião, constando dessa lista o número, a categoria e o valor nominal das acções pertencentes a cada associado presente ou representado - artigo 382.º, n.º 1 e 2, c), do C.S.C. - e proclamar os resultados das votações, sendo o valor nominal indicado das acções pertencentes a cada associado presente ou representado o que consta do respectivo registo.
(…)
As transmissões das acções tituladas nominativas efectuam-se por declaração de transmissão, escrita no título, a favor do transmissário, seguida de registo junto do emitente – artigo 102.º, n.º 1 do CVM –, produzindo a transmissão efeito a partir do requerimento de registo junto do Emitente.
Independentemente da polémica sobre se este registo é constitutivo ou meramente declarativo dos direitos inscritos, a invalidade dos negócios singulares de transmissão de acções pode determinar desde logo a nulidade dos respectivos registos, dado que sendo este registo valorativo deve ser recusado quando é manifesta a nulidade (e também a inexistência) do facto a registar, como dispõe expressamente o art.º 77º, n.º 1, d), do CVM, para o registo dos valores mobiliários escriturais.
Mas o disposto no artigo 58º do CVM não deixa dúvidas sobre a possibilidade da situação jurídica certificada pelo registo ser também posta em causa pela invocação da invalidade do negócio jurídico subjacente. Se a transmissão de valores mobiliários exige um negócio que justifique essa transmissão e um modo de a efectivar (declaração de transferência e registo), a verificação da invalidade desse negócio não pode deixar de se reflectir na subsistência do registo que é simultaneamente modo constituinte da transmissão e meio de revelação da situação jurídica registada. Se a transmissão subjacente sofre de um vício que a invalida, essa invalidade estende-se necessariamente ao seu registo, limitando-se o interesse da segurança da circulação. (…)
Neste caso, provou-se que foram objecto de registo a transmissão de acções tituladas nominativas da Ré, tendo como negócio justificativo uma partilha que não existiu e uma subsequente doação de parte dessas acções que supostamente haviam sido atribuídas a um dos herdeiros naquela partilha e por isso nula.
Na verdade, estando nós perante uma sociedade familiar, em que os sócios eram pai e filhos, sendo também eles os administradores da sociedade, a inexistência do negócio de partilha das acções integrantes da herança por morte da esposa e mãe daqueles e a nulidade da subsequente doação de acções não partilhadas são vícios necessariamente manifestos para os administradores da Ré (estes e os intervenientes nos negócios em causa são as mesmas pessoas) que tinham a obrigação de impedir o registo das respectivas transmissões, sendo por isso nulo o registo efectuado.
Além disso, mesmo que, por hipótese de raciocínio, não se considerasse que os apontados vícios eram manifestos para a Ré, sempre a inexistência e invalidade dos negócios subjacentes àqueles registos, determinariam a invalidade destes, pelas razões acima apontadas, não havendo lugar à inoponibilidade prevista no art.º 58º do CVM, uma vez que os adquirentes nas transmissões em causa não podiam ignorar a existência de tais vícios, não se encontrando de boa-fé.
Tendo o registo das transmissões aqui em causa, como negócios subjacentes, uma partilha que não existiu e uma doação de acções nula por não pertencer ao doador o bem doado, tais registos devem ser considerados inválidos desde o seu início, atento os efeitos retroactivos da nulidade.
Daí que deva considerar-se que no momento em que foi realizada a Assembleia Geral da Ré de 19 de Março de 2011 as acções da Ré estavam, assim, distribuídas:
- da herança de EE, 2.269.000 acções, representando 90,76% do capital social; - de AA, 77.000 acções, representando 3,08% do capital social;
- de CC, 77.000 acções, representando 3,08% do capital social; - e de BB, 77.000 acções, representando 3,08 do capital social.
Sendo os herdeiros de EE (DD, AA, CC e BB) contitulares das ações que integravam a herança daquela, o direito inerente a essa titularidade deve ser exercido através de representante comum -art.º 303º do C.S.C. -, incumbindo essa representação ao cabeça de casal da herança, por força do art.º 2079º do C.C., que no caso era BB.
Tendo estado presentes na Assembleia Geral da Ré apenas os sócios AA e CC, a Assembleia funcionou sem o quorum suficiente para aprovar uma alteração dos estatutos, o qual exige a presença de accionistas ou seus representantes que sejam titulares de acções correspondentes a um terço do capital social - art.º 383º, n.º 1, do C.S.C..
(…)
Quanto às restantes deliberações, como as respectivas propostas tiveram o voto favorável do sócio CC e o voto contra do sócio AA, os quais dispunham do mesmo número de acções, valendo cada 100 acções um voto, não se registou em qualquer uma delas uma maioria de votos necessária à sua aprovação.
Por estas razões constata-se o acerto da decisão recorrida quando anulou todas as deliberações tomadas na Assembleia Geral da Ré de 19 de Março de 2011 com fundamento na falta de quorum constitutivo (a que aprovou a alteração de estatutos da Ré) e de quorum deliberativo (as restantes).
Assim, deve o recurso ser julgado improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
s) O Réu BB intentou, em 15 de Abril de 2011 e junto do Juiz 2 do Juízo de Comércio do Tribunal da Comarca de ..., a ação de anulação de deliberações sociais contra
A..., S.A., com o n.º 869/11.4... e por intermédio da qual peticionou (…) ser declarada a inexistência jurídica ou, se assim não se entender, a nulidade de todas as sobreditas deliberações
tomadas na Assembleia Geral da Ré realizada no dia 19 de Março de 2001 ou, como assim não se considere, serem essas deliberações anuladas, com todas as legais consequências. [artigo 59.º da contestação e certidão de fls. 1703]
t) Foi proferida decisão em 18 de Outubro de 2016 no processo n.º 869/11.4... junta a fls. 1603 e da qual consta, designadamente, o seguinte:
“(…)
Como é sabido uma deliberação de accionistas é juridicamente imputável à sociedade e a declaração judicial de nulidade ou a anulação dessa deliberação que transite em julgado, impõe-se, assim, a todos os membros do substrato pessoal da sociedade - accionistas, bem como a todos os órgãos societários.
Assim a reza, expressamente, o nº 1 do artigo 61º do Código das Sociedades Comerciais que refere que a sentença que declarar nula ou anular uma deliberação é eficaz contra e a favor de todos os sócios e órgãos da sociedade, mesmo que não tenham sido parte ou não intervindo na acção."
O art. 61º, nº 1, do C.S.C. estende, assim, a eficácia da decisão judicial proferida sobre a invalidade da deliberação social a todos os sócios e órgãos da sociedade, "mesmo que não tenham sido partes ou hajam intervindo na acção, constitui um caso de extensão dos limites subjetivos do caso julgado.
Deste modo, em face do trânsito em julgado da decisão proferida no processo intentado por AA que declarou anuladas as deliberações tomadas na Assembleia Geral da Requerida de 19 de Março de 2011, materializadas na acta nº 159, por violação do quórum constitutivo e deliberativo e nulas as alterações propostas nos estatutos da Requerida relativamente aos artigos 10º, nº 2 e perante a eficácia do caso julgado dessa decisão que se estende ao aqui autor na qualidade de accionista, importa concluir que a presente lide se tornou supervenientemente inútil.
Pelo exposto, impõe-se declarar a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art.º 277º, alínea e) do CPC.”
u) O Réu AA intentou, em 10 de Março de 2017 e junto do Juiz 1 do Juízo de Comércio do Tribunal da Comarca de ..., ação comum contra A..., S.A., com o n.º 1295/17.6... a peticionar que:
- seja declarado que o registo, no livro de registo de ações da ré, de 2.269.000 acções, representativas de 90,76% do respetivo capital social, pertencentes à herança de EE, a favor de CC e, posteriormente, a favor de C..., S.A., é juridicamente inexistente ou, se assim não se entender, nulo ou, se também assim não se considerar, ineficaz; e
- declaradas juridicamente inexistentes ou, se assim não se entender, nulas ou, caso também assim não se considere, anuladas todas as deliberações tomadas na Assembleia Geral da ré realizada no dia 15 de fevereiro de 2017, retratadas na respetiva ata nº 168, com todas as legais consequências.
[artigo 68.º da contestação e certidão de fls. 2158]
q) Processo no qual foi proferido despacho a 6 de Fevereiro de 2018 a determinar a suspensão de instância em virtude de se considerar que os presentes autos figuram como causa prejudicial.
“Trata-se, como se disse, de factualidade alegada pelas partes e que flui da documentação autêntica junta ao processo. E que se assume inequivocamente relevante no processo… A matéria plasmada em a) e b) permite compreender os vasos comunicantes existentes entre os corpos sociais da Autora C..., S.A. e da A..., S.A.. Já o vertido em c) a e) retrata a génese do processo de Inventário n.º 326/12.0... Com o circunstancialismo plasmado em g) a q) fica, ademais, claro que a titularidade das participações sociais da A..., S.A. figura como assunto que foi objecto de discussão judicial nos processos postos em relevo. O que se assumirá fulcral na avaliação do prazo tendente à prescrição aquisitiva tendo em atenção o disposto no artigo 323.º do Código Civil aplicável ex vi artigo 1292.º do mesmo diploma legal. E relevo assumem, sobretudo, as decisões descritas em q) e r) atenta a autoridade de caso julgado quanto ao elemento material do pedido que o Tribunal já reconheceu no despacho proferido na audiência prévia cuja acta se acha junta a fls. 2451. Matéria a que teremos, aliás, a oportunidade de retornar infra.”
Das nulidades do acórdão recorrido.
A recorrente começa por suscitar a nulidade do acórdão por inobservância do princípio do contraditório na medida em que proferiu uma decisão surpresa, na parte relativa à suspensão do prazo da prescrição aquisitiva.
Diz a Recorrente na conclusão 16ª que “o Acórdão Recorrido violou o princípio do contraditório ao analisar o instituto da suspensão da prescrição, concluindo pela verificação de uma causa suspensiva da prescrição na contagem do prazo da usucapião, sem que tivesse concedido às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre esta questão, proferindo uma decisão surpresa, a qual, por sua vez, redunda num excesso de pronúncia por parte do Tribunal a quo.”
A ter o tribunal proferido uma decisão surpresa, o acórdão estaria ferido de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº1, alínea d) do CPC.
Não lhe assiste razão, com o devido respeito.
É que logo na audiência prévia as partes foram notificadas da intenção do tribunal de conhecer de imediato do mérito da causa, em função, designadamente, da existência de causa interruptiva ou suspensiva na contagem dos prazos de usucapião, tendo sido notificadas para, querendo, se pronunciarem sobre tal matéria.
Acresce que a decisão da Relação não se baseou no entendimento de ter ocorrido um facto, ou factos, com efeito suspensivo do prazo da usucapião, apenas analisou o instituto, como, aliás, refere a Recorrente. O que o acórdão concluiu foi pela ocorrência de factos interruptivos da prescrição, como se extrai deste excerto do acórdão recorrido: “…a manifestação clara em tais processos judiciais, por parte de dois dos herdeiros da herança indivisa por óbito de EE, de que consideravam as ações controvertidas titularidade da herança, são idóneos a produzir efeitos interruptivos da posse que relativamente às mesmas vinha sendo exercida pela autora.”
No mesmo sentido havia decidido a 1ª instância.
Não estamos, pois, perante uma decisão surpresa, não se verificando a nulidade prevista no art. 615º, nº1, nº1, alínea d) do CPC.
Da nulidade por omissão do convite ao aperfeiçoamento da petição inicial (conclusões 36 a 52).
Sustenta a Recorrente que tendo a sentença considerado que “a recorrente falhou ao concretizar determinados factos”, deveria a Senhora Juiz ter proferido despacho de aperfeiçoamento (art. 590º, nº4), incorrendo assim na nulidade do art. 195º, consumida pela nulidade de omissão de pronúncia do art. 615º, nº1, d) do CPC).
A invocada nulidade foi indeferida na 1ª instância.
Posição que foi confirmada pelo acórdão recorrido nos seguintes termos:
“Acompanhamos a posição do tribunal recorrido quando afirma que não se justificaria o convite ao aperfeiçoamento, com a retificação de que o convite ao aperfeiçoamento, não só pode, como se destina, precisamente a suprir a alegação de factos essenciais, nos termos por nós acima expostos, sendo que, de qualquer modo, tal convite só poderá ser efetuado relativamente a factos essenciais que façam parte da causa de pedir invocada nos autos e que sejam essenciais ao preenchimento da norma4.
“O convite ao aperfeiçoamento procura completar o que é insuficiente ou corrigir o é impreciso, na certeza de que a causa de pedir existe (na petição) e é percetível (inteligível); apenas sucede que não foram alegados todos os elementos fáticos que a entregam ou foram-no em termos pouco precisos. Daí o convite ao aperfeiçoamento, destinado a completar ao a corrigir um quadro fáctico já traçado nos autos5”.
O entendimento exarado pelo juiz a quo na decisão recorrida – de que “não retratando por qualquer forma na sua p.i., os factos essenciais que se traduzem nos negócios subjacentes às transmissões a seu favor ao ponto de se ignorar se os mesmos se assumiram como onerosos ou gratuitos” – não o obrigava à prolação de qualquer convite ao aperfeiçoamento, porquanto, como é aí afirmado, a alegação respeitante aos negócios que estiveram na base do endosso e registo das ações a favor da autora não seria necessária à demonstração da aquisição da usucapião, relevando, quando muito, ao nível do tempo necessário à prescrição aquisitiva.
Para o preenchimento da aquisição das ações por usucapião, enquanto causa de pedir da presente ação, nem sequer era necessária a invocação do negócio que esteve na base de tal endosso. Quando muito, como refere o tribunal recorrido, a invocação do negócio que esteve por trás do endosso, influenciaria no tempo de posse necessário ao completar da prescrição aquisitiva.
A intervenção do juiz, apontando defeitos na narração dos factos, deve pautar-se com grande rigor e sobriedade, não cabendo ao juiz imiscuir-se nas opções assumidas pelas partes, nem sugerir outras alternativas, ainda que eventualmente mais vantajosas. Neste âmbito, a estratégia da parte baliza a intervenção do juiz e será dentro desses limites que o juiz deve cuidar de verificar se a alegação fáctica apresenta insuficiências ou imprecisões, proferindo o despacho de convite ao aperfeiçoamento quando conclua haver imperfeições”.
Ou seja, no caso em apreço, a consideração, por parte da decisão recorrida, de que a titulação dos negócios que estiveram na base dos endossos das ações não se mostrava alegada, não seria caso para convite ao aperfeiçoamento da petição inicial.
Como tal, improcede a pretensão da autora à prolação de um prévio convite ao aperfeiçoamento da petição inicial.”
O art. 590º nº4 do CPC estabelece que “incumbe ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.”
Ainda que se entenda que se trata de um poder vinculado do juiz, podendo o seu não exercício fundar uma arguição de nulidade nos termos do art. 195º (cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 2º, pag. 635), a decisão da Relação sobre este ponto não é passível de recurso para o Supremo, nos termos do art. 630º, nº2 do CPC – “(…) não é admissível recurso (…) das decisões proferidas sobre as nulidades previstas no nº1 do art. 195º (…), salvo se contenderem com os princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios de prova” – situações excepcionais estas que não se verificam.
Nas conclusões 55 a 70, a Recorrente imputa ainda ao acórdão a prolação de decisão surpresa, violadora do princípio do contraditório, ao ter aplicado o instituto do abuso de direito em relação ao prazo de usucapião.
A Relação também afastou esta causa de nulidade da sentença, tendo ponderado que “a questão do abuso de direito relativamente à invocação da aquisição por usucapião das ações por parte da autora, não é apreciada pelo juiz a quo oficiosamente, mas, a invocação expressa na contestação deduzida pelos 1º e 2º réus nos presentes autos (arts. 70º a 74º da contestação), tratando-se, como tal, de questão que o tribunal teria de resolver, por força do nº2 do artigo 608º do CPC.
Por outro lado, a apreciação de tal questão na decisão recorrida nunca poderia ser considerada uma decisão surpresa, quando um dos objetivos da convocação da audiência prévia foi precisamente “facultar às partes a discussão de facto e de direito, no caso em que ao juiz cumpra apreciar questões dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa” (art. 591º, al. b), CPC).
Tendo o abuso de direito sido suscitado pelos RR na contestação, o entendimento da sentença que considerou constituir abuso de direito a pretensão da Autora não foi uma decisão inesperada ou surpreendente, e é precisamente isto que se pretende evitar com a norma do art. 3º, nº3 do CPC.
O Acórdão do STJ de 08.09.2015, P. 565/05, disse-o expressamente: “ a decisão surpresa define-se como aquela que se baseia em fundamento que antes não havia sido ponderado pelas partes, incorrendo-se em violação do princípio do contraditório e consequente nulidade processual (art. 195º).”
Como assim, a consideração do abuso de direito na sentença e depois no acórdão recorrido, não integra a nulidade do art. 615º, nº1, d) CPCivil.
Em suma, o acórdão recorrido não sofre de qualquer das nulidades que a Recorrente lhe imputa.
Está em causa saber se a Recorrente pode ser reconhecida como proprietária de um conjunto de acções nominativas representativas do capital social de A..., S.A., que lhe foram transmitidas por endosso, ou às sociedades por si controladas, por intermédio do Réu CC, por estar na posse das mesmas em condições de poder invocar a usucapião.
A sentença, muito bem fundamentada, julgou a acção improcedente (com exceção das 77.000 ações cuja titularidade é reconhecida pelos 1º e 2º Réus), isto porque:
a) o tempo da propalada posse das ações não se acha suficiente para usucapir – na falta de alegação de título, ausência de registo e má-fé, o prazo prescricional era o de 10 anos previsto na al. b) do artigo 1298º CC;
b) o tempo de posse mostra-se interrompido pela interposição das ações judiciais propostas pelos 1º e 2º R. contra a A..., S.A., e pelo incidente respeitante à titularidade das ações no âmbito do processo de inventário por óbito da EE;
c) assim se não entendendo, sempre a invocação das ações por usucapião constituiria um abuso de direito.
A Autora recorreu de apelação, vindo a Relação de Coimbra, por acórdão igualmente muito bem fundamentado, a confirmar a sentença, salvo quanto ao prazo de usucapião – que considerou ser o de seis anos previsto no art. 1299º do CC- mas que também este não decorreu por efeitos de interrupção (art. 323º, nº1, CC), além de que a pretensão da Autora sempre constituiria um abuso de direito.
Ao longo das quase 200 conclusões do recurso de revista, a Recorrente indica os fundamentos da sua discordância com o acórdão recorrido, que no essencial se resumem aos seguintes:
i) inexistência de causas suspensiva ou interruptiva da prescrição;
ii) a impossibilidade de aplicar o instituto da desconsideração da personalidade colectiva;
iii) a inexistência de um resultado ilegítimo da invocação pela Recorrente da usucapião das acções em causa, e que
iv) o prazo de usucapião se mostrava já decorrido aquando da propositura da acção.
Vejamos.
A usucapião, como forma de aquisição do direito real de gozo, implica sempre a existência de dois elementos: a posse e o decurso de certo prazo de tempo. A posse conducente usucapião deve necessariamente ser pública e pacífica, influindo os demais caracteres da posse – a boa fé, o título e o registo – apenas no maior ou prazo exigível para a usucapião.
No caso, está definitivamente decidido no processo que as acções nominativas são bens móveis não sujeitos a registo (art. 1299º do CC), susceptíveis de posse e de usucapião, sendo o prazo para usucapir de seis anos.
A primeira questão que importa dilucidar é saber se ocorreram factos aptos a suspenderem ou interromperam o decurso de prazo de usucapião.
Isto porque o art. 1292º do Cód. Civil preceitua que “são aplicáveis à usucapião, com as necessárias adaptações, as disposições relativas à suspensão e interrupção da prescrição, bem como o preceituado nos artigos 300º, 302º, 303º e 305º.”
Como é sabido, a suspensão tem por efeito suster a contagem do prazo enquanto se verificar; a interrupção inutiliza todo o tempo decorrido até à sua verificação obrigando a contagem de novo prazo. (cf. arts. 318º, 323º e 326º do Cód. Civil).
Dispõe o nº1 do art. 323 que “a prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, directa ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o ato pertence e ainda que o tribunal seja incompetente.”
O acórdão recorrido abordou, é certo, a suspensão do prazo, tendo considerado que
“a incompatibilidade ou conflito de interesses perdurou, pelo menos, até à propositura da presente ação (nesta data o herdeiro CC era ainda ... do Conselho de Administração da aqui autora), como que paralisando a ação da herança, pelo que, a suspensão do prazo prescricional sempre seria impeditiva de contabilização da totalidade do prazo prescricional decorrido a favor da aqui autora.”
Mas, o que teve por decisivo foi a consideração de que se verificou a interrupção do prazo por força das posições expressas no inventário nº 326/12.T..., e nos processos 894/11.4..., 869/11.4... e 1295/17.T..., por parte de dois dos herdeiros da herança indivisa por óbito de EE, revelador que “consideravam as ações controvertidas titularidade da herança, são idóneos a produzir efeitos interruptivos da posse que relativamente às mesmas vinha sendo exercida pela autora.”
Contra este entendimento insurge-se a Recorrente dizendo que o acórdão desconsiderou a personalidade colectiva da Autora “ao imputar-lhe os efeitos da citação ou notificação judicial efectuadas na pessoa do Recorrido CC e da A..., S.A.”, realizando uma extensão subjectiva do disposto no nº1 do art. 323º do CCivil. (conclusões 95 e sgs).
Crê-se que a Relação decidiu bem, não assistindo razão à Recorrente.
É sabido que a personalidade jurídica – art. 5º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) – e das civis sob forma comercial – art.1º, nº4 do CSC – significa que são uma individualidade jurídica que se não confunde com a dos sócios.
Desta personalidade jurídica emerge a titularidade de direitos e obrigações autónomos, e, inerentemente, além do mais, a distinção entre pessoas singulares que são ao mesmo tempo, membros da pessoa colectiva e esta. Os direitos e obrigações duns e doutros não se confundem com os direitos e obrigações doutros.
A vida, no entanto, veio a demonstrar que conceder à linha demarcadora um valor absoluto poderia conduzir a resultados contrários à boa fé, levar a abusos, e é para obviar a tais resultados que a jurisprudência, com frequência crescente, decide pela desconsideração, levantamento ou a superação da personalidade jurídica da pessoa colectiva.
Na definição de Pedro Cordeiro (A desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais) deve entender-se por desconsideração “o desrespeito pelo princípio da separação entre a pessoa colectiva e os seus membros, ou dito de outro modo, desconsiderar significa derrogar o princípio da separação entre a pessoa colectiva e aqueles que por detrás dela actuam.”
Na jurisprudência são inúmeros os arestos que fizeram aplicação deste instituto, como sucedeu com o Acórdão do STJ de 10.05.2016, CJ/STJ, II, pag. 87, em que se lê:
“A desconsideração da personalidade colectiva, também designada levantamento da personalidade colectiva, das sociedades comerciais “disregard of legal entity”, tem na sua base o abuso de direito da personalidade colectiva, tal instituto deve ser convocado quando, a coberto do manto ou véu da personalidade colectiva, a sociedade ou os sócios excederem, ou utilizarem a autonomia societária em relação a terceiros, para exercerem de forma que contraria os fins para que a personalidade colectiva foi atribuída, haja em vista o princípio da especialidade.
A desconsideração como instituto assente no abuso de direito – art. 334º do CC – tem em si abrangida a violação das regras da boa fé no interagir com terceiros, implica a existência de uma conduta censurável que só foi possível alcançar mediante a separação jurídica do ente societário – através da personalidade jurídica que a lei lhe atribui – e a pessoa dos sócios e assim almejar um resultado contrário a uma recta actuação.”
O Professor Castro Mendes, citado no Acórdão do STJ de 05.02.2009, CJ/STJ, I, pag. 87, afirmava que “não devemos antropomorfizar a pessoa colectiva a ponto de perdermos de vista que ao contrário da pessoa singular, fim em si mesma – ela não é mais que um instrumento de realização de interesses humanos. Inclusivamente, personificação pode ser, ou passar a ser, instrumento de abuso; e deve neste caso ponderar quais os verdadeiros interesses humanos em causa.”
No caso sub judice, a Recorrente não foi citada nem notificada em qualquer das acções supra referidas, o inventário e as acções de anulação de deliberações sociais, em que os herdeiros, ora 1º e 2º RR, manifestaram posição quanto às acções controvertidas, mas seria de um rigorismo inaceitável, totalmente arredado da realidade das coisas, esquecer que por detrás da Autora se encontra o Réu CC, que naquelas acções ficou ciente da intenção dos co-herdeiros de exercerem os direitos sobre as acções.
Por isso não pode senão concordar-se com o acórdão recorrido quando refere:
“A posição assumida pelos restantes herdeiros, AA e BB, quer no processo de inventário, quer interpondo as ações anulação de deliberações sociais (a 15 e 18 de abril de 2011), contra a A..., S.A., – deixando em tais processos absolutamente
clara a sua posição de que, inexistindo qualquer partilha verbal de tais ações, a doação que se lhes seguiu ao CC sempre seria nula, consideravam tais ações como bens da herança –, poderia ter efeito interruptivo da posse que, relativamente a tais ações, vinha sendo exercida pela aqui autora.” ( a bold nosso).
(…)
No caso em apreço, deparamo-nos com uma situação, no mínimo, inusitada, em que, tendo os 1º e 2º réus ( acionistas da A..., S.A. e herdeiros da herança de EE) pugnado, “pelas mais diversas vias, pela alocação das participações sociais e correspondentes direitos sociais ao património hereditário da EE”, nomeadamente através de interposição de ações judiciais contra a A..., S.A. desde 18 de abril de 2011 (data em que a autora procedeu ao registo das ações em seu nome junto da emitente, BB) e até à data da propositura da ação, 26 de abril de 2017 (a titularidade das ações só não esteve em discussão judicial entre 18 de outubro de 2016 e 10 de março de 2017), a autora vem aqui invocar a ausência de oposição ao exercício da sua posse, alegando que a herança nunca manifestou perante si a sua intenção de exercer a titularidade de tais ações, refugiando-se na autonomia derivada da sua qualidade de distinta pessoa coletiva.
A invocação pela autora de que nunca lhe foi dado conhecimento pessoal/judicial da pretensão da herança à titularidade de tais ações, quando, nos diversos processos judiciais que estiveram pendentes entre 15 de janeiro de 2011 e 18 de outubro de 2016, foram intervenientes: i) o CC, que detinha 99,99 % das ações da aqui autora C..., S.A., (os restantes 0,01% pertenceriam aos seus filhos); e A..., S.A.., que era detida maioritariamente pela C..., S.A., (detinha, pelo menos, 71,2 % das participações sociais, tendo os seus corpos sociais sido eleitos unicamente com o seu voto), surge como contrariando manifestamente os princípios gerais da boa-fé.
O papel representado por CC em tais sociedades, funcionando como uma espécie de matrioska – o CC detém a quase totalidade o capital social da C..., S.A., que, por sua vez, detém mais de 70% do capital social da A..., S.A. –, e o uso que a CC pretende dar à autonomia decorrente do seu estatuto de pessoa coletiva, reúne os vetores usualmente apontados para a desconsideração da personalidade jurídica:
- inexistência de outro instituto que resolva o problema;
- existência de uma confusão, mais ou menos intensa entre esferas jurídicas de duas ou mais pessoas, normalmente entre a sociedade e os seus sócios, especialmente ao nível da personalidade;
- reprovação da conduta do agente, quer na criação da situação, quer no aproveitamento dela, envolvendo a desconsideração um juízo de censura;
- existência de ilicitude ou abuso de conduta, através de uma utilização contrária a normas ou princípios gerais; a desconsideração da personalidade aparece como consequência da inobservância da função que deveria ser desempenhada, naqueles casos em que o exercício do direito subjetivo conduta a um resultado clamorosamente sociedade ou vice-versa.
No caso em apreço, podemos falar aqui numa identificação ou confusão entre a pessoa coletiva, CC divergente do fim para que a lei o concedeu e dos interesses jurídica e socialmente relevantes.
A desconsideração supõe em regra que a sociedade é dominada inteiramente por um ou mais sócios, com quem praticamente se identifica, tornando-se necessário que proporcione de facto a consecução de um resultado ilegítimo. Caso em que, as atuações, relações ou regimes jurídicos imputados formalmente à sociedade deviam imputar-se ao sócio ou sócios que a dominam e controlam. E um dos grupos de casos em que se vem concretizando a desconsideração da personalidade jurídica, a par dos casos de responsabilidade, é o da imputação – determinados conhecimentos, qualidades ou comportamentos dos sócios são referidos ou imputados à da C..., S.A., e o seu quase único acionista e ... do Conselho de Administração, com poderes para, sozinho, obrigar a sociedade, e que é usada por este para controlar a A..., S.A., de quem esta é acionista maioritária, apoderando-se das ações de que a herança por óbito da sua mãe, EE, era titular.
Quanto ao poder de influência da autora sobre a A..., S.A., mostra- se devidamente descrito na decisão recorrida:“(…) como se retira das actas de assembleia geral que a Autora C..., S.A. anexa à p.i., a totalidade dos membros dos órgãos sociais da A..., S.A. foi designada, desde 2011 [e, nomeadamente, à data da apresentação da contestação no processo n.º 894/11.5...], apenas com os votos favoráveis do Réu CC e, após, da Autora C..., S.A.. Ou seja, os corpos sociais da A..., S.A. foram exclusivamente eleitos pela sócia maioritária [ou, pelo menos, assim reputada pelo ... da Mesa da Assembleia Geral não obstante o decidido no processo n.º 894/11.5...] CC.
E teremos de considerar que a invocação das ações por usucapião por parte da aqui autora visariam um resultado ilegítimo: permitir-se-ia, que, por um lado, o CC que, em primeiro lugar, de modo ilícito, se apropriou das ações da titularidade da herança por óbito de EE – apoiando-se numa alegada partilha verbal de tais ações e posterior doação do seu pai para si, para a seguir as transmitir para a C..., S.A., de quem era acionista quase único – viesse, depois, enquanto herdeiro da herança por óbito da EE, a obstaculizar o exercício do direito à titularidade de tais ações por parte da herança, com a qual mantinha um conflito de interesses;
e por outro, refugiando-se na separação de personalidades jurídicas, a aqui autora C..., S.A. pretende que a discussão judicial da titularidade das ações controvertidas não lhe é oponível, por ela própria não ter sido aí citada ou notificada enquanto tal – quando o CC (então seu ... e acionista quase único) foi direto interveniente no processo de inventário e a A..., S.A., (também em situação de domínio pela autora), surge como ré nas demais ações.
Nestas circunstâncias, a invocação da aquisição por usucapião das ações controvertidas, por parte da Cardoso da Mota, S.A., só se mostraria possível com o recurso ao estatuto da separação de personalidades e para contornar o facto de a titularidade de tais ações ter sido sujeita a discussão judicial, desde o início da posse de tais ações por parte da autora, em 18 de abril de 2011, até 26 de abril de 2017, data da propositura da presente ação (com exceção de uns meses, como é assinalado na decisão recorrida), se mostra perfeitamente abusivo e atentatório dos ditames da boa-fé.”
O excerto transcrito revela que a Relação respondeu de forma cabal e absolutamente convincente à posição defendida pela Recorrente, tornando desnecessário qualquer acrescento nosso.
Diremos apenas o seguinte:
Como refere Rita Canas da Silva, em anotação ao art. 323º do Código Civil Anotado, Almedina, “o facto interruptivo provém de acto do credor, por meio de citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima a intenção de exercício do direito, ainda que praticado por um representante, legal ou voluntário. Por razões de certeza, a lei impõe que o ato revista determinada forma – apenas atos judiciais específicos interrompem a prescrição: a citação e a notificação judicial (v. art. 219º, nºs 1 e 2 do CPC).
A razão da interrupção resulta, nestes casos, de quebra da inércia do titular, que exerce ou manifesta intenção de exercício do direito.”
Por sua vez Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V, pag. 197, esclarece:
A referência à intenção, directa ou indirecta de vir a exercer o direito (art. 323º/1), “traduz a regra de que bastará uma diligência judicial que seja incompatível com o desinteresse pelo direito de cuja prescrição se trate.”
Desinteresse pelo direito que de modo algum pode ser assacado aos Recorridos.
Pelo contrário, as posições que assumiram nos processos supra referidos evidenciam claramente que consideravam as acções um bem da herança por óbito EE, mãe dos Réus, sendo a citação, ou notificação, do Réu naqueles processos apta a interromper o prazo prescricional, que por esse motivo, à data da propositura da acção não se tinha completado.
Ademais, como referiram as instâncias, a presente acção traduz um evidente abuso de direito, como bem se referiu a sentença:
Reafirma-se, como tal, que a presente acção se traduz num evidente abuso de direito da Autora C..., S.A.. Não porque a mesma estivesse de má fé ou sem legitimação substantiva. Pois que a usucapião se pode afirmar mesmo com tais caracteres… Mas antes pela pura circunstância de pretender uma prescrição aquisitiva em face de quem tem, ad nauseam, exercido o seu direito. O que é [e sempre foi], ademais, da sua clara ciência! Pretendendo, como tal, accionar uma prescrição aquisitiva em termos que, manifestamente, extravasam os quadros e teleologia que lhe foram traçados pelo legislador.
Nestes termos, improcede a revista.
Decisão
Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o douto acórdão recorrido.
Custas pela Recorrente.
Lisboa, 16.11.2023
Ferreira Lopes (relator)
Manuel Capelo
Nuno Ataíde das Neves