PROCEDIMENTOS CAUTELARES
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DO RECORRENTE
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
IDENTIDADE DE FACTOS
REJEIÇÃO DE RECURSO
Sumário


I - Das decisões proferidas nos procedimentos cautelares não cabe, em regra, recurso de revista, salvo nos casos em que é sempre admissível recurso, que são os tipificados no nº2 do art. 629º do CPC.
II - Sendo invocado como fundamento da revista, contradição entre o acórdão recorrido e um outro da Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito (art. 629, nº2, d)), o recorrente tem o ónus de demonstrar a efectiva oposição entre os acórdãos em contradição, sendo fundamental o enquadramento da contradição no contexto do instituto/s em causa em cada situação, quando regimes diversos fazem apelo ao mesmo conceito jurídico.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO

1. DIACEROS PORTUGAL, SOCIEDADE ANÓNIMA, pessoa coletiva n.º .......46, com sede na Zona Industrial de ..., Lotes 24 e 25, Rua ..., ..., instaurou o presente procedimento cautelar contra AA, divorciada, enfermeira, titular do cartão de cidadão com o nº de identificação civil ......74 4ZY9, contribuinte fiscal nº .......36, com domicílio na Rua ..., nº 514, ..., ..., pedindo, pelos fundamentos expressos no requerimento inicial, que seja ordenada a restituição provisória à requerente da posse do imóvel identificado nos arts. 6.º e seguintes da mesma peça processual.

2. A requerente, notificada do teor do despacho proferido em 13.02.2023, que indeferiu liminarmente o presente procedimento cautelar de restituição provisória de posse, e não se conformando com o mesmo, interpôs recurso de apelação, tendo a relatora junto do Tribunal da Relação revogado aquele despacho liminar, por decisão sumária, proferida em 31.03.2023, determinando o prosseguimento dos autos, com a produção da prova indicada, e a subsequente decisão.

2. Baixados os autos à primeira instância e realizada a instrução, foi proferida decisão, julgando «o presente procedimento cautelar improcedente, não decretando, consequentemente, a restituição provisória à requerente da posse do imóvel identificado nos autos».

3. Mantendo-se inconformada, a requerente apelou e o recurso foi conhecido pelo Tribunal da Relação, que decidiu:

Pelo exposto, na improcedência do presente recurso de apelação, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela Apelante.”

4. Novamente inconformada a requerente veio interpor recurso de revista, no qual formula as seguintes conclusões (transcrição):

1 – O n.º 2 do artigo 629.º do CPC consente a presente revista, a admitir como revista “normal”, considerando que o Acórdão recorrido está “em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito”, não cabendo recurso ordinário deste por motivo estranho à alçada do Tribunal, atento o que prescreve o n.º 2 do artigo 370.º do CPC.

2 –Em atenção ao decidido pelo STJ no âmbito do processo n.º 2877/11.5TBPDL-D.L2.S1, conforme recenseado no douto Acórdão nele proferido, em 07.06.2018, disponível em www.dgsi.pt, a presente revista deverá ser admitida por verificados os pressupostos da mesma, ou seja: i) o não cabimento de recurso ordinário impugnativo do acórdão recorrido por motivo alheio à alçada do tribunal; ii) a existência de, pelo menos, dois acórdãos em efetiva oposição, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito fundamental, tendo por objeto idêntico núcleo factual, ali versados; iii) – a anterioridade do acórdão-fundamento, já transitado em julgado e iv) – a não abrangência da questão fundamental de direito por jurisprudência anteriormente uniformizada pelo STJ.”

3 - O Acórdão recorrido, de 14.09.2023, encontra-se em efetiva oposição, no “domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito fundamental, tendo por objeto idêntico núcleo factual”, com o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14.09.2017 proferido no Proc. nº 99/17.0T8AMR.G1, já transitado em julgado e disponível em www.dgsi.pt.

4- - A questão de direito fundamental que suscita a divergência entre o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães (TRG) e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora (TRE), ora recorrido, centra-se na interpretação do conceito de “violência”, previsto no artigo 377.º do CPC, quando exercida sobre as coisas, para efeitos do decretamento da restituição provisória de posse, e quando demonstrado o esbulho.

5 - O Acórdão ora recorrido, debalde o excurso prévio a respeito da latitude coeva que a jurisprudência do STJ vem conferindo ao conceito de “violência”, quando exercida sobre coisas – no qual levaria o intérprete médio a concluir que o Tribunal da Relação de Évora iria conferir provimento ao recurso de apelação –,

6 - Decidiu, a final, e sem quaisquer outros considerandos, que “…a ocorrência de mudança do código dos comandos dos portões de acesso” ao prédio da requerente, impedindo o acesso desta ao mesmo, ainda que “…levado a cabo sem conhecimento e autorização da Requerente (…) por si só não é apto a qualificar o esbulho como violento.”.

7 – O Acórdão recorrido colide de frente com o decidido naqueloutro aresto do TRG, no qual se decidiu que a simples mudança de fechadura e/ou a recusa de entrega de uma chave, na linha do pensamento (entre outros) do Professor LEBRE DE FREITAS – segundo o qual qualquer obstáculo colocado entre o possuidor e a respetiva posse é idóneo a integrar o conceito de “violência” –, é apto a preencher o conceito de “violência”, para efeitos de esbulho e onde, em conformidade, foi decretada a requerida tutela possessória.

8 – O entendimento acolhido no Acórdão fundamento, na esteira do pensamento do Professor LEBRE DE FREITAS, é consentâneo com o que vem sendo amplamente sufragado pela jurisprudência do STJ.

9 - Existe uma identidade suficiente, para efeitos de admissão do presente recurso, entre o núcleo factual subjacente a tal decisão do Tribunal da Relação de Guimarães e aquela subjacente à decisão recorrida, atendendo ao que deve ser o critério interpretativo da dita identidade do núcleo factual.

10 - A questão jurídica essencial em que os referidos Acórdãos se encontram em colisão – ou seja, o preenchimento do conceito de “violência”, para os efeitos do disposto no artigo 377.º do CPC, quando exercida sobre coisas –, não foi ainda objeto de uniformização de jurisprudência, por parte do STJ.

11 - Em vista dos pressupostos legalmente estabelecidos para o decretamento da restituição provisória da posse, conforme previsto no artigo 377.º do CPC, e em atenção à matéria de facto dada como provada, o Tribunal ora recorrido concluiu estarem demonstrados: i) A posse da requerente e ii) O esbulho, por parte da requerida.

12 - Debalde a factualidade dada por provada pelo Tribunal recorrido (rectius, pelas Instâncias) – e tendo presente que o Tribunal da Relação de Évora catalogou a atuação empreendida pela requerida como preenchedora dos requisitos da coação moral, nos termos do artigo 255.º do Código Civil –, o Acórdão recorrido não deu como demonstrado o último pressuposto do tripé cuja verificação cumulativa se exige com vista ao decretamento da restituição provisória da posse peticionada: a violência, na sua dupla modalidade, “sobre as pessoas” e/ou “sobre as coisas”

13 - Quanto à modalidade de violência “sobre as pessoas”, concluiu o Tribunal recorrido que a mesma exige que a prática dos atos idóneos a integrar tal conceito normativo ocorra APÓS a concretização do esbulho.

14 - A ocorrência de “violência sobre as coisas” é desqualificada pelo Tribunal recorrido apesar de se ter dado como provada a ocorrência de mudança dos códigos do sistema de abertura dos portões de acesso ao prédio, por parte da Requerida, e de resultar expresso da decisão recorrida que tal ato foi levado a cabo sem conhecimento e autorização da Requerente.

15 – O núcleo factual dado por provado nos presentes autos não diverge daquele que, habitualmente, tem sido dado por provado nas decisões judiciais dos nossos Tribunais Superiores – em particular, do STJ –, que decretam a restituição provisória da posse com base em violência exercida sobre coisas, verificando-se uma coincidência mais do que suficiente em vista dos termos em que deve operar o pressuposto da identidade do núcleo factual das decisões em colisão.

16 – A matéria de facto dada como provada na decisão recorrida e no Acórdão fundamento convergem entre si para criar um cenário idêntico: um esbulhador, a coisa esbulhada, os meios utilizados pelo esbulhador para vedar o acesso à coisa, por parte do esbulhado, vendo-se, assim, o esbulhado coagido, constrangido e obrigado a suportar a privação do acesso à coisa possuída contra a sua vontade, verificando-se assim entre o núcleo factual subjacente a ambas as decisões – a ora recorrida e aqueloutra proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães –, o tipo de identidade a que a lei alude, no artigo 629.º, n.º 2, al. d), do CPC, sendo a questão jurídica fundamental comum a ambos os arestos a mesma: a violência do esbulho.

17 – O Tribunal da Relação de Évora deveria ter julgado procedente a apelação, decretando a pretendida tutela possessória, tanto mais que se almeja, do Acórdão recorrido, que os Exmos. Senhores Juízes Desembargadores que o subscreveram estão a par da mudança de paradigma e sensibilidade jurisprudenciais na interpretação, densificação e aplicação casuística do conceito da “violência” enquanto caraterizadora do esbulho, nomeadamente no plano da violência sobre “as coisas”.

18 – De forma paradoxal, apesar de a decisão recorrida aderir à corrente jurisprudencial que se formou na esteira dos ensinamentos do Prof. Lebre de Freitas, segundo os quais “é violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída em consequência dos meios usados pelo esbulhador”, acaba por decidir em sentido diametralmente oposto.

19 – Deve, assim, considerar-se que “A violência é relevante para efeitos da restituição provisória de posse desde que o ato seja dirigido à coisa que é obstáculo do esbulho e impeça o exercício do direito do esbulhado sobre a coisa. (…)”, tal como resulta do Acórdão-fundamento e tem sido pacificamente sufragado pela restante jurisprudência, na esteira dos ensinamentos do Prof. Lebre de Freitas, rejeitando-se o entendimento professado pela decisão recorrida ao considerar que a ocorrência de mudança do código do sistema de abertura dos portões de acesso ao prédio, por parte da Requerida, “(…) levado a cabo sem conhecimento e autorização da Requerente (…) só por si não é apto a qualificar o esbulho como violento.”,

20 - Diferentemente, o Tribunal da Relação de Guimarães considerou que “…a mudança das fechaduras da moradia levada a cabo pela requerida, na ausência do requerente, e sem sua autorização, e (…), traduz-se num ato violento na medida em que impediu e impede ao requerente/apelante o acesso à moradia de que é comproprietário, deixando-o constrangido, pela forma como foi violada a confiança depositada na entrega da chave”.

21 – A diferença tecnológica entre uma fechadura “convencional”, no caso do Acórdão-fundamento, e uma fechadura electrónica, no caso dos autos, não belisca minimamente a óbvia similitude – factual e jurídica –, entre os casos decididos pelo Tribunal da Relação de Guimarães e pelo Tribunal da Relação de Évora, estando, assim, em termos analógicos – estabelecida uma relação de total semelhança e identidade de tratamento jurídico entre uma fechadura física e uma fechadura eletrónica, pelo que todas as considerações que o Tribunal da Relação de Guimarães teceu quanto ao preenchimento do conceito de esbulho violento através da substituição de uma fechadura convencional serão válidas para a substituição de fechaduras e chaves eletrónicas, como é o caso dos presentes autos, em que a fechadura consiste num sistema de abertura eletrónico dos portões.

22 – O sistema de acesso à propriedade cuja restituição foi peticionada é feito através de um comando com código de acesso, código esse que a requerida comprovadamente alterou impedindo o acesso ao prédio por parte da Recorrente e inibindo esta, comprovadamente, do exercício da sua posse.

23 – A substituição dos códigos dos comandos de acesso perpetrada pela Requerida pressupôs a inutilização e destruição do sistema de acesso, tal qual ele existia anteriormente, configurando, tal inovação, um ato de “violência” exercida sobre a coisa apto a impedir o exercício da posse e, assim, a constranger a possuidora, aqui requerente e recorrente.

24 – É pacífico, no caso vertente, que em virtude do esbulho, a requerente – a esbulhada –, se vê impedida de contactar com a coisa possuída em consequência dos meios empregues pelo esbulhador, meios estes que inequivocamente se materializam na mudança dos códigos do sistema de abertura dos portões de acesso.

25 – Ao contrário do sufragado pelo Tribunal recorrido, no caso vertente o esbulho não se efetiva com o terminus da vigência do contrato de arrendamento e permanência da requerida no prédio objeto dos autos, mas, diversamente, com a constatação, por banda da requerente, de que a requerida alterou os códigos do referido sistema de abertura, pois que é a partir desse momento, e em virtude desse facto, que a requerente impedida, contra a sua vontade, de aceder ao prédio.

26 – Dando o Tribunal recorrido como provados os factos constitutivos e integradores da coação moral perpetrada pela Requerida, no preciso limite daquilo que resulta de 13 a 15 da matéria de facto dada como provada, a qual considera expressamente existir no caso vertente, não poderia a decisão recorrida fixar cronologicamente essa mesma coação moral num momento anterior ao esbulho (quer este se consubstancie na permanência da Requerida no locado para lá da cessação do contrato de arrendamento, quer o mesmo se concretize com a mudança dos referidos códigos dos portões de acesso).

27 – O Tribunal recorrido tratou, no caso vertente, o esbulho e a coação como se de dois fenómenos cindíveis e independentes se tratassem, ignorando olimpicamente que, na realidade, o esbulho perpetrado pela Requerida é a mera concretização lógica e prática de todas as ameaças e chantagens feitas por esta ao legal representante da Recorrente.

28 – No caso vertente, a ocorrência da violência sobre as coisas, traduzida na substituição e mudança dos códigos de acesso aos portões, é a concretização prática da violência sobre as pessoas perpetrada pela Requerida e traduzida nas ameaças e, sobretudo, na chantagem feita, tratando-se assim de dois fenómenos incindíveis e coevos.

29 – As ameaças e chantagens (a violência sobre as pessoas) perpetrada pela Requerida são, logicamente, atuais, contemporâneas e coevas ao momento da concretização do esbulho, coincidindo ademais este com a efetivação da violência sobre as coisas, i.e. com a substituição dos códigos dos comandos de a cesso, deixando-se por esta via impedido o contacto da Recorrente com a coisa possuída.

30 – Erra assim o Tribunal recorrido ao considerar que a violência sobre a pessoa do legal representante da Recorrente já não existe no momento em que o esbulho tem lugar, fazendo “vista grossa” à circunstância de que o comportamento da requerida, quer na perspetiva da violência sobre as pessoas, quer na perspetiva da violência sobre a coisa, quer globalmente considerada é apto e idóneo a constranger a requerente, como se verificou e verifica ainda dado que esta continua privada da posse do seu prédio.

31 - Se dos autos resulta demonstrada a ocorrência de esbulho e igualmente demonstrado que esse esbulho, em atenção aos meios empregues pelo esbulhador, impossibilita a esbulhada (a requerente) de contactar com a coisa possuída, não se almeja como pôde o Tribunal recorrido considerar, sem mais e laconicamente – pois que não se fundamenta ali o porquê –, e quanto à substituição, pela requerida dos códigos do sistema de abertura dos portões, que “tal acto só por si não é apto a qualificar o esbulho como violento.”

32 - Ao considerar-se, na decisão recorrida, que “(…) não houve qualquer ato de violência contra a(s) pessoa(s) concomitante da constatação pelo Ilustre Advogado que se dirigiu ao imóvel, da ocorrência de mudança do código dos comandos dos portões de acesso ao mesmo.”, lícito será concluir que, na ótica do Tribunal recorrido, o presente procedimento cautelar de restituição provisória da posse só poderia proceder mediante a verificação cumulativa (“concomitante”) da dupla vertente do requisito da violência: sobre as coisas e sobre as pessoas, entendimento que, a ser assim, não colhe qualquer adesão, quer na doutrina, quer na jurisprudência.

33 - O Acórdão recorrido não fez uma adequada aplicação do direito aos factos dados por provados, constituindo a decisão recorrida uma clara “marcha-atrás” naquela que tem sido a orientação jurisprudencial dominante, ao longo da última década, por parte dos Tribunais superiores, no que concerne ao conceito de “violência”, para efeitos de restituição provisória de posse, e nos termos do disposto no artigo 377.º do CPC, violando tal norma.

34 - A decisão recorrida, após validar e aderir expressamente à apontada tese moderna e menos restritiva – que é a tese acolhida no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14.09.2017, segundo a qual “…a violência é relevante para efeitos da restituição provisória de posse desde que o ato seja dirigido à coisa que é obstáculo do esbulho e impeça o exercício do direito do esbulhado sobre a coisa” – acaba por recusar a tutela possessória requerida pela ora requerente movida por um putativo critério “inovador”, que é o “restringir” o conceito de violência em função do facto do procedimento ser requerido (e decretado) sem o contraditório prévio da parte requerida, juízo este que é inaceitável pois que, a proceder, implicaria um retrocesso à apontada visão anacrónica do conceito de esbulho violento, entretanto expurgada pela nossa jurisprudência.

35 – A decisão recorrida, em vista do apontado paradoxo entre os pressupostos lógicos ali mobilizados e o sentido da decisão acolhido, e ao considerar sem mais que a comprovada atuação da requerida (ademais, sem o conhecimento e autorização da requerente) não constitui, por si só, um ato idóneo a integrar o conceito de violência, fazendo-o sem qualquer tipo de fundamentação, e em contramão aos ensinamentos decorrentes da jurisprudência por si mobilizada e referenciada, vai inquinada de nulidade, nos termos das disposições conjugadas das alíneas b) e c) do artigo 615.º do CPC, aplicável aos Acórdãos por força do disposto no artigo 666.º, também do CPC, as quais são, de igual forma, fundamento do recurso de revista, atento o que prescreve a alínea c) do o nº 1 do artigo 674º do CPC e que expressamente se invocam para todos os efeitos legais.

36 – O douto Acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Évora deve ser revogado, decretando-se a requerida tutela cautelar por meio da restituição provisória da posse da requerente, nos termos formulados no requerimento inicial de fls.

A requerente pede que o recurso seja admitido e julgado totalmente procedente, revogando-se o douto Acórdão recorrido de fls., substituindo-se o mesmo por douto Acórdão que, em conformidade com os fundamentos supra expostos, e em linha com as conclusões, decrete a requerida tutela cautelar nominada de restituição provisória da posse da requerente, com todas as legais consequências.

5. Não existem contra-alegações, nem a requerida foi citada.

6. O recurso foi admitido no tribunal recorrido com a prolação do seguinte despacho:

“Por para tanto ter legitimidade, tendo-o feito atempadamente e na forma legal, invocando a contradição de julgados, admito o presente recurso de revista, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, nos termos do disposto, nomeadamente, nos artigos 370.º, in fine, 629.º, n.º 2, alínea d), 671.º, n.º 1, 674.º, n.º 1, alínea a), 675.º, n.º 1, 676.º, n.º 1, a contrario, e 677.º, todos do CPC. Notifique. Após, subam os autos ao Supremo Tribunal de Justiça.”

Colhidos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.

II. Fundamentação

De facto

7. Com interesse para a decisão da causa, a primeira instância julgou indiciariamente provados os seguintes factos:

«1 – A requerente é uma sociedade comercial anónima que tem por objeto social o fabrico e comercialização de máquinas e produtos para as indústrias metalúrgica, metalomecânica, cimenteira e produção de britas e prestação de serviços de consultoria técnica, económica, financeira e comercial.

2 – A requerente tem como ... único BB, o qual foi casado com a requerida, no regime de comunhão de adquiridos.

3 – Casamento esse que foi dissolvido por sentença de divórcio proferida nos autos de processo n.º 251/21.4..., do Juiz 2 do Juízo de Família e Menores do Tribunal Judicial da Comarca de ..., sentença já transitada em julgado.

4 – A requerente é dona de um prédio misto sito na Rua ..., nº 514, ..., ..., vulgarmente conhecido como Quinta da ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2315, da freguesia de ... (proveniente do artigo 1791, da mesma freguesia), e na matriz predial rústica da mesma freguesia sob o artigo 116, secção C, encontrando-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número436, da referida freguesia, com a área total de 5840 m2, com a área coberta de 374,20 m2 e com a área descoberta de 5465,80 m2.

5 – O referido prédio adveio à propriedade da requerente através de compra e venda que aquela sociedade fez a CC e mulher DD, formalizada por meio de escritura pública outorgada em 3 (três) de Agosto de 2017, lavrada no Cartório Notarial da Dr.ª EE, sito na Avenida ... no ....

6 – Em 1 de Fevereiro de 2019, a requerente deu de arrendamento ao ... único – BB –, à época casado com a requerida, o mencionado prédio misto, nos termos que resultam do documento nº 8 junto com o requerimento inicial cujo teor se considera integralmente reproduzido.

7 – A aqui requerida, no âmbito do processo de divórcio que correu termos sob o n.º 251/21.4..., deduziu incidente de atribuição provisória de casa de morada de família.

8 – Por decisão proferida em 4.05.2021, foi julgado procedente o referido incidente, e, em consequência, foi atribuída provisoriamente à aqui requerida o direito de arrendamento do prédio misto supra identificado, emergente do contrato aludido em 6.

9 – Por apenso aos referidos autos de divórcio (acção que correu termos sob o nº251/21.4...-C), a ora requerida peticionou a atribuição, a título definitivo, da casa de morada de família, tendo por sentença proferida a 22.04.2022, a acção sido julgada procedente e, consequentemente, atribuído à aí requerente (ora requerida) o direito ao arrendamento do sobredito prédio misto.

10 – Conforme decorre do texto do contrato de arrendamento em causa, o mesmo foi celebrado com uma duração de 4 (quatro) anos.

11 – Por lapso de escrita, fez-se constar que tal hiato de 4 (quatro) anos tinha início em 1.02.2019 e termo em 1.02.2024,

12 – Por meio de notificação judicial avulsa impetrada em 15.09.2022 e concretizada em 21.09.2022, deu a requerente a conhecer à requerida a sua oposição expressa à renovação do referido contrato de arrendamento.

13 – A ora requerida declarou que não iria entregar o imóvel e que só sairia da casa se o legal representante da requerente lhe pagasse 300.000,00 € (trezentos mil euros).

14 – Tendo dito ao legal representante que se algum dia tivesse que entregar a casa, a entregava toda partida.

15 – Afirmando, ainda, que o matava e, bem assim, que igualmente o faria quanto à nova esposa daquele legal representante e, também, quanto ao filho deste último.

16 – No passado dia 2 de Fevereiro de 2023, o Sr. FF, advogado de profissão, deslocou-se à Quinta da ..., munido de procuração outorgada pela requerente, por meio do seu legal representante,

17 – Tendo em vista obter a entrega do imóvel, bem como das respetivas chaves.

18 – Ao que encontrou os portões da Quinta encerrados.

19 – Tendo tocado à campainha sem que ninguém lhe respondesse.

20 – Porque se encontrava munido de um comando dos portões que estava em poder da requerente, tentou abrir os mesmos, verificando que o comando não abria os portões, apesar de estar perfeitamente funcional

21 – A requerida alterou os códigos do sistema de abertura dos portões.

22 – A requerente celebrou com a M..., Lda., em 6.10.2022, um contrato-promessa de arrendamento, tendo por objeto a Quinta da ....

23 – Por meio do qual convencionou que aquela sociedade passaria a tomar de arrendamento o referido imóvel, incluindo a parte habitacional, assim que cessasse o contrato de arrendamento anteriormente existente».

8. Com interesse para a decisão da causa, a primeira instância julgou indiciariamente não provados os seguintes factos:

«- O legal representante da referida sociedade promitente-arrendatária já comunicou que quer o contrato de arrendamento formalizado já no próximo dia 13.02.2023, atento o prazo convencionado no contrato;

- Tendo já comunicado que, se tal prazo não for rigorosamente cumprido e respeitado, irá considerar o contrato incumprido e exigir a penalidade acordada, no valor de 18.000,00 € (dezoito mil euros).

- O que o legal representante daquela sociedade promitente-arrendatária já fez saber ao legal representante da requerente».

De Direito

9. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

No presente recurso está em causa saber se no âmbito de um providência cautelar de restituição provisória da posse, a decisão recorrida está em contradição com outro acórdão proferido pelo Tribunal de Relação, no âmbito da mesma questão de direito, no domínio da mesma legislação, e com uma situação fáctica equivalente, redundando as decisões em contradição de jurisprudencial, para efeitos do regime do art.º 629.º, n.º2, al. d) do CPC, em conjugação com o regime do recurso de revista – art.º 671.º e ss – e com a regra da não recorribilidade para o STJ em matéria de procedimentos cautelares (art.º 370.º, n.º2 do CPC).

10. Para fundamentar a admissibilidade do presente recurso, diz a requerente que o mesmo deve ser admitido por existir contradição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento que junta – proc. 99/17.0T8AMR.G1, de 14-09-2017, do Tribunal da Relação de Guimarães.

Mais indica que o valor da presente causa (€ 109.000,00) é superior ao valor da alçada da Relação, nos termos do disposto no artigo 44º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, tal como a circunstância da requerente ter decaído na totalidade do pedido cautelar deduzido.

E procura justificar a existência de contradição assim:

1. Questão fundamental de direito - A questão de direito fundamental que suscita a divergência entre o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães (TRG) e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora (TRE), ora recorrido, centra-se na interpretação do conceito de “violência”, previsto no artigo 377.º do CPC, quando exercida sobre as coisas, para efeitos do decretamento da restituição provisória de posse, e quando demonstrado o esbulho;

2. Oposição de decisões – na decisão recorrida entendeu-se que “…a ocorrência de mudança do código dos comandos dos portões de acesso” ao prédio da requerente, impedindo o acesso desta ao mesmo, ainda que “…levado a cabo sem conhecimento e autorização da Requerente (…) por si não é apto a qualificar o esbulho como violento.”; no acórdão fundamento, decidiu que a simples mudança de fechadura e/ou a recusa de entrega de uma chave, é apto a preencher o conceito de “violência”, para efeitos de esbulho;

3. Identidade fáctica – a requerente tece considerações sobre o requisito, indicando que “… os factos, ainda que não rigorosamente iguais – como só muito dificilmente poderiam ser –, convergem entre si para criar um cenário idêntico: um esbulhador, a coisa esbulhada, os meios utilizados pelo esbulhador para vedar o acesso à coisa, por parte do esbulhado, vendo-se, assim, o esbulhado coagido, constrangido e obrigado a suportar a privação do acesso à coisa possuída, contra a sua vontade.”

4. Identidade da questão de direito – a requerente apenas considera que a questão idêntica se reporta à qualificação do esbulho como violento, independentemente do quadro legal aplicável à situação do acórdão recorrido e do acórdão fundamento se reportarem a relações controvertidas diversas, a que não dá relevo.

5. Inexistência de decisão uniformizadora de jurisprudência sobre a questão controvertida – a requerente dá nota de não existir nenhum acórdão do STJ a decidir como se deve interpretar o que seja um esbulho violento.

11. Estando em causa a situação de um recurso de revista que vem interposto com fundamento na contradição de julgados, ao abrigo das indicadas normas jurídicas, a primeira questão que importa saber é se ocorre a referida contradição – que é condição de admissão do próprio recurso.

E para responder a esta questão importa convocar o sentido de contradição de julgados, indicado na lei, tal como tem sido interpretado por este Supremo Tribunal de Justiça.

O recurso vem interposto de um acórdão da Relação que, confirmando a sentença de 1ª instância, indeferiu a providência cautelar instaurada pela Requerente, recurso estribado no art. 629º, nº2, alínea d), do CPC, uma vez que o art. 370º/2 do CPC restringe o recurso de revista nos procedimentos cautelares “aos casos em que o recurso é sempre admissível”, o que remete para do art. 629º, nº2.

Sendo invocado como fundamento a hipótese da alínea d) – “é sempre admissível recurso do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro dessa ou de diferente Relação no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão uniformizador de jurisprudência com ele conforme” – o recorrente tem o ónus de juntar com o requerimento de interposição de recurso, “cópia, ainda que não certificada, do acórdão fundamento” (art. 637º/2 do CPC).

No caso vertente, a Recorrente invocou como acórdão em oposição com a decisão recorrida o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, tendo apresentado cópia do mesmo por requerimento de fls, pelo que se considera cumprido o ónus a que alude o nº2 do art. 637º.

Vejamos então se se verifica o fundamento do recurso invocado.

12. A contradição de julgados a que alude a alínea d), do nº2 do art. 629º pressupõe que os acórdãos em confronto tenham sido proferidos i) no domínio da mesma legislação, e ii) que versem sobre a mesma questão fundamental de direito.

O Supremo Tribunal de Justiça vem decidindo de forma reiterada que “uma questão fundamental de direito considera-se decidida de forma oposta quando corresponde a interpretações divergentes de um mesmo regime normativo, situando-se ou movendo-se no âmbito da interpretação e aplicação de um mesmo instituto ou figura jurídica fundamental” (Acórdão do STJ de 11.02.2020, CJ/STJ, I, p. 68-71).

Ou seja, as decisões são divergentes se têm na sua base situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em consideração a natureza e teleologia dos interesses específicos das partes em conflito - sejam análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, e que a questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assuma um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso (isto é, que integre a verdadeira ratio decidendi dos acórdãos em confronto, não sendo suficientes decisões implícitas ou menções acessórias).

Posto isto, vejamos se o acórdão recorrido e o acórdão fundamento se debruçaram sobre a mesma questão fundamental de direito.

13. No acórdão recorrido a questão de saber se havia motivos para deferir o procedimento cautelar de restituição provisória da posse foi assim explicitado:

“Como vimos, o procedimento cautelar foi liminarmente indeferido, em virtude do veiculado pelo Senhor Juiz na decisão liminar recorrida.

Sem razão, porém, como então dissemos, com fundamentação que parcialmente reproduzimos para melhor compreensão.

Efetivamente, dispõe o artigo 1277.º do CC que “O possuidor que for perturbado ou esbulhado pode manter-se ou restituir-se por sua própria força e autoridade, nos termos do artigo 336.º, ou recorrer ao tribunal, para que este lhe mantenha ou restitua a posse”, e o artigo 1279.º que “Sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores, o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador.” Este último preceito conexiona-se com o vertido no artigo 377.º do CPC que prevê que o possuidor possa ser restituído provisoriamente à posse no caso de esbulho violento, sendo forçoso para a procedência da providência que alegue e prove os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência.

Na verdade, um dos pressupostos desta medida tutelar é a qualidade de possuidor do requerente, qualidade decorrente do exercício de poderes de facto sobre uma coisa, por forma correspondente ao direito de propriedade ou a qualquer outro direito real de gozo (artigo 1251.º do CC). A tutela é, pois, conferida àquele que exerce poderes de facto sobre coisas corpóreas suscetíveis de constituírem objeto de direitos reais de gozo (direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície e servidão).

Com efeito, adiantando-nos, até, estamos em sede de apreciação indiciária, tendo a Requerente procedido à junção de prova documental que indiciariamente lhe confere o direito que pretende ver acautelar relativamente ao imóvel.

Bem sabemos que tal tutela é também legalmente estendida a outros direitos de raiz obrigacional, como o arrendamento (artigo 1037.º, n.º 2 do CC), que, vigorando, impede a restituição ao proprietário (artigo 1311.º, n.º 2, do CC)

Ora, a este respeito, a Requerente juntou igualmente prova documental, tendente a demonstrar indiciariamente que o direito ao arrendamento do imóvel deferido judicialmente à requerida no âmbito da cessação da relação matrimonial com o primitivo arrendatário, se extinguiu, entretanto, por via da oposição extrajudicial à sua renovação, tempestivamente notificada à requerida.

Salvo o devido respeito, a afirmação do julgador, não tem arrimo no regime legal vigente a respeito da extinção do contrato de arrendamento com prazo certo, porquanto a figura da oposição à renovação, constitui “uma das outras causas previstas na lei”, que veio substituir a designação tradicional de denúncia consiste numa declaração de desvinculação de uma das partes para o termo do contrato, opondo-se, pois, à sua renovação automática nesse momento (cfr. artigos 1079.º, 1080.º, 1081.º, n.º 1, 1095.º, n.º 1, 1096.º e 1097.º do Código Civil)6.

Perante a deduzida oposição à renovação, e a consequente extinção extrajudicial do contrato de arrendamento que legitimava a permanência da requerida no imóvel, a ação de reivindicação é um dos meios colocados ao dispor do proprietário para a restituição do prédio, ou seja, a ação de que esta providência é dependente.

Portanto, a requerente não apenas alegou, como indiciariamente demonstrou documentalmente, o requisito atinente à posse».

Com efeito, extinto o contrato de arrendamento, por via da tempestivamente deduzida oposição à renovação por parte da senhoria (cfr. pontos 10 a 12 da matéria de facto indiciariamente provada), não há que convocar, como fez o julgador, que o direito conferido à requerida no âmbito do procedimento de atribuição da casa de morada de família, poderá ser alterado com base em circunstância supervenientes, conforme previsto no artigo 988.º, n.º 1, do CPC, pela simples mas evidente razão que o mesmo não posterga os direitos do senhorio no âmbito da relação arrendatícia.

Assim, tendo o contrato de arrendamento tido o seu termo no dia 01.02.2023, data em que não se renovou, desde então a requerida não tem título que legitime a ocupação do imóvel, estando obrigada à sua imediata restituição. Com efeito, não havendo outro momento legalmente fixado ou acordado pelas partes, de acordo com o estabelecido no artigo 1081.º, n.º 1, do CC, a cessação do contrato torna imediatamente exigível a desocupação do local e a sua entrega.

“Quanto à posse, o juízo que sobre ela se pede ao julgador no processo cautelar de restituição provisória de posse é de mera probabilidade, o que não o dispensa de verificar se a alegada posse (assim como o esbulho e a violência) está em condições de justificar a providência requerida, isto é, o tribunal terá de certificar-se de que o autor é, aparentemente, titular do direito que invoca.”7

Consequentemente, quando no passado dia 2 de fevereiro de 2023, o Dr. FF, advogado de profissão, se deslocou à Quinta da ..., munido de procuração outorgada pela requerente, por meio do seu legal representante, tendo em vista obter a entrega do imóvel, bem como das respetivas chaves (factos indiciariamente provados 16. e 17) a requerida estava legalmente obrigada a proceder à sua entrega, o que bem sabia pois que, na notificação judicial avulsa por via da qual a ora Requerente, fazendo constar especificamente que tendo o contrato de arrendamento que lhe havia sido transmitido a duração inicial de quatro anos, devia a requerida, por meio da presente notificação, e para todos os efeitos legais, ficar expressamente ciente de que na data de 1 (um) de Fevereiro de 2023, o referido contrato de arrendamento habitacional com prazo certo se considera extinto, com o teor inequívoco oportunamente transcrito na mencionada notificação judicial avulsa, que foi concretizada na própria pessoa da Requerida, AA, no dia 20.09.2022.

Não obstante, se nada mais tivesse acontecido, o facto de não ter havido entrega voluntária bastava para que a Requerente lançasse mão do Procedimento Especial de Despejo, mas não lhe conferia direito a qualquer tutela cautelar ou preventiva8.

Porém, a Requerente deduziu o presente procedimento cautelar, que veio a ser julgado improcedente, decidindo o julgador que “não existe qualquer violência, perpetrada pela requerida, com vista a obter a posse do imóvel dos autos, uma vez que o prédio em questão, por via do contrato de arrendamento e do procedimento de atribuição da casa de morada de família, encontra-se na sua disponibilidade”, e “os factos ocorridos posteriormente – recusa de entrega do imóvel e ameaças – não se traduzem num esbulho violento”.

Quanto ao primeiro argumento, como vimos, atento o disposto no artigo 1081.º, n.º 1, do CC, a respeito dos efeitos da cessação do contrato, não tendo a requerida título que legitime a ocupação do imóvel, está obrigada à sua imediata entrega. O fundamento desta disposição legal é facilmente surpreendido: na vigência do contrato de arrendamento, o arrendatário tem a posse do imóvel em nome de outrem, ou seja, em nome do senhorio, sendo legalmente havido como mero detentor do imóvel em questão (artigo 1253.º, alínea c) do CC). Cessando o contrato, a posse volta na sua plenitude ao proprietário, que, sem a restrição ao seu direito que o contrato de arrendamento antes lhe impunha, volta a gozar de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem (artigo 1305.º do CC).

In casu, quando a proprietária pretendeu exercer esses seus direitos, o que aconteceu?

Encontrou os portões da Quinta encerrados, tendo tocado à campainha sem que ninguém lhe respondesse (factos indiciariamente provados em 18 e 19), e quando o Senhor Advogado tentou abrir os portões, verificou que o respetivo comando não os abria em virtude de a requerida ter alterado os códigos de abertura dos portões (factos indiciariamente provados 20 e 21).

Sendo consensual que existe esbulho sempre que alguém é privado, total ou parcialmente, contra sua vontade, do uso ou fruição do bem possuído ou da possibilidade de continuar esse exercício9, a dita matéria de facto indiciariamente provada parece preencher este conceito e não configurar apenas uma mera turbação10.

“Na tese de Orlando de Carvalho, os actos de esbulho, em sentido amplo, integram todas as formas de usurpação, a aquisição paulatina, a inversão do título de posse, bem como as formas aparentes de ocupação e acessão que se ofereçam como usurpatórias, além, evidentemente, do esbulho em sentido estrito.”11 já que, cessado o contrato de arrendamento, sem que a Requerida tenha voluntariamente procedido à entrega do imóvel, a Requerente encontra-se privada do seu uso e fruição, e mais concretamente de proceder ao arrendamento do imóvel a outra sociedade com a qual celebrou contrato-promessa de arrendamento tendo por objeto o imóvel em questão (factos indiciariamente provados 22 e 23).

Mas, como salienta ANSELMO DE CASTRO12, apesar de o facto que dá causa ao procedimento de restituição ser o esbulho, “não é indiferente que esse esbulho tenha sido levado a cabo com ou sem violência. A restituição provisória só tem cabimento quando o esbulho haja sido efectivado mediante violência.”

Será então que a demais materialidade indiciariamente demonstrada é apta a integrar o conceito de esbulho violento?

Com efeito, conforme decorre dos factos provados indiciariamente sob os pontos 13 a 15, a requerida declarou ao legal representante da requerente, seu ex-marido, que não iria entregar o imóvel e que só sairia da casa se o legal representante da requerente lhe pagasse 300.000,00 € (trezentos mil euros), tendo-lhe dito que se algum dia tivesse que entregar a casa, a entregava toda partida, e afirmando ainda, que o matava e, bem assim, que igualmente o faria quanto à nova esposa daquele e, também, quanto ao filho deste último.

Ao invés do que acontece relativamente ao conceito de esbulho, relativamente à atuação configurável como violência, não existe consenso, dividindo-se, a doutrina e a jurisprudência, em duas posições distintas, a primeira das quais defende que a violência relevante tem de ser a exercida contra a pessoa do possuidor; enquanto a segunda sustenta que basta a violência sobre a coisa, em especial quando esta esteja ligada à pessoa esbulhada ou quando dela resulte uma situação de constrangimento físico ou moral13.

Tem sido seguido comummente o entendimento expresso por ABRANTES GERALDES de que “Sendo o esbulho uma das formas através das quais se pode adquirir a posse, a sua qualificação como violento deve ser o resultado da aplicação do art.º 1261.º do Cod. Civil, com o que somos transportados, por expressa vontade do legislador, para o disposto no art.º 255.º do Cod. Civil, norma que integra na actuação violenta tanto aquela que se dirige directamente à pessoa do declaratário (leia-se, possuidor), como a que é feita através do ataque aos seus bens”.

No acórdão deste Tribunal da Relação de 19.06.201414, propendeu-se para esta tese no seguimento da qual se considerou que «[b]asta que os contornos desse acto sobre as coisas e os meios usados traduzam um cariz intimidatório, de ameaça latente, que pode vir a repercutir-se sobre o esbulhado, impedindo-o de aceder ou utilizar a coisa possuída».

Mais recentemente, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.11.202215 num caso em que estava em causa precisamente o confronto dessas teses adotadas pelas instâncias, alinhando pela resposta menos exigente e restritiva, ponderou que «A violência, porém, há-de exercer-se sobre as pessoas que defendem a posse, ou sobre as coisas que constituem um obstáculo ao esbulho, e não sobre quaisquer outras. (…) A violência tanto pode consistir no emprego da força física, como em ameaças. Efetivamente, embora o Código não o diga expressamente, não parece poder duvidar-se que a violência moral é suficiente para dar direito à ação de esbulho violento. Em primeiro lugar, desde muito cedo se considerou a ameaça como suficiente para a violência; em segundo lugar, é o próprio Código Civil que ao definir coação no art. 666.º diz que esta pode consistir em fortes receios (de danos)”. Em função de tais ensinamentos, passou a considerar-se na jurisprudência que mudanças de fechaduras e substituições de cadeados para impedir a utilização de prédios – na medida em que pressupõem a destruição (e o inerente emprego de força física) de coisas (as anteriores fechaduras e cadeados) que constituíam obstáculo ao esbulho – preenchem o conceito de violência relevante; mas também se considerou que a mera colocação (sem qualquer prévia destruição e sem que qualquer obstáculo haja sido vencido) de fechaduras e cadeados não integra o conceito de violência. E é neste ponto da discussão/divergência que o critério proposto pelo Prof. Lebre de Freitas – segundo o qual “é violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída em consequência dos meios usados pelo esbulhador” (in CPC anotado, Vol. II, 2 ª Ed., pág. 78) – se nos afigura inteiramente pertinente; e consentâneo com a ideia de que também a coação moral – tendo presente que também é posse violenta a que foi obtida com coação moral (cfr. 1261.º/2 e 255.º do C. Civil) – preenche a violência, ou seja, integrará atuação violenta tanto aquela que se dirige diretamente à pessoa do possuidor como a que resulta duma ameaça que lhe é feita indiretamente (podendo tal ameaça respeitar à “pessoa, honra ou fazenda” – cfr. art. 255.º/2 do C. Civil).”.

Revertendo estas considerações, que subscrevemos, ao caso em presença, não temos dúvidas em considerar que os factos indiciariamente provados de 13 a 15 integram a noção de coação moral que nos é dada pelo artigo 255.º do CC. Porém, foram dirigidos ao legal representante da Requerente em momento em que ainda não havia obrigação da entrega do imóvel por parte da requerida, sendo que, quando sobre a mesma impendia essa obrigação, ou seja, no único momento temporal que temos indiciariamente provado ter ocorrido após a cessação do contrato de arrendamento, não houve qualquer ato de violência contra a(s) pessoa(s) concomitante da constatação pelo Ilustre Advogado que se dirigiu ao imóvel, da ocorrência de mudança do código dos comandos dos portões de acesso ao mesmo. É certo que tal ato foi levado a cabo sem conhecimento e autorização da Requerente, mas por si só não é apto a qualificar o esbulho como violento.

Deve, aliás, sublinhar-se que a cuidadosa exigência quanto ao preenchimento deste requisito da violência, num caso com os contornos do presente, é tanto mais evidente quando a restituição provisória de posse é decretada sem audição do requerido, enquanto no procedimento comum, mesmo comprovada a cessação do contrato de arrendamento, no próprio procedimento especial de despejo o contraditório nunca é postergado.

Consequentemente, o procedimento cautelar de restituição provisória de posse, não pode proceder.

Sem embargo, como enfatizam JOÃO CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA16 “[n]o caso de esbulho violento, o possuidor pode pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, cabendo-lhe alegar (e provar) a posse (art. 377.º; art. 1279.º CC), que encontra a sua origem na tutela provisória concedida pelo possessorium summarissimum medieval. Na hipótese de o esbulho se verificar sem violência ou de o possuidor só ser perturbado na sua posse, cabe o procedimento cautelar comum”.

Assim, vejamos, em substituição do tribunal recorrido conforme previsto no artigo 665.º, n.º 2, do CPC, se existe fundamento para o decretamento da restituição do imóvel à requerente, nos termos gerais, do procedimento cautelar comum.

14. No raciocínio do tribunal recorrido esteve a seguinte lógica: a requerida foi arrendatária da quinta, até à data em que o contrato de arrendamento de que era beneficiária cessou os seus efeitos; nessa data, a posse passou a ser do proprietário; a arrendatária tinha obrigação de devolver o bem e não o fez; o senhoria podia lançar mão da acção de reivindicação e do despejo; também podia usar o procedimento cautelar de restituição provisória da posse, mas desde que ficasse indiciada a posse e o esbulho violento; com a cessação do arrendamento e recusa da entrega da quinta houve uma inversão do título da posse - da arrendatária; essa inversão pode traduzir um esbulho; para a providência requerida ser decretada o esbulho teria de ser violento; a violência em causa pode traduzir-se em coação moral desde que se dirija diretamente à pessoa do possuidor, ou ainda aquela que resulta duma ameaça que lhe é feita indiretamente; na situação dos autos, houve coação moral, mas não foi dirigida à pessoa do possuidor; na situação dos autos os actos de violência “foram dirigidos ao legal representante da Requerente em momento em que ainda não havia obrigação da entrega do imóvel por parte da requerida, sendo que, quando sobre a mesma impendia essa obrigação, ou seja, no único momento temporal que temos indiciariamente provado ter ocorrido após a cessação do contrato de arrendamento, não houve qualquer ato de violência contra a(s) pessoa(s) concomitante da constatação pelo Ilustre Advogado que se dirigiu ao imóvel, da ocorrência de mudança do código dos comandos dos portões de acesso ao mesmo. É certo que tal ato foi levado a cabo sem conhecimento e autorização da Requerente, mas por si só não é apto a qualificar o esbulho como violento.”

Os seja – estiveram em causa na análise do tribunal diversas questões – cessação do contrato de arrendamento e seus efeitos sobre o arrendatário que recusa devolver o bem locado; inversão do título da posse e sua configuração como sendo passível de integrar o conceito de esbulho; o sentido de esbulho violento.

15. Por seu turno no acórdão fundamento - Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14.09.2017 – os factos em que a decisão se baseou foram diversos: não estava em causa uma situação de arrendamento nem de cessação do mesmo; estava em causa uma situação de composse – e de compropriedade – estando em causa uma relação entre o cônjuge marido e a esposa, em processo de divórcio, regressando o marido do estrangeiro, onde trabalhava, viu-se impedido de entrar na casa de mora de família, porque não lhe foram facultadas as chaves da casa pela esposa (através do pai desta).

Os factos provados foram os seguintes:

“1.- O requerente é casado com a requerida no regime de comunhão de adquiridos.

2.- O requerente e a requerida são comproprietários do prédio urbano, composto por casa de rés-do-chão, sito na Rua …, ....

3.- Este prédio constitui a casa de morada de família do requerente, da requerida e dos dois filhos desde 2009.

4.- O casal encontra-se em processo de divórcio.

5.- O requerente está emigrado em ..., onde trabalha.

6.- A requerida habita no prédio identificado em 2, com os dois filhos do casal.

7.- O requerente regressa hoje a ....

8.- No dia 28 de Abril, o subscritor informou a advogada da requerida que o requerente chegava a Portugal no passado Domingo, da parte da tarde, solicitando, por isso, que alguém lhe abrisse as portas da habitação, conforme documento junto a fls. 7 v, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.

9.- No dia 29 de Abril, a advogada da requerida informou o subscritor que esta não iria estar em casa, mas que o pai ficaria com as chaves para o requerente entrar na moradia.

10.- No dia 30 de Abril, o subscritor informou a advogada da requerida que o requerente chegaria à 1 da manhã, solicitando que avisasse o pai da requerida, conforme documento junto a fls. 8, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.

11.- Nesse mesmo dia, a advogada da requerida solicitou que o requerente contactasse o pai da requerida, através do telemóvel, assim que chegasse, o que aconteceu.

12. - Após, o pai da requerida informou o requerente que não dispunha das chaves da moradia.

13.- O requerente chegou por volta da 1 da manhã e não tinha as chaves da moradia conforme acordado.

14.- O requerente ficou assim impossibilitado de pernoitar na sua casa.

….“A requerida mudou as fechaduras da moradia de que o requerente veio a ter conhecimento.”

16. Com base neste factos, o tribunal veio a decidir que a “…a mudança das fechaduras da moradia levada a cabo pela requerida, na ausência do requerente, e sem sua autorização, e a violação do acordo para a entrega das chaves ao requerente no dia da sua chegada a Portugal, vindo de ..., traduz-se num ato violento na medida em que impediu e impede ao requerente/apelante o acesso à moradia de que é comproprietário, deixando-o constrangido, pela forma como foi violada a confiança depositada na entrega da chave”.

Do exposto resulta:

- que o instituto em causa analisado pelo tribunal se situou no âmbito da compropriedade;

- que a recusa em deixar entrar o marido na sua própria propriedade por não lhe terem sido facultadas as chaves – e ter sido mudada a fechadura – sem o seu consentimento, associado ao facto de lhe ter sido criada a confiança de que poderia entrar na casa, traduziriam um esbulho violento.

17. Quer isto dizer que os contornos fácticos das duas situações não apresentam a similitude exigida para se poder considerar que as decisões judiciais em causa se reportaram à mesma questão fundamental de direito, elemento determinante para a verificação de contradição de julgados.

Para ser a mesma questão fundamental ter-se-ia de apresentar um caso jurisprudencial que envolvesse o contrato de arrendamento e a recusa da entrega do bem locado, terminado o contrato, associado a actos de “violência” traduzidos em mudar a fechadura – quer por sistema convencional, quer por via do sistema de códigos.

É que só nessas circunstâncias se estaria numa identidade de questão de análise de situações de detenção (em termos de direito de propriedade) a serem transformadas em posse (em termos de direito de propriedade), associadas ao próprio controle material sobre o bem locado (e saber se é posse ou detenção, na pendência do arrendamento).

Nos acórdãos em confronto a questão da violência sobre a coisa e sobre o possuidor não pode ser vista sem a contextualização da relação que está na sua origem, e muito menos quando no acórdão fundamento a questão da inversão do título da posse da esposa não vem abordada – nem indirectamente – para efeitos de integração no conceito de esbulho.

Como já se disse – supra - as decisões são divergentes se têm na sua base situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em consideração a natureza e teleologia dos interesses específicos das partes em conflito - sejam análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, e que a questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assuma um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso (isto é, que integre a verdadeira ratio decidendi dos acórdãos em confronto, não sendo suficientes decisões implícitas ou menções acessórias).

E nos arestos em confronto não se verifica o mesmos núcleo essencial, à luz da natureza e teleologia dos interesses específicos das partes em conflito em face dos motivos invocados como fundamento da sua pretensão, nem a diversa solução encontrada nos arestos foi assumida a partir do mesmo núcleo de considerações (no acórdão fundamento há igualmente considerações fundadas na confiança criada ao requerente da providência, de acesso á sua própria casa), e ainda à conveniência em evitar uma acção directa de acesso ao seu próprio bem.

Quer isto dizer que este Tribunal não identifica nos acórdãos em confronto uma contradição jurisprudencial, com a exigência prevista na lei, para efeitos de admitir o recurso de revista.

Não demonstrada a contradição jurisprudencial entre o acórdão recorrido e o acórdão indicado como fundamento, não se verifica o fundamento invocado para a interposição da revista (art. 629º, nº2, d), do CPC), pelo que o recurso não pode ser admitido.

III. Decisão.

Pelo exposto, acorda-se em não tomar conhecimento da revista por inadmissibilidade da mesma.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 16 de Novembro de 2023

Fátima Gomes (relatora)

1º Adjunto: Juiz Conselheiro Dr. Sousa Lameira

2º Adjunto: Juiz Conselheiro Dr. Nuno Pinto Oliveira