CONTRATO DE COMODATO
ACESSÃO INDUSTRIAL
BOA FÉ
PROPRIETÁRIO
Sumário


O comodatário não pode adquirir por acessão o prédio que lhe foi cedido através de um contrato de comodato (no caso concreto por quem não era dono do prédio).

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – RELATÓRIO

l. AA, residente na Rua ..., lote 3, ..., ..., intentou a presente ação declarativa comum contra BB, residente Rua da ..., lote 412, ..., ..., na qualidade de herdeiro, representante e de cabeça de casal da herança, ilíquida e indivisa, aberta por óbito dos seus pais, CC e DD e herança, ilíquida e indivisa, aberta por óbito de CC e DD representada pelo primeiro e demais herdeiros alegando resumidamente que:

Desde 2012 que procedeu à plantação de mirtilos em vários prédios contíguos, incluindo o prédio rústico sito no lugar da ..., freguesia de ..., Concelho de ..., inscrito na matriz sob o n.º 339-C, o que fez por ter celebrado com o irmão um contrato de comodato, por pensar que era ele o proprietário do terreno.

Veio só agora a saber pelo irmão que este deveria entregar aquele prédio ao Réu no âmbito de processo executivo, depois de uma sentença do Julgado de Paz que reconheceu esse prédio rústico como sendo da herança dos pais dele.

Todavia, fez obras e plantações nesse prédio de valor elevado, muito superior ao valor do prédio, sendo que as mesmas não podem dele ser separadas.

Conclui pedindo que seja reconhecido o direito de propriedade, por acessão industrial imobiliária, sobre o prédio rústico sito no lugar da ..., freguesia de ..., Concelho de ..., inscrito na matriz sob o n.º 339-C, predispondo-se a pagar o montante que vier a ser determinado, e o cancelamento de todo e qualquer registo de direitos por parte do R., junto da Conservatória do registo Predial Competente.

2. Contestaram os RR, por exceção e por impugnação.

Alegam que esta ação visa apenas alterar o já decidido por sentença em julgado, que as partes são ilegítimas, que o contrato de comodato é nulo por ter sido celebrado por quem não era dono ou possuidor, para além de ser falso porque nunca o A. foi visto no terreno, sendo empreiteiro de construção civil, mas sempre o seu irmão.

Por outro lado, o comodatário tem uma posse precária, estando-lhe vedada a aquisição por acessão imobiliária, por falta de animus da posse.

Impugna ainda os demais factos alegados e peticiona a condenação do A. como litigante de má-fé.

3. O Autor requereu a intervenção dos demais herdeiros da Ré herança, o que foi deferido.

4. Foi determinada a realização de prova pericial, não apenas para fixar o valor da causa, mas também para aferir do valor do prédio e dos alegados melhoramentos.

Proferiu-se despacho saneador, fixou-se o objeto do litígio e temas da prova.

Elaboraram-se de seguida os temas de prova.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento que decorreu com observância do formalismo legal aplicável.

A final foi proferida decisão que julgou a ação improcedente, absolvendo o RR do pedido e absolvendo o A. do pedido de condenação como litigante de má-fé.

5. Inconformado com o decidido, o Autor interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação de Coimbra, por Acórdão de 13 de Junho de 2023 decidido:

«Pelo exposto, decide-se a final revogar a sentença recorrida e, em sua substituição, declarar reconhecida a aquisição, pelo Autor, por acessão industrial imobiliária, do prédio rústico com a área de 6.406 m2, sito em ..., Freguesia de ..., Concelho de ..., inscrito na matriz sob o art. 339ºC, descrito na CRPredial sob o nº 949, sob condição de o mesmo pagar aos RR. o valor de € 5.500 (cinco mil e quinhentos euros), mediante depósito a efetuar nos autos, no prazo de 90 (noventa) dias a contar do trânsito em julgado desta sentença, sob pena de caducidade do direito».

6. Inconformado veio o Réu BB interpor recurso de revista formulando as seguintes conclusões:

a) O acórdão de que se recorre é um factor de perturbação social, evidente e que atenta ainda contra o conceito de direito à propriedade privada e à sua transmissibilidade por acto inter vivos ou post mortem e, desde logo, inconstitucional, ver art.º 62.º da Constituição da República Portuguesa;

b) O acórdão recorrido além da inconstitucionalidade supra apontada, faz uma incorrecta análise e aplicação da lei e do estatuto jurídico a que se reporta, isto é, do contrato de comodato.

Assim, impõe-se a observação dos arts. 1.129.º e ss do Código Civil; o acórdão recorrido esqueceu-se de tal facto. Tendo sido a acção como base um contrato de comodato é, dentro do quadro jurídico do instituto, que o Ex.mo Julgador deve encontrar a solução;

c) O douto acórdão recorrido faz incorrecta leitura e interpretação da letra e espírito do art.º 1340.º porquanto este, claramente, dispõe:

“se alguém DE BOA FÉ construir obra ou ele fizer sementeira ou plantação….”…onde esta o requisito da boa fé?;

d) Sabendo o autor e aqui recorrido que tinha que entregar o prédio ..., passados DEZ ANOS, ou seja, no fim do contrato de comodato não pode e nem deve, segundo previsão contratual querida e aqui confirmada, ser-lhe adjudicado o direito de propriedade, em clara violação da al. c) n.º 1 do art.º 615.º do Código do Processo Civil “Os fundamentos nada têm a ver com a decisão encontrada….”

e) A situação de facto debatida, esclarecida em depoimentos testemunhais e documentos não justificam a decisão, pelo que houve violação da letra e espírito do art.º 615.º n.º 1 al. b) do Código do Processo Civil.

f) Este Superior Tribunal, em 1975, emitiu douto acórdão defendendo que, para cada contrato, dada a sua natureza, elementos volitivos e demais circunstâncias, se deve recorrer ao estatuto jurídico existente; sobre a impossibilidade de em contrato de comodato 1.129.º e ss do Código Civil se transformar em aquisição do direito de propriedade, ver douto acórdão supra citado.

Conclui pedindo a revogação do Acórdão recorrido e a entrega do prédio ao seu legitimo proprietário.

II – FUNDAMENTAÇÃO

Foram dados como provados os seguintes factos:

1) Através de escrito datado de 23/10/2012, EE declarou dar de comodato ao aqui Autor, que aceitou, três prédios rústicos sitos em ..., ..., ..., inscritos na matriz sob os art.ºs 340ºC, 343ºC e 399 C (o que aqui se discute)

2) Aí se referindo que o contrato teria o prazo de 10 anos e destinava-se a atividade agrícola do comodatário, o qual poderia neles efetuar as obras e construções que entendesse. – doc. 1 da petição inicial

3) Em dezembro de 2012 o A., na qualidade de promotor, apresentou candidatura ao programa Proder na DGAP ..., com vista à obtenção de financiamento e benefícios – Documentos juntos em janeiro de 2022.

4) A Candidatura destinava-se à plantação e produção de pequenos frutos e bagas, designadamente mirtilos na exploração da ..., ... (1 há) e visava um financiamento total de 117.282,99€ - idem.

5) A operação do investimento teria a duração de 14 anos, com fim em 2026, obrigando-se o aqui A. a proceder na exploração uma serie de obras, melhor descritas na pagina 7 e 8 do processo de candidatura, que aqui se dá por reproduzido – idem.

6) Investindo o A., como capitais próprios, a quantia de 16.913,19€ - página 10 do processo de candidatura.

7) A candidatura foi aprovada, tendo dado origem à celebração, em novembro 2013, de um contrato escrito de financiamento entre o A. e o IFAP.- idem.

8) O prédio rústico com a área de 6.406 m2, sito em ..., Freguesia de ..., está inscrito na matriz sob o art.º 339ºC em nome de EE mostra-se descrito na CRpredial sob o nº 949 e inscrito a favor de EE desde 2012/10/01, tendo como causa aquisitiva a usucapião. – vide certidão de registo predial junta sob doc.2 e certidão matricial (fls 39)

9) Correu termos no Julgado de Paz de ... o processo 93/2014 intentado pelo aqui Réu, BB, em julho de 2014 na qualidade de cabeça de casal da herança dos seus pais CC e DD, contra o referido irmão do A., EE em que peticionava o reconhecimento de propriedade da herança do art.º 339º C e a sua entrega pelo Demandado. – certidão do processo junta aos autos.

10) Por sentença de 27 de janeiro de 2015, o Julgado de Paz decidiu que o pai do demandante havia adquirido verbalmente esse prédio há mais de 20 anos e que desde então praticou os atos de posse conducentes à sua aquisição por usucapião, tendo declarado que o mesmo pertencia à sua herança

11) Mais ordenou a sua entrega, pelo demandado à referida herança e o cancelamento da inscrição da propriedade a favor do demandado EE e a sua inscrição a favor da herança. – idem.

12) Dessa decisão o Demandado interpôs recurso para este Juízo Local que coreu termos com o nº 481/15.8... e no qual se decidiu, a anulação parcial da decisão e a realização de novas diligências.

13) Veio o Julgado de Paz a proferir nova audiência e decisão, em 17/02/2017, com o mesmo sentido da anterior

14) Tendo havido novo recurso para este Tribunal (processo 488/17.0...) mas que foi julgado improcedente, em 25/05/2017, mantendo-se o decidido no Julgado de Paz.

15) Em 7/11/2017 EE foi citado na execução 4732/17.6... do Juízo de Execução de ..., cujo título executivo é a supra referida decisão do Julgado de Paz, para proceder à entrega do imóvel aqui em causa, por não o te feito voluntariamente. – doc 3 da petição inicial.

16) --- este número não contém qualquer facto seja na decisão da 1ª instância seja no Acórdão recorrido ---

17) O valor do prédio rústico aqui em causa, em maio de 2019, era de 37.205,00€ - prova pericial / arbitramento

18) Consta do relatório de arbitramento a existência, nessa data, de uma plantação de mirtilos em plena produção, com árvores com cerca de 5 anos de idade com bom vigor vegetativo e com um valor de 30.855,00€ - idem

19) Desde data não apurada mas pelo menos desde o ano de 2014 (após aprovação do da candidatura ao financiamento estatal) que o A., que pretendia apostar na plantação de mirtilos, e após a cedência dos 3 prédios pelo irmão EE, procedeu a diversos atos materiais e investimentos nos mesmos, incluindo no que aqui se discute, em cerca de 1 há de área nomeadamente (confronto entre o documento de candidatura ao financiamento do IFAP com os juntos com a p.i., sendo que a desmatação e surriba do tereno data de janeiro de 2014 )

a) Construção de casa das máquinas € 1.215,00

b) Colocação de postes de betão e rede anti-passáros € 13.000,00 c) Contentores Plásticos € 2.750,00 mais IVA – 3.382,50€

d) Trator agrícola € 15.040,00 e) Reboque agrícola € 2.450,00 f) Charrua € 916,00

g) Escarificador € 560

h) Pulverizador € 1.799,00 i) Abre regos € 375,00

j) Capinadeira € 967,00

k) Material orgânico 2019,30€

l) Tela agrotexil € 4.400,00mais IVA – 5412,00€

m) Instalação de sistema de rega gota-a-gota € 5.000,00 n) Tanque armazenamento água e acessórios - € 5.965,00 o) Gerador Diesel € 1.565,00 mais IVA – € 1924,95

p) Plantas de mirtilo e misturas - €16.472,40€ q) Furo Artesiano – € 11. 712,09

r) Preparação do tereno para surriba e desmatação ) € 2.000,00 s) Material orgânico – 3.000€

Total – 93.210,24€.

20) Os prédios rústicos escolhidos pelo A. possuíam as condições edafoclimáticas propícias para a produção de mirtilos de excelente qualidade, tendo o conjunto dos prédios rústicos sido convertidos numa exploração agrícola economicamente viável – relatórios e parecer da DGAP e IFAP e relatório de arbitramento

21) Para que a produção de mirtilos fosse, efetivamente, viável, em primeiro lugar, foi necessário preparar o solo para a plantação de mirtilos, tendo essa operação passado pela limpeza do terreno, surriba, desmatação e nivelamento do solo e por fim pela fertilização do terreno.

22) Em segundo lugar, de modo a satisfazer as necessidades hídricas da cultura, foi necessário a abertura de um furo artesiano a compra de um tanque de recolha e armazenagem de água, de forma a proceder ao armazenamento e ligação ao sistema de rega-gota-a-gota, também aí instalado.

23) Em terceiro lugar, para que a plantação não fosse “alvo” dos pássaros o que a colocaria em risco, foi instalada uma cobertura de rede anti-pássaro, em toda a sua extensão, constituída por diversos postes de betão implantados cerca de 1,5m no solo, onde se mostra sustentada a rede anti-pássaro.

24) Por fim, foi necessário proceder à construção de uma casa das máquinas, com ligação efetiva ao solo, na qual foi instalado todo o equipamento necessário da rega (gerador) e guardadas as máquinas e alfaias agrícolas (enxadas, charrua, capinadeira, abre regos, etc…), necessárias no dia a dia.

25) Desconhecia, o Autor que o terreno no qual veio a construir e, posteriormente, a plantar os mirtilos, viria a ser considerado como propriedade de terceiro – conjugação das datas das decisões com a data das faturas, do contrato de comodato, da apresentação da candidatura ao financiamento e da matriz e registo do imóvel

26) O valor patrimonial do prédio (VPT) aqui em causa, à data da celebração do contrato de comodato era de EUR 4,45 (quatro euros e quarenta e cinco cêntimos).

27) Sendo que o valor comercial antes dos atos levados a cabo pelo A, não ultrapassaria os 5.000€ ou 6.000€.

28) Já que se tratava de terra inculta, com mato.

29) As obras feitas pelo A. e plantações integraram o terreno em causa, não podendo ser levantadas sem as destruir e causar grave prejuízo ao A. (Não pode o A., levantar o Furo artesiano, levantar o sistema de rega feito e pensado para o local e para a plantação em causa; arrancar sem destruir os postes de betão que se mostram implantados no prédio para suporte da rede anti pássaro; levantar as plantas de mirtilo sem as destruir e sem pôr em causa, a capacidade produtiva das mesmas).

Factos não provados, com interesse para a decisão da causa e que não estejam já em contradição com os provados.

a) Data exata em que o A. tomou conhecimento de que o prédio pertence à herança Ré e que o irmão teria de o entregar.

b) Outos investimentos que tenham sido feitos para além dos demostrados;

c) Antes de tomar posse do prédio, em regime de comodato, o valor do prédio era de EUR 3.203,00, atendendo ao preço de venda de outros prédios com as mesmas características e na mesma zona, ou seja, o preço do metro quadrado seria de cerca de EUR 0,50,.

d) Não foi o A. mas outro irmão quem se dedicou e dedica à plantação exploração e comercialização dos mirtilos, nunca estando no prédio em causa.

e) O “ contrato de comodato “ foi inventado e fabricado para adiar a entrega do prédio rústico ao seu verdadeiro dono, réu contestante.»

III – DA SUBSUNÇÃO – APRECIAÇÃO

Verificados que estão os pressupostos de actuação deste tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir.

A) O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do Recorrente, artigo 635 do Código de Processo Civil.

A única questão a decidir é a de se saber se o Acórdão recorrido fez uma incorrecta aplicação dos preceitos legais aplicáveis, concretamente dos artigos 1129 e 1340.º ambos do Código Civil ou, colocando a questão de outro modo, pode o comodatário adquirir por acessão o prédio que lhe foi cedido através de um contrato de comodato?

B) O Recorrente insurge-se contra a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra que, revogando a sentença da primeira instância declarou reconhecer a aquisição, pelo Autor, por acessão industrial imobiliária, do prédio rústico que lhe havia sido cedido mediante um contrato de comodato, sob condição de o Autor pagar aos RR. o valor de € 5.500 (cinco mil e quinhentos euros), mediante depósito a efetuar nos autos, no prazo de 90 (noventa) dias a contar do trânsito em julgado desta sentença, sob pena de caducidade do direito.

Afigura-se-nos que a razão se encontra do lado do Recorrente, tal como já havia sido decidido na primeira instância, pelo que o Acórdão recorrido não se pode manter.

Vejamos

O Direito

Dispõe o artigo 1129 do Código Civil que «Comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir».

E nos termos do artigo 1340º do Código Civil:

«1. Se alguém, de boa fé, construir obra em terreno alheio, ou nele fizer sementeira ou plantação, e o valor que as obras, sementeiras ou plantações tiverem trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, sementeiras ou plantações.

2. Se o valor acrescentado for igual, haverá licitação entre o antigo dono e o autor da incorporação, pela forma estabelecida no nº 2 do artigo 1333.º.

3. Se o valor acrescentado for menor, as obras, sementeiras ou plantações pertencem ao dono do terreno, com obrigação de indemnizar o autor delas do valor que tinham ao tempo da incorporação.

4. Entende-se que houve boa fé, se o autor da obra, sementeira ou plantação desconhecia que o terreno era alheio, ou se foi autorizada a incorporação pelo dono do terreno.»

Estatui também o n.º 1 do artigo 62 da CRP – citado pelo Recorrente – que:

«A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição».

Tendo presentes estes princípios jurídicos, sumariamente enunciados e, ponderando a factualidade supra descrita em 2 é manifesto e evidente que assiste razão ao Recorrente e que o Acórdão recorrido não se pode manter.

Estamos perante um contrato de comodato, datado de 23/10/2012, através do qual EE – que não era proprietário do prédio aqui em questão – cedeu ao aqui Autor, (além de outros dois), o prédio que aqui se discute, pelo prazo de 10 anos, destinando-o a atividade agrícola do comodatário e podendo efetuar as obras e construções que entendesse.

Temos, assim que o Autor/recorrido, ao fazer as obras e ao explorar o prédio em questão sabia que o prédio era alheio, fosse ele do ora Recorrente (da herança) ou fosse do referido EE.

O Autor, ao contrário do que estipula o n.º 4 do artigo 1340 do CC ao fazer a «obra, sementeira ou plantação» não desconhecia que o terreno era alheio.

E nem se diga que a «obra, sementeira ou plantação» foi autorizada pelo dono do terreno pois o EE não era nem é o dono do terreno.

Assim, nunca se poderia dizer que o Autor estava de boa fé.

Aliás, nem se compreende que o Autor e a decisão recorrida possam pretender ser possível a aquisição da propriedade do prédio pelo autor. O Autor sabia nos termos do contrato de comodato que celebrou com o EE (que não era o dono do terreno, mas ainda que o fosse) que tinha de devolver o prédio ao fim de 10 anos.

Como bem se salienta no voto de vencido e no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, citado pelo Recorrente nas suas alegações, a cedência de um prédio e a sua utilização, com base num contrato de comodato afasta a possibilidade de invocar o instituto da acessão para aquisição desse prédio.

Relembremos o sumário do Ac. do STJ de 28.09.2006 supra referido, no qual se pode ler «Aos comodatários de imóvel, que nele realizem obras de melhoramento, está vedada a aquisição a seu favor do direito de propriedade por meio de acessão industrial, uma vez que no contrato de comodato (tal como nos de locação e de usufruto) existe um vínculo jurídico entre o interventor e o dono do prédio, sabendo aquele ser mero detentor ou possuidor precário e que findo o contrato está obrigado à restituição do mesmo, com direito apenas a indemnização (ou a levantamento) pelas benfeitorias feitas - arts. 1138.º, n.º 1, 1275.º, n.º 2, e 216.º, todos do Código Civil».

É exactamente isso que sucede no presente caso. O Autor sabia que findo o prazo do contrato de comodato que celebrou (com quem era o dono do terreno, saliente-se) tinha de devolver o prédio cuja aquisição pretende por acessão.

Acresce que o ora Recorrente (a herança) verdadeiro dono do terreno face ao decidido no Acórdão recorrido ver-se-ia desapossado de um bem por acção de terceiros, mediante uma indemnização que não pode contestar, sem que tivesse contribuído com qualquer conduta sua para esta situação.

Seria muito injusto para o dono (o recorrente) ver-se desapossado de um prédio sem que tenha de algum modo contribuído para tal.

Afigura-se-nos ser manifesto e evidente que não se verificam os requisitos do direito pretendido pelo Autor, ora recorrido pelo que o Acórdão recorrido não se pode manter.

Em suma, não pode o comodatário (o autor) adquirir por acessão o prédio que lhe foi cedido através de um contrato de comodato (no caso concreto por quem não era dono do prédio)

Dúvidas não nos restam em como se impõe a procedência desta questão e consequentemente da presente revista, devendo subsistir a decisão da primeira instância, ou seja, deve a presente acção ser julgada improcedente e os RR absolvidos do pedido.

III - Decisão

Nos termos expostos acordam os juízes que compõem este Tribunal em julgar procedente a presente revista e, em consequência, revogando o Acórdão recorrido subsiste a decisão da primeira instância, ou seja, deve a presente acção ser julgada improcedente e os RR absolvidos do pedido.

Custas pelo Autor.

Lisboa, de de 2023

José Sousa Lameira (relator)

Conselheiro Ferreira Lopes

Conselheira Maria Fátima Gomes