IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DE CONCLUIR
ÓNUS DO RECORRENTE
OBJETO DO RECURSO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
LEI PROCESSUAL
VIOLAÇÃO DE LEI
ANULAÇÃO DE ACÓRDÃO
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
RECURSO DE APELAÇÃO
DECISÃO QUE PÕE TERMO AO PROCESSO
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
Sumário


I - Não conhecendo do objeto do recurso definido pelo recorrente, através de um juízo de procedência ou improcedência, total ou parcial, do pedido recursório, o acórdão recorrido não traduz situação de dupla conforme relativamente às questões processuais determinantes do não conhecimento.
II - Não obsta à admissibilidade do recurso de revista, nos termos da norma do n.º 1 do art. 671.º do CPC, o facto do acórdão recorrido pôr termo ao processo sem absolver a recorrida da instância.
III - A exigência processual de se indicar nas conclusões das alegações a decisão alternativa sobre as questões de facto impugnadas, quando submetida ao crivo da proporcionalidade /razoabilidade, é solução que se mostra desadequada, dispensável ou desrazoável quando da conduta processual do recorrente resultar de forma clara e inequívoca o que o mesmo pretende com a interposição do recurso.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório

1 – “Groundsky Construções Metálicas, Lda.”, com os demais sinais nos autos, instaurou procedimento de injunção, que seguiu como ação declarativa comum, contra “Map Engenharia, Lda.”, pedindo o pagamento da quantia de €24.349,17, acrescida de juros de mora vencidos, no montante de €642,83, e de juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento.

Para tal, alegou, em síntese, que no exercício da sua atividade de fabricação de estruturas de construção metálicas, forneceu à Ré os serviços constantes das faturas n.º ...48, no valor de € 1.450,10, n.º ...49, no valor de € 3.389,23, n.º ...62, no valor de € 12.258,70, e nº ...63, no valor de € 8.702,96, tendo enviado à Ré as faturas em dezembro de 2019, mediante carta registada com a/r, mas esta apenas pagou 30% por conta das faturas n.ºs ...48 e ...49.

Na contestação, a Ré excecionou com o erro na forma de processo e uso inadequado do procedimento de injunção; pugnou pela absolvição do pedido, por existência de crédito sobre a Autora no valor de €74.865,05, que excede o valor por ela peticionado; subsidiariamente, pediu a absolvição do pedido por incumprimento contratual culposo da Autora em ambos os contratos de subempreitada celebrados; e, em reconvenção, pediu a condenação da Autora a pagar-lhe a quantia de €74.865,05, acrescida de juros a contar da notificação; e, caso assim não se entenda, solicitou a dedução do valor eventualmente a liquidar pela Ré à Autora o valor de todos os danos causados à Ré imputáveis à Autora, operando a compensação na parte correspondente.

A Autora apresentou réplica, a defender a improcedência da exceção dilatória deduzida e a inadmissibilidade legal da reconvenção; e caso se entenda pela admissibilidade da reconvenção, que fosse notificada para apresentar novo articulado.

Foi proferido despacho a julgar improcedente a exceção de erro na forma de processo e a julgar admissível a reconvenção, determinando-se, ainda e em conformidade, a notificação da Autora para responder à reconvenção, tendo a Autora respondido à reconvenção, no sentido da sua improcedência.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença a: (i) condenar a Ré a pagar à Autora a quantia global de € 12.090,47, acrescida dos correspondentes juros de mora, à taxa legal de juros comerciais, desde a data de vencimento de cada uma das faturas até efetivo e integral pagamento; (ii) condenar a Ré a pagar à Autora a quantia correspondente à diferença entre o montante de € 5.633,10 e o montante que vier a ser liquidado a título de custos suportados pela Ré com a contratação de terceiro para terminar os trabalhos da Autora; (ii) absolver a Autora/Reconvinda e a Ré do demais peticionado.

Inconformada, a R. interpôs recurso de apelação, apresentando as correspondentes alegações e respetivas conclusões, onde impugnou o decidido pelo Tribunal a quo quanto à matéria de facto, mais exatamente, ao decidido quanto aos factos descritos nas alíneas e) a h), j), m), r) e t) dos factos provados e quanto aos enunciados nas alíneas a) a i) dos factos não provados.

O acórdão recorrido julgou improcedente o recurso com fundamento em que a recorrente não cumpriu o ónus processual fixado na alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil (CPC): a decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 – Dessa decisão, que põe termo ao processo, a Ré interpõe recurso de revista, com a seguintes conclusões:

a) Vem o presente recurso interposto do Acórdão proferida pelo Tribunal a quo, que decidiu rejeitar o conhecimento da impugnação da matéria de facto apresentada pela Recorrente, mantendo inalterada a decisão de facto e “(…) por via disso, a decisão no seu todo” e que, consequentemente, julgou a apelação improcedente e confirmou a sentença recorrida.

b) Entendeu o tribunal a quo que, tendo a Recorrente impugnado a matéria de facto, não deu cumprimento ao disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, “Posto isto, o que se constata no caso em presença é, que mais não seja, o desrespeito pela obrigação imposta na transcrita al. c).”.

c) Ora, o tribunal a quo apesar de confirmar a decisão ali recorrida, não reapreciou os factos e prova produzidos em 1.ª instância, conforme havia sido pedido pela Recorrente, “escudando-se” numa alegada preterição pela Recorrente de uma formalidade legal.

d) E, por esse motivo, entende a Recorrente não estar impedida de interpor recurso de revista por não violar a regra da “dupla conforme”.

e) Primeiro, porque o tribunal a quo não se pronuncia sobre o mérito da impugnação da matéria de facto, mas rejeita “liminarmente” e por uma questão de natureza formal o recurso apresentado, depois, porque o objeto da revista é a legalidade da decisão do tribunal a quo não reapreciar a matéria de facto e prova produzida, o que não se confunde com o objeto da apelação da Recorrente.

f) Nesse sentido, entre outros, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito do processo n.º 21389/15.1T8LSB.E1. S1, em 10.11.2020, disponível em www.dgsi.pt, onde se decidiu, precisamente sobre o que aqui se discute, que: “(…) Assim sendo, não obstante verificar-se uma situação de dupla conforme no que se reporta ao mérito da causa (o acórdão da Relação confirmou a sentença da instância com idêntica fundamentação e sem voto de vencido), tal não ocorre relativamente à questão objeto da revista legalidade da recusa por parte do Tribunal da Relação em reapreciar a prova porquanto o poder da Relação relativamente ao conhecimento da matéria de facto fixada pela instância assenta em normas específicas que são privativas de uma instância nesse âmbito; nessa medida, como tal, inaplicáveis à instância. Estando, pois, em causa na revista o (não)uso do poder de reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação, não ocorre a sobreposição decisória que caracteriza a dupla conformidade de julgados limitativa do recurso para o STJ. Acresce que constitui entendimento pacífico deste Tribunal considerar que assume cabimento em sede de revista sindicar a recusa da Relação em conhecer do recurso da matéria de facto com fundamento no incumprimento de ónus processual previsto no artigo 640.º, do CPC, por se tratar de uma situação de violação da lei processual reconduzida à questão da legalidade da interpretação feita pelo tribunal da Relação quanto ao poder/dever que a lei lhe confere para reapreciar a prova gravada (cfr. entre outros acórdãos deste Tribunal de 28-01-2016,Processo n.º 1006/12.2TBPRD.P1-A.S1, acessível através das Bases Documentais do IGFEJ). Mostra-se, por isso, admissível o recurso de revista normal”;

g) Motivo pelo qual a presente revista tem por fundamento a errada interpretação pelo tribunal a quo da lei de processo, mais concretamente da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, considerando que a Recorrente cumpriu todos os formalismos legais a que estava obrigada, como veremos.

h) Sem prejuízo, mesmo que assim não fosse e que apenas se cogita por dever de patrocínio, da análise do recurso de apelação apresentado pela aqui Recorrente está suficientemente percetível para o tribunal da Relação e para a parte contrária “o juízo probatório que visa obter com a impugnação dos pontos fácticos impugnados”, motivo pelo qual nunca poderia o tribunal da Relação rejeitar conhecer da impugnação da matéria de facto com fundamento no incumprimento dos formalismos legais do 640.º do CPC. Subsidiariamente,

i) Caso assim não se entenda, o que não se concede mas que aqui se cogita por mera cautela e dever de patrocínio, entendendo V. Exas. não ser admissível recurso de revista por verificação da “dupla conforme”, sempre teria de proceder a revista excecional, em virtude de o acórdão de que aqui se recorre estar em evidente contradição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça transitado em julgado, já supra citado, proferido no processo n.º 21389/15.1T8LSB.E1.S1, em 10.11.2020, conforme certidão que aqui se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.

j) E no âmbito do qual se consideraram os Senhores Juízes Conselheiros que, mesmo perante eventual imperfeição formal resultante da omissão de referência explicita à decisão fáctica a proferir, isso não constitui fundamento para o tribunal recusar o recurso: “Na avaliação do cumprimento do ónus processual previsto na alínea c) do n.º1 do artigo 640.º do CPC, importa ter presente se o Recorrente destacou, de forma suficientemente percetível para o tribunal de recurso e para a contraparte, o juízo probatório que visa obter com a impugnação dos pontos fácticos impugnados, pelo que não constitui questão inultrapassável, que justifique a rejeição do recurso, a imperfeição formal resultante da ausência de uma referência explícita à decisão fáctica a proferir.”

k) Ou seja, apesar de ser entendimento da Recorrente que cumpriu na sua plenitude o disposto no n.º 1 do artigo 640.º do CPC, mesmo que assim não fosse e porque, pelo menos, dúvidas não há sobre a decisão que a Recorrente pretendia obter com a impugnação de cada um dos pontos fácticos expressamente identificados, nunca poderia o Tribunal a quo rejeitar o conhecimento da matéria de facto.

l) E, a contradição entre o Acórdão da Relação de que aqui se recorre e o Acórdão identificado do Supremo Tribunal de Justiça é evidente.

m) Além de que, a apreciação desta matéria apresenta-se como fundamental e de especial importância para uma melhor aplicação do direito, visto que, a eventual dúvida e discussão sobre a interpretação do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, e, concretamente, da alínea c), deixa as partes processuais numa constante e, diga-se mesmo, agoniante dúvida sobre os exatos critérios que têm de satisfazer aquando da impugnação da matéria de facto e, acima de tudo, motiva que os decisores possam adotar decisões pouco claras, obscuras.

n) Nos termos do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

o) Foi precisamente o que a Recorrente fez, motivo pelo qual se entende, salvo o devido respeito, que o Acórdão do Tribunal da Relação de que se recorre é completamente desprovido de suporte legal e, na verdade, nem sequer se dignaram os Senhores Desembargadores a explicar e sustentar de que forma desrespeitou a Recorrente a obrigação imposta pela alínea c) do supra citado normativo legal, não expõem porque terá alegadamente falhado a Recorrente, não explicam o que deveria ter feito.

p) Portanto, a Recorrente nem sequer percebe porque terá alegadamente desrespeitado qualquer formalismo legal.

q) Veja-se, sumariamente, pela análise do Recurso de Apelação, nas alegações a Recorrente indica claramente que os factos provados E a H, J, M, R e T foram erradamente considerandos provados pelo tribunal de 1.ª instância, e, por outro lado, que os factos não provados A. a I. não deveriam constar da matéria factual dada como não provada, e para isso indicou para cada um desses factos incorretamente julgados pelo tribunal de 1.ª instância, no entendimento da Recorrente, os concretos elementos probatórios que obrigavam a decisão distinta, e, por último, a consequência e decisão que se impunha.

r) Nas suas conclusões a Recorrente, em MMM conclui da análise ao facto provado G) e em confronto com a prova produzida, e depois de identificar concretamente os meios probatórios, que se impunha ao tribunal concluir e decidir que foram prestados pela Ré serviços no valor de €10.824,03 com referência à fatura n.º ...62 (sem prejuízo dos defeitos identificados nos referidos trabalhos).

s) Quanto ao facto provado J), a Recorrente nas conclusões em YYY e AAAA conclui que a decisão do tribunal deveria ter sido no sentido de considerar que as faturas n.ºs ...48 e ...49, que tinha dado como provado terem sido pagas no valor correspondente a 30%, tinham sido, ao invés, integralmente pagas pela Recorrente, no valor total de €3.871,51 ficando assim em dívida sem prejuízo dos defeitos e penalizações, €8.702,96.

t) Quanto ao facto provado M, o qual também entendeu a Recorrente ter sido incorretamente julgado, nas suas conclusões em MMMM a PPPP mais uma vez identificou qual deveria ter sido a decisão do tribunal,

u) Concretizando-se ainda na conclusão em RRRR do Recurso de Apelação, que o tribunal de 1.ª instância tinha elementos suficientes, além da restante prova produzida e identificada pela Recorrente nas conclusões, para julgar de forma diferente o facto provado R, devendo dar como provado que a Recorrente teve na obra sita na Rua Áurea custos com terceiros no valor de €5.880,00, para terminar os trabalhos da Recorrida.

v) E ainda relacionado com a prova produzida relativamente a estes factos, e bem identificada pela Recorrente, conclui também que não poderia o tribunal dar como não provados os factos a. a d., conforme conclusões em WWWW.

w) Concretamente dizendo-se ali o que devia o Tribunal em 1.ª instância decidido, cfr. conclusões FFFFF, NNNNN a QQQQQ.

x) Note-se, de resto, que nas conclusões em QQQQQ a Recorrente conclui e expõe de forma detalhada qual deveria ter sido a decisão do Tribunal em 1.ª instância.

y) Continuando, desta feita quanto aos factos considerados como não provados e. a i., concretizando quanto aos factos não provados e. e f. a decisão que se impunha ser tomada pelo Tribunal, conforme conclusões IIIIIII a MMMMMMM.

z) E, assim, impunha-se a decisão descrita em LLLLLLL e MMMMMMM daquelas conclusões, ou seja, dar como provado que a Recorrente teve de suportar, na obra da Rua Cecília Sousa custos com a correção de defeitos que ascenderam a €5.766,00 e sobrecustos com estaleiro no valor de €11.347,49.

aa) E, quantos aos factos não provados h. e i., concluiu a Recorrente em UUUUUU e VVVVVVV a decisão que se impunha, ou seja, que devia ter o tribunal dado como provado e não como não provado, que a Recorrente teve de suportar um prejuízo de €38.500,00 e, assim decidindo, teria o tribunal de fazer operar a compensação.

bb) Mas mais, veja-se ainda que a Recorrente nas conclusões em WWWWWWW e XXXXXXX concretiza toda a sua argumentação quanto à impugnação da matéria de facto, identificando com clareza e objetivamente as decisões que deveriam ter sido adotadas pelo Tribunal em 1.ª instância, e consequências das mesmas.

cc)Cumpriu assim, escrupulosamente, as obrigações impostas pelas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, designadamente, a decorrente da alínea c)”A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”, e, ao contrário do que foi decidido pelo Tribunal da Relação no acórdão de que aqui se recorre, não existiu qualquer “desrespeito pela obrigação imposta na transcrita al. c)”, pelo contrário, errou o Tribunal ad quo julgar desta forma, decidindo rejeitar o conhecimento da matéria de facto, porque ao fazê-lo violou e aplicou erradamente aquele normativo processual.

dd) Sem conceder, mesmo que se entendesse que a Recorrente não tinha dado cumprimento integral aos formalismos do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, concretamente ao previsto na alínea c), não poderia o tribunal a quo recusar o conhecimento da impugnação da matéria de facto.

ee) No caso do ónus previsto na alínea c), a verdade é que, sendo ele uma consequência dos outros dois, na maioria dos casos, para não dizer na totalidade, o incumprimento deste ónus pelo recorrente terá de ser muito grave, porque de outra forma será perfeitamente percetível para o Tribunal da Relação o juízo probatório que a Recorrente visa obter.

ff) É isso que resulta da jurisprudência maioritária, citando-se a titulo de exemplo o Acórdão transitado em julgado, do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), datado de 10-11-2020, com o n.º21389/15.1T8LSB.E1.S1 Na avaliação do cumprimento do ónus processual previsto na alínea c) do n.º1 do artigo 640.º do CPC, importa ter presente se o Recorrente destacou, de forma suficientemente percetível para o tribunal de recurso e para a contraparte, o juízo probatório que visa obter com a impugnação dos pontos fácticos impugnados, pelo que não constitui questão inultrapassável, que justifique a rejeição do recurso, a imperfeição formal resultante da ausência de uma referência explícita à decisão fáctica a proferir”.

gg) Podendo também mencionar-se os Acórdãos do STJ nos processos n.º 1426/08.7TCSNT.L1. S1 de 26-05-15 e n.º 1006/12.2TBPRD.P1. S1 de 28-04-16., disponíveis em www.dgsi.pt.

hh) Concluindo-se naquele primeiro Acórdão citado que o decisor deve guiar-se por um critério interpretativo na verificação das obrigações impostas pelo legislador, que deve ter em conta “(…) dois aspetos orientadores que nortearam as alterações legislativas produzidas nesta matéria: impedir a impugnação generalizada da matéria de facto, delimitando-a a determinados pontos concretos, em função de concretos meios de prova; não inviabilizar, por razões meramente formais, o recurso quanto à matéria de facto que a lei quis proporcionar”.

ii) E foi esse critério que norteou a decisão do STJ no sentido de considerar que relativamente à impugnação de vários factos identificados pelo Autor naquele processo, por ser identificável o sentido da decisão pretendida com a impugnação, e apesar da imperfeição formal resultante ausência de uma referencia explicita à decisão a proferir, não impedia o Tribunal da Relação de conhecer da impugnação da matéria de facto: “Assim, não se levantando qualquer dúvida de que o Recorrente cumpriu os demais encargos necessários para a reapreciação da matéria de facto quanto a esta matéria (alíneas a) e b) do n.º1 do artigo 640.º do CPC, conforme aceite pelo tribunal a quo), uma vez que se revela plenamente identificável o sentido da decisão que deveria ser proferida relativamente aos supra referidos pontos de facto (20, 28, 29 dos factos provados e B dos factos não provados) considerados mal julgados, somos de entender que a imperfeição formal resultante da ausência de uma referência explícita à decisão a proferir não constitui questão inultrapassável que justifique a rejeição do recurso, tendo presente que o Recorrente destacou de forma suficientemente percetível para o tribunal de recurso e para a contraparte, o juízo probatório que visa obter com a impugnação da referida matéria. Por conseguinte, procede a revista, importando a remessa dos autos ao Tribunal da Relação para que seja apreciado o recurso (rejeitado) da matéria de facto relativamente aos pontos de facto assinalados”.

jj) Motivo pelo qual se entende que o Tribunal da Relação tinha e tem todos os elementos necessários e exigidos na lei para se debruçar sobre as alegações de recurso da Recorrente, reapreciando a prova produzida e proferindo decisão em conformidade, sobre a impugnação da matéria de facto, pedindo-se aos Senhores Juízes Conselheiros que, não se confirmando a decisão do Tribunal da Relação, seja ordenada a remessa dos autos ao Tribunal da Relação para que sejam apreciados os factos provados e não provados impugnados, analisando-se a prova produzida.

kk) Na hipótese de considerarem V. Exas. não ser admissível recurso de revista por aplicação do n.º 3 do artigo 671.º do CPC, o que não se concede mas que se cogita por cautela e dever de patrocínio, e dando-se aqui por reproduzido tudo o que se expôs anteriormente e que possa aqui relevar, designadamente a identificação sucinta dos factos impugnados e decisões que deviam ser proferidas nestas conclusões em Q) a BB), e que estão melhor explanados e identificados no Recurso de Apelação, cuja análise de V. Exas. se requer,

ll) sempre seria possível o recurso de revista excecional da decisão proferida pelo Tribunal da Relação, pelo facto de a questão aqui em crise revelar-se de extrema importância jurídica, sendo necessário discutir-se cabalmente o alcance, interpretação e aplicação dos formalismos legais impostos pelo legislador no n.º 1 do artigo 640.º do CPC, com o objetivo de se obter uma orientação sobre a interpretação e aplicação dos formalismos legais inscritos naquela norma.

mm) E, dessa forma, estabilizar-se a interpretação da aplicação prática das obrigações legais impostas pelo n.º 1 do artigo 640.º do CPC, bem como, das eventuais consequências do não cumprimento ou do cumprimento defeituoso das alíneas a) e c) daquela norma, com particular incidência para a consequência do cumprimento defeituoso da alínea c), ou seja, da indicação pelos Recorrentes da decisão que deveria ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, e, do comportamento a adotar pelos decisores.

nn) Que, salvo o devido respeito, a ser no sentido de que qualquer Recorrente que cumpra de forma deficiente o ónus da alínea c) do artigo 640.º do CPC, vê a rejeição “liminar” do conhecimento pelo Tribunal da impugnação de facto, mostra-se demasiado gravosa e formalista, pelo menos, desde que da análise da impugnação da matéria de facto como um todo se perceba e se identifique o sentido da decisão que devia ser proferida.

oo) E é isso mesmo que resulta do Acórdão transitado em julgado, do Supremo Tribunal de Justiça(STJ), datado de 10-11-2020, com o n.º 21389/15.1T8LSB.E1.S1, onde se decidiu por unanimidade (conforme certidão junta com o presente Recurso) que, e cita-se “Na avaliação do cumprimento do ónus processual previsto na alínea c) do n.º1 do artigo 640.º do CPC, importa ter presente se o Recorrente destacou, de forma suficientemente percetível para o tribunal de recurso e para a contraparte, o juízo probatório que visa obter com a impugnação dos pontos fácticos impugnados, pelo que não constitui questão inultrapassável, que justifique a rejeição do recurso, a imperfeição formal resultante da ausência de uma referência explícita à decisão fáctica a proferir”.

pp) Veja-se que, também nesse processo era visado um Acórdão do Tribunal da Relação que não conheceu dos recursos da matéria de facto (nesse caso ambas as partes recorreram).

qq) Ou seja, exatamente o mesmo que aqui se discute, sendo que o motivo da rejeição do conhecimento da impugnação da matéria de facto foi também o alegado “(… incumprimento de ónus processual previsto no artigo 640.º do CPC (…)”, cfr. Acórdão citado.

rr) Com a diferença que nesse caso, foi rejeitado o recurso do Autor e Interveniente com fundamento no incumprimento da obrigação imposta pela alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, e quanto ao Réu, que aqui mais nos interessa, (…) por incumprimento do ónus estabelecido no artigo 640.º, n.º 1, alínea c)”, cfr. Acórdão citado.

ss) No Acórdão citado entende-se que o decisor deve guiar-se por um critério interpretativo na verificação das obrigações impostas pelo legislador, que deve ter em conta “(…) dois aspetos orientadores que nortearam as alterações legislativas produzidas nesta matéria: impedir a impugnação generalizada da matéria de facto, delimitando-a a determinados pontos concretos, em função de concretos meios de prova; não inviabilizar, por razões meramente formais, o recurso quanto à matéria de facto que a lei quis proporcionar.”

tt)E foi esse critério que norteou a decisão do STJ no sentido de considerar que relativamente à impugnação de vários factos identificados pelo Autor naquele processo, por ser identificável o sentido da decisão pretendida com a impugnação, e apesar da imperfeição formal resultante da ausência de uma referencia explicita à decisão a proferir, não impedia o Tribunal da Relação de conhecer da impugnação da matéria de facto: “Assim, não se levantando qualquer dúvida de que o Recorrente cumpriu os demais encargos necessários para a reapreciação da matéria de facto quanto a esta matéria (alíneas a) e b) do n.º1 do artigo 640.º do CPC, conforme aceite pelo tribunal a quo), uma vez que se revela plenamente identificável o sentido da decisão que deveria ser proferida relativamente aos supra referidos pontos de facto (20, 28, 29 dos factos provados e B dos factos não provados) considerados mal julgados, somos de entender que a imperfeição formal resultante da ausência de uma referência explícita à decisão a proferir não constitui questão inultrapassável que justifique a rejeição do recurso, tendo presente que o Recorrente destacou de forma suficientemente percetível para o tribunal de recurso e para a contraparte, o juízo probatório que visa obter com a impugnação da referida matéria. Por conseguinte, procede a revista, importando a remessa dos autos ao Tribunal da Relação para que seja apreciado o recurso (rejeitado) da matéria de facto relativamente aos pontos de facto assinalados”.

uu) Não pode assim, pela evidente relevância e importância jurídica, até de segurança jurídica, qualquer recorrente que impugne a matéria de facto, ficar refém de um entendimento discricionário do decisor, aliás, tratando-se da verificação ou não do preenchimento de um requisito formal afigura-se que deveria ser de análise objetiva e, pelo menos, de fácil justificação para o decisor o motivo de considerar não estar verificado.

vv) Assim será para os requisitos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, considerando que os factos ou estão identificados pelo recorrente ou não, e que os meios de prova para cada uns dos factos também estão indicados ou não, bem como, no caso das transcrições, ou existem e cumprem os requisitos prescritos, ou não.

ww) E, no caso do ónus previsto na alínea c), a verdade é que, sendo ele uma consequência dos outros dois, na maioria dos casos, para não dizer na totalidade, o incumprimento deste ónus pelo recorrente terá de ser muito grave, porque de outra forma será perfeitamente percetível para o tribunal de recurso a decisão que o recorrente pretende com aquela impugnação.

xx) Sendo certo que, não se pode aceitar que o tribunal de recurso, podendo mesmo ser o último garante da justiça, se limite a dizer num Acórdão que recusa conhecer da impugnação da matéria de facto por não estar cumprido o formalismo previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º.

yy) Até porque, prosseguindo o interesse último da realização da justiça, devem os tribunais agir sempre nesse espírito, o que, in casu, não se verificou. Nesse sentido, a título de exemplo entre outros, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito do processo n.º 21389/15.1T8LSB.E1. S1, em 10.11.2020, disponível em www.dgsi.pt, onde se decidiu, precisamente sobre o que aqui se discute, que:“(…) Assim sendo, não obstante verificar-se uma situação de dupla conforme no que se reporta ao mérito da causa (o acórdão da Relação confirmou a sentença da instância com idêntica fundamentação e sem voto de vencido), tal não ocorre relativamente à questão objeto da revista legalidade da recusa por parte do Tribunal da Relação em reapreciar a prova porquanto o poder da Relação relativamente ao conhecimento da matéria de facto fixada pela instância assenta em normas específicas que são privativas de uma instância nesse âmbito; nessa medida, como tal, inaplicáveis à instância. Estando, pois, em causa na revista o (não) uso do poder de reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação, não ocorre a sobreposição decisória que caracteriza a dupla conformidade de julgados limitativa do recurso para o STJ.

Acresce que constitui entendimento pacífico deste Tribunal considerar que assume cabimento em sede de revista sindicar a recusa da Relação em conhecer do recurso da matéria de facto com fundamento no incumprimento de ónus processual previsto no artigo 640.º, do CPC, por se tratar de uma situação de violação da lei processual reconduzida à questão da legalidade da interpretação feita pelo tribunal da Relação quanto ao poder/dever que a lei lhe confere para reapreciar a prova gravada (cfr. entre outros acórdão deste Tribunal de 28-01-2016,Processo n.º 1006/12.2TBPRD.P1-A.S1, acessível através das Bases Documentais do IGFEJ). Mostra-se, por isso, admissível o recurso de revista normal.

Cumpre decidir

II – Fundamentação.

3. O recurso de revista tem por objeto o pedido de revogação da decisão judicial recorrida com fundamento na violação de norma de direito processual: alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC.

O acórdão recorrido considera que a apelante não cumpriu o ónus processual de especificar «a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas», de que resulta a sanção de rejeição do recurso prevista no mesmo preceito. Por sua vez, a recorrente defende que não só cumpriu esse ónus como a interpretação que se faz no acórdão recorrido está «em evidente contradição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça transitado em julgado, já supracitado, proferido no processo n.º 21389/15.1T8LSB.E1. S1, em 10.11.2020».

Não obstante o acórdão recorrido, na sua parte dispositiva, «confirmar» o mérito da sentença apelada, a recorrente defende que há fundamento para admitir a revista, quer pelo n.º 1 do artigo 671.º do CPC, já que não ocorre “dupla conforme” relativamente à questão objeto da revista – legalidade da recusa por parte do Tribunal da Relação em reapreciar a prova –, quer pela alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º, por contradição com acórdão do STJ já transitado em julgado.

A mera confirmação do dispositivo da sentença pelo acórdão recorrido não representa, contudo, qualquer juízo sobre o respetivo mérito. Trata-se apenas de afirmar a consequência inevitável da decisão de não conhecimento do recurso, por impedimento de natureza processual. E por isso, não conhecendo do objeto do recurso definido pelo recorrente, através de um juízo de procedência ou improcedência, total ou parcial, do pedido recursório, o acórdão recorrido não traduz situação de dupla conforme relativamente às questões processuais determinantes do não conhecimento. É esta a posição reiterada da jurisprudência do STJ quando no recurso de revista é invocada a violação de normas de direito adjetivo relacionadas com a apreciação da matéria de facto: «Estando, pois, em causa na revista o (não) uso do poder de reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação, não ocorre a sobreposição decisória que caracteriza a dupla conformidade de julgados limitativa do recurso para o STJ» (entre outros, o Acórdão de 10 de novembro de 2020, proc. n.º 21389 /15.1T8LSB.E1, citado pela recorrente).

E não obsta à admissibilidade do recurso de revista, nos termos da norma do n.º 1 do artigo 671.º do CPC, o facto do acórdão recorrido pôr ter ao processo sem absolver a recorrida da instância. Numa interpretação demasiado cingida ao texto deste preceito, podia considera-se que o recurso de revista de decisões que não conhecem do mérito – decisões de forma – só é admissível se absolverem o réu da instância. De fora do âmbito da norma ficariam as decisões que, não obstante se absterem de conhecer do fundo da causa, a relação processual extingue-se por motivo diferente da absolvição da instância. Nesta interpretação, as decisões da Relação que tenham por efeito extinguir a instância por modo diferente da absolvição do réu da instância, como a deserção, impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, a rejeição do recurso de apelação, são insuscetíveis de recurso de revista. Como a absolvição da instância é um efeito da procedência de uma exceção dilatória, apenas nos casos referidos nos artigos 278.º e 577.º do CPVC seria admissível a revista.

É verdade que o enunciado normativo daquela disposição, na parte relativa às decisões formais, não expressa a norma nas melhores condições de percetibilidade, pois contém na sua previsão pressupostos cumulativos que provocam equívocos: «ponha termo ao processo» e «absolvição da instância». Como após a prolação de uma decisão de mera absolvição da instância nada mais ocorre no processo, na perspetiva da resolução do litígio, naquela interpretação torna-se redundante a referência a uma decisão que ponha termo ao processo. A ambiguidade da formulação normativa ainda é maior quando se verifica que pode existir uma decisão de absolvição da instância sem que daí resulte o termo do processo, como é o caso da absolvição de um dos réus da ação ou quanto a algum dos pedidos formulados pelo autor ou ao pedido reconvencional.

Perante esta deficiência de ambiguidade e imprecisão, este Tribunal tem vido a interpretar a norma, sem fazer descaso doutros elementos interpretativos (histórico e teleológico), no sentido de que considerar a fórmula «absolvição da instância» como meramente exemplificativa e não excludente quanto aos fundamentos de extinção da instância ou do processo para efeitos de interposição da revista. Assim, no âmbito da norma contida no n.º 1 do artigo 671.º cabem todos os casos em que se “põe termo total ou parcial ao processo por razões de natureza adjetiva”, nomeadamente por extemporaneidade ou pela falta de pressupostos ou requisitos legais. Aos casos em que o acórdão da Relação põe termo ao processo mediante “absolvição da instância” do réu ou de algum dos réus quanto a algum dos pedidos, devem ser equiparados aqueles em que o efeito extintivo é consequência de qualquer outro motivo de ordem formal (Acórdão do STJ de 7 de outubro de 2020 – proc. n.º 1075/16.6T8PRT.P1. S1).

De modo que recurso de revista é admissível, perdendo qualquer utilidade a invocação de contradição de julgados como fundamento de revista excecional.

4. O acórdão recorrido limita-se a dizer o seguinte:

«Apreciando.

Como vemos, a Recorrente manifesta o seu desagrado sobre o decidido pelo Tribunal a quo, com enfoque na decisão de facto, mais exatamente, no decidido quanto aos factos dados por provados em E) a H), J), M), R) e T), bem como A) a I) dos factos não provados.

Ora, a impugnação da decisão de facto, como é sabido, está dependente da verificação das circunstâncias para que aponta o art.º 662º, sem olvidar os ónus impostos ao(s) recorrente(s) nos art.º 639º, nº1 e 640º e respetivas cominações, nestes previstas.

E nos termos deste último normativo: “1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. ...”.

Importa observar que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” (cit. Abrantes Geraldes, in “Recursos no novo Código de Processo Civil”, 2014, págs. 134/135).

“Os ónus primários previstos nas alíneas a), b) e c) do nº1, do art.º 640.º do CPC, são indispensáveis à reapreciação pela Relação da impugnação da decisão da matéria de facto. O incumprimento de qualquer um desses ónus implica a imediata rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões.” (cit. sumário do Acórdão do STJ de 02-02-2022, proferido no Processo 1786/17.9T8PVZ.P1. S1, Relator - Fernando Samões, em www.dgsi.pt. Veja-se, no mesmo sítio net, Acórdão do mesmo Tribunal, proferido no Processo 3176/11.8TBBCL.G1. S1, Relator – José Rainho, assim sumariado: “Omitindo o recorrente o cumprimento do ónus processual fixado na alínea c) do nº 1 do art.º 640º do CP Civil, impõe-se a imediata rejeição da impugnação da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões”.

Posto isto, o que se constata no caso em presença é, que mais não seja, o desrespeito pela obrigação imposta na transcrita al.c).

Por conseguinte, de acordo com a cominação prevista para tais situações, atrás aludida, decidirmos rejeitar o conhecimento da impugnação da matéria de facto.

Mantém-se, assim, inalterada a decisão de facto e, por via disso, a decisão no seu todo».

5. Não resulta deste texto em que parte do requerimento do recurso o juiz a quo localizou a inércia da recorrente na especificação da decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Considerando que o desvalor do incumprimento do ónus pode ser diferente consoante se reporte às alegações ou às conclusões, já que estas se limitam a reproduzir aquelas «de forma sintética», era necessário averiguar se o silêncio quanto à “decisão alternativa” ocorreu em todo o requerimento ou apenas em alguma das suas partes estruturais.

O n.º 2 do artigo 637.º do CPC estabelece que «o requerimento de interposição do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade». Assim, a vontade de interposição do recurso deve exprimir-se através de requerimento que contenha a respetiva fundamentação e o pedido, de modo a delimitar o objeto do recurso. Para tal, a lei processual impõe, ou melhor propõe ao sujeito processual a necessidade de cumprir certos ónus processuais, como condição de aquisição do direito ao recurso. Se quiser que o recurso seja admitido, o recorrente tem de cumprir o ónus de alegação, o ónus de conclusão e o ónus de especificação, previstos nos artigos 637.º, n.º 2, 639.º e 640.º do CPC. Na imposição destes ónus reconhece-se uma relação de meio para fim: o cumprimento dos ónus conduz à admissão do recurso; e a sanção para o não cumprimento – rejeição do recurso – resulta somente de não se ter verificada a situação que se produziria se esses ónus fossem cumpridos. De modo que, não sendo um fim em si mesmo, a verificação do cumprimento desses ónus tem de ter em conta o princípio da razoabilidade, para que não se dificulte excessiva e desproporcionalmente o direito ao recurso.

Daí que o grau de exigência da racionalidade entre cada um daqueles ónus e o direito ao recurso possa ser diferente, consoante o relevo que tenham na construção do objeto recursório, e depender mesmo das circunstâncias de cada recurso. De facto, há situações onde não é possível concluir que a imperfeição do requerimento de recurso quanto a determinadas exigências legais, sobretudo quando secundárias, impossibilita a admissão do recurso. Nem sempre as exigências formais desrespeitadas devem implicar uma rejeição do recurso, nomeadamente se as finalidades que a forma protege chegaram a atingir-se. A intervenção dos princípios como os da proporcionalidade, razoabilidade, materialidade subjacente e favorecimento do processo (princípio pro actione), com refrações várias na lei processual civil, permite ao juiz averiguar e controlar em cada caso concreto da relevância dos referidos ónus processuais.

Ora, em relação ao incumprimento do ónus de especificar nas conclusões das alegações a decisão que no entender do recorrente deve ser proferida sobre as questões de facto (alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º), após longa controvérsia jurisprudencial, acabou por se conseguir uma unitária estabilidade (ou fixidez) do direito com o Acórdão de Uniformização de Jurisprudências (AUJ), de 17 de outubro de 2023 (proc. n.º 8344/17.6T8STB.E-A. S1): «o Recorrente que impugna a decisão sob a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte de forma inequívoca, as alegações».

Por isso, satisfeita a segurança jurídica e a garantia da certeza de uma unívoca aplicação do direito, pode agora dizer-se, de modo negativo, que conclusões sem especificação da decisão alternativa são não excessivas ou não desproporcionais à garantia do direito ao recurso. A exigência processual de se indicar nas conclusões das alegações a decisão alternativa sobre as questões de facto impugnadas, quando submetida ao crivo da proporcionalidade/razoabilidade, é solução que se mostra desadequada, dispensável ou desrazoável quando, como se refere no AUJ, «da conduta processual do recorrente resultar de forma clara e inequívoca o que o mesmo pretende com a interposição do recurso».

Não significa isto que a formulação no requerimento de recurso da decisão de facto substitutiva da impugnada não seja um elemento imprescindível à definição do objeto do recurso. Se a decisão de facto for revogada, outra deve ser proferida em sua substituição, que se impõe, quer pelo dever de pronúncia (alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º), quer pela proibição do non liquet (n.º 1 do artigo 8.º do Código Civil). Por força do princípio dispositivo, para além da revogação da decisão judicial recorrida, o recorrente também deve pedir a substituição da decisão impugnada, já que o tribunal apenas conhece na exata medida em que o recorrente lhe pede (artigos 635.º, 639.º e 640.º). Portanto, a individualização do efeito substitutivo é realizada no pedido e não propriamente na causa de pedir do recurso. Justamente por isso, o artigo 639.º, n.º 2, alínea b), quanto à impugnação da decisão de direito, e o artigo 640.º, n.º 1, alínea c), quanto à impugnação da decisão de facto, impõem ao recorrente o ónus de indicar a decisão que no seu entender deve ser tomada em substituição da impugnada.

Simplesmente, em termos de ato processual, as conclusões correspondem à causa de pedir do recurso – «fundamento específico de recorribilidade» (n.º 2 do artigo 637.º) – em que o recorrente afirma a ilegalidade da decisão por violação de norma de direito substantivo ou de direito processual ou erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, conforme for o caso. Ora, as funções que as conclusões representam dentro das alegações, designadamente a individualização dos fundamentos específicos do recurso e viabilização do exercício do contraditório, podem cumprir-se sem necessidade de nessa sede se «sintetizar» o pedido da decisão alternativa.

Com efeito, por regra, a individualização da decisão de facto ou de direito que o recorrente entende que deve ser tomada em consequência da revogação da decisão recorrida apreende-se da leitura da motivação do recurso em articulação com o pedido. O recorrente não pode invocar injustiça no julgamento de facto sem contrariar, desde logo, o resultado probatório que serviu de pressuposto a essa decisão. O que o move, a posição em defesa da qual atua contra a decisão de facto injusta é, ainda e sempre, a posição substantiva de fundo que o opõe à parte contrária. Daí que a pretensão dirigida à destruição da decisão de facto injusta tem inerente um projeto de solução a seu favor, que se consubstancia na pretensão de decisão substitutiva da impugnada, declarando provados ou não provados os factos impugnados.

6. No caso dos autos, a pretensão de decisão alternativa à decisão de facto da sentença recorrida, não só é evidente nas alegações e nas conclusões do recurso, como constitui o efeito jurídico essencial que o recorrente pretende do tribunal: o tribunal não pode revogar a decisão de facto sem proferir uma decisão substitutiva. Saber se a decisão é a que o recorrente pretende ou outra, é já um problema que depende da convicção formada pelo tribunal sobre o exame e avaliação dos motivos probatórios reunidos no processo.

A recorrente impugnou os factos que foram julgados provados nas alíneas e) a h), j), m), r) e t) e julgados não provados nas alíneas a) a i) da fundamentação de facto da sentença. Nas respetivas alegações expõe os meios de prova – documentos e depoimentos testemunhais gravados – dos quais, no seu entender, se deve extrair conclusão diferente da que foi percecionada pelo juiz. Tendo por referência o material probatório acumulado no processo, enuncia em relação a cada um dos factos impugnados a interpretação, a avaliação ou valoração que faz dos meios de prova, concluindo pela existência de prova bastante para ser proferida uma decisão de facto diversa da recorrida.

Senão vejamos.

Os factos provados em e), f), g), h) e j) reportam-se a quatro faturas – n.ºs ...48, ...49, ...62 e ..63 – de cujo valor a recorrida se considera credora da recorrente por materiais que lhe forneceu e trabalhos que executou no âmbito de dois contratos de subempreitada com ela celebrados tendo por objeto duas obras a realizar em Lisboa. A recorrente, servindo-se da prova produzida no processo, impugna os factos contidos nessas faturas relativos ao devedor, aos valores e à quantidade de serviços mencionados: (i) em todas as faturas deve passar a constar que os serviços foram prestados à ré e não à autora – artigo 54.º das alegações; (ii) a fatura n.º ...48, no valor global de €12.450,00, deve ter o valor de €1,450,00, e por isso este valor deve passar a constar no facto descrito em e) – artigo 49.º das alegações; (iii) relativamente à fatura n.º ...62, no valor global de €12.258,70, apenas foram prestados serviços no valor de €10.824,03, pelo que a alínea g) deve ser alterada com esta menção – artigo 73.º das alegações; (iv) as faturas n.ºs ...48 e ...49 foram pagas na totalidade, pelo que a alínea j), que refere o pagamento em 30%, deve ser alterada de modo a passar a constar que a recorrente procedeu ao seu pagamento, no valor de €12.031,00, ou dar esse facto como não provado – artigos 88.º, 89.º e 90.º das alegações.

O facto provado em m) – «A Ré não efetuou os autos de medição mensais, nem foram assinados pela Autora» –, considerando os elementos probatórios juntos aos autos, não corresponde à verdade, porque, sendo os prazos de execução muito curtos, não eram exigidos autos de medição mensais, mas apenas um auto de medição final. Por isso, a alínea m) deve ser alterada no sentido de passar a constar que foram acordados autos de medição com a conclusão das obras e que, após a saída da recorrida das obras, foram apresentados autos de medição dos trabalhos que ela realizou – artigo 105.º das alegações.

O facto descrito na alínea r) – «a Ré foi obrigada a contratar um terceiro para terminar os trabalhos da Autora, suportando, para o efeito, quantia que em concreto não foi possível apurar» – deve ser alterado para que conste o valor despendido pela recorrente com a contratação de terceiros, que ascende a €5.880,00, para terminar os trabalhos que a autora não realizou, uma vez que está provado nos autos por documentos e depoimentos das testemunhas – artigo 111.º das alegações.

O facto referido na alínea t) – «Os atrasos da Autora na obra da Rua Cecílio de Sousa ocorreram em virtude de a mesma encontrar-se dependente do trabalho a ser realizado por outras especialidades, nomeadamente a carpintaria, e de a Ré não assegurar as condições para a Autora proceder à montagem do material existente na obra» –, deve ser julgado não provado, porque os documentos, e-mails trocados e os depoimentos gravados fazem prova bastante de que os atrasos na conclusão das obras são imputáveis à recorrida – artigo 183.º das alegações.

Quanto aos factos não provados, relativos aos defeitos e custos adicionais na obra da rua Áurea – alíneas a) e d) – e na rua Cecílio de Sousa – alíneas e) a g) –, a recorrente considera que há prova suficiente para dar como provados a existência de defeitos e que está demostrado o valor dos custos adicionais que teve com a contratação de terceiros e com o estaleiro, matéria que deve passar a constar dos factos provados, com especificação dos valores indicados – artigos 119.º, 121.º,131.º,141.º, 187.º, 194.º, 199.º.

Por fim, quanto aos factos não provados nas alíneas h) e i), relativos às multas que o dono da obra lhe aplicou por atrasos na execução, no valor de € 38.500,00, devem ser dados como provados, atentos o relatado em inúmeros e-mails trocados entre as partes, o exarado no documento n.º 47 junto na contestação e o depoimento gravado do Eng. AA – artigo 209.º das alegações.

Nos mencionados artigos das alegações, a recorrente enuncia, de forma clara e inequívoca, em termos de se mostrar percetível pelo tribunal a quo, qual a solução a dar aos factos impugnados, ou seja, identifica a factualidade que deveria integrar a resposta do tribunal a cada um desses factos provados e não provados, extraindo essa solução dos meios de prova que menciona.

Não obstante isto, no termo das alegações e das conclusões, autonomiza uma parte – parte IV –, intitulada “Da decisão do Tribunal a quo”, onde especifica a decisão de facto que, no seu entender, o tribunal deverá proferir: «quanto à obra da Rua Cecílio de Sousa, considerar a quantia de €8.702,96, referente à fatura n.º ...63, subtraindo € 5.766,00 referente aos custos decorrentes dos trabalhos defeituosamente executados pela Recorrida, € 2.435,51 por força dos atrasos da responsabilidade da Recorrida, aplicando-se as multas previstas no contrato, € 11.347,49 a titulo de sobrecustos de estaleiro e ainda € 38.500,00 por força das contingências com o Dono de Obra, o que resulta num valor a favor da Recorrente, operada a compensação, de €49.346,04, sendo credora da Recorrida neste montante (artigo 212.º das alegações e conclusão n.º wwwwwww); e «no que concerne à obra da Rua Áurea, efetuada a compensação, e tal como alegado pela Recorrente, deve a Recorrida à Recorrente, o valor de €2.491,57, resultante do somatório dos trabalhos contratuais efetivamente executados pela Recorrida, no valor de €10.824,03, acrescidos dos trabalhos extracontratuais no valor de €3.500,00, e subtraídos os valores devidos à Recorrente, pelas penalizações aplicadas com o atraso dos trabalhos, contratação de entidades para executar trabalhos não executados pela Recorrida e defeituosamente executados, e ainda custos de estaleiro, tudo melhor descrito atrás e que totalizam €16.815,60 (artigo 213.º das alegações e conclusão n.º xxxxxxx).

É caso para perguntar o que é que o tribunal a quo mais necessitava para reapreciar e reavaliar os motivos probatórios que permitiriam a decisão de facto recorrida?

Conclui-se, assim, que o acórdão recorrido enferma de erro na interpretação e aplicação da norma processual alojada na alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC

IV. Decisão

Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente a revista, e em consequência, anular o acórdão recorrido, que deverá ser substituído por outro que reaprecie a decisão de facto impugnada nos termos delineados.

Custas pela recorrida.


Lisboa, 16 de novembro de 2023


Relator: Lino Rodrigues Ribeiro

Nuno Ataíde das Neves

Manuel Capelo