PRESTAÇÃO DE CONTAS
OBRIGAÇÃO
LEI APLICÁVEL
DIREITO À INFORMAÇÃO
ADMINISTRAÇÃO
PATRIMÓNIO
Sumário


I - Embora o dever de prestar contas seja uma manifestação do mais amplo dever de informar, previsto no art. 573.º do CC, não se confunde com ele, pois não dispensa a existência de uma norma de direito substantivo (regra ou princípio) ou um negócio jurídico de que resulte uma posição subjetiva de conteúdo pretensivo, em termos de legitimar aquele que se afirma titular a pedir judicialmente a prestação de contas.
II - A pluralidade de normas dispersas pela lei civil (e também pela lei comercial) a impor a obrigação de prestar contas a quem gere património alheio, permite induzir um princípio geral: quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses.
III - De modo que, a obrigação de prestar contas tem lugar todas as vezes que alguém trata da gestão de património alheio ou simultaneamente alheio e próprio, incluindo neste caso o herdeiro que, embora não sendo cabeça-de-casal, se encontra na administração dos bens da herança.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I – Relatório


1 - AA, identificada nos autos, intentou ação especial de prestação de contas contra BB, pedindo a citação deste para prestar contas da administração que fez do património dos seus pais desde 1 de janeiro de 2008 até à entrada em juízo da ação, alegando que são irmãos e que o réu se ocupou da administração do património dos pais, sem lhe prestar quaisquer esclarecimentos.


O réu contestou, defendendo-se por exceção de incompetência territorial e por impugnação, alegando que a autora nunca solicitou informações sobre os pais, tendo sido o pai de ambos quem geriu a vida do casal enquanto foi vivo, tendo falecido na posse das suas faculdades cognitivas; relativamente à mãe, foi o pai quem lhe deixou indicações para o pagamento do Lar da sua esposa; concluiu pedindo a condenação da autora como litigante de má-fé.


A autora respondeu pugnando pela improcedência da exceção de incompetência territorial e da sua condenação como litigante de má-fé, pedindo também a condenação do réu como litigante de má-fé.


Decidida a questão da competência do tribunal e realizada audiência prévia, com identificação do objeto do litígio e temas da prova, procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, tendo sido prolatada sentença, em 28 de outubro de 2022, que julgou a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolveu o réu do pedido deduzido pela Autora, absolvendo também ambas as partes como litigantes de má-fé.


A autora interpôs recurso de apelação da sentença, impugnando a decisão sobre a matéria de facto, tendo por objeto a reapreciação da prova gravada, por entender que existe prova de que o réu administrou o património dos seus pais desde que foram internados no Lar, em particular desde 1 de janeiro de 2008, facto essencial que o Tribunal a quo deveria ter dado como provado.


Através do acórdão da Relação, de 1 de abril de 2023, foi alterada a matéria de facto, com adição aos factos provados dos pontos números 11 e 11-A, e concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão impugnada, a fim de que o réu preste contas à autora.


2 – Desse acórdão, o réu interpõe recurso de revista, apresentando alegações, onde conclui o seguinte:


I. O tribunal a quo interpretou mal o que a Autora lhe trouxe alegando serem provas da administração do Recorrente, pois conforme se demonstra e a jurisprudência entende, trata-se de atos de mera gestão sem qualquer intervenção administradora, conforme concluiu o tribunal de primeira instância.


II. A subsunção à norma processual que é o art.º 941.º do CPC feita pelo tribunal a quo carece de norma substantiva que a sustente já que o dever de informar onde o tribunal a quo se estriba foi esgotado em processo anterior.


III. Por seu turno, o dever de informar previsto no art.º 573.º do Cód. Civil não é suficiente para desencadear ação de prestação de contas pois esta pressupõe a existência do dever de prestar contas fundado em contrato ou em norma jurídica adequada a criar esse dever/direito. Porque prestar contas é muito mais do que informar e a norma que permite o menos, não admite o mais.


IV. Os argumentos usados para alterar a sentença, pelo tribunal a quo não têm sustentação de facto, pois não pode o tribunal alterar a prova produzida para nela caberem atos inexistente, como é o caso da alegada e não existente administração de património por parte do Requerente.


V. Também não tem sustentação de direito a decisão do tribunal a quo de que o Recorrente deve prestar contas pois não há norma substantiva que defenda o dever/direito à prestação de contas no caso em que não existe contrato entre as partes, nem lei da qual derive tal obrigação.


Houve contra-alegações


Cumpre decidir.


II – Fundamentação


3 - Em ambas a instância foi julgada provada a seguinte matéria de facto:


1. A Autora e o Réu são irmãos, ambos filhos de CC e de DD.


2. Durante vários anos, os pais da Autora e do Réu estiveram emigrados na Suíça acompanhados pelos seus dois filhos.


3. Após vários anos a trabalhar no estrangeiro, os pais da Autora e do Réu regressaram a Portugal.


4. E vieram residir para a quinta de que eram proprietários sita na localidade de ..., concelho de ..., freguesia de ..., correspondente ao prédio misto, denominado "Quinta ...", descrito na Conservatória do Registo Predial do concelho de ... sob o número setenta mil oitocentos e noventa e seis, e inscrito na respetiva matriz sob os artigos, urbano 4482 e rústico 112 da secção D.


5. A Autora e o Réu permaneceram emigrados na Suíça, com a família que, entretanto, cada um deles constituiu.


6. O pai da Autora e do Réu, CC, faleceu no dia ... de janeiro de 2009, no estado de casado com a mãe da Autora e do Réu, DD.


7. A data da morte do seu pai, este e a sua mãe encontravam-se a residir no Lar do Centro Social Paroquial ..., em ..., desde 2007.


8. Por sentença proferida no processo n.º 2041/14.I... que correu os seus termos no Tribunal da Comarca de Lisboa Norte - ... - Instância Local - Secção Cível-J1 em 15.06.2016, confirmada por acórdão de 24.11.2016, DD foi declarada interdita, por anomalia psíquica, fixando-se a data do início da sua incapacidade em 01 de janeiro de 2008, tendo a Autora sido designada tutora e o Réu protutor.


9. A mãe da Autora e do Réu, DD, faleceu no dia ... de abril de 2017.


10. Os pais da Autora e Réu venderam o prédio misto denominado "Quinta ..." por escritura pública lavrada no Primeiro Cartório Notarial de ... no dia 07 de novembro de 1997 pelo preço de doze milhões de escudos.


11. O R recebia a pensão da mãe no montante de FR 1.1145,00 numa conta bancária de que era titular.


11-A. Pelo menos desde o óbito do pai, ocorrido a ... de janeiro de 2009, foi o R quem recebeu aquela pensão da mãe, administrou o seu património e efetuou os pagamentos ao lar onde esta se encontrava internada.


4 – A sentença julgou improcedente a ação, porque «não ficou demonstrado que o Réu tivesse passado a administrar o património dos seus pais, mormente o dinheiro existente nas suas contas bancárias, já que não foi alegada a existência de outro património, como se alcança da resposta negativa dada em A e B dos factos não provados»; o acórdão recorrido, depois de alterar a decisão de facto recorrida, concluiu que «inexistem dúvidas que existe um património de que só o R tinha acesso, designadamente, as pensões recebidas a que acrescem as despesas com o lar e tudo o mais necessário. Termos em que a A. provou a relação jurídica da qual emerge o dever do réu prestar contas, ou seja, é preciso que seja dada a informação desejada».


O objeto material da revista, tal como delimitado nas conclusões, consiste na ilegalidade da decisão judicial recorrida por (i) não haver qualquer património, mas apenas a pensão de reforma da mãe do réu, que era depositada na sua conta bancária tendo em vista o pagamento do Lar onde se encontrava internada e essa intermediação não consubstancia administração de património (conclusões n.ºs 1 e 4); (ii) o dever de informação já ter sido cumprido no processo de interdição (conclusão n.º 2); (iii) e não haver norma substantiva que conceda o direito e imponha a correspondente obrigação de prestar contas (conclusões n.ºs 3 e 5).


Confrontando o objeto impugnatório como o objeto da decisão recorrida – inexistência da obrigação de prestar contas –, pode, desde logo, suscitar-se a questão da admissibilidade do recurso, quer porque a alegação de que não existe o dever de prestar contas assume o caracter de «questão prévia ou prejudicial» que não põe termo ao processo, quer porque o n.º 4 do artigo 942.º do CPC apenas prevê o recurso de apelação.


Porém, a dúvida não tem razão de ser, porque a decisão recorrida, além de ser uma decisão de mérito, admite recurso nos termos gerais, por aplicação do n.º 1 do artigo 671.º ex vi n.º 1 do artigo 549.º do CPC.


Com efeito, do ponto de vista estrutural, o processo especial de prestação de contas regulado nos artigos 941.º e ss. do CPC, comporta duas fases distintas: uma inicial, de natureza declarativa, e outra subsequente, de natureza executiva. Se o réu, em vez de apresentar as contas, alegar que não tem obrigação de as prestar, enquanto não for decidida essa questão o processo não pode avançar; mas se for decidido que as contas não são exigíveis, o processo finda aí, porque a ação deixa de ter objeto. Significa isto que a apresentação, discussão e aprovação das contas está dependente de prévia decisão judicial que imponha ao demandado a obrigação de as prestar.


Ora, a resolução desta questão prévia consubstancia decisão de mérito, porque se pronuncia sobre a relação jurídica substancial de que deriva a prestação de contas. Refere Alberto Reis, «se o réu está ou não obrigado a prestar contas, é questão de direito substancial e, portanto, de mérito da causa: é questão a decidir segundo as disposições de direito civil ou da lei comercial que for aplicável, ou mesmo de lei processual funcionado como lei substantiva» (Processos Especiais, Vol. I, pág. 305, Coimbra Editora, 1982). Portanto, ainda que a decisão não ponha termo ao processo, a revista é admissível nos termos do n.º 1 do artigo 671.º do CPC.


A isso não se opõe o sentido a dar à norma do n.º 4 do artigo 942.º do CPC, segundo a qual, «da decisão proferida sobre a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas cabe apelação, que sobre imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo». É que, após alguma controvérsia jurisprudencial sobre o sentido e alcance da norma desse preceito, o Acórdão do STJ n.º 5/202 (DR n.º 229/2021, Série I de 25 de novembro de 2021) proferido em 12 de outubro de 2021 num Recurso Extraordinário para Uniformização de Jurisprudência (proc. n.º 1132/18.4T8LRA-C1.S1-A), decidiu que «O acórdão da Relação que, incidindo sobre a decisão de 1.ª instância proferida ao abrigo do n.º 3 do artigo 942.º do CPC, aprecia a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas, admite recurso de revista, nos termos gerais».


5 – O recorrente começa por discutir a decisão sobre a matéria de facto que foi modificada pelo acórdão recorrido, dizendo que não há «documento ou testemunho ou prova onde, de algum modo, resulte provado a existência de qualquer património» sobre o qual tivesse administração; e que não se pode chamar administração de património ao «facto de aceitar que na conta bancária que o seu pai também pôs em seu nome» o depósito da pensão da mãe para pagamento do Lar. O recorrente não contesta que desde o óbito do pai em ... de janeiro de 2009 recebia a pensão da mãe, no montante de FR 1.1145,00, numa conta bancária de que era titular e que efetuou pagamentos ao lar onde ela se encontrava internada (pontos n.ºs 11 e 11-A dos factos provados). Apenas considera que essa conduta de «intermediário» (de «caixa bancário», como diz), não pode ser qualificada como «administração de património».


O acórdão recorrido deu como demonstrado que o réu administrou património alheio com a seguinte fundamentação: «Todas as testemunhas ouvidas foram unânimes em afirmar que, após a morte do pai das partes, era o R quem tratava dos pagamentos ao lar onde a mãe esteve internada. Aliás, é o próprio gestor do lar, EE, que assim o refere. O mesmo afirmou a A nas suas declarações de parte. O que concluir? Inexistem dúvidas que o R fazia os pagamentos ao lar e, naturalmente, que se a sua mãe tinha uma pensão, seria desta que se retirariam as demais despesas, tanto mais que desde o ano de 2008 aquela tinha sido considerada incapaz. Por outro lado, atento o teor dos documentos de fls. 101 e 101-v, constatamos que após o falecimento do pai da A (.../1/2009) existe uma informação bancária endereçada ao R de que a pensão da mãe iria ser paga numa conta deste (Banco ... Genebra). Pensão esta no montante de FR 1145,00».


Ora, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 674.º, n.º 4, 682.º, n.ºs 2 e 3 e 662.º, n.º 4, do CPC, não pode ser objeto de recurso de revista a alteração da decisão adotada pelas instâncias quanto à matéria de facto, ainda que exista erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força de determinado meio de prova, quando o STJ entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou, finalmente, quando considere que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito.


Portanto, o eventual erro na apreciação das provas – depoimentos e documento – e na subsunção dos factos nelas representados a um juízo de veracidade, que se reconduz a final a um erro no uso do princípio da livre apreciação das provas (n.º 5 do artigo 607.º do CPC), não é questão de direito sujeita a revista. Assim, a afirmação de que o recorrente administrou o património da mãe, uma afirmação de facto que foi confirmada através da prova instrumental de que o recorrente recebia a pensão da mãe numa conta bancária de que era titular e de que efetuou os pagamentos ao lar onde ela se encontrava internada, é uma decisão de facto que, em princípio, não sustenta o recurso para o STJ. Os termos «administrou» e «património» são nesta sede tomados no sentido corrente e comum que lhe é atribuído e apreensível pela generalidade das pessoas: organizar, gerir e controlar os bens de valor económico de que uma dada pessoa é titular.


A modificação da sentença quanto a este facto – dando como assente o que se havia julgado não provado – não ofendeu as normas processuais sobre o ónus de impugnação da matéria de facto previstas no artigo 640.º, nem as regras sobre a apreciação dos meios de prova previstas no artigo 662.º do CPC. Não se vê, nem o recorrente invocou, qualquer erro de direito na determinação e aplicação de normas legais que exijam certa espécie de prova ou que fixem a respetiva força probatória para demonstrar que o recorrente administrou os bens da sua mãe. Não há dúvida que, ao abrigo do artigo 662.º do CPC, a Relação pode censurar o tribunal a quo em duplo grau de jurisdição em decisão sobre a matéria de facto, mesmo quanto aos juízos de livre apreciação produzidos pelas instâncias.


Só que, através da interposição do recurso, o recorrente repõe em dúvida a afirmação de que administrou o património da sua mãe, mas agora no plano da qualificação dos factos instrumentais provados: apenas se pode deduzir que foi mero «intermediário» no pagamento das despesas de internamento da mãe no Lar. Ou seja, tais factos não descrevem a factualidade juridicamente relevante para se entender que sobre ele impende a obrigação de prestar contas. Neste plano, que já não envolve um juízo sobre a idoneidade da prova produzida para se demonstrar que o recorrente administrou o património da mãe, constitui questão de direito ajuizar se de tais factos é possível extrair a conclusão de que é efetivamente existiu gestão patrimonial de bens e interesses alheios.


Todavia, nenhum reparo se faz ao acórdão recorrido quanto à afirmação de que o recorrente administrou os bens da mãe desde a morte do pai em ... de janeiro de 2009. A pensão da mãe, no montante de FR 1.145,00, era depositada na conta bancária de que o recorrente era titular – ele chega a dizer que era uma conta titulada com o seu pai –; e efetuava pagamentos ao lar onde se encontrava internada a mãe. O acórdão presume, embora o recorrente também admita, que esses pagamentos eram feitos com o dinheiro depositadas nessa conta bancária. Não obstante o recorrente ser o titular da conta bancária, o direito de propriedade das quantias depositadas a título de pensão da mãe a ela pertencia. Tendo em conta a situação precária de saúde da mãe – que foi declarada interdita, por anomalia psíquica, com início em ... de janeiro de 2008 –, é notório que quem geria e movimentava o dinheiro da interditada era o recorrente, mesmo que fosse unicamente para pagamento das despesas com o internamento no lar. Ora, os simples atos de administração (movimentação dos depósitos) e de disposição (pagamentos ao lar) configuram factualmente gestão dum património alheio, uma vez que, na qualidade de titular da conta bancária, realizou movimentos bancários relativos a saldos que não lhe pertenciam.


Ao qualificar a sua atuação como intermediário («caixa bancário»), o recorrente parece pretender dizer que era a mãe quem, por seu intermédio, movimentava (geria) os montantes da pensão depositados na sua conta. Mas é um equívoco: para além de não estar demonstrado que a mãe fosse cotitular da conta, é certo que estava limitada por incapacidade nos seus poderes de administração. Daí que, mesmo que a pensão (de reforma ou de incapacidade) constituísse o único património da interdita, o recorrente exerceu poderes de gestão (ou de administração em sentido lato) desse património e dos correspondentes interesses do respetivo proprietário.


6. Outro argumento do recorrente é o de que está desonerado de prestar as contas porque já as prestou no processo de interdição da mãe: no âmbito desse processo, a recorrida, sua irmã, teve conhecimento de todos os extratos bancários onde foi depositada a pensão.


É verdade que, durante a incapacidade ou após o falecimento do incapaz, o administrador dos bens do incapaz pode, espontaneamente ou de modo forçado, prestar as contas dessa gestão, através do processo especialíssimo previsto nos artigos 948.º e ss. do CPC. Essa obrigação existe porque, no suprimento da incapacidade dos interditos, a administração dos bens pode coexistir com a tutela, competindo-lhe os direitos e deveres referidos no artigo 1971.º do Código Civil (ex vi, artigo 139.º então vigente).


Não está, porém, demonstrado que, por apenso ao processo de interdição, tenha decorrido qualquer processo destinado a exigir e a prestar as contas da gestão do património da interditada. E não representa prestação de contas a informação – facto que não consta da matéria de facto provada – dos depósitos bancários relativos ao montante da pensão recebida pela interditada. Como resulta do n.º 1 do artigo 944.º, as contas são apresentadas sobre a forma de conta-corrente, especificado a proveniência das receitas e a aplicação das despesas e indicando o saldo. Ainda que se admitisse a existência daquela informação e se considerasse satisfeita essa forma de apresentar as receitas, sempre faltaria a especificação das despesas. Portanto, não é verdade que as contas já se encontrem prestadas.


7. A questão fulcral da revista consiste em conhecer se existe relação jurídica que justifique o pedido de prestação de contas. O recorrente diz que não existiu nem existe qualquer norma substantiva por virtude da qual está obrigado a prestar contas à recorrida.


O artigo 941.º do CPC – que regula esta matéria – preceitua que «A ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se».


Daqui resulta que entre autor e réu tem que existir uma relação jurídica, mediante a atribuição àquele do direito de exigir a prestação de contas e a imposição a este da obrigação de as prestar.


Vem sendo acentuado pela jurisprudência e pela doutrina que a ação especial de prestação de contas constitui uma das formas de exercício do direito à informação genericamente consagrado no artigo 573.º do Código Civil, tendo por objetivo apurar o saldo correspondente ao diferencial entre as receitas obtidas e as despesas efetuadas. Embora o dever de prestar contas seja uma manifestação do mais amplo dever de informar, não se confunde com ele, pois não dispensa a existência de uma norma de direito substantivo (regra ou princípio) ou um negócio jurídico de que resulte uma posição subjetiva de conteúdo pretensivo, em termos de legitimar aquele que se afirma titular a pedir judicialmente a prestação de contas.


Não existindo qualquer negócio jurídico estabelecido entre autora e réu que obrigue este a prestar contas àquela, é na lei que se tem que encontrar o reconhecimento do seu direito e a fonte da obrigação de prestação de contas. Em variadas situações, a lei civil estabelece em preceitos especiais tal obrigação (v.g. gestão de negócios, mandato, cabeça-de-casal, curador provisório, testamenteiro, tutor, adoção, consignação de rendimentos, fiscalização dos sócios, etc. – artigos 465.º 1161.º, 2093.º 95.º, 2332.º, 1944.º a 1947.º, 2002.º-A, 662.º e 988.º). No vasto elenco de casos, a prestação de contas surge quase sempre pelo facto de serem conferidos a um indivíduo poderes de gestão sobre património alheio no seu conjunto ou sobre determinados elementos dele. Para além de se limitar os poderes de gestão patrimonial – por regra, a atos de mera administração –, exige-se que o gestor preste contas dos seus atos. Ora, a pluralidade de normas dispersas pela lei civil (e também pela lei comercial) a impor a obrigação de prestar contas a quem gere património alheio, permite induzir, como refere Alberto Reis, um princípio geral: «quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses».


No caso dos autos, é necessário distinguir dois períodos: (i) desde o falecimento do pai de ambas as partes, em ... de janeiro de 2009, até ao falecimento da mãe de ambos, em ... de abril de 2017; (ii) desde essa data até à propositura da ação. O primeiro período corresponde a um tempo em que a mãe estava incapacitada por interdição, em que releva sobretudo a relação familiar, já que se desconhece se houve ou não partilhas por morte do pai; o segundo período, corresponde a um tempo de abertura da sucessão, vocação e aquisição sucessória, por morte da interditada, em que releva a relação sucessória.


Em qualquer destes momentos, a autora, como descendente dos titulares dos bens geridos pelo réu e tutora da sua mãe, encontra-se numa posição jurídica subjetiva individual que legitima a exigência de prestação de contas a quem administra os bens dos seus pais.


Com efeito, durante o período de interdição, a autora detinha a qualidade de herdeira por morte do pai e curadora da mãe, nomeada em ... de novembro de 2016, com efeitos retractivos a ... de janeiro de 2008 (ponto n.º 8 dos factos provados). Independentemente de saber se havia património a partilhar por morte do pai – ficou provado que poucos anos antes havia vendido um imóvel por doze milhões de escudos –, ou se houve partilhas, a posição de curadora legitima a exigência de contas do protutor com funções de administração. O estatuto do interdito era equipado ao de menor, aplicando-se, com as necessárias adaptações, as disposições que regulam a incapacidade por menoridade e fixam os meios de suprir o poder paternal (artigo 139.º do Código Civil, vigente naquele período); e o administrador dos bens – o protutor podia ter essa função (alínea a) do artigo 1956.º do Código Civil) – tem os direitos e deveres do tutor, entre eles o de prestar contas, naturalmente a quem, a através da tutela, representa o titular dos bens (artigos 1971. º e 1944.º do Código Civil).


De igual modo, no período que se sucedeu à morte da mãe, na qualidade de co-herdeira e diretamente interessada na partilha, tem direito a que o administrador de facto dos bens da herança lhe dê a conhecer quais os bens suscetíveis de inventariação. Independentemente de quem seja o cabeça-de-casal de facto – aquele que resulta da lei antes de investido (artigo 280.º do Código Civil) – o co-herdeiro detentor dos bens também é obrigado a prestar contas da administração de tais bens, nos termos do artigo 941.º do CPC, sem dependência de processo de inventário. O facto de estar a administrar os bens da herança, não lhe confere por si só a posição de cabeça-de-casal, com a inerente obrigação de prestar contas (n.º 1 do artigo 2093.º do Código Civil); mas essa obrigação subsiste por resultar diretamente da administração exercida em património que também pertence a outrem.


Em aplicação do princípio de direito acima referido, a obrigação de prestar contas tem lugar todas as vezes que alguém trata da gestão de património alheio ou simultaneamente alheio e próprio, incluindo neste caso o herdeiro que, embora não sendo cabeça-de-casal, se encontra na administração dos bens da herança. Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de junho de 2011 (proc. n.º 3717/05.0TVLSB.L1, citando Vaz Serra (Scientia Iuridica, Vol. XVIII, 115), a obrigação de prestar contas «tem lugar todas as vezes que alguém trate de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios. Umas vezes, é a própria lei que impõe expressamente tal obrigação; noutras, o dever de apresentar contas resulta de negócio jurídico ou de princípio geral da boa fé. Por consequência, a fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas não releva; o que importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte».


Conclui-se, assim, que o recorrente tem a obrigação de prestar contas à recorrida pelo período em que geriu o património dos pais.


III - Decisão


Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmado o acórdão recorrido.


Custas pelo recorrente


Lisboa, 16 de novembro de 2023


Relator: Lino Rodrigues Ribeiro


Nuno Pinto Oliveira


Sousa Lameira