ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
OFENSA DE CASO JULGADO
CASO JULGADO PARCIAL
ÂMBITO DO RECURSO
SEGMENTO DECISÓRIO
Sumário


I. Nos casos em que o recurso apenas é admissível por se fundar em violação de caso julgado, é jurisprudência assente a restrição da intervenção do Supremo Tribunal de Justiça à verificação desse fundamento.
II. O caso jugado parcial que se pode formar, nos termos e para os efeitos dos n.ºs 2 e 4 daquele artigo 635.º, existe quando a sentença ou acórdão que se pretende impugnar parcialmente em recurso em recurso, na sua parte dispositiva, contém decisões distintas

Texto Integral


Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Agro-Varelas & Silva S. A. G. Lda, instaurou uma acção de preferência contra AA e mulher, BB, CC, DD e EE, pedindo a sua condenação “a reconhecer que a autora tem o direito de preferência na compra do prédio rústico alienado” descrito no artigo 3.º da petição inicial “e, por essa via, ser-lhe reconhecido o direito de haver para si tal prédio pelo preço de 2 500,00€, ou outro que vier a ser fixado pelo Tribunal, passando a autora a assumir a posição dos réus compradores (…), condenando-se os réus compradores a entregar à autora o prédio (…) livre da ónus ou encargos(…)”. Pediu ainda que fosse declarada nula a aquisição por usucapião “do quinhão que o réu CC detinha no prédio” e que se considerasse “válida a aquisição desse mesmo quinhão por meio de compra e venda”.

Em breve síntese, baseiam o alegado direito de preferência no disposto no n.º 1 do artigo 1380.º do Código Civil (direito de preferência dos proprietários de terrenos confinantes de área inferior à unidade de cultura) e na falta de comunicação oportuna do projecto de venda do prédio alienado, na simulação da “aquisição/alienação por meio de usucapião do quinhão que o réu CC detinha no dito prédio (que titularam por meio (…) [de] escritura de justificação) – para encobrirem o verdadeiro negócio – a aquisição/alienação desse quinhão por meio de compra e venda (…)”.

AA e mulher, BB, e CC contestaram, por excepção e por impugnação, invocando, por entre o mais, a caducidade do direito de preferência e o abuso de direito por parte da autora. Em reconvenção, para o caso de procedência da acção, AA e mulher, BB, pediram a condenação da autora no pagamento de € 6 405,00 (dos quais € 5 000,00 € correspondem ao preço real da venda do prédio e o restante a despesas).

A autora respondeu à reconvenção; e prontificou-se a pagar o preço de € 5 000,00, se vier a demonstrar-se que foi esse “o preço da aquisição da totalidade do prédio”.

Veio posteriormente a juntar resposta escrita às excepções.

No despacho saneador, foi fixado à causa o valor de € 8 905,00.

Pela sentença de fls. 80, a acção foi julgada improcedente; o conhecimento do pedido reconvencional considerou-se, assim, prejudicado.

O tribunal considerou:

– não estar extinto por caducidade o direito invocado pela autora: “é verdade que se apurou que a autora sabe desde 2017 que o réu AA tomou posse do prédio nele praticando todos os actos apurados e que o preço da aquisição teria sido de 5 000,00€. Contudo, este conhecimento não derivou da comunicação legalmente exigida pois essa não foi efectuada.” Ao que acresce que só com a transmissão legal da propriedade (que só ocorreu em 13 e 26 de março de 2020) poderia a autora propor a acção – logo, “por força da suspensão dos prazos até 03.06.2020 ao abrigo da Lei 1-A/2020 de 19 de Março (…), improcede a excepção de caducidade (…)”;

– que o n.º 1 o artigo 1380.º do Código Civil “pressupõe que ambos os terrenos tenham áreas inferiores às respectivas unidades de cultura”; mas que, “com a entrada em vigor do art.º 18.º, n.º 1 do DL n.º 384/88, de 25 de Outubro entretanto revogado pela Lei n.º 111/2015 de 27 de Agosto) deixou de se exigir que a área do prédio confinante beneficiário da preferência tenha uma área inferior à unidade de cultura, exigindo-se apenas que um dos terrenos confinantes tenha área superior à unidade de cultura”;

– que, quer o prédio da autora, quer o “prédio objecto da preferência,” têm “área inferior à unidade de cultura”;

– ter a autora actuado “em abuso de direito quanto [ao] exercício do direito de preferência” e em violação das exigências da boa fé;

“mesmo que assim se não entendesse”, que “o direito de preferência do réu AA como comproprietário (…) deveria prevalecer sobre o da autora”;

– que os réus cumpriram “com o ónus da prova que sobre si impendia, tendo logrado demonstrar os factos que sustentavam o direito de propriedade invocado na escritura” de justificação notarial “impugnada” pela autora. Disse-se na sentença: “No que respeita à justificação da aquisição originária da ½ do prédio que pertencia ao Ré CC, é verdade que se apurou que o réu AA ao contrário do afirmado naquele documento só pratica actos de posse desde 2017. Mas apuramos que CC os pratica há mais de 30 anos, o que ninguém coloca em causa, pelo que ainda que ainda que assim não se entendesse sempre seria então adequado aplicar à situação a acessão da posse a que alude o art.º 1256.º do CC, sendo que, para esta aplicação, não se exige que a posse seja transmitida, necessária e inelutavelmente, através de um negócio jurídico formalmente válido. Assim, somando a posse do Réu AA à dos seus antepossuidores encontrar-se completado o prazo de usucapião, tendo, deste modo, o réu adquirido a propriedade de 1/2 prédio a 13.03.2020, o que determinaria a existência de um facto impeditivo do direito de preferência da autora, já que o direito de preferência do Réu AA como comproprietário (só depois celebra a compra e venda da ½ pertencente a DD e EE) deveria prevalecer sobre o da autora.”

Após ter notificado as partes para se pronunciarem, querendo, sobre a “questão de saber se os negócios que motivaram a acção de preferência conferem à autora o exercício do direito de preferência previsto no n.º 1 do artigo 1380.º do Código Civil”, já que, “segundo uma interpretação do n.º 1 do artigo 1380.º do Código Civil, afirmada em várias decisões judiciais e também na doutrina (…), o direito de preferência aí previsto não tem lugar em caso de alienação de parte alíquota de determinado prédio rústico” – só a autora se pronunciou –, o Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de fls. 121, negou provimento ao recurso interposto pela autora, “embora por razões diferentes da decisão recorrida”.

A Relação entendeu, no que agora releva;

– declarar “sem efeito o que se escreveu na sentença sobre o direito de preferência do réu AA e sobre a prevalência de tal direito sobre o da autora”, pois conheceu de uma questão não suscitada, incorrendo a sentença em nulidade por excesso de pronúncia;

– que esta nulidade não implicava alterar a decisão de improcedência da acção, “visto que a razão decisiva desta decisão foi o exercício abusivo do direito de preferência”;

– que a autora não reunia “as condições para invocar em seu benefício o direito de preferência prevista no n.º 1 do artigo 1380.º do Código Civil”, porque a venda do prédio a que este preceito se refere “é a venda da totalidade do prédio e não a alienação de parte alíquota de determinado prédio rústico”, o que implicava ficar prejudicada a apreciação do exercício abusivo do direito de preferência.

Interessa recordar que a Relação observou que a interpretação que defende para este n.º 1 do artigo 1380.º do Código Civil «há-de ser temperada com a hipótese de fraude à lei. Como advertem Pires de Lima e Antunes Varela (…), “… pode acontecer que os interessados (alienante e adquirente) actuem com escopo fraudatório, substituindo a venda global e unitária do imóvel pela venda escalonada de partes alíquotas, a fim de precludirem o exercício da prelação”. “Quando tal aconteça” – prosseguem os citados autores –, “o direito de preferência, uma vez consumada a alienação de todo o prédio, terá fundamento e justificação, pois em caso algum deve admitir-se que os particulares defraudem impunemente os preceitos imperativos”. Sucede que à autora, ora recorrente, nem aproveita o n.º 1 do artigo 1380.º do Código Civil interpretado com o sentido e o alcance expostos acima, nem a situação fraudatória acima exposta. Vejamos. O acto e o negócio jurídico que motivaram a acção de preferência foram os seguintes: A escritura de justificação da aquisição, por usucapião, de metade do prédio por parte do réu AA e mulher, outorgada em 13-06-2020, que a autora, ora recorrente, acusou de ser simulada e de esconder, na realidade, a venda de metade indivisa do prédio ao réu AA e mulher por parte do réu CC; a venda, em 26 de Março de 2020, da outra metade indivisa desse prédio ao réu AA, por parte das rés DD e EE. A tese de que a escritura de justificação foi simulada e de que, na realidade, o que aconteceu foi a venda de metade indivisa do prédio ao réu AA e mulher por parte do réu CC não tem apoio nos factos provados nem na lei».

O prédio encontrava-se em situação de compropriedade, no caso dos autos e cada comproprietário apenas podia dispor da sua quota: “A venda das quotas não visa, pois, substituir a venda global e unitária do prédio, condição essencial para se afirmar o intuito fraudatório daquela venda”. Estando um prédio em compropriedade, diz ainda a Relação, “quando se consumar a venda da totalidade das quotas não nascerá, nesse momento, a favor do proprietário de terrenos confinantes o direito de preferência na venda deles”.

2. Agro-Varelas & Silva S. A. G. Lda., recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, pretendendo a revogação do acórdão recorrido e a procedência da acção:

Nas alegações que apresentou, formulou as conclusões seguintes:

“1.º. Está implícito na douta sentença da 1.ª instância, de forma inequívoca, o reconhecimento de que a autora estava em condições de beneficiar do direito de preferência.

2.ª. Tal questão não foi posta em causa por qualquer das partes, pelo que aquela sentença transitou em julgado quanto a essa questão.

3ª Assim sendo, estava vedado ao Tribunal da Relação pronunciar-se, de forma oposta, sobre tal questão, com o que, salvo melhor opinião, violou o disposto nos arts. 619º,1 e 608º, 2, al. d) (última parte) do CPC, o que torna o douto acórdão nulo nos termos do disposto no art. 615º, 1, al. d) (última parte).

4ª O Tribunal da Relação não se pronunciou sobre a questão essencial que lhe foi submetida, ou seja, determinar se a autora agiu ou não com abuso no exercício do seu direito de preferência, com o que, salvo melhor opinião, violou o disposto no art. 608º, 2 (1ª parte), do CPC, o que torna o douto acórdão igualmente nulo nos termos do disposto no art. 615º, 1, al. d) do CPC.

5ª O douto acórdão do Tribunal da Relação ao pronunciar-se sobre a questão da venda de parte alíquota do prédio como forma de afastar o direito de preferência da autora – que não foi alegada pelas partes nos articulados da acção, não foi discutida em sede de julgamento na 1º instância, não foi apreciada pela sentença recorrida, nem foi invocada pelas partes em sede de recurso – salvo melhor opinião , violou o disposto no art. 608º, 2, (última parte) do CPC, o que determina a nulidade do douto acórdão, nos termos do disposto no art.615º, 1, al. d) (última parte) do CPC.”

AA e outros contra-alegaram, sustentando a inadmissibilidade do recurso, por o valor da causa ser inferior à alçada da Relação.

Pelo acórdão de fls. 163, a Relação de Coimbra julgou não verificadas as nulidades arguidas pela recorrente.

O recurso foi admitido por se fundar em violação de caso julgado (despacho de fls. 159).

3. O presente recurso é admissível, não obstante o valor da causa não ser superior à alçada da Relação, por ter com fundamento a alegação de violação de caso julgado – n.ºs 1 e 2, a) do artigo 629.º do Código de Processo Civil.

Assim, não se notifica a autora para se pronunciar sobre a inadmissibilidade do recurso interposto por ser manifestamente inútil tal notificação (cfr. n.º 2 do artigo 655.º e artigo 130.º. ambos do Código de Processo Civil).

Nos casos em que o recurso apenas é admissível por se fundar em violação de caso julgado, com aqui sucede, é jurisprudência assente a restrição da intervenção do Supremo Tribunal de Justiça à verificação desse fundamento (cfr. apenas como exemplo os acórdãos deste Supremo Tribunal de 3 de Fevereiro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 190-A/1999.E1.S19, de 18 de Outubro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 3468/16.0T9CBR.C1.S1) ou de 11 de Maio de 2022, www.dgsi.pt, proc. n.º 60/08.6TBADV-2.E1.S1.

4. Vem provado o seguinte (transcreve-se do acórdão recorrido):

«1. A autora é dona e legítima proprietária do prédio rústico composto de terra de cultura e pastagem com oliveiras, com a área de 0,714000ha, a confrontar, de norte com FF, sul com CC, nascente com GG e poente com caminho, sito no lugar de ..., União das Freguesias ... ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial rústica da referida União de Freguesias sob o art.º 1734, (anteriormente inscrito na matriz da extinta freguesia de ... sob o art.º 760), descrito na CRP de ... sob o nº 1098 da extinta freguesia de ... e ali inscrito em nome da autora mediante a apresentação 12 de 24 de Maio de 2000.

2. Tal prédio foi adquirido pela autora por compra a HH e mulher II no dia 24 de Maio de 2000, portanto, há mais de 20 anos.

3. O 2.º réu, CC, por um lado, e as 3.ª e 4.ª rés, DD e EE, por outro, foram donos e legítimos possuidores, em comum e partes iguais, do prédio rústico composto de terra de cultura, com a área de 1,679800ha, a confrontar, de norte com HH (anterior proprietário do referido prédio da autora), sul com JJ, nascente com KK e poente com caminho, sito no lugar ..., União das Freguesias ... e de ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial rústica da referida União de Freguesias sob o art.º 1735 (anteriormente inscrito na matriz da extinta freguesia de ... sob o art.º 761), descrito na CRP de ... sob o nº- 1021 da extinta freguesia de ....

4. No dia 26 de Março de 2020 o 1.º réu, AA, casado com BB, adquiriu por compra às 3.ª e 4.ª rés, DD e EE, metade indivisa do prédio identificado no antecedente ponto n.º 3.

5. O réu AA, mediante a apresentação 326 de 26 de Março de 2020, inscreveu a seu favor na Conservatória do Registo Predial de ... a aquisição, por compra, do quinhão correspondente a metade indivisa que as ditas rés DD e EE possuíam no identificado prédio.

6. No dia 13 de Março de 2020 o mesmo réu AA e mulher, outorgaram escritura de justificação notarial no Cartório Notarial de ... (a cargo da senhora Notária, Dr.ª LL), onde declararam ter comprado ao réu CC, a outra metade indivisa do mesmo prédio.

7. Não corresponde à verdade a declaração feita nessa escritura pelo réu AA e mulher, na parte em que referem que a compra do quinhão adquirido ao réu CC terá ocorrido no ano de 1995.

8. Não é verdadeira a declaração feita nessa mesma escritura pelos mesmos réus AA e mulher, na parte onde referem que têm possuído e usufruído esse quinhão do dito prédio desde o ano de 1995 na convicção de que lhe pertence e que, desse modo, adquiriram esse quinhão por usucapião, uma vez que era CC que possuía ½ do prédio desde há mais de trinta anos.

9. O prédio da autora identificado no ponto número 1 confronta directamente do seu lado sul com o prédio adquirido pelo réu AA e mulher identificado no ponto n.º 3.

10. Os réus compradores, AA e mulher, à data em que ocorreram aquelas aquisições, não eram proprietários de qualquer prédio que confrontasse com o dito prédio alienado.

11. As rés, DD e filha, EE, há muitos anos que se encontram, “desligadas” da localidade de ..., sem quaisquer contactos com os terrenos que lhe foram deixados por herança.

12. Quem geriu, tratou e administrou as propriedades agrícolas dos antepassados comuns foi o seu primo e aqui réu, CC.

13. O réu CC lavrou e cuidou da propriedade objecto dos autos até meados do ano 2000.

14. A partir de tal data deixou de lavrar, cultivar e cuidar das propriedades.

15. Tendo-se disponibilizado a vendê-las.

16. O réu vendedor, CC, por si e em representação das demais comproprietárias, DD e EE, comunicou à autora, em data não concretamente apurada, mas anterior a 2017, a intenção de vender tal prédio, tendo a autora revelado que não estava interessada na aquisição afirmando “já tenho terras de sobra, não estou interessado em comprar terras”.

17. O legal representante da autora sempre se mostrou desinteressado na compra da propriedade em causa nos autos.

18. Com tal manifestação de vontade, criou a confiança no réu CC de que não lhe interessava adquirir o imóvel.

19. O réu AA, em data não concretamente apurada, em conversa com o réu CC, mostrou-lhe vontade e intenção de lhe comprar a totalidade propriedade em causa nos autos pelo preço de 1000 contos (€ 5 000,00 - cinco mil euros).

20. Tendo-lhe aquele referido que ½ da propriedade era de sua tia e prima, as rés DD e EE.

21. Por volta do ano 2017, o réu CC e as rés DD e filha acordaram a venda da totalidade do referido prédio, nas proporções de ½ cada um.

22. Tendo o acordo de promessa de compra e venda sido formalizado em 10.11. 2017, momento em que foi pago o preço de 5 000,00€.

23. E, desde tal data, o réu AA (e antes de si o réu CC há mais de 30 anos), passou a possuir, lavrar, agricultar e a retirar as normais utilidades da propriedade, o que fez de forma pública, pacífica, reiterada, de boa-fé, à vista de toda a gente, dela retirando as normais utilidades e sem oposição de ninguém (em especial, do legal representante da autora).

24. O preço da compra foi de € 5 000,00 pago através de cheque n.º ........63/ Millennium BCP, em 2017-11-10, aquando da outorga do contrato-promessa de compra e venda.

25. O réu CC efectuou a transferência de € 2500,00 para as restantes rés.

26. O legal representante da autora sabia o preço anunciado da compra e venda da totalidade do prédio e, depois de 2017, quando os 1.ºs réus tomaram posse do prédio, conhecia a identificação do comprador.

27. Quando o réu AA tomou posse efectiva do prédio este encontrava-se abandonado, cheio de infestantes, mato e silvas.

28. Desde que o réu AA tomou posse efectiva do mesmo, procedeu à limpeza do prédio, cortou o mato, lavrou-o, adubou-o e nele tem feito sementeiras, procedendo às respectivas colheitas.

29. Com a limpeza e lavragem do terreno, afectou o trabalhou de dois tractores agrícolas durante três dias e durante 10h por dia.

30. Cada tractor custa, em média, €40,00/hora, o que perfaz, a este propósito, um dispêndio de € 800,00 (oitocentos euros).

31. Durante os referidos dias trabalharam três homens na realização de tais serviços, o que teve um custo não inferior a € 360,00 (€40,00 x3homens x3dias).

32. O réu AA procedeu ao pagamento do Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas, no valor de € 125,00, (cento e vinte e cinco euros), do Imposto Selo, no valor de €20,00 (vinte euros), e do registo do imóvel na Conservatória do Registo Predial, o que teve um custo não inferior a € 100,00 (cem euros). »

E vem não provado:

«a) Que o preço de compra e venda do dito prédio totaliza a quantia de 2 500,00€.

b) Que antes da data da outorga daquela escritura de justificação, em 13 de Março de 2020, nunca o réu AA e mulher possuíram ou usufruíram o dito prédio, não o cultivaram, não o semearam, não tiraram qualquer proveito desse prédio, nem nunca ali foram vistos a praticar qualquer acto de posse.

c) Que os réus AA e mulher BB, por um lado, e o réu CC, por outro, conluiaram-se para, em vez de recorrerem à aquisição do quinhão que este detinha no dito prédio por meio de compra e venda, como deveriam, recorreram àquela aquisição por meio de usucapião, encenando, através dessa escritura, que aquela aquisição já havia ocorrido no ano de 1995, quando, na verdade, essa aquisição ocorreu no acto dessa escritura, no dia 13 de Março de 2020, e não antes.

d) Que os ditos réus recorreram a esse estratagema, – fingindo que essa aquisição já havia ocorrido no ano de 1995 – para, desse modo, impedirem, ou pelo menos dificultarem, que a autora pudesse exercer o direito de preferência relativamente à aquisição do prédio em questão.

e) Que a autora só tomou conhecimento da venda do dito referido prédio no dia 30 de Julho de 2020, quando obteve a já referida nota informativa da CRP de ....

f) Que só tomou conhecimento do preço da venda do prédio alienado quando, no dia 2 de Setembro de 2020, lhe foi revelado (na pessoa do aqui seu mandatário) pela ré EE.

g) Que, no ano de 2017, o réu CC comunicou ao legal representante da autora que era sua intenção (bem como de sua tia e prima) alienarem a totalidade do prédio objecto dos autos.

h) Que referiu ter acordado a venda da totalidade propriedade ao réu AA, pelo preço global de € 5000,00 (cinco mil euros).»

5. Cumpre conhecer da questão de saber se o acórdão recorrido, ao concluir que a autora não é titular do direito de preferência que pretende exercer na presente acção (o que teve como consequência ficar prejudicada a apreciação, pela Relação, do eventual abuso de direito (n.º 2 do artigo 608.º do Código de Processo Civil), violou caso julgado formado pela sentença, quanto à titularidade desse direito por parte da mesma autora.

Trata-se pois de alegação de caso julgado formado dentro do próprio processo (caso julgado formal), muito embora, a entender-se que estava definitivamente decidido que a autora tinha o direito de preferência que veio exercer nesta acção – por se tratar de uma situação em que a sentença continha “decisões distintas” (n.º 2 do artigo 635.º do Código de Processo Civil) e que o recurso de apelação se tinha restringido a partes delas, tendo especificado no requerimento (mesmo n.º 2) ou se resultasse das conclusões (n.º 4) essa restrição – a decisão correspondente tivesse igualmente força de caso julgado material, por respeitar ao mérito da causa.

A ser procedente a alegação de violação do caso julgado parcial assim identificado, estaria infringida a regra constante do n.º 5 do mesmo artigo 635.º, pois “os efeitos do julgado” seriam prejudicados pela decisão da apelação.

6. A diferença entre os julgamentos da primeira e segunda instância, no que à verificação ou inverificação dos pressupostos da constituição do direito de preferência alegado pela autora respeitam, reconduzem-se a diferentes interpretações do n.º 1 do artigo 1380.º do Código Civil: saber se o proprietário de um prédio com área inferior à unidade de cultura goza do direito de preferência em caso de venda (a quem não seja proprietário de nenhum prédio confinante) de uma parte alíquota de um prédio confinante também de área inferior à unidade de cultura, ou se esse direito de preferência só existe em caso de venda da totalidade do prédio – ou ainda se o direito de preferência nasce com a venda da última parte, concentrando-se a totalidade do prédio num mesmo adquirente, como vem provado que sucedeu no caso presente.

Recorde-se que, como explica o acórdão recorrido, não há qualquer prova que sustente a hipótese de fraude à lei, para contornar a interpretação de que o direito de preferência só se constitui em caso de venda da totalidade do prédio.

Como também se recorda no acórdão recorrido, em matéria de direito, o tribunal não está sujeito à alegações das partes (n.º 3 do artigo 5.º do Código de Processo Civil; e cfr, apenas como exemplo, e a propósito da qualificação de um contrato, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Abril de 2012, www.dgsi.pt, proc. n.º 9870/05.5TBBRG.G1.S1 – “(…)o tribunal não está limitado à qualificação jurídica apresentada pelas partes”. Como se pode ler em João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, vol. I, Lisboa, 2022, pág. 90, relativamente ao conhecimento de questões de direito pelo tribunal, “O tribunal não pode ser vinculado pelas partes (nem mesmo por um acordo destas) quanto ao direito aplicável na decisão da causa, daí que o tribunal possa corrigir uma deficiente qualificação jurídica fornecida pelas partes”

Não releva, pois, a alegação de que nem os recorridos questionaram “que a autora estava em condições de beneficiar do direito de preferência” (1.ª conclusão das alegações de revista).

A alegação de violação de caso julgado só poderá, assim, proceder se (1) puder entender-se que o caso julgado se estende aos fundamentos de direito e (2) se puder considerar-se que a decisão de improcedência contém duas decisões distintas, no sentido com que o n.º 2 do artigo 635.º do Código de Processo Civil utiliza esta expressão – uma sobre o preenchimento dos pressupostos do direito de preferência alegado pela autora, outra sobre o abuso desse direito.

Mais do que entender que, considerar que a autora veio exercer abusivamente o direito de preferência implica reconhecer implicitamente que a autora era titular de tal direito de preferência, deve dizer-se que esse reconhecimento é um passo ou uma condição necessária para se concluir pelo seu exercício abusivo. O que não implica, e por isso mesmo, que se possam separar um passo do outro, decompondo o julgamento de improcedência da primeira instância em duas decisões distintas, como se de dois objectos distintos e cindíveis se tratasse e se fosse possível limitar o objecto do recurso ao conhecimento do abuso de direito. Repete-se que a divergência (de direito) entre as instâncias se reconduz a diferentes leituras de um mesmo preceito legal, quanto a um mesmo pressuposto necessário da apreciação do abuso de direito.

Não se pode interpretar a sentença como tendo julgado dois objectos distintos, no sentido do n.º 2 do artigo 635.º citado; nem vincular a Relação à interpretação do n.º 1 do artigo 1380.º do Código Civil que a sentença perfilhou. Assim resulta da interpretação da sentença, interpretação que é naturalmente prévia à indagação do caso julgado que formou (cfr., por todos, o citado acórdão deste Supremo Tribunal de 3 de Fevereiro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 190-A/1999.E1.S1).

O caso jugado parcial que se pode formar, nos termos e para os efeitos dos n.ºs 2 e 4 daquele artigo 635.º, existe quando a sentença ou acórdão que se pretende impugnar parcialmente em recurso, na sua parte dispositiva, contém decisões distintas“por exemplo, em caso de pluralidade de pedidos ou de condenação em multa e indemnização a cargo do litigante de má fé”, como escrevem Lebre de Freitas, Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre em Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, 3.ª ed., Coimbra, 2022, pág 68. “Note-se que a restrição [do objecto do recurso] só é admissível no plano da decisão e não no da fundamentação, como bem mostra o pressuposto das ‘decisões distintas’, só a decisão constituindo objecto do recurso (…), sem prejuízo de o recorrente poder renunciar aos fundamentos que não são de conhecimento oficioso (causa de pedir ou excepção peremptória que só a parte pode invocar”, escrevem ainda estes autores, op cit, págs.68-69, o que não é o caso.

Cfr., por exemplo, o acórdão deste Supremo Tribunal de 11 de Junho de 2002, www.dgsi.pt, proc. n.º 03B671, também relativo ao exercício do direito de preferência dos proprietários de prédios confinantes, no qual igualmente estava em causa a mesma questão relativa à interpretação do n.º 1 do artigo 1380.º do Código Civil e em que o recorrente excluiu do objecto do recurso (de revista) a excepção de caducidade do direito de preferência (excepção peremptória que não é de conhecimento oficioso, artigo 333.º do Código Civil).

7. Não ocorreu, assim, a violação de caso julgado que justificaria a admissão do recurso, uma vez que o valor da causa é inferior à alçada da Relação.

Nestes termos, rejeita-se o recurso.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 16 de Novembro de 2023


Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

Adjuntos: Lino Ribeiro

Sousa Lameira