EMBARGOS DE EXECUTADO
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
OFENSA DO CASO JULGADO
INTERPRETAÇÃO DE SENTENÇA
TÍTULO EXECUTIVO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Sumário


I. No âmbito dos embargos de executado, nos termos do disposto no artigo 854.º do Código de Processo Civil, a admissibilidade de revista afere-se pelas regras relativas ao processo declarativo.
II. Nos recursos de revista que apenas são admissíveis por se fundarem em violação de caso julgado, é jurisprudência assente a restrição da intervenção do Supremo Tribunal de Justiça à verificação desse fundamento.
III. Invocando-se que a sentença proferida nos embargos de executado violou o caso julgado formado pela sentença proferida na acção declarativa, que constitui o título executivo, há que interpretar a primeira sentença, com o objectivo de determinar qual é o âmbito desse caso julgado.
IV. A interpretação de uma sentença obriga a considerar, além da sua parte decisória, a respectiva fundamentação o contexto, os antecedentes e outros elementos que se revelem pertinentes; para além disso, e porque se trata de um acto formal, aliás particularmente solene, cumpre garantir que o sentido apurado tem a devida tradução no texto.
V. Concluindo-se que não houve violação de caso julgado, o recurso não é admissível.

Texto Integral


Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. Pela sentença de fls. 32, foram julgados improcedentes os embargos de executado deduzidos por AA e BB contra a execução para prestação de facto que lhes foi movida por CC, com fundamento na “excepção de cumprimento da obrigação”.

Segundo alegaram, a presente execução é “uma duplicação de acto processual já praticado no âmbito do processo 1909/13.7... pelo Sr. Agente de Execução”.

Para a hipótese de a exequente considerar “que os trabalhos realizados não cumpriam o determinado pela sentença (…) sempre seria incerta, inexigível e ilíquida a obrigação exequenda dos presentes autos, por desconhecerem os executados a não aceitação dos trabalhos pela exequente”.

Concluíram que os embargos deviam proceder, por verificação da excepção peremptória de cumprimento ou, se assim se não entendesse, que a instância executiva devia ser jugada extinta por ser incerta a obrigação exequenda.

Na contestação, a exequente respondeu, por entre o mais, que “os presentes autos são exactamente os mesmos que corriam termos sob o processo n.º 1909/13.7..., J3 cível”, que ocorreram irregularidades que descrevem e que, de qualquer forma, “é completamente falso que o facto esteja cumprido”.

A sentença veio a considerar que resultou da instrução que “parte dos trabalhos a que os embargantes foram condenados não foi feito, ou não foi feito correctamente”.

Consequentemente, determinou o prosseguimento da execução “para a realização dos trabalhos que se mostram por executar, concretamente: – reparação da parede referida na sentença (ou muro, termo tecnicamente mais correcto) com recurso a betão ciclópico (betão simples e pedras) de 30 a 40 cm de espessura ou outra técnica que se mostre adequada – e corte dos ramos e ramascos que ainda se encontram a pender sobre o prédio da exequente”, a realizar no prazo de 7 dias a contar do trânsito em julgado da sentença.

Os executados interpuseram recurso de apelação, a que o Tribunal da Relação de Guimarães de fls. 65 concedeu provimento parcial, “julgando parcialmente procedentes os presentes embargos de executado quanto à obrigação dos executados de retirarem do prédio referido em 1) dos factos provados na sentença exequenda, a terra e pedras que aí se amontoaram decorrentes da derrocada da parede, julgando extinta a execução nessa parte” e, quanto ao mais, confirmando a sentença.

2. Os embargantes recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça, em recurso de revista “que, além do mais, é excepcional (artigo 672.º, n.º 1, alª a) do Código de Processo Civil), por se tratar da apreciação de uma questão com manifesta relevância jurídica”.

Nas alegações que apresentaram, formularam as conclusões seguintes:

«I – POR DOUTA SENTENÇA PROFERIDA NO PROCESSO N.º 1909/13.7..., DO JUÍZO LOCAL CÍVEL DE ..., JUIZ 3, FORAM OS ORA RECORRENTES CONDENADOS A REPARAR UMA PAREDE IDENTIFICADA NOS AUTOS, A RETIRAR DO PRÉDIO A TERRA E PEDRAS QUE AÍ SE AMONTOARAM DECORRENTES DA DERROCADA DESSA PAREDE; E A CORTAR OS RAMOS E AS RAÍZES DOS ARBUSTOS EXISTENTES NO VALADO DO PRÉDIO MENCIONADO EM 6) QUE SE ENCONTRAM A PENDER SOBRE O PRÉDIO CUJO USUSFRUTO PERTENCE À ORA RECORRIDA.”

II – SUCEDE QUE OS ORA RECORRENTES, NAQUELES AUTOS, CONSIDERAM QUE, EM 27/01/2018, DERAM JÁ INTEGRAL CUMPRIMENTO ÀS OBRIGAÇÕES QUE LHE FORAM IMPOSTAS NOS AUTOS PRINCIPAIS.

III - TODAVIA, O TRIBUNAL DE 1.ª INSTÂNCIA - SUFRAGADO PELO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES - CONSIDEROU QUE “A INSTRUÇÃO DA CAUSA VEIO A PERMITIR APURAR É QUE PARTE DOS TRABALHOS A QUE OS EMBARGANTES FORAM CONDENADOS NÃO FOI FEITO, OU NÃO FOI FEITO CORRECTAMENTE. (SUBLINHADO E NEGRITO NOSSO)

IV - E NESSA SEQUÊNCIA, O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES MANTEVE PARCIALMENTE O ENTENDIMENTO DO TRIBUNAL DA 1.ª INSTÂNCIA, E JULGOU: “PARCIALMENTE IMPROCEDENTES OS PRESENTES EMBARGOS DE EXECUTADO E EM CONSEQUÊNCIA: A) DETERMINO O PROSSEGUIMENTO DA EXECUÇÃO PARA A REALIZAÇÃO DOS TRABALHOS QUE SE MOSTRAM POR EXECUTAR, CONCRETAMENTE: - REPARAÇÃO DA PAREDE REFERIDA NA SENTENÇA (OU MURO, TERMO TECNICAMENTE MAIS CORRECTO) - COM RECURSO A BETÃO CICLÓPICO (BETÃO SIMPLES E PEDRAS) DE 30 A 40 CM DE ESPESSURA OU OUTRA TÉCNICA QUE SE MOSTRE ADEQUADA - E CORTE DOS RAMOS E RAMASCOS QUE AINDA SE ENCONTRAM A PENDER SOBRE O PRÉDIO DA EXEQUENTE; B) FIXO EM 7 DIAS (CONTADOS DO TRÂNSITO EM JULGADO DESTA DECISÃO) O PRAZO PARA OS EXECUTADO(A)(S) PROCEDEREM AOS TRABALHOS EM FALTA E REFERIDOS EM A);

V - TODAVIA, ENTENDEM OS ORA RECORRENTES QUE A DOUTA SENTENÇA E ACÓRDÃO PROFERIDO PELOS TRIBUNAIS RECORRIDOS ENCONTRAM-SE FERIDOS DE NULIDADE POIS A MATÉRIA DE DIREITO ENCONTRA-SE ERRONEAMENTE APLICADA AO CASO SUB JUDICE, DESIGNADAMENTE, NA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DAS REGRAS DO INSTITUTO DO CASO JULGADO;

VI – A SENTENÇA E O ACÓRDÃO PROFERIDOS PELO TRIBUNAL DE 1.º INSTÂNCIA E PELO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES, APESAR DE TEREM CONSIDERADO PROVADOS FACTOS ALEGADOS PELOS EMBARGANTES, ORA RECORRENTES, E ESSENCIAIS QUER PARA A PROVA DA EXCEPÇÃO DE CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO QUER PARA A SUBSUNÇÃO AO DIREITO APLICÁVEL, PROCEDEM A UMA ERRÓNEA INTERPRETAÇÃO DO ALCANCE DA SENTENÇA PROFERIDA NO PROCESSO N.º 1909/13.7..., DO JUÍZO LOCAL CÍVEL DE ..., JUIZ 3, E APLICAÇÃO DO DIREITO – INSTITUTO DO CASO JULGADO.

VII - COMO QUESTÃO CENTRAL A DEBATER NO PRESENTE RECURSO TEMOS O MANIFESTO ERRO DE INTERPRETAÇÃO PELOS TRIBUNAIS A QUO DA SENTENÇA PROFERIDA NOS AUTOS PRINCIPAIS (QUE SERVE DE TITULO À EXECUÇÃO NOS PRESENTES AUTOS), E QUE CONDUZ A UM DESACERTO OU EQUIVOCO QUANTO À ABRANGÊNCIA DA OBRIGAÇÃO DE REPARAR A PAREDE IMPOSTA AOS ORA RECORRENTES.

VIII - PELO QUE, QUANDO O TRIBUNAL A QUO CONDENA OS ORA RECORRENTES NA REPARAÇÃO DA PAREDE REFERIDA NA SENTENÇA (OU MURO, TERMO TECNICAMENTE MAIS CORRECTO) - COM RECURSO A BETÃO CICLÓPICO (BETÃO SIMPLES E PEDRAS) DE 30 A 40 CM DE ESPESSURA OU OUTRA TÉCNICA QUE SE MOSTRE ADEQUADA, INCORRE EM MANIFESTA VIOLAÇÃO DO CASO JULGADO FORMAL, PREVISTO NO ART. 620º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.

IX - ISTO PORQUE, O TRIBUNAL DE 1.ª INSTÂNCIA E O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES, COM AS MESMAS PARTES E REPORTANDO-SE AOS MESMOS FACTOS, VERIFICADOS E ATENDIDOS JÁ NUMA PRIMEIRA DECISÃO, VOLTAM A DECIDIR A MESMA QUESTÃO, NESSE MESMO CONTEXTO PROCESSUAL, DE FORMA DIVERSA E OMITINDO POR COMPLETO A MOTIVAÇÃO DA DECISÃO PROFERIDA NO PROCESSO PRINCIPAL.

X – A INTERPRETAÇÃO FEITA PELO TRIBUNAL DE 1.ª INSTÂNCIA E O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES ESVAZIA O ALCANCE DA SENTENÇA PROFERIDA NOS AUTOS PRINCIPAIS, BEM COMO, CONTRARIA OS FACTOS PROVADOS E OS FUNDAMENTOS/MOTIVAÇÃO DA MESMA.

XI – NA FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA PROFERIDA NO PROCESSO N.º 1909/13.7..., DO JUÍZO LOCAL CÍVEL DE ..., JUIZ 3 RESULTA CLARAMENTE DEMONSTRADO O PENSAMENTO/RACIOCÍNIO DO JULGADOR QUANTO AO ALCANCE DA OBRIGAÇÃO DE REPARAÇÃO DA PAREDE:“ (…) FACE AO EXPOSTO, FORÇOSO É CONSIDERAR QUE A PARTE DA REFERIDA PAREDE QUE AINDA SE MANTÉM ERIGIDA OFERECE PERIGO DE RUIR, NOS TERMOS PREVISTOS NO ART. 1350º DO CC. MAIS: FACE À NATUREZA E À MORFOLOGIA DO LOCAL EM CAUSA, DESSA RUÍNA PODERÃO RESULTAR AINDA MAIS DANOS QUE OS JÁ VERIFICADOS. ASSIM, NOS TERMOS DO MENCIONADO PRECEITO, IMPÕE-SE CONDENAR OS RR. A LEVAR A CABO A AS PROVIDÊNCIAS NECESSÁRIAS PARA ELIMINAR O PERIGO DE DERROCADA DA PARTE DA PAREDE AINDA ERIGIDA. ASSIM, DEVERÃO OS RR. SER CONDENADOS A REPARAR A REFERIDA PAREDE.”

XII – OS TRIBUNAIS RECORRIDOS OMITIRAM POR COMPLETO A MOTIVAÇÃO DA DECISÃO PROFERIDA E EXTRAVAZARAM POR COMPLETO O SENTIDO DA DECLARAÇÃO PROFERIDA NOS AUTOS PRINCIPAIS.

XIII - A NÃO OBSERVÂNCIA DAS REGRAS EXPOSTAS CONSTITUI CAUSA DE NULIDADE DA SENTENÇA, NOS TERMOS DAS AL.AS B) A E) DO N.º 1 E N.º 4 DO ARTIGO 615.º DO CPC.

XIV – DEVENDO SER REVOGADA A DOUTA SENTENÇA E DOUTO ACORDÃO PROFERIDOS PELO TRIBUNAL 1.ª INSTÂNCIA E RELAÇÃO DE GUIMARÃES, REFORMANDO-OS POR OUTRA ONDE OS EMBARGOS DEDUZIDOS PELOS ORA RECORRENTES SEJAM CONSIDERADOS TOTALMENTE PROCEDENTES

XV – A DOUTA DECISÃO DO TRIBUNAL “A QUO” VIOLA O DISPOSTO NOSARTIGO 20.º CRP, 234.º CC, ARTIGOS 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 514.º, 607.º, 615.º, 619.º E 620.º DO CPC.

NESTES TERMOS,

e nos melhores de Direito, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, na parte referente ao prosseguimento da execução para a realização dos trabalhos que se mostram por executar, concretamente: - reparação da parede referida na sentença (ou muro, termo tecnicamente mais correcto) - com recurso a betão ciclópico (betão simples e pedras) de 30 a 40 cm de espessura ou outra técnica que se mostre adequada (…)».

Não houve contra-alegações.

A fl. 96, o Tribunal da Relação de Guimarães proferiu novo acórdão, desatendendo as nulidades arguidas.

3. Vem provado o seguinte (transcreve-se da sentença; o acórdão recorrido desatendeu a impugnação da matéria de facto que foi deduzida na apelação)::

1) CC instaurou, em 29 de Dezembro de 2017, a execução para prestação de facto de que estes autos são apenso contra AA e BB, ora Embargantes.

2) A execução foi instaurada nos próprios autos de processo declarativo, Proc. 1909/13.7..., do Juízo Local Cível de ..., Juiz 3, servindo como título a sentença proferida nesses autos, em 30/06/2017 e transitada em julgado em 22/09/2017, e cuja decisão, no que ora interessa, é a seguinte:

«Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a presente acção e, consequentemente:

- Reconheço e declaro que o muro referido em 10) a 12) dos “factos provados” é parte integrante do prédio referido em 1) dos “factos provados”, sendo os intervenientes DD e EE proprietários desse prédio e a A. CC usufrutuária do mesmo;

- Condeno os RR. AA e BB a reparar a parede referida em 21) e 22) dos “factos provados”.

- Condeno os RR. AA e BB a retirar do prédio referido em 1) dos factos provados a terra e pedras que se amontoaram decorrentes da derrocada dessa parede; e

- Condeno os RR. AA e BB a cortar os ramos e as raízes dos arbustos existentes no valado do prédio mencionado em 6) que se encontram a pender sobre o prédio referido em 1).»

3) Ficou a constar da sentença nos Factos provados, designadamente:

«21 - Na zona do valado situada a nascente, junto à garagem situada no prédio referido em1) e junto à linha divisória dos prédios, os réus, já há alguns anos, construíram uma parede composta por pedras de granito sobrepostas e elementos de betão, numa extensão de cerca de três metros.

22 – Uma vez que essa parede não apresenta constituição firme, as terras e pedras que compõem o valado e essa mesma parede deslizaram, tendo ultrapassado, em alguns locais, a linha que divide os dois prédios.

23 - Uma dessas pedras pesa cerca de uma tonelada, vindo a mesma a embater na parede da garagem situada no prédio referido em 1)

24 – A terra e pedras que se amontoaram no prédio referido em 1) decorrentes dessa derrocadaequeaísedepositaramimpedemqueaA.ousufruanormalmenteeemplenitude nessa especifica zona.»

4) Em 27/01/2018, os executados iniciaram os trabalhos em que foram condenados nos autos principais, na presença do Sr. Agente de Execução Dr. FF.

5) Os Executado(a)(s) procederam ao corte de ramos e arbustos bem como retiraram do prédio referido em 1) dos factos provados na sentença exequenda, a terra e pedras que aí se amontoaram decorrentes da derrocada da parede;

6) Mas existem ainda ramos e ramascos a pender sobre o prédio da Exequente.

7) A parede que os Executado(a)(s) foram condenados a reparar apresenta-se de tal modo precária, que não é passível de ser reparada sem um desmonte total.

8) A sua correcta reparação com recurso a betão ciclópico (betão simples e pedras) de 30 a 40 cm de espessura, ascende ao custo de 750,00 € + IVA, o qual tem em conta movimento de terras, fundação, as dificuldades de execução e a pequena dimensão do trabalho.

9) O corte dos ramos e ramascos referidos em 7 ascenderá a €60,00 + IVA.

10) O prazo necessário à realização dos trabalhos de reparação do muro e corte dos ramos e ramascos que ainda se encontram a pender sobre o prédio da Exequente é de 4,5 (quatro e meio) dias úteis, contando com o tempo de cura do betão.

Segundo a mesma sentença, “com interesse para a decisão a proferir não se provaram quaisquer outros factos, designadamente, não se provou que”:

«- Em 20/01/2018, os executados tentaram iniciar a execução dos trabalhos, não tendo a exequente permitido, não abrindo as portas, o que deu lugar a um auto de ocorrência;

- os Executado(a)(s) tivessem procedido à total e correcta reparação da parede a que foram condenados, bem como que não se encontrem já quaisquer ramos e ramagens a pender sobre o prédio da Exequente;

- a Exequente houvesse aceite os trabalhos realizados pelos Executado(a)(s) tendo-os dado como bem executados.»

4. Nos termos do disposto no artigo 854.º do Código de Processo Civil, a admissibilidade de revista, no âmbito dos embargos de executado, afere-se pelas regras relativas ao processo declarativo. No caso, a revista foi interposta nos termos gerais – n.º 1 do artigo 671.º do Código de Processo Civil –, dizendo-se ainda no requerimento de interposição de recurso ser um “recurso de revista que, além do mais, é excepcional (artigo 672.º, n.º 1, al.ª a) do CPC), por se tratar de uma questão de direito com manifesta relevância jurídica”; todavia, nas alegações, os recorrentes invocam violação do caso julgado formado pela sentença de cuja execução agora se trata, sustentando que a sentença proferida nos embargos de executado, parcialmente confirmada pelo acórdão recorrido, o infringe.

Não sendo admissível nos termos gerais, uma vez que o valor de € 5 500,01 não excede manifestamente a alçada da Relação (n.º 1 do artigo 629,º do Código de Processo Civil), o presente recurso só será admissível se efectivamente ocorrer violação de caso julgado (artigo 854.º. e n.ºs 1 e 2, a) do artigo 629.º do Código de Processo Civil). Aqui, foi invocada a violação de caso julgado formal (cfr., expressamente, a concl . VIII das alegações de revista).

Nos recursos de revista que apenas são admissíveis por se fundarem em violação de caso julgado, como aqui sucede, é jurisprudência assente a restrição da intervenção do Supremo Tribunal de Justiça à verificação desse fundamento (cfr. apenas como exemplo os acórdãos deste Supremo Tribunal de 3 de Fevereiro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 190-A/1999.E1.S19, de 18 de Outubro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 3468/16.0T9CBR.C1.S1) ou de 11 de Maio de 2022, www.dgsi.pt, proc. n.º 60/08.6TBADV-2.E1.S1), fundamento que é, antes de mais, requisito de admissibilidade do recurso. A revista interposta nestas circunstâncias – repete-se, a que apenas é admissível se ocorrer violação de caso julgado pela decisão recorrida – não se destina, por exemplo, a verificar o acerto ou desacerto com que a Relação (muito menos a 1.ª Instância) procedeu à “interpretação e aplicação das regras do instituto do caso julgado” – cfr. conclusão V das alegações de revista. Diga-se ainda que, a considerar-se que “a matéria de direito (se) encontra(…) erroneamente aplicada ao caso sub iudice, designadamente na interpretação e aplicação das regras do instituto do caso julgado”, tal circunstância não seria causa de nulidade do acórdão (cfr. a mesma conclusão V), mas de erro de julgamento.

Passar-se-á, portanto, a determinar se o acórdão recorrido violou o caso julgado formado pela sentença que aqui constitui título executivo, que baliza os termos da execução (n.º 5 do artigo 11.º do Código de Processo Civil), não sem antes esclarecer que, ainda que a revista seja admissível, o efeito do recurso é meramente devolutivo, porque a revista só tem efeito suspensivo nas questões relativas ao estado das pessoas (n.º 1 do artigo 676.º do Código de Processo Civil), e, ainda, que a violação de caso julgado é fundamento de revista “normal” (al. a) do n.º 2 do artigo 629.º do Código de Processo Civil); assim sendo, que não se põe sequer a questão de poder ser fundamento de revista excepcional (que, aliás, é um recurso de revista, que só tem de excepcional a sua admissibilidade).

5. O fundamento da exequibilidade de uma sentença condenatória, ou seja, “que condene(m) no cumprimento de uma obrigação” (artigos703.º, n.º 1, a) e 705.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil) reconduz-se à força probatória do caso julgado material. Averiguar qual é a extensão (objectiva, que é o que agora interessa) desse caso julgado é imprescindível para se poder determinar se uma decisão posterior o violou; o que implica a respectiva interpretação. Interpretar o conteúdo de uma sentença de mérito é pressuposto indispensável da determinação do âmbito do caso julgado material, naturalmente.

Mas essa averiguação é igualmente indispensável quando se tratar da força de caso julgado formal. O fundamento do caso julgado formal é a disciplina processual, que se manifesta agora na lógica da preclusão: o caso julgado formal é uma manifestação da preclusão. Por isso se diz habitualmente que o primeiro efeito da interposição de um recurso é, justamente, impedir o caso julgado formal da decisão de que se recorre.

Ora, quer numa perspectiva, quer noutra, saber se uma decisão judicial contradiz uma decisão já transitada, proferida no mesmo processo ou num processo anterior, implica naturalmente determinar o âmbito do que não pode ser contrariado – o que é o mesmo que dizer o âmbito do caso julgado –, sob pena de, no mínimo, ineficácia da segunda decisão (n.ºs 1 e 2 do artigo 625.º do Código de Processo Civil). Esta desconsideração da segunda decisão é a protecção última do caso julgado, a considerar quando falhou a barreira da excepção de caso julgado, formal ou material.

Sabe-se que, para o efeito, não basta considerar a parte decisória da sentença, cabendo tomar na devida conta a respectiva fundamentação (“é ponto assente na doutrina que os fundamentos da sentença podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado”, escrevem Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra, 1985, pág. 715, como se recorda no acórdão de 29 de Abril de 2010, www.dgsi.pt, proc. n 102/2001.L1.S1), o contexto, os antecedentes e outros elementos que se revelem pertinentes (acórdão de 8 de Junho de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 25.163/05.5YLSB.L1.S1). Para além disso, e porque se trata de um acto formal, aliás particularmente solene, cumpre garantir que o sentido tem a devida tradução no texto (cfr., com o devido desenvolvimento, o acórdão de 3 de Fevereiro de 2011, www.dgsi.pt, proc. nº 190-A/1999.E1.S1 e o acórdão de 25 de Junho de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 351/09.9YFLSB).

6. Resulta das alegações dos recorrentes que a violação do caso julgado formado pela sentença exequenda respeita a dois pontos:

– à extensão da parede, ou muro, a reparar – se a parede ou muro inicialmente construído (como se entendeu no acórdão recorrido, confirmando a sentença proferida nos embargos), se apenas a parte ainda erigida (como consideram os recorrentes),

– à forma da reparação, definida na mesma sentença e confirmada pelo acórdão recorrido como implicando “recurso a betão ciclópico (betão simples e pedras) de 30 a 40 cm de espessura ou outra técnica que se mostre adequada”.

No que agora releva, tendo em conta a procedência parcial da apelação, a sentença exequenda pronunciou-se nos seguintes termos, em grande parte transcritos no acórdão recorrido:

“Pediu ainda a A. que os RR. fossem condenados a fazer as obras que forem necessárias, no valado referido nesta acção, de forma a evitar desmoronamentos, nomeadamente, reparando a parede por eles construída na extrema nascente do seu prédio, junto à garagem do prédio referido em 1). Efectivamente, ficou provado que os RR. construíram, na extrema nascente do valado referido, junto à linha divisória dos prédios, uma parede composta por pedras de granito sobrepostas e elementos de betão, numa extensão de cerca de três metros. Também ficou provado que tal parede não apresentava constituição firme; igualmente se demonstrou que, por via disso, as terras e pedras que compõem o valado e essa mesma parede deslizaram, tendo ultrapassado, em alguns locais, a linha que divide os dois prédios. Face ao exposto, forçoso é considerar que a parte da referida parede que ainda se mantém erigida oferece perigo de ruir, nos termos previstos no art. 1350º do CC. Mais: face à natureza e à morfologia do local em causa, dessa ruína poderão resultar ainda mais danos que os já verificados. Assim, nos termos do mencionado preceito, impõe-se condenar os RR. a levar a cabo as providências necessárias para eliminar o perigo de derrocada da parte da parede ainda erigida. Assim, deverão os RR. ser condenados a reparar a referida parede. (…)”

Da leitura atenta do texto da parte decisória, à luz da respectiva fundamentação acabada de transcrever, bem como da consideração da finalidade tida em conta com a condenação, resulta que esta condenação teve como objecto a parede ou muro inicialmente construído (identificado no ponto 21 da matéria de facto considerada na sentença exequenda).

Assim resulta:

– do texto da condenação («Condeno os RR. AA e BB a reparar a parede referida em 21) e 22) dos “factos provados”»),

– da justificação para que a obrigação de reparar abranja toda a parede ou muro identificada em 21), pois se entendeu que a deficiente construção do muro provocou a derrocada já verificada e conduz ao perigo iminente de desmoronamento da parte “que se mantém erigida” : “Face ao exposto” (recorde-se, à razão do desmoronamento já verificado), “forçoso é considerar que a parte da referida parede que ainda se mantém erigida oferece perigo de ruir (…).”

– da finalidade tido com a condenação: evitar a derrocada da parte que ainda se mantém e de mais danos que dela poderão resultar: ““Face ao exposto, forçoso é considerar que a parte da referida parede que ainda se mantém erigida oferece perigo de ruir. Mais: face à natureza e à morfologia do local em causa, dessa ruína poderão resultar ainda mais danos que os já verificados”;

Note-se que o sentido assumido pelas instâncias, nos embargos de executado, corresponde ao sentido literal da condenação, que remete expressamente para «a parede referida em 21) e 22) dos ‘factos provados”». Está assim respeitada a natureza de acto formal da sentença.

7. No que respeita à forma da reparação, é certo que a sentença exequenda não a definiu. Todavia, consistindo o fundamento dos embargos na alegação de cumprimento, e apurando-se que não procedia, era imprescindível averiguar como tecnicamente se deveria reparar o muro – ou, dito de outra forma, tratando-se de uma execução para prestação de facto positivo, em que actos se deveria traduzir.

Como se escreveu no acórdão recorrido, “teremos de concluir que não estando definido na sentença exequenda o concreto modo de execução (solução técnica) a observar na reparação da parede (muro), cabe ao Tribunal que executa essa sentença ordenar, como ordenou, a realização das diligências necessárias (neste caso concreto, a realização de perícia por um engenheiro com conhecimentos técnicos nesta área) para, não só fixar o prazo, mas também definir qual a solução técnica para a correcta execução da reparação dessa parede (muro).” Não se alcança, em boa verdade, como se poderá detectar aqui qualquer violação do caso julgado.

E sempre se recorda que as instâncias determinaram que a reparação deveria ser efectuada “com recurso a betão ciclópico (betão simples e pedras) de 30 a 40 cm de espessura ou outra técnica que se mostre adequada.

8. Não ocorrendo violação de caso julgado, o presente recurso não é admissível.

Assim, rejeita-se o recurso.

Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 16 de Novembro de 2023


Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

1.ª Adjunta: Fátima Gomes

2.º Adjunto: Sousa Lameira